Filosofia da Religião a Partir da Hermenêutica de Gadamer

Eduardo Gross[*]

Resumo

O presente texto lida com alusões e com o tratamento explícito do tema religião na obra de Gadamer. Ele visa oferecer uma interpretação da relevância que essa obra tem para a filosofia da religião. Isto é feito inicialmente pela clarificação da dupla aproximação que Gadamer mostra em relação ao tema, quando distingue mito de religião, o primeiro exemplificado pela cultura grega e a secunda pela proclamação cristã. Depois disso há uma análise da sua crítica à compreensão moderna individualista de Deus, que leva a filosofia desde o nominalismo a negar o significado dos argumentos sobre a existência de Deus. Por fim, oferece uma tentativa, baseada na compreensão de Gadamer sobre a experiência da arte, de superar a dupla aproximação inicialmente apresentada a fim de tornar possível desenvolver uma filosofia hermenêutica da religião.

Palavras-chave: Gadamer, mito, religião, hermenêutica, Deus, querigma.

Abstract

The present paper deals with alusions and explicit treatment of the theme religion in Gadamer's work. It aims to offer an interpretation of the relevance which this work has for philosophy of religion. This is inicially done by clarifying the double aproach that Gadamer shows to the theme, as he distinguishes myth from religion, the first exemplified by greek culture and the second by christian proclamation. After that, there is an analysis of his critique on modern individualistic understanding of God, which leads phylosophy since nominalism to deny the meaning of God's existence arguments. Finally, it offers an attempt, based on Gadamer's understandig of art experience, to overcome the double aproach innitially presented in order to make it possible to develop a hermeneutical philosophy of religion.

Keywords: Gadamer, myth, religion, hermeneutics, God, kerygma

Introdução

A obra filosófica de Hans-Georg Gadamer já ocupa um lugar de reconhecimento na filosofia do século XX. Quando se ouve falar em hermenêutica, o nome desse autor logo vem à lembrança. Por outro lado, não se trata de um autor que seja considerado de forma estrita um filósofo que tivesse elaborado contribuições diretas para a filosofia da religião, mesmo que sua reflexão tenha sido aproveitada para discutir aspectos ligados à compreensão da religião, e que inclusive no âmbito da teologia ela tenha sido utilizada. Além disso, num sentido mais geral, essa obra foi apropriada pela função de defesa que estudiosos da religião empreenderam diante da desqualificação que o tema da religião sofreu enquanto objeto de conhecimento acadêmico.

Por outro lado, o assunto religião emerge de uma forma contínua nas obras de Gadamer. Por vezes trata-se só de alusões ou de exemplos, mas, outras vezes, ele chega a ser tematizado mais explicitamente. O presente texto visa examinar algumas dessas aproximações para verificar em que medida elas podem contribuir para uma reflexão filosófica sobre a religião. Nesse sentido, busca compreender um pouco do fundo que sustenta tais alusões e tematizações, e a partir daí apresentar pistas para a contribuição pretendida.

1. Primeira Aproximação: A Dupla Herança Religiosa Ocidental

Inicialmente, é importante notar que o tema da religião aparece em Gadamer de uma forma dividida. De um lado estão as considerações referentes à cultura grega e seu universo mítico. De outro, as exposições que dizem respeito à herança cristã, o outro veio formador da cultura ocidental. A afirmação de que esses dois complexos constituem a base a partir da qual nossa cultura surgiu não é uma originalidade de Gadamer, mas é notório como ele acentua essa noção constantemente em seus escritos. Acontece que essa afirmação das duas fontes do Ocidente traz consigo simultaneamente uma duplicidade relativa à consideração da religião no contexto de cada uma dessas fontes. O universo dos mitos gregos, sua influência, crítica e mesmo continuidade no âmbito da filosofia aparece contraposto ao mundo religioso cristão, no que diz respeito a concepções básicas.

Quando trata da relação entre mito e razão, por exemplo, Gadamer aponta que entre os pensadores gregos não havia de fato uma contraposição entre essas duas grandezas. A crítica aos mitos que ele percebe neles é vista não como um processo de contraposição ou de superação radical dos mitos, mas como uma atividade de reinterpretação dos mesmos. Isto se torna possível, inicialmente, porque os mitos não são uma escritura sagrada, mas uma obra simultaneamente artística e religiosa. Eles servem, sim, para fundamentar práticas cultuais - pense-se no uso pedagógico de Homero, por exemplo -, mas estão igualmente abertos para serem recontados à medida que se queira ou precise remodelar tais práticas (GADAMER, 1954: 165-166).

