“Brevemente, abertura ao público da caverna de Platão, atracção exclusiva, única no mundo, compre já a sua entrada.”
(José Saramago, “A Caverna”)
Este artigo pretende demonstrar a relação existente entre a katábasis e o próprio itinerário intelectual do filósofo, cujo entrelaçamento maior se dará na Alegoria da Caverna de Platão. O tema é explorado na sua dimensão histórico-geográfica, mas a ênfase será colocada na verificação da presença da katábasis, enquanto elemento fundamental da tradição órfica e pitagórica, como uma constituinte da estrutura dramática da República.
In this article the author is trying to show the relation between katábasis and the philosopher's own intelectual way, in which the major interlacement will appear in Plato's Cave Allegory . The theme is analyzed from its historic-geographical dimension, but the emphasis will be on the verification of the presence of katabásis as a fundamental element on the orfic and pitagoric tradition taken as a component in the Republic dramatic structure.
A questão da katábasis me encontrou desde muito cedo em minhas pesquisas transdisciplinares entre a história da filosofia e a história da religião antigas. Figuras antigas que religam o mundo dos mortos com o nosso mundo são centrais para isso. Várias delas me se fizeram encontro. Entre elas, primeiramente, Apolônio de Tiana, filósofo e homem divino helenístico, e contemporâneo de Jesus de Nazaré (CORNELLI, 2001).
A uma certa altura da extensa “Vida de Apolônio de Tiana”, de Filostrato, Apolônio, em uma de suas últimas aparições, não hesita em consultar um oráculo, na Lebadéia, no santuário de Trofônio, com relação à philosophía. Apresentando-se no santuário, Apolônio disse: “Quero descer para interrogar o oráculo a propósito da filosofia” (VA 8.19).
Apesar da resistência dos sacerdotes, como vimos anteriormente, Apolônio, "arrancadas as quatro grades que impediam o acesso, desceu na caverna vestindo o seu manto, como quem está se preparando para uma discussão” (dialéxin) (VA 8.19).
Apolônio, na atitude do filósofo que se prepara para o diálogo filosófico, entra não na praça, como esperaríamos, mas na caverna do oráculo. Assim,
(...) reapareceu depois de sete dias, como nenhum outro homem havia feito antes, segurando um livro que respondia da maneira mais conveniente possível à sua pergunta.
Ele havia descido de fato, perguntando: “Qual filosofia, ó Trofônio, tu consideras a mais reta e a mais pura?”. E o livro continha as opiniões de Pitágoras, demonstrando que até o oráculo concordava com este tipo de sabedoria (VA 8.19).
Este tipo de associação entre a filosofia e a katábasis ao mundo dos mortos podia parecer facilmente algo relativo àquela decadência da razão no mundo helenístico à qual estamos acostumados por tanta manualística histórico-filosófica. Mas um olhar mais atento já me indicava, naquele momento, que as coisas não estavam bem assim.
No interior da extensa e complexa tradição pitagórica, dentro da qual Apolônio encontra-se em casa, por assim dizer, as narrativas de filósofos viandantes de cavernas, buracos, e até do Hades, não eram nada incomuns.
Entre outros, no período assim-chamado clássico, identifiquei especialmente em Pitágoras, Empédocles e Parmênides três grandes viandantes do Hades.
Os três filósofos pré-socráticos até agora citados desenvolvem suas atividades na Magna Grécia e estão de alguma forma – conforme a tradição – ligados às tradições órficas. É nesse espaço cultural e geográfico que parece acontecer inicialmente o encontro entre a katábasis e a filosofia.
É necessária aqui uma anotação de natureza geofilosófica, com relação ao uso não usual do termo filosofia itálica em minha reflexão (CACCIARI, 1994). Considero itálica, além da tradicional escola pitagórica, também toda a escola eleata (Xenofanes, Parmênides, Zenão) e Empédocles. Não se trata simplesmente de uma óbvia indicação do lugar itálico onde estes últimos desenvolvem sua filosofia (a Campânia Felix para os eleatas e a Sicília para Empédocles), mas de algo bem mais profundo: trata-se de uma aproximação, da qual temos sinais desde o mundo antigo, entre a filosofia pitagórica e estas outras tradições. Talvez, mais do que de uma simples aproximação, podemos falar de uma pertença das tradições eleatas, e de Empédocles, ao grande mundo do pitagorismo.
