Cláudia Rodrigues, convida seus leitores para acompanhar os deslocamentos ocorridos na compreensão da morte e do morrer. No século XVIII e início do século XIX, a preocupação com o “morrer bem” era palpável em todas as classes sociais da cidade do Rio de Janeiro. A leitura dos testamentos do setecentos e do oitocentos revela quanto os habitantes do Rio de Janeiro tinham introjetado práticas e representações católicas da morte e do morrer. O objetivo primeiro dos testamentos era a salvação da alma após a morte e a sua feitura seguia orientações pastorais da Igreja para se obter uma “boa morte”.
O acompanhamento cuidadoso do processo de desritualização da morte e do morrer revela as práticas e representações católicas, os debates ocorridos entre a Igreja e o Estado e o processo de secularização vivido pela sociedade brasileira. Sob o aspecto analítico, a pesquisa realiza um duplo movimento: no primeiro, procura identificar os mecanismos de controle da morte e do morrer por parte da Igreja; e, no segundo, o gradual desmonte dos mesmos, em especial na cidade do Rio de Janeiro.
Os seis capítulos estão respaldados por uma rica e minuciosa pesquisa em fontes primárias como testamentos, registros de óbitos, fontes jornalísticas e registros civis, entre outras, para recuperar as linhas mestras de uma “pedagogia do bem morrer” tão presente no século XVIII e inícios do XIX.
Acompanhar Cláudia Rodrigues é perceber uma das linhas de força que estruturavam a sociedade da época, influenciando seus saberes e fazeres, é perceber também a disjunção tão marcante na sociedade atual entre a morte e a vida. Caberá aos leitores as inferências para captar a amplidão dessas práticas ao longo do tempo e a sua inflexão, sua descontinuidades e permanências.
A pedagogia católica do “bem morrer” intensificou-se a partir do ano 313, quando da oficialização do Cristianismo por Constantino, reafirmou-se nos séculos XI e XII e consolidou-se nos séculos seguintes. A condenação das expressões da mentalidade pagã foram acompanhadas de um intenso trabalho de clericalização da morte como substituição do costume de dar alimento aos pobres pela esmola; do banquete fúnebre pela eucaristia; translado dos corpos dos mártires para o interior das basílicas; instituição do clero como intermediário entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos; instituição da sepultura eclesiástica e do velório; criação do purgatório, como lugar de purificação após a morte; difusão da prática da confissão auricular para redimir as culpas e valorização da agonia. “Indício importante desta tendência de intensificar a clericalização da morte foi o estabelecimento, por parte da Igreja, dos recursos para garantir a salvação da alma no momento do Juízo, ou seja, a boa morte.” (p.51)
Gradualmente, morrer transformou-se numa arte patrocinada pela Igreja, que durante os séculos XIV e XV valorizou o momento próximo da morte e após o Concílio de Trento (1545-1563) até o século XVIII valorizou a vida santa como a melhor preparação para a morte. Os manuais se constituíram nas expressões gráficas desta dramática e eficaz estratégia pastoral. O mais célebre deles, em Portugal, é o do jesuíta Estevan de Castro, intitulado “O Breve aparelho e modo fácil para ensinar o bem morrer a um cristão”, publicado pela primeira vez em 1621. Entre as razões do sucesso desse manual pode-se enumerar o seu caráter pragmático, o ter como base a experiência pastoral do autor, a sua organização e estrutura interna e o ser passível de mudanças. Estevan de Castro prioriza os últimos momentos da vida, contrariando a orientação vigente de se insistir na vida santa como sendo a melhor preparação para a morte. Orientação que se faz presente no manual de frei José de Santa Maria intitulado “Brados do pastor às suas ovelhas”, publicado em 1731. Os manuais ensinavam aos moribundos os caminhos para a boa morte. Caminhos que, para Rodrigues, “também foram seguidos pelos católicos do Rio de Janeiro”. (p.72) A culpabilização, dado que emerge dos testamentos, especialmente, os dos negros(as), “sugere a apropriação do discurso eclesiástico sobre o pecado, por parte dos testadores” da cidade do Rio de Janeiro, no século XVIII e início do século XIX. (p.98)
Dado questionador da “teoria da dissimulação”, muito utilizada até pouco tempo atrás por antropólogos, historiadores e cientistas da religião para explicar a apropriação do catolicismo pelos negros(as). Sob o aspecto formal, os 277 testamentos analisados pela autora utilizam a “fórmula de Estevan” e foram redigidos predominantemente por leigos versados na arte de bem morrer e não por sacerdotes e notários (séc. XVIII). Segundo a autora, a difusão dos manuais na colônia explica esta disseminação de “peritos” no setecentos. Os motivos para testar são inúmeros e mudam ao longo do tempo, no século XVIII e início do século XIX. O medo da morte era a razão hegemônica, o que é explicado, em parte, pela associação entre doença e pecado.