No Cristianismo, por outro lado, se elabora uma forma religiosa em que se coloca um acento na contraposição entre mito e verdade. Inicialmente voltada à crítica de outras formas religiosas, essa contraposição acabou tendo conseqüências variáveis na cultura ocidental, dentre elas uma que é destacada por Gadamer, que é a dissociação entre a verdade e a experiência estética (idem: 166). Essa contraposição merece ser ressaltada aqui porque a distinção entre experiência estética e experiência religiosa que ele tematiza é uma conseqüência da distinção entre os elementos religiosos presentes no mundo grego e a religião cristã ocidental.

Uma característica inicial dessa distinção, para Gadamer, é que na compreensão cristã há uma diferença nítida entre o discurso religioso e o estético justamente pelo caráter que o primeiro tem de ser uma proclamação. Enquanto isso, a compreensão mítica grega permitia uma combinação do elemento humano com o divino - o que numa forma mais elementar se exemplifica nas representações antropomórficas das divindades nos mitos. O fundamental é que, enquanto o discurso mítico é simultaneamente voltado à beleza e à religião culturalmente estabelecida, a proclamação cristã pretende uma superação da contingência. Ela se entende como uma mensagem cujos mediadores não têm uma significação fundamental – são, na verdade, meros arautos. O importante é a transmissão dessa mensagem em sua nitidez. Uma transmissão poética, neste sentido, não é essencial, e pode até mesmo ser prejudicial, caso o centro que a transcendentalidade dessa mensagem representa venha a ser deslocado (ibid., 1964/1978: 150-152).[1]

Quando discute no contexto da reflexão sobre a arte a conveniência da distinção entre os conceitos de sinal e de símbolo, essa contraposição chega ao nível conceitual. O exemplo para o que é sinal é justamente a proclamação cristã. Símbolo é aquilo que permite o reencontro de duas realidades que se co-pertencem, é um elemento de comunhão percebida apesar da diferença. O caráter simbólico da arte, por exemplo, é o que permite o reencontro de si mesmo na obra de arte, o vislumbre da realidade de que se faz parte numa representação particular. Mas essa noção da reflexão sobre a arte deriva de uma compreensão religiosa onde um encontro de âmbitos distintos é possível (GADAMER, 1964/1978: 152).

Por isso a mensagem cristã pode ser caracterizada como escatológica. Ela não faz parte deste mundo. Ela propõe um outro mundo. Enquanto o simbolismo tem um caráter unificador, a proclamação escatológica tem um caráter disjuntivo. Ela convida a uma reapropriação pessoal do conteúdo da mensagem proclamada através da aceitação existencial de que aquela mensagem, mesmo sendo um absurdo dentro das coordenadas mundanas, aponta para a verdade (idem, 153-154).

Essa concepção possibilitou um tipo determinado de florescimento da arte no ambiente cristão: aquele que servia ao propósito de auxiliar a tarefa proclamatória. No âmbito da arte grega, as obras tornavam presente a própria divindade por meio de sua representação. A arte não estava destacada da esfera existencial enquanto um âmbito à parte, mas era manifestação das crenças compartilhadas. Ela tinha, portanto, um caráter simbólico. No ambiente cristão, por outro lado, ela tinha um caráter preponderantemente instrumental.

2. Segunda Aproximação: Argumentos sobre a Existência de Deus

Em um texto em que trata da crítica kantiana em relação aos argumentos sobre a existência de Deus, Gadamer reconhece, tanto no princípio quanto no final do artigo, que à filosofia não cabe mais voltar a um período pré-crítico, no qual ela poderia pretender demonstrar racionalmente tal existência (ibid., 1941: 349-359). É importante ressaltar isso diante de pretensões de utilização indevida da hermenêutica no sentido de se fundamentar um pensamento pré-moderno e diante das incompreensões de quem considera o pensamento hermenêutico um simples sinônimo de relativismo. Dito isso, pode-se acrescentar então que Gadamer não rejeita de antemão a discussão a respeito de tais argumentos. Isto porque o enfoque com que são tratados passa a ser outro.