As fontes antigas não parecem ter muitas dúvidas com relação a isso (BURKERT, 1972: 280). É o caso, por exemplo, de Estrabão:
A quem passe o cabo, apresenta-se a outra baía contígua, sobre a qual surge uma cidade: alguns da Focéia que a fundaram a chamaram Yele, outros Ele, do nome de uma fonte; hoje, enfim, todos a chamam Eléia. Nela nasceram os pitagóricos Parmênides e Zenão: ao que parece a cidade foi governada por eles (ESTRABÃO, VI, 1, 1, 252).
O próprio Diógenes Laércio testemunha a associação de Parmênides (ekoinónêse) com o pitagórico Amínias. Apesar de ter sido instruído por Xenófanes, o eleata quis seguir (mállon êkolouthêse) o primeiro, e para ele, em sua morte, quis construir um templo. Diógenes Laércio faz questão de sublinhar: “foi Amínias, e não Xenófanes, quem o levou a adotar a “vida contemplativa” (hêsychía)” (D.L. IX, 21). Enquanto Nicômaco de Gerasa considerava pitagóricos tanto Parmênides como Zenão. Parmênides e Zenão como pitagóricos, portanto? É o que parece sugerir a tradição. Veremos em que sentido o prólogo do Poema virá a reforçar ainda mais esta sugestão.
Especialmente significativa é a figura de Empédocles de Agrigento. Ele faz algo ainda mais ousado, do ponto de vista filosófico, aproximando-se àquilo que, como veremos, fará Platão: o léxico da katábasis é usado analogicamente para representar o nosso mundo. Em seu “Poema das Purificações”, Empédocles, põe as almas dos defuntos que chegam ao Hades a afirmarem: “chegamos debaixo desta caverna coberta” (fr. 120 DK), num “lugar sem alegria (aterpéa)” (fr. 121 DK), onde as almas vagam perdidas, na escuridão total, no campo de Ate.
Por enquanto, será suficiente anotar que a questão geofilosófica e que as tradições doxográficas antigas nos indicam uma intimidade pouco explorada por parte da manualística filosófica normal. A economia deste ensaio não permite apresentar em detalhes as fontes para isso, pois são bastante conhecidas, especialmente graças ao trabalho do Grupo Archai nestes últimos anos.[1]
A literatura filosófica antiga demonstra compreender o exercício místico da katábasis como um momento fundamental do itinerário intelectual de formação do homem sábio. Todas as descidas, toda as katábasis culminam, num momento fundamental, num locus narrativo de importância crucial para o pensamento ocidental: no diálogo “República”, de Platão.
Platão não era alheio às narrativas de katábasis, muito pelo contrário. Seus diálogos estão repletos de mitos de descida para o além-túmulo. Enfrentei alguns dos mais importantes mitos da imortalidade de Platão num artigo recente (CORNELLI, 2005). Mas é especialmente em “República” que a katábasis se torna o próprio movimento do filósofo, não simplesmente um tema, mas o caminho da filosofia, seu itinerário, seu método, metá-odós. Isso aparece de forma mais evidente em dois loci literários e filosóficos de extrema relevância: a) na construção dramática do próprio diálogo (desde sua primeira palavra até seu desfecho); b) na sua metáfora mais celebre e forte: aquela da caverna.
A própria construção dramática do diálogo “República”, um dos textos em absoluto mais significativos para compreender o pensamento ocidental (e não somente aquele estritamente político ou filosófico) se refere diretamente à katábasis. Remeto para um outro momento a exploração da importância do estudo da estruturação dramática dos diálogos para a compreensão da filosofia platônica. As reflexões a seguir contribuem, de toda forma, para mostrar a fecundidade desta abordagem.
Não é por acaso, de fato, que a primeira palavra do diálogo, que adquire por isso mesmo um significado que a aproxima ao título, como não é incomum nos textos antigos, é exatamente aquele katében de Sócrates: “desci”.
Vamos ao incipit, portanto:
Desci ontem ao Pireu com Glaucon, filho de Ariston, para fazer minha oração à deusa e ao mesmo tempo porque queria ver de que maneira seria celebrada a festa: ia acontecer ontem pela primeira vez, exatamente. Pois bem, a procissão dos habitantes do lugar me pareceu realmente bonita, e não menos digna pareceu-me aquela dos Trácios (“República” I, 327a).
