A história internacional da Ciência da Religião como disciplina institucionalmente independente da Teologia iniciou-se em 1873, ano em que foi instalada a primeira cátedra de Histoire des Religions na Faculte dês Lettres da Universidade de Genebra, Suíça. Quatro anos depois, foram inauguradas cátedras em Geschiedenes van den Godsdienst em quatro universidades holandesas - Utrecht, Groningen, Leyden e Amsterdã. Em 1879 foi inaugurada uma cátedra em história geral da religião no Collège de France, Paris, seguida pela abertura da Section dês Sciences Religieuses da École de Haustes Etúdes na Sorbonne em 1886. Nas décadas seguintes foram fundadas entidades acadêmicas em prol de um estudo não-teológico das religiões em países como Suécia (1893), Inglaterra (1904), Alemanha (1910), Dinamarca (1914), Itália (1924) e Noruega (1925). Diante desses dados, concluímos que a(s) Ciência(s) da Religião é uma disciplina acadêmica relativamente nova no Brasil. O primeiro programa de pós-graduação da área foi apenas fundado em 1976 na Universidade Metodista de São Paulo, seguido pelo programa de pós-graduação em Ciências da Religião na PUC-SP inaugurado em 1978. Duas outras entidades acadêmicas da área no nível de pós-graduação remontam aos anos 1990: os programas na Universidade Federal de Juiz de Fora (1993) e na Universidade Católica de Goiás (1999). Os outros quatro, isto é, na Universidade Presbiteriana Mackenzie (2002), na Universidade Católica de Pernambuco (2005), na Universidade Federal de Paraíba (2006, sob o nome Ciências das Religiões) e na PUC-Minas, Belo Horizonte (2007) são mais recentes ainda.
Não se nega a importância da instalação e consolidação institucional da área nas universidades brasileiras acima referidas. Porém, em termos meta-teóricos e no sentido de uma “política acadêmica”, a Ciência da Religião no Brasil ainda demonstra um atraso significativo em relação à situação e ao status epistemológico da disciplina em diversos outros países e à inserção de suas unidades acadêmicas e seus representantes individuais em órgãos internacionais, por exemplo, na mais importante entidade científica da área no nível mundial, a International Association for the History of Religions (IAHR). O corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC-SP tem intensificado, nos últimos anos, seus esforços para se integrar mais profundamente nas discussões meta-teóricas e em redes acadêmicas internacionais. Um passo importante nesse sentido foi a visita do cientista da religião Prof. Dr. Steven Engler à PUC-SP. A estadia do colega canadense realizou-se entre 1º de agosto de 2005 e 31 de julho de 2006 graças ao apoio da FAPESP. Conforme as expectativas, o professor Steven Engler contribuiu significantemente para o progresso meta-teórico da área por ter mediado entre a discussão brasileira e o debate contemporâneo entre representantes da disciplina no mundo acadêmico norte-americano.
Com o intuito de dar continuidade ao intercâmbio com protagonistas internacionais da Ciência da Religião engajados na reflexão sobre o status e a constituição epistemológica da disciplina, foi recentemente convidado o Professor Dr. Dr. hc. Michael Pye, ex-presidente da International Association for the History of Religions (IAHR) e mundialmente um dos mais renomados representantes da área, para o Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC-SP. Do ponto de vista do intercâmbio anterior com um professor canadense, a vinda do professor Michael Pye foi um complemento ideal graças ao seu conhecimento amplo e profundo sobre a situação da Ciência da Religião na Europa, no Japão e em diversos outros países ainda não suficientemente contemplados na discussão meta-teórica entre cientistas da religião brasileiros. Pye é de origem inglesa, iniciou sua carreira acadêmica na Inglaterra e no Japão e foi, entre 1982 e 2004, professor catedrático de Ciências da Religião na Universidade de Marburg, Alemanha. Até hoje vinculado a essa universidade como professor emérito, terminou em junho uma estadia de oito semestres como professor visitante na Universidade Otani em Kyoto, Japão. Além disso, foi Presidente da International Association for the History of Religions (IAHR) entre 1995 e 2000.