O interesse de Gadamer está em mostrar como a existência desses argumentos é reveladora da compreensão da racionalidade e de seus limites. O texto de 1941, elaborado em homenagem a Karl Jaspers, adverte que “... nos enganaríamos se víssemos a filosofia estar segura de si mesma na liberdade desta perda. Ela o está tão pouco quanto uma teologia na inconquistável fundamentação da fé”. (GADAMER, 1941: 350)

Assim como a compreensão filosófica não alcança profundidade sem levar em conta os desenvolvimentos anteriores do pensamento, também os argumentos sobre a existência de Deus merecem ser analisados enquanto pertencentes à temporalidade em que o processo reflexivo se dá. A filosofia moderna não surge do nada, mas da tradição anterior na qual o valor da discussão destes argumentos era reconhecido. A diferença, entretanto, é que agora a lida com tais argumentos não precisa se dar a partir de uma base eclesiástica, mas pode se desenvolver a partir do tratamento filosófico sobre o ser e o Dasein (idem: 351). E quando a filosofia moderna o faz, ela analisa o Dasein na sua situação limite de culpa e morte, situação em que é difícil não se colocar a questão de Deus. Isto é, Gadamer está dizendo que, à parte da questão de fé que os argumentos tradicionais sobre a existência de Deus revelam, eles também mostram uma discussão sobre ontologia. Só pode considerá-los completamente superados quem não se coloca as questões ontológicas fundamentais relativas à existência do ser humano e do cosmo.

A partir destas considerações iniciais, Gadamer pode anunciar o que ele considera significativo da discussão sobre os argumentos a respeito da existência de Deus:

Somente isto merece ser conservado da história destas provas: que nela o interesse na prova da existência de Deus se mostra em conexão com o conhecimento de propriedades determinantes essenciais de Deus, havendo alternância na acentuação dos elementos desta conexão (ibid.: 352).

Evidentemente, o interesse de Gadamer na discussão desses argumentos, a partir da posição tomada em princípio, está justamente na questão das propriedades atribuídas a Deus, e não na comprovação de sua existência. Nisto ele aproxima sua proposta hermenêutica da concepção de Hegel, para quem a filosofia reflete sobre as representações religiosas nas quais o pensamento está ativo antes de se tornar propriamente filosófico. Neste sentido, os argumentos sobre a existência de Deus “... não seriam tanto provas da existência de Deus quanto modos do reconhecimento pensante de Deus em suas determinações de necessidade, sabedoria, etc. (...) Elas precisam antes questionar como Deus deve ser”. (GADAMER, 1941: 355-356)

Entretanto, ainda não se compreenderia corretamente Gadamer se isto fosse entendido como uma oportunidade para especulações sobre a natureza de Deus. Em referência a Scheler, ele diz que os argumentos apontam para a contingência da existência humana e para o terror diante desta situação. Sua função não é, assim, nem a de provar a existência de Deus, nem a de especular sobre sua natureza, mas a de mostrar uma compreensão cósmico-existencial em que há uma interligação entre eu, mundo e Deus (idem: 356). Para Gadamer, a questão que se coloca para nós é justamente que, após a crítica de Kant, a configuração dessa tríade se modificou. Mesmo que o próprio Kant ainda tivesse uma proposta teológica, a partir dos seus postulados, essa proposta ruiu da mesma forma que os argumentos por ele criticados. Mas para quem vive após Nietzsche, a situação é de um perspectivismo radical e de niilismo, o que para Gadamer é conseqüência destruidora do idealismo. E o problema colocado a partir de Nietzsche nem é o da negação de um cosmo bem organizado, tal qual Leibniz tinha imaginado, mas o do perspectivismo, que afirma que a crença ingênua de que este é o melhor mundo não é, em si mesma, nem boa nem má.

Ela é tão pouco verdadeira quanto falsa - tão pouco quanto exista um bem ou um mal. A questão é: A questão por Deus permanece viva aqui? Está ela envolvida na questão pelo verdadeiro ser, que seria visível para um saber verdadeiro, reconhecedor, o qual não só esboçasse perspectivas de vida - tal qual aquela multiplicidade das mônadas o era para o divino criador da harmonia delas? (ibid.: 357).