O diálogo começa com a narrativa em primeira pessoa de Sócrates que desce para o Pireu. No próprio diálogo o Pireu é desenhado como um lugar outro com relação à cidade para a qual Sócrates quer voltar logo depois (mas é convidado para ficar por Polemarco e, a partir deste ponto, desenvolve-se o diálogo, que acontece todo ele no espaço da alteridade do Pireu): a) lugar de uma festa, de uma procissão (pompé) nova, pois realizada pela primeira vez, e portanto não tradicionalmente ateniense; b) lugar bárbaro, pela presença, entre outros provavelmente, dos trácios.
Sócrates desce ao Pireu para render homenagem a uma não bem identificada deusa, que, como ficará claro em seguida, é Bendis, pois as festas às quais estás se referindo são exatamente as Bendidias. Vegetti (1998: 100) não tem dúvidas em estabelecer um vínculo entre essa deusa e, por um lado divindades-mães jônicas como Cibele e Demetra, por outro lado diretamente com Ártemis e, sobretudo Hecate, filha da noite, deusa do subsolo, soberana do Hades, para onde conduz as almas.
O Pireu é, com certeza, um alter ego da asty de Atenas: lugar do encontro, não raramente da mistura, miscigenação, do mundo grego antigo, enquanto porto e lugar de comércio, é o contrário do ideal da cidade grega da kalokagathia. Platão, em “Leis”, parece pensar exatamente no Pireu quanto descreve os males de uma cidade portuária:
O mar próximo à região habitada é algo bastante prazeroso no dia a dia, mas no final pe uma vizinhança muito salgada e amarga. Pois ele enche a cidade de tráficos e pequenos negócios comerciais, fazendo surgir nela, em seus cidadaões, o habito de inconstância nas promessas e falsidade, tornando-o desconfiado e inimigo de si mesmo em suas relações internas e, da mesma forma, com respeito aos outros homens no exterior (“Leis” IV, 705a).
Novamente, a referência aos trácios, entre os outros povos estrangeiros, pode ser lida na contraluz das tradições xamânicas, que de lá, da Trácia, parecem ter se expandido por toda a Grécia, como o caso de Zalmoxis, aquele trácio que teria forjado a sua morte, atestaria.
Sócrates desce, portanto. E a levar a sério essa dimensão estrutural narrativa katabática, underground, do diálogo, pode-se desvendar um significado fundamental de “República”: trata-se de uma referência, de uma alusão direta às tradições de sabedoria ligadas às práticas da katábasis antiga. Apesar de alguns sugerirem aqui uma referência mais direta à descida ao Hades de Ulisses (“Odisséia”, X e XI), os indícios até aqui coletados (e outros que virão em seguida, ao falar da alegoria da caverna) parecem apontar mais decididamente para outra dependência: aquela das tradições da katábasis até aqui analisadas.
Qual o significado dessa referência? Qual o motivo de Platão ter construído desta maneira a “República”? Deixaremos uma avaliação para completa desses significados depois de analisar a alegoria da caverna. Mas cabe uma primeira observação de percurso: Sócrates é aqui colocado no papel de um iniciado, de alguém que busca o conhecimento, mas busca isso como um kourós, um homem excepcional, um xamã em busca da verdade. O caminho para baixo até o Hades/Pireu, como lugar de verdade, onde a deusa pode revelá-la, parece ser a construção dramática de Platão. Platão parece desenhar aqui ao mesmo tempo uma alegoria do caminho da sabedoria individual e um bildungsomance de Sócrates.
Uma das analogias, ou melhor, alegorias, mais celebres, de “República” é aquela do celebre mito da caverna. A relevância dessa imagem para a discussão atual sobre a katábasis (rumo a uma certa filosofia antiga underground) é quase óbvia, mesmo que pouco explorada na literatura histórico-filosófica. A descrição do mito é bem conhecida de todos, e encontra-se no livro VII de “República” (514a e ss). Após Sócrates descrever a situação dos prisioneiros atados dentro da caverna, com a intenção de, de alguma forma, ilustrar a situação da paidéia e da falta dela, Glaucon, seu companheiro da katábasis ao Pireu, afirma seu estranhamento: “Que estranha cena descreves, e que estranhos prisioneiros!”. Como resposta, Sócrates afirma precisamente a alegoria: “São iguais a nós!” (514a), na tradução de José Saramago (2000: quarta capa).