Os testamentos confirmam que o momento de uma doença grave era o mais propício para os testadores se aparelharem, isto é, preparem-se para a morte. Isso revela que “enquanto a Igreja deteve hegemonia na sociedade, era a proximidade da morte a ocasião em que ela melhor conseguia exercer seu controle sobre os comportamentos e os pensamentos dos fiéis” (p.127). O ato de testar revestia-se de finalidades espirituais e materiais. A Igreja se beneficiou muito, recebendo bens para realizar obras pias. Entre os ensinamentos para o “bem morrer”, a recepção dos sacramentos se somava ao ato de testar. Os sacramentos mais ministrados eram o da penitência, muitas vezes seguido da eucaristia e extrema-unção.
No século XIX, a questão dos enterramentos nos cemitérios públicos, criados para atender à nova mentalidade médico-higienista, gerava tensão entre o Estado, a Igreja e a sociedade civil. Os cemitérios públicos precisavam ser benzidos, portanto não eram tão públicos assim - e só alguns reservavam espaços não-bentos para sepultar não-católicos ou acatólicos, exigência esta da lei de 1º de outubro de 1828.
A negação da “sepultura eclesiástica” ao general José Inácio de Abreu e Lima, em Recife; a Mariano Procópio, no Estado do Rio, e ao Visconde de Inhaúma, Joaquim José Inácio e a David Sampson, no Rio de Janeiro, apimentou as discussões em curso sobre a jurisdição eclesiástica de cemitérios extramuros e sobre os sepultamentos.
Essa tensão, que cresceu no pós 1868, irá culminar mais tarde na Abolição, na Republica, e trará, na opinião de Rodrigues, “o fim do padroado, a separação entre Igreja e Estado, a liberdade de culto, a implementação do casamento civil e da secularização dos cemitérios” (p.154).
No cenário internacional, a Igreja do papa Pio IX resistia ao mundo moderno e à “laicização da sociedade”. O episcopado antiliberal e ultramontano combatia o regalismo e o juridicismo do Estado, solidificando seus vínculos com a Cúria Romana. O Estado Imperial esforçava-se por manter sua política ambígua na tentativa de preservar “autoritarismo e liberalismo, jurisdicismo confessional e tolerância religiosa, esfera pública e privada, estatuto de súbdito e cidadão” (p.157). A polêmica envolvendo protestantes e maçons e a Igreja católica se deu nesse contexto.
O caso do não sepultamento de David Sampson - suicida e protestante - acabou repercutindo na sociedade e no Estado que desejava implantar a liberdade religiosa, preservando a confessionalidade. Esta ambigüidade se fez presente na resolução de 20 de abril de 1870, que permitia à Igreja continuar realizando as cerimônias religiosas nos cemitérios contanto que reservasse um espaço para o enterro dos não-católicos.
A implementação da resolução de 20 de abril de 1870 mostrava a delicada e ambígua posição do Estado imperial: precisava abrir espaço para a inserção social dos imigrantes ‘acatólicos’, devido às necessidades econômicas, mas não podia abrir mão da parceria da Igreja e da religião como fatores de ordenamento social. (p.188).
A Igreja viu na medida uma profanação, os protestantes, uma demonstração de “caridade civil” e de redução do poder da Igreja sobre a população. O jornal “O Apostolo” publicou uma série de artigos defendendo a sepultura eclesiástica e seu caráter sagrado.