É diante desta situação que Gadamer coloca o mérito atual de se compreender os argumentos sobre a existência de Deus. Eles revelam que estamos diante do pressuposto individualista do ser surgido com o nominalismo. Deste modo, o existente não pode ser pensado como generalidade - já que a generalidade não pode ser encontrada na experiência (Erfahrung). Esse já é o pressuposto de Kant e de sua elaboração crítica, daí que, para Gadamer, a crítica ao argumento ontológico elaborada por Kant não faça justiça ao pressuposto de Anselmo, já que reduz aquilo de que não se pode pensar nada de maior a um ente exemplificado com 100 táleres. De novo, não se trata, para Gadamer, de querer voltar aos pressupostos neoplatônicos de Anselmo, mas de mostrar que com os pressupostos - simplistas - do nominalismo não podemos compreender os argumentos sobre a existência de Deus. “Daí que, como me parece, de fato aqui está um problema filosófico geral e que inclui a questão de Deus enquanto questão significativa: o problema de um ser supra-individual”. (GADAMER, 1941: 358-359)

A conclusão é de que, diante a ilusão da liberdade individual radical da modernidade, se colocam os problemas das determinações supra-individuais, tais quais a história, o destino, a morte, a finitude, de modo que se torne possível a filosofia de Jaspers, por exemplo. Os argumentos relativos à existência de Deus lidavam com essas determinações supra-individuais. Além do esquecimento moderno dessas determinações percebidas no passado, a pessoa de hoje vive ainda no relativismo moral posterior a Nietzsche, ou seja mesmo aquele recanto em que Kant podia tentar uma postulação da existência de Deus deixou de ser reconhecido enquanto determinação impositiva. A presente situação faz estremecer quem já não vive mais nem na ilusão da liberdade individual radical, nem no conforto da certeza inocente pré-moderna. Mas, para Gadamer, é justamente ela que abre espaço para retomar a busca, empreendida pelos antigos gregos e por poetas como Hölderlin, pelo divino que transcende a individualidade. “Mas se o filosofar moderno começar a se atrever pelos antigos caminhos do pensamento, talvez o pensador aprenda novamente a vislumbrar os antigos conteúdos no conceito de Deus”. (idem: 360)

Isto é, lidar com os argumentos sobre a existência de Deus não é meramente uma forma de voltar a um pensamento pré-moderno. É compreender as raízes e as carências do próprio pensamento moderno. Além disso, a superação da fundamentação da filosofia na consciência individual significa simultaneamente uma crítica da imagem da divindade enquanto mera individualidade. Desta forma, podemos perceber em Gadamer, a partir desse texto, uma linha de raciocínio em que a filosofia da religião pode ser um instrumento para a apreciação crítica do reducionismo moderno, mesmo que ele não elabore uma proposta quanto à tarefa positiva que pudesse vir a ser empreendida por ela.

3. Repensando Gadamer: A Arte em Analogia à Religião

Se Gadamer não apresenta uma reflexão filosófica direta sobre a religião, não deixa de ser intrigante a quantidade de exemplos, metáforas e analogias tirados do universo religioso que ele utiliza para pensar a filosofia da arte. Não que Gadamer proponha algum tipo de visão religiosa da arte. Justamente pelo contrário - a sua crítica à estética do gênio, herança moderna e romântica, vai justamente na direção de questionar qualquer inspiração transcendente da obra artística. Na sua opinião, é necessário assumir a temporalidade da arte, enquanto que as concepções de arte que defendem sua atemporalidade se fundamentam em pressupostos necessariamente teológicos (GADAMER, 1999: 201-202; 1960/1990: 126-127).