Em todas as etapas da sua carreira, adquiriu um conhecimento detalhado e abrangente sobre o status e o perfil da Ciência da Religião no âmbito internacional. O título de Doutor Honoris Causa é uma expressão dos seus méritos nessa área.
Com o intuito de convidar Michael Pye para a PUC-SP, foi elaborado o projeto A Internalização da Ciência da Religião Brasileira – Problemas e Pré-Requisitos. A FAPESP reagiu positivamente à proposta de financiar a estadia do professor inglês no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC-SP. O convidado chegou no dia 22 de agosto de 2008 e voltou no dia 5 de outubro do mesmo ano.
O primeiro item na pauta acadêmica de Michael Pye no Brasil foi a participação do professor na conferência internacional Herança Espiritual Japonesa no Brasil - Modalidade de Transplantação Religiosa e Adaptação Cultural desde 1908, que ocorreu em São Paulo no período de 24 a 27 de agosto de 2008 (domingo a quarta-feira).
Diferente do título provisório proposto com antecedência, The Japanese view of Tenrikyo in Brazil, Micheal Pye apresentou, na manhã de 26 de agosto, o paper Cultural Distance in the Transplantation of Japanese Religions to Far Countries, desta maneira contribuindo para a mesa Religiões Japonesas em Países Ocidentais da qual também participaram Kenneth Tanaka (Japão) e Cristina Rocha (Austrália). Conforme a avaliação informal tanto dos outros pesquisadores convidados quanto do público em geral, a palestra do professor visitante inglês será lembrada como um dos momentos mais valiosos da conferência.
Além da sua própria apresentação, Michael Pye acompanhou várias palestras de colegas brasileiros, bem como as respectivas discussões. Os organizadores constatavam também com satisfação o fato de que Michael Pye aproveitou o evento tanto para inúmeras conversas em prol de um conhecimento melhor sobre a situação religiosa do Brasil quanto para criar contatos acadêmicos locais, dos quais alguns se mostrariam úteis na segunda e terceira fase da visita do professor a São Paulo.
Um dia após o primeiro evento, Michael Pye fez a palestra de abertura à primeira conferência da Associação Nacional de Pesquisa em Teologia e Ciências da Religião (ANPTECRE), com tema “Teologia e Ciências da Religião: Trajetórias, Desafios, Perspectivas”, realizada do 27 a 29 de Agosto de 2008 na PUC-SP. O paper do professor inglês foi intitulado Studying religions: new needs and new options in today's world e promoveu um debate interessante e engajado sobre elementos epistemológicos e metodológicos da Ciência da Religião no âmbito internacional, bem como sobre os limites e as possibilidades de “importar” princípios disciplinares defendidos por pesquisadores e sociedades acadêmicos fora do Brasil. Durante todo o evento, o professor visitante esteve presente ouvindo comunicações de palestrantes brasileiros e acompanhando as respectivas discussões. O ambiente propício e a atmosfera receptiva permitiram a Michael Pye combinar com alguns colegas encontros posteriores particulares em prol de um intercâmbio mais profundo, compromissos esses que ajudaram Michael Pye, durante sua estadia no Brasil, a conhecer melhor algumas entidades acadêmicas nacionais fora da PUC-SP, assim aperfeiçoando seu conhecimento da situação atual do estudo das religiões no País.
Na maior parte da sua estagia no Brasil, Michael Pye participou regularmente da vida acadêmica do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião e do Departamento de Teologia e Ciências da Religião da PUC-SP. Desta maneira, contribuiu tanto para a formação de mestrandos e doutorandos em Ciências da Religião quanto para reflexões e discussões meta-teóricas por parte do corpo docente do Departamento de Teologia e Ciências da Religião.