Apesar da atopia declarada por Glaucon, para o qual a imagem da caverna devia resultar decididamente estranha, as páginas a seguir querem mostrar como a imagem de uma caverna habitada por seres humanos não devia ser tão incomum, tão átopica, para os leitores de Platão e, obviamente, para o mesmo Platão. Pelo contrário, e em sintonia com o que falamos até aqui, Platão demonstra-se um verdadeiro expert em espeleologia.
Já Wright (1906) fez um amplo levantamento das cavernas às quais Platão devia estar familiarizado. A referência mais imediata pode parecer a usual às minas ao ar livre de Siracusa, as latomias, (lithotomíai) com as quais Platão teria entrado em contato em suas três viagens para lá. Nelas, homens acorrentados eram obrigados a cavar a pedra rochosa. Tucídides descreve com cores fortes as penas dos condenados aos trabalhos forçados (VII 87): desde a sede até a frio e a morte. Mas exatamente a descrição de Tucídides parece excluir que as latomias fossem de fato as cavernas às quais Platão estava pensando: os prisioneiros estavam expostos ao sol, à chuva e a todos os agentes atmosféricos, pois não havia cobertura. Isto é, as cavernas eram buracos a céu aberto. Bem diferente da descrição da caverna do mito platônico, portanto.
O spelaion (spêlaiodês, uma espécie de caverna) do mito é muito mais próximo, em termos espeleológicos, de um outro tipo de caverna: aquela dos cultos e, novamente, das tradições da katábasis. Um amplo elenco dessas cavernas de culto encontramos em Porfírio, que, em seu “De antro Nynpharum”, abre com aquela talvez mais importante e célebre, objeto de peregrinação desde o Neolítico até a Antigüidade tardia: o antro ídeo, a caverna dos Curetas, dedicada a Zeus, sobre o Monte Ida, na ilha de Creta (20).
A caverna, cujo sítio, após as escavações de Halbherr em 1885, está identificado no atual monte Psiloritis, a cerca de 1500 metros de altura, é descrita da seguinte forma: “uma grande praça (74x32mt) funcionava como vestíbulo a uma abertura de largura 25mt e altura 16mt e que levava à caverna, profunda 40mt, larga 55mt e alta 30mt” (TORELLI-MAVROJANNIS, 1997: Idáion Antron).
A prova “textual” de que Platão conhecia o antro ídeo para além das suposições doxográficas e biográficas de suas prováveis passagens por Creta, encontra-se no último diálogo de Platão, “Leis”, que constitui, de alguma forma, uma revisão da “República”. Aqui também o contexto dramático escolhido por Platão remete às tradições de katábasis e, mais diretamente, ao antro ídeo.
O íncipit do primeiro livro das Leis (que começa significativamente com a palavra theós), faz uma referência direta à caverna em questão:
Ateniense: Um deus, hóspedes, ou um homem foi o autor de vossas leis? Clínias: um deus, hóspedes, foi um deus. É o que é justo afirmar, sem dúvidas (...). Isto é o que é mais certo dizer, de maneira absoluta. Foi Zeus entre nos, e entre os Espartanos – de onde ele veio – isso, conforme acredito, é o que dizem os mesmos espartanos Não é assim? Megilo: está bem, assim. Ateniense: Então você está afirmando que Minosse, a cada nove anos, sem faltar nenhum, voltava ao pai, para falar com ele, e deu as leis aos estados de vocês, como o pai ensinava?
A lembrança da afirmação de Homero é extremamente significativa: Minosse, filho de
Zeus, recava-se regularmente à casa deste e legislava segundo as palavras (phemas) do Pai. Assim, o diálogo “Leis” irá acontecer “ao longo do caminho que leva ao antro ídeo” (265b), ao templo de Zeus, com uma nova referência ao caminho da filosofia como um caminho – de alguma forma – em direção às tradições de katábasis.
A mesma mitologia ligada ao antro ídeo, desde Hesíodo, revela sua importância e sua relação com a paidéia. Se a intenção alegórica de Platão é aquela da caverna ser “imagem da condição de nossa natureza sob o perfil de sua educação e falta de educação” (FRANCO-REPELLINI: 2003, 393), a função da caverna de Creta para a iniciação das jovens gerações está atestada desde a própria “Teogonia” (477-484): Rea, mãe de Zeus, é obrigada a fugir até Creta para esconder o neonato Zeus numa caverna, pois Cronos devorava todos seus filhos. Assim, Zeus é criado por uma série de figuras míticas no interior do antro ídeo: entre elas, Ninfas e Curetos (CAMPESE: 2003, 440). Há quem se divertiu a classificar as tipologias das cavernas cretenses e confrontá-las com a alegoria da caverna de Platão, encontrando outras confirmações desta relação (FAURE, 1964: 19 e ss). Mas creio que os indícios até aqui coletados são suficientes ao nosso objetivo: aquele de relacionar a alegoria da caverna ao amplo e difuso mundo das religiões de katábasis.