Um dos exemplos tirados do âmbito religioso para tratar dessa temporalidade é o da festa. Embora não se trate de uma restrição a festas religiosas, os exemplos de Gadamer em seus textos remetem a celebrações que têm caráter religioso - como por exemplo as festas que têm lugar no calendário litúrgico cristão, como a Páscoa ou o Natal. Em todo caso, a festa é a existência temporal de algo que transcende o mero momento em que acontece. No entanto, ela não existe em nenhum lugar fora do tempo. É na própria celebração que a festa acontece. O evento festivo é a própria festa, que continua sendo ela mesma na constante mutação concreta em que se apresenta. Nesse sentido, há uma conjunção entre tradição e mudança. Na verdade, a mudança é parte da própria tradição, não existe sem ela. É por isso que se pode falar em comemoração: a participação na festa é simultaneamente o reviver da memória do passado, tornando esse passado presente no próprio ato de rememorá-lo (idem, 1999: 204-205; 1960/1990: 128-129).

O sentido desse exemplo, quando aplicado à compreensão da arte, é o de mostrar como se dá a interação entre o representado e a representação na temporalidade da obra de arte. A aproximação inicial é feita com o teatro, um tipo de arte que surgiu de forma bastante próxima das representações cúlticas e que ainda hoje permite que se vislumbre tal herança. No entanto, a intenção de Gadamer não é só fazer uma tal aproximação isolada, mas mostrar como ela permite uma compreensão geral do ato de representação. Cada peça artística, para representar algo, precisa interpretar - como nossa própria linguagem o expressa, quando falarmos de peças teatrais e musicais, por exemplo. O processo de interpretação é justamente esse, de tornar presente aquilo que é representado, mas que de fato não existe à parte de suas interpretações. Mesmo que exista por escrito, uma obra de arte precisa ser lida para se realizar, pelo menos no interior de seu leitor. Assim, toda a compreensão que Gadamer tem da arte remete para esta dinâmica da representação, onde a temporalidade é o ponto fundamental.

Gadamer não falava, pois, da religião, mas dela tirou o exemplo. Não deixa de ser interessante, entretanto, a inversão dessa relação. Evidentemente, não se trata aqui de uma reprodução das idéias de Gadamer, mas de um exercício de reflexão a partir - mesmo que ao reverso - da analogia proposta por ele. Se pensamos a religião em analogia à arte, a partir do exemplo da festa, percebemos que a ênfase na temporalidade impede uma concepção do religioso como um âmbito à parte da realização concreta da existência. A religião, nesse sentido, existe na sua representação, não num domínio alheio à história em que a verdadeira religião se daria.

Um outro exemplo, também invertido aqui, pode ser tomado da utilização por Gadamer da compreensão protestante de palavra de Deus. Num texto em que ele marca a distinção entre a experiência estética e a experiência religiosa cristã, a partir do fato de que esta experiência religiosa se pretende representação de uma realidade escatológica, pode-se mesmo assim perceber um elemento interessante para a compreensão da religião à revelia da intenção expressa por Gadamer. A noção de palavra de Deus, nos diz ele, é o centro da vivência religiosa cristã. Ela se caracteriza por transcender as expectativas naturais, tal como Flacius, o fundador da hermenêutica luterana na escola de Wittenberg, expôs exemplarmente:

A tarefa própria da hermenêutica que o cristianismo estabelece é a liberdade e o estranhamento fundamental que se encontra na mensagem cristã como tal. Ela atinge seu ápice no fato de que a própria redenção e a fé são entendidos totalmente enquanto graça divina, de modo que mérito e dignidade percam totalmente sua validade. Isto está dirigido contra qualquer expectativa da natureza humana [...] (GADAMER, 1964-1978: 151).

Entretanto, simultaneamente, Gadamer também observa que a tarefa da igreja cristã, assim como esta entende ser sua missão, é justamente a proclamação desta palavra de Deus. E para realizar esta proclamação, tal palavra precisa ser transmitida.

A palavra transmitir é uma palavra muito interessante. Transmitir uma mensagem não significa repeti-la. Quem por assim dizer transmite uma mensagem de forma tão “sem sentido”, isto é, abstrata-literalmente, que ela adquire um sentido falso na situação concreta, de fato não a transmite verdadeiramente. [...] Transmitir uma mensagem exige que se tenha compreendido o que a mensagem quer dizer. [...] Isso significa em última instância que ela exige tradução (idem: 150-151).