A morte do intelectual e político Antônio Cândido Tavares Bastos, aos 2 de maio de 1875, entristeceu os defensores das causas libertárias. Tavares Bastos participara intensamente dos debates que marcaram a segunda metade do século XVIII, como a defesa dos migrantes, especialmente, protestantes, a abertura da legislação e a modernização dos costumes. Seu enterro, na visão do jornal “O Apostolo”, um autêntico “enterro civil”, sem qualquer cerimônia religiosa, escandalizou o clero ultramontano e os fiéis.
Já ressabiada com a criação dos cemitérios públicos, a Igreja, na década de 1870, via-se às voltas com normas exaradas pela Assembléia Provincial do Rio de Janeiro, que ameaçavam seu controle da população.
Já na década de 1870, os regulamentos começaram a afetar o direito paroquial sobre os sepultamentos ao enfocarem as encomendações. Tais regulamentos foram fortemente questionados e combatidos pelos representantes da Igreja ultramontana, que identificaram nele uma intenção secularizante dos governos provincial e imperial, com o fim último de promover a separação entre Igreja e Estado. (p. 217)
Não bastasse a gradual perda de jurisdição sobre cemitérios, como os de Santa Maria Madalena, Vassouras, Araruama, Campos, Saquarema e Pati de Alferes, a questão do atestado de óbito era preocupante. O Estado Imperial, de fato, desde o início do Segundo Reinado vinha cerceando as atribuições burocráticas da Igreja. A lei do registro civil - de nascimentos, de casamentos e óbitos -, entre 1874-1877, foi aprovada pela Assembléia Geral.
A retirada do controle paroquial dos registros gerou inúmeras tensões; os párocos, de gerenciadores, passaram a ser mais informantes; a população rejeitou e o próprio Estado não tinha condições materiais para realizar os assentamentos. O registro civil, aprovado em 1877, só seria mesmo implantado plenamente em 1916, com o Código Civil.
A introdução na Câmara dos Deputados, por Saldanha Marinho - deputado pela Amazônia - aos 16 de fevereiro de 1879, do projeto de secularização dos cemitérios, abriu uma discussão que só terminaria definitivamente em 1916.
Entre os defensores do projeto encontravam-se os deputados Joaquim Nabuco, Barros Pimentel e Antônio Siqueira, entre outros. Eles articulavam sua argumentação em torno de alguns pontos: a distinção entre o poder religioso e o eclesiástico, a separação do sagrado e do profano, a negação do poder clerical e da pedagogia do medo, convictos que a secularização dos cemitérios era uma questão de cidadania, de jurisdição civil e não religiosa. Toda a argumentação vinha respaldada por uma nova visão antropológica que compreendia o corpo como matéria, separado da alma humana, portanto, não sagrado.
Perfilavam, como defensores da sepultura eclesiástica, os seguintes deputados: Antônio Carlos, Bezerra de Menezes, Rodolfo Dantas, Felício dos Santos, Afonso Pena e João José de Monte.
Considerando o corpo indissoluvelmente unido à alma, reafirmavam a sacralidade do cadáver, das sepulturas/cemitérios, e chamavam, ainda, atenção para a impossibilidade de realização do projeto pelo seu custo, pelo não cumprimento da lei de 1º de outubro de 1828 e pela oposição do povo cristão. “Foram estes, pois, os dois grandes lados da disputa pelo controle dos cemitérios e dos mortos nele inumados: os que preconizavam que eles deveriam ser da alçada do poder público e, portanto, civil, e os que acreditavam que deveriam continuar sendo da esfera do poder eclesiástico e sagrado” (p.286).
Uma questão espinhosa referia-se à manutenção ou não dos cemitérios particulares, resolvida em parte pelo substitutivo apresentado pelo deputado Theodoro Souto. O tom conciliatório do projeto e a sutil distinção entre o direito de sepultura e o de exéquias, não contemplados no projeto de Saldanha Marinho, possibilitou a aprovação. Na década de 1880, na sessão do Senado, em 14 de outubro, a discussão foi reaberta, graças às pressões de Escragnolle Taunay. A oposição voltou a falar da inviabilidade do projeto tanto por razões institucionais quanto religiosas. A última referência ao projeto, localizada pela autora, é de 23 de setembro de 1887.