Duas observações, todavia, parecem-me ainda relevantes, antes de enfrentarmos o significado desta relação.
Nas escavações de 1984 veio à luz uma cavidade, à esquerda com relação à abertura da caverna, onde foram encontradas uma lâmpada e diversos vasos alinhados sobre uma lastra. Essa lastra estava colocada toda em volta às paredes da caverna. Sinais de uma adaptação dela ao culto e à presença de numerosas oferendas, ex-votos, como aqueles que até hoje se encontram em Aparecida do Norte (SP); e ao mesmo tempo excepcionais sugestões para o mito platônico: “é como se Platão desmembrasse os elementos arquitetônicos da caverna cultual, para recompô-los numa diferente cenografia” (CAMPESE, 2003: 444). Veremos uma conseqüência disso mais para frente.
É interessante, em segundo lugar, notar que Minosse não é a única figura antiga atestada em katábasis no antro ídeo. Diógenes Laércio em seu primeiro livro, “Vidas e Doutrinas de Filósofos Ilustres”, lembra Epimênides, que na caverna cretense desceu e dormiu por 57 anos!
Epimênides nasceu em Cnossos, embora usasse cabelos longos contrariando costumes locais. Em certa época o pai mandou-o ao campo em busca de uma ovelha desgarrada, porém, aproximadamente ao meio-dia, Epimenides desviou-se do caminho e foi dormir numa caverna, onde teria ficado adormecido durante 57 anos (D.L. I, 109).
A caverna logo acima da cidade de Cnossos é exatamente o antro do monte Ida e o longo sono é sinal de experiência xamânica, momento essencial do êxtase místico da iniciação, incubação ritual, também utilizada nas cavernas para a cura. E, de fato, Epimênides tem fama de curador e purificador de miasma das cidades, como teria acontecido na própria Atenas, para onde foi chamado após o massacre dos Cilonidas (ARISTÓTELES, “Constituição de Atenas”, 1). A figura de Epimênides parece pairar sobre a alegoria da caverna de forma indireta: associado por Sólon à sua obra legislativa – com recorda o próprio Vernant em seu “Origens do pensamento grego” - Epimênides foi “o primeiro a chamar-se Eaco, e prognosticou aos espartanos sua derrota pelos arcâdios e pretendia ter renascido diversas vezes”. (VERNANT, 1984: 61)
O rei arcaico Eaco é chamado no “Górgias” de Platão (542a) de “juiz dos mortos” pelo pai Zeus, junto com os irmãos Minosse e Radamante. Clínias, em “Leis” (I, 642d-e), lembra da ajuda que Epimênides deu a Atenas profetizando para acalmar os atenienses atemorizados quando da invasão persa, e reivindica descender dele. Com Minosse, Epimênides e Clínas há um algo de genealogia mística aqui desenhada, que leva diretamente para o fundo daquela caverna da alegoria de “República”.
Assim, a alegoria platônica confronta-se diretamente – esperamos ter mostrado isso – com as tradições da katábasis que fazem da caverna um lugar essencialmente de iniciação (paidéia) e sabedoria (sophia).
Chegou o momento de tentar compreender qual a função da presença tão marcante, nesse diálogo de Platão, das tradições da katábasis e qual é o lugar delas na filosofia que nasce nos diálogos platônicos. Como em vários outros lugares da filosofia de Platão, é muito difícil determinar uma posição clara e distinta numa obra que se desenvolveu no interior do diálogo acadêmica ao longo de pelo menos 30 anos enquanto Platão vivia.