Se a intenção explícita de Gadamer é mostrar, aqui, como o Cristianismo pressupõe uma mensagem para a qual a pregação é um sinal, o fato de que essa mensagem precise ser sempre traduzida aponta para a necessidade de realização concreta desta palavra de Deus. Assim, ele acaba mostrando como, de certa forma apesar de sua intenção mais explícita neste texto, no caso do ofício da pregação, a palavra de Deus se presentifica para os ouvintes. De modo que, para além da intenção explícita de Gadamer neste texto, pode-se dizer que, se para a teologia a pregação só sinaliza para a verdadeira palavra de Deus, de um ponto de vista hermenêutico é possível afirmar que esta palavra existe é na proclamação religiosa. A distinção entre uma função meramente indicativa, como a que quer expressar o conceito de sinal e uma função representativa, que privilegia a participação por meio do símbolo, necessariamente fica relativizada. Assim, tal como a festa que sempre é a mesma nas suas constantes e transformadas representações, a mensagem religiosa - no caso do exemplo apresentado por Gadamer, esta do estranhamento diante das expectativas humanas - é sempre a mesma nas suas diversas manifestações.

Esta reflexão a partir da pregação é o que Gadamer também destaca em “Verdade e Método”, quanto se refere ao conceito de simultaneidade, elaborado por Kierkegaard. Ali também a intenção é mostrar como a experiência da arte é a realização temporal da representação da obra. Mas Gadamer evoca as raízes dessa noção em Lutero, que neste caso também é um exemplo particular tirado do âmbito religioso: “A aplicação à teologia de Lutero reside no fato de que a reivindicação da fé existe desde a anunciação e que na pregação volta a ser validada sempre de novo. A palavra da pregação produz exatamente a mesma intermediação total que, de outro modo, cabe à ação cúltica [...]”. (GADAMAR, 1999: 209; 1960-1990: 132).[2]

Entretanto, nesSe contexto ele se mostra mais explícito quanto à natureza temporal da palavra pregada: “Nesse sentido, a simultaneidade convém principalmente à ação cúltica, como também à anunciação na pregação. O sentido do tomar-parte é, aqui, a genuína participação no próprio acontecimento salvífico”. (ibid, 1999: 210; 1960-1990: 133)[3].

Ou seja, apesar do cuidado de Gadamer em distinguir entre a concepção teológica cristã e a concepção de simultaneidade necessária para a experiência da arte, a conseqüência de sua reflexão filosófica é a impossibilidade de se manter uma distinção forte entre o âmbito da realização efetiva da proclamação religiosa concreta e um âmbito puramente transcendente da palavra de Deus. Apesar de explicitamente resguardar uma tal distinção, ele sempre toma o cuidado, ao utilizar tais exemplos, de advertir que só um discurso teológico pode fundamentá-la.

Especulando sobre as razões do cuidado tomado por Gadamer, a impressão é de que ele é justamente expressão do respeito que nutre pela reflexão teológica. Um respeito que tem sua razão de ser, primeiro, pela distinção de competência entre disciplinas, expressando assim o cuidado de Gadamer em não invadir o campo de trabalho alheio. Em segundo lugar, pela valorização que ele expressa em relação à tradição, sendo sempre bastante explícito nas suas considerações a respeito da herança cristã que permeia a cultura ocidental. E em terceiro lugar, pela necessidade que percebe de se resguardar a reflexão de qualquer pretensão prepotente de abarcar a totalidade do ser. Entretanto, no âmbito da competência própria da filosofia, a conseqüência da reflexão de Gadamer é justamente a de que a realidade da religião se dá na sua manifestação concreta. Tanto é assim que esta é sua apresentação da questão quando fala da função dos mitos gregos, que é de representar narrativamente - e ao representar, de certa forma reproduzir - a experiência do poder divino: “Não se trata de fé, mas de reconhecer e de tornar presente reflexivamente uma certeza sobrepujante”. (GADAMER, 1981: 178).

Com isso é evidente, e de certo não limitado à antiguidade grega, que o narrado em tais histórias não é objeto propriamente de conhecimento, de um ter-por-verdadeiro ou de uma fé, que fosse um não duvidar. É antes como uma memória viva que penetra imediatamente na memória histórica das dinastias, das tribos e das cidades, dos lugares e das paisagens (idem, 1984: 161).