Esse longo processo revela a força dos tradicionalistas, dos ultramontanos, e a falta de apoio da população a e um projeto pensado pela elite. A discussão ocorrida entre 1869 e 1889, no entanto, preparou os ânimos para os tempos republicanos. Gradualmente, os testamentos da segunda metade do século XIX deixam de lado as preocupações escatológicas e soteriológicas, a pompa, o luxo, a ostentação dos funerais e os sufrágios. “Estas alterações do conteúdo e da forma do testamento indicam que ele não parecia mais ser um instrumento privilegiado pelo fiel para demonstrar suas preocupações em relação à sua morte e ao post-mortem.” (p.324).
Essas práticas testamentárias e funerárias simplificadas e mais secularizadas refletem transformações em curso na sociedade brasileira, que internalizara orientações dadas pela reforma pombalina (1770). A reforma pombalina, entre outras coisas, visava transformar uma arraigada prática religiosa, com relação à morte e aos mortos, em prática civil, impedindo que se “nomeasse a alma por herdeira”. (ibid: 330). Na esteira de Jean Delumeau, a autora questiona o emprego do termo “descristianização” (Philippe Áries; Michel Vovelle) para indicar o decréscimo das práticas religiosas na sociedade francesa. Tendo presente os diversos modelos de Cristianismo, ela opta pelo conceitos de secularização (Peter Berger e Thomas Luckmann) para explicar o reflexo do “Cristianismo do medo” na sociedade e na vida dos fiéis. A autora relembra que, “ao acompanhar momentos da história do cristianismo, pude identificar uma relação estreita entre as atitudes diante da morte e do além túmulo e a modalidade de cristandade vigente” (p.349).
No interior de uma nova modalidade de Cristianismo, a Igreja separada do Estado, a relação com a morte e o morrer se aproxima da situação vivida na Antigüidade Clássica, quando a família se responsabilizava pelos mortos. Sem o controle e a mediação da Igreja, o século XIX presenciou um novo culto dos mortos que recuperava expressões antigas e incorporava modernas formas de solidariedade e afeto. Com uma pesquisa minuciosa, artesanal, Rodrigues revela-nos como a sociedade dos séculos XVIII e XIX tem um senso de limite. Na segunda metade do século XIX, mesmo trabalhando no sentido de secularizar a morte e o morrer, os deputados mantinham a crença na outra vida, isto é, relativizavam a oposição entre a vida e a morte.
Lutava-se, é verdade, para superar a pedagogia do medo que levava ao extremo a inquietação diante do mistério da morte. Pedagogia reveladora da face de uma religião não preocupada com a justiça neste mundo, mas com a salvação individual no outro. No entanto, a dinâmica presente no bojo desse processo secularizador mudou significativamente a forma de se encarar a morte.
Com efeito, a própria idéia de morte foi rejeitada pela sociedade, sendo, inclusive, temida. Só que, agora, não mais pelos motivos de dantes, quando o que se temia era o ‘passamento’, o julgamento individual. O que se passou, doravante, a temer, foi a perda da vida, sobretudo diante do aumento da expectativa de vida. (p.365)
A nossa sociedade moderna passou a absolutizar o contraste entre a vida e a morte, o que vem dificultando criar rituais que acompanhem o fim da existência humana. Suprimida socialmente, a morte volta a assustar as pessoas, os sepultamentos são feitos às pressas. O ritual do enterro dos mortos, um dos primeiros sinais distintivos do Homo sapiens, está desaparecendo lentamente. As considerações acima querem chamar a atenção para a importância do livro “Nas fronteiras do além”, que acompanha com extremo cuidado o processo de secularização ocorrido ao longo da segunda metade do século XIX. “A grande riqueza de um processo está, pois, nos significados que se pode extrair da leitura de cada um deles.” (GÓES, 1993: 30)[1]. Este livro de Cláudia Rodrigues, ao resgatar as representações e os costumes diante da morte, enriquece a historiografia, pois o campo ainda é muito pouco estudado. O texto rico, instigante no conteúdo, e eloqüente na forma pela qual dialoga com as fontes e com a bibliografia nacional e internacional, convida os leitores a se debruçarem sobre o livro.