Por um lado, Platão parece profundamente fascinado pelas tradições órfico-pitagóricas da separação corpo-alma e da necessária katharsis, que muitas vezes passava pelo exercício katabático. “Górgias” (492-493), “Fédon” (62b), “Crátilo” (400c) são testemunhos inequívocos disso, como é – no final da própria “República”, o mito de Er: a narrativa da viagem ao Hades de Er, o Pamfilo, recheada de uma mitologia retributiva, mas que se parece mais com o Inferno de Dante Alighieri que com as katábasis rituais xamânicas atá agora analisadas. Não é o caso de demorar muito mais sobre essa leitura de Platão, pois é bastante conhecida e consensual entre os estudiosos.[2] Desse ponto de vista, a estrutura katabática de “República” pareceria indicar a intenção de Platão de colocar-se em continuidade com a sabedoria antiga: o filósofos Sócrates, novo viandante do Hades, desce agora para o fundo da cidade, para seu lugar germinal e problemático ao mesmo tempo, e somente após essa reedição de uma katábasis - agora fundamentalmente laica -, poderá subir de volta para a cidade com a incumbência de governá-la.
Por outro lado, na linha da sutil ironia e jogo que caracterizam o texto platônico, na retomada das tradições da katábasis no mito da caverna há muito mais do que uma simples reverência à sabedoria arcaica e suas formas. È possível notar também uma clara ruptura ideológica e irônica com as tradições katabáticas quando se observa a construção literária do eidos da caverna de Platão: “o spelaion utiliza os elementos da caverna de culto para construir uma cenografia dissacratória” - afirma peremptoriamente Campese (2003: 463).
Os estudos de Faure, acima citado, mostraram diversos pontos de convergência entre a caverna de Platão e as cavernas da katábasis, como o antro ideo, por exemplo. A inversão irônica é evidente: estatuas votivas antropo e zoomorfas, colocadas em cima de um muro (lastra), o fogo central, os artefatos votivos, que nos cultos arcaicos tinham função ritual, reaparecem na descrição da caverna da República tranformados, jocosamente, em elementos de um espetáculo, todo laico e mundano, de thaumata, maravilhas, que eram bem conhecidas na rua de Atenas: trata-se do teatro dos mamulengos! O texto platônico evita descrever claramente a gestualidade cômica dos mamulengos: sua ironia é sutil, não escrachada, mas não deixa espaço para dúvidas. Os mestres de mamulengos representam o mundo para os prisioneiros.
O mesmo fogo, que é testemunho ritual da revelação e da sabedoria verdadeira no antro ideo, aqui, em “República”, se torna significativamente um momento essencial da inversão: no lugar de simbolizar a iluminação da sabedoria, é reduzido a dispositivo quase cinematográfico, que permite a mise em scène de um teatro de sombras e enganos. Assim, o filósofo desmascara o teatro, a enganação, com sua anábasis da caverna, movimento contrário à katábasis do ponto de vista gnoseoloógico: a verdade está na subida, não na descida.
Mas, novamente, Platão surpreende (provavelmente até a si mesmo!) com a retomada de uma ritualidade katabática in extremis, agora como parte essencial de uma nova ritualidade, filosófico-administrativa da cidade: o mito prevê que ao filósofo, novo viandante do Hades político e laico, após voltar da caverna, caiba continuamente uma segunda katábasis, uma nova descida para a caverna que é a casa comum dos outros e um processo de reeducação contínua e continua interpretação das sombras e da maneira em que os outros as vêem, para conduzi-los à verdade sobre o belo, o justo e o bom.
Cada um deve, portanto, por turno, descer na casa comum dos outros e acostumar-se a contemplar aquelas sombras. Acostumando-se, verão infinitamente melhor daqueles que estão lá em baixo e conhecerão quais sejam cada uma das visões, quais os objetos delas, pois terão visto a verdade sobre o belo, o justo e o bom (“República” VII 520c).
Assim, de alguma forma, o filósofo de “República” continua um freqüentador de cavernas - mesmo que laica e politicamente, a caverna é agora um lugar político. Numa continua katábasis e anábasis, rituais da construção de uma pólis bela, porque justa e boa, de uma kallípolis, que é o grande objetivo ético e político de Platão. Mas a verdade parece ser ainda, de alguma forma, resultado de um freqüentar de sombras e cavernas; e o filósofo, de alguma forma, ainda amante de verdades que somente nas sombras é possível encontrar.
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Recebido: 18/07/2007
Aceite final: 19/08/2007
[*] Gabriele Cornelli, doutor em filosofia, é professor da Universidade de Brasília.
[1] Para informações sobre as pesquisas do Grupo Archai, cf. http://www.archai.unb.br.
[2] Para um interessante resumo da mesma cf. a recente obra de R. Edmonds, 2004: 156-172).