O mesmo diz também da função representativa das tragédias e das esculturas. Mesmo quando trata da arte na cultura secularizada moderna, também reafirma essa função representativa da poesia, por exemplo quando faz referência a Rilke:

Isto é, o real verdadeiramente dominante se representa como vivo e atuante. [...] A bem-aventurança [Seligkeit] das coisas nada mais é do que o desfraldar do sobreposto sentido do seu ser, com o qual elas dominam e abalam uma consciência que julga estar ela mesma em posse absoluta de si própria. [...] O verdadeiro mundo da tradição religiosa é do mesmo tipo destas figuras poéticas da razão (ibid., 1954: 169).

4. Considerações Finais

Sintetizando, é possível dizer que Gadamer, na sua reflexão sobre a arte, propôs a superação da consciência estética. A função dessa proposta é permitir à arte ser propriamente arte, e não um meio para algo distinto - um discurso ético ou uma lembrança do supra-sensível, por exemplo. Sendo experimentada como arte, ela pode simplesmente representar aquilo que é. Expressa, numa forma determinada, o que pode ser expresso de um todo sempre inexprimível. Mas isto só ocorre na medida em que o apreciador participa - o que implica vivenciar interpretando - da obra de arte e do seu mundo. Não se trata de um mundo alheio ao mundo real, mas da representação específica que dele se mostra numa obra particular.

A analogia formulada no presente texto aponta, pois, para uma compreensão que valoriza as representações religiosas enquanto âmbito próprio da realização da verdade religiosa. Religião não seria meio para outra coisa - por exemplo, o progresso moral ou o atingir de uma realidade ideal, supra-sensível, ou meio para o conhecimento racional de Deus. A religião também não poderia ser compreendida sem vivenciá-la enquanto expressão, evidentemente parcial, da totalidade sempre inexprimível do ser. Por outro lado, religião não seria a expressão de uma abstração. Não seria simplesmente o veículo de uma idealidade. Neste sentido, trata-se de uma perspectiva não teológica da religião, que a compreende como um âmbito de experiência vivencial do ser através de sua manifestação nessa esfera particular da existência que é, dentre outras características, proclamatória, devocional e cúltica.

Será que é legítimo o exercício aqui empreendido de tecer considerações sobre a religião a partir da concepção gadameriana da arte que em certa medida se chocam com algumas manifestações explícitas sobre questões relativas à religião na obra deste autor? Em todo caso, que esse exercício possa ser tentado pode-se argumentar primeiro a partir da reflexão histórica por ele sempre defendida: porque se o próprio Gadamer, em suas reflexões, parte da origem religiosa de elementos considerados secularizados na atualidade - como ele o faz com a arte mas também com a própria compreensão da linguagem -, o presente exercício representa a tentativa de compreender a própria religião neste ambiente secularizado e de resistência ao dualismo metafísico.

Em segundo lugar, há em Gadamer uma visão distinta do significado da antiguidade grega clássica - incluindo aí os próprios mitos transmitidos por ela - e da contribuição da herança cristã para a formação cultural do Ocidente. Ele busca valorizar ambos elementos deste processo formativo. E ele está correto em marcar a distinção destes elementos entre si, porque só fazendo tal distinção é possível valorizar cada um deles por si mesmo. Entretanto, quando a pretensão é pensar a filosofia da religião, é necessário tentar contribuir com um discurso que possa fazer referência a características da religião que possam ser universalizáveis.

Quando trata dos argumentos sobre a existência de Deus, um tema clássico da filosofia da religião, Gadamer recusa tanto uma mera continuidade da forma como esse tema foi tratado no passado quanto a negação pura e simples da temática, característica de grande parte da reflexão moderna. De fato, pode-se perceber que os problemas revelados pela discussão destes argumentos se encaminham na mesma direção que seu tratamento da relação entre mito e verdade: a busca de se resguardar em relação a respostas finais sobre o que transcende as possibilidades da razão e da linguagem, e simultaneamente a impossibilidade de não perceber a importância significativa que tem o tratamento destes problemas. A reflexão sobre os argumentos a respeito da existência de Deus pode não trazer respostas conclusivas sobre Deus, mas enriquece a compreensão da existência humana no cosmo. Além disso, contribui para a reflexão sobre o uso e o papel da razão na tradição filosófica ocidental.

Em todo caso, como bem lembra Gadamer, a pretensão de se filosofar sobre a religião não pode querer esquecer o processo histórico cultural a partir do qual se gestou. Não se pode mais, por exemplo, voltar pura e simplesmente ao passado, tentando ler obras religiosas da mesma forma que os gregos liam seus épicos.

É por assim dizer uma idéia abstrata irrealizável dever se comportar em relação à Escritura, enquanto alguém criado em uma tradição religiosa, quer como judeu, quer como cristão, como por exemplo podia se comportar alguém que estava na realidade cultual grega ou romana em relação à própria mitologia transmitida na poesia ou no teatro (GADAMER, 1981: 178).

Por outro lado, também transparece o fato de que no fundo Gadamer pretende contribuir para uma harmonização da dupla herança ocidental. Mito e razão, além de fazerem parte da constituição desta tradição ocidental, têm ambos o poder de transformar a existência, e isto provém do fato de que expressam aquilo que a linguagem quer expressar, mas só o consegue de modo aproximativo, nunca total. Essa surpresa que abala é a que possibilita a reconfiguração de si. Lembrando que Gadamer pensa nos mitos gregos quando fala da arte, e do cristianismo quando fala de religião, o seguinte texto aponta para esta intenção de síntese presente na sua filosofia hermenêutica, mesmo que tendo presente a distinção.

Igualmente me parece sem sentido construir uma contraposição entre arte e religião, e até mesmo só entre discurso poético e discurso religioso [...] Em cada expressão da arte algo é anunciado, algo conhecido e reconhecido. Há também sempre algo assim como um abalo que está conjugado com tal reconhecimento, um espanto e quase um susto com o fato de que tal coisa aconteceu ou de que seres humanos puderam realizar tal coisa. Igualmente a reivindicação da mensagem cristã transcende isto. Ela aponta para a direção oposta. Ela mostra o que seres humanos não podem realizar [...] (GADAMER, 1964/1978: 155).

Bibliografia

GADAMER, Hans-Georg. 1999 Kant und die Gottesfrage, in Gesammelte Werke, Bd. 4: Neuere Philosophie II, p. 349-360.

_______. 1993 Mythos und Vernunft, in Gesammelte Werke 8: Ästhetik und Poetik. Tübingen: Mohr-Siebeck, p. 163-173.

_______. 1999 Wahrheit und Methode. 6. Aufl, in Gesammelte Werke 1: Hermeneutik I. Tübingen: Mohr-Siebeck.

_______. 1993 Ästethische und Religiöse Erfahrung, in Gesammelte Werke, Bd 8: Ästhetik und Poetik I. Tübingen: Mohr/Siebeck, p. 143-155.

_______. 1993 Mythologie und Offenbarungsreligion, in Gesammelte Werke, Bd. 8: Ästhetik und Poetik. Tübingen: Sieber-Mohr, p. 174-179.

_______. 1993 Reflexionen über das Verhältnis von Religion und Wissenschaft, in Gesammelte Werke, Bd. 8: Ästhetik und Poetik I. Tübingen : Mohr/Siebeck, p. 156-162.

_______. 1999 Verdade e método. 3a. ed. Petrópolis: Vozes, n.d..

Recebido: 17/08/2007
Aceite final: 13/09/2007

Notas

[*] Doutor em Teologia pela EST, São Leopoldo, RS; professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da UFJF; participante no Núcleo de Pesquisa em Filosofia da Religião da UFJF e do GT Filosofia da Religião da ANPOF.

[1] Evidentemente essa caracterização do Cristianismo por Gadamer espelha a concepção da teologia querigmática, representada pelos interlocutores de seu texto. A crítica desta caracterização foge ao objetivo do presente texto.

[2] Aqui é utilizada a tradução brasileira. Observo que Verkündigung, traduzido nessa passagem por anunciação, poderia ser vertido por proclamação, que preferi nas traduções próprias feitas nas outras passagens citadas, já que mostra mais claramente a relação com a teologia querigmática com que Gadamer está em diálogo. Vermittlung, traduzido por intermediação, também poderia ser traduzido por mediação, um tema clássico das teologias que buscam a analogia entre o divino e o humano.

[3] Quanto à tradução de Verkündigung por anunciação, cf. nota anterior.