No que diz respeito ao trabalho científico com os alunos, destacou-se a atividade programada sobre Tendências atuais da Ciência da Religião no nível internacional, que Pye ofereceu na forma de quatro encontros seqüenciais para mestrandos e doutorandos que possuíam um bom nível de inglês. Cada reunião dedicou-se à discussão de um problema específico associado ao tema geral, a saber: (1) Questões metodológicas básicas referentes ao estudo integrado das religiões e a relação entre o pesquisador e os sujeitos investigados; (2) “Tradição” e “sincretismo” como princípios heurísticos da Ciência da Religião. (3) “Espiritualidades informais” e a chamada “religião civil” como desafios para a Ciência da Religião em andamento; (4) Pluralismo religioso: questões e possíveis repostas do ponto de vista da Ciência da Religião.
Quanto ao intercâmbio entre Michael Pye e integrantes do corpo docente do Departamento de Teologia e Ciências da Religião da PUC-SP, deve-se lembrar que várias conversas aconteceram em situações particulares, muitas vezes informais, e envolveram apenas um número pequeno de colegas. Na reunião de 2 de setembro, que teve um caráter diferente, o professor visitante apresentou onze hipóteses sobre o perfil e a função da Ciência da Religião contemporânea para os professores do Departamento de Teologia e Ciências da Religião da PUC-SP. O paper baseou-se no artigo The study of religions and its contribution to problem-solving in a plural world publicado no periódico Marburg Journal of Religion[1]. Do ponto de vista dos colegas brasileiros, o raciocínio de Michael Pye e a discussão subseqüente forneceram novos argumentos e insights para o debate meta-teórico interno sobre a situação da Ciência da Religião em comparação com a Teologia.
Além das contribuições acima mencionadas, Michael Pye alimentou as reflexões epistemológicas e metodológicas mediante entrevistas dadas para a TV-PUC e para as redações dos periódicos publicados pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC-SP.
No dia 27 de agosto, por ocasião da inauguração da primeira conferência da Associação Nacional de Pesquisa em Teologia e Ciências da Religião (ANPTECRE), Michael Pye concedeu uma primeira entrevista para a TV-PUC. No dia 15 de setembro, o professor visitante foi convidado pelo professor Jorge Cláudio Ribeiro (Departamento de Teologia e Ciências da Religião da PUC-SP) para gravar, no estúdio da TV-PUC, uma conversa sobre o perfil da Ciência da Religião internacional. O programa faz parte da série “Teo-Diversidade” e será divulgado em breve. Em outro momento, respondeu às perguntas de uma equipe responsável para o periódico Último Andar, revista eletrônica dedicada a publicações de trabalhos discentes[2]. O depoimento de Michael Pye será publicado em um dos próximos números. O mesmo vale para duas outras entrevistas, uma concedida para a revista Agnes - Caderno de pesquisa em teoria da religião, lançado pelo grupo de pesquisa NEMES, a outra para a REVER – Revista de Estudos da Religião, órgão de publicação principal do Programa.
As contribuições de Michael Pye não se restringiram à vida acadêmica interna da PUC-SP, mas se estenderam para outras entidades brasileiras engajadas em estudos da religião. O cronograma geral das atividades do visitante já tinha previsto que ele se reuniria com docentes e discentes das duas outras universidades paulistas que também oferecem programas de pós-graduação em Ciências da Religião. Esses encontros aconteceram no dia 30 de setembro, dia em que Michael Pye proferiu duas palestras: a primeira pela manhã, na Universidade Metodista de São Paulo, com o tema Novas Religiões Japonesas à Luz da Ciência da Religião; e a segunda à tarde, na Universidade Presbiteriana Mackenzie, sobre o Estudo das Religiões e sua Contribuição para a Solução de Problemas em um Mundo Pluralista. Conforme os coordenadores dos programas de Ciências da Religião das respectivas universidades, ambos os encontros foram muito bem-sucedidos, tanto no sentido de participação de um bom número de alunos e professores quanto em termos da qualidade das apresentações e dos debates subseqüentes. Além dessas duas palestras para um público especializado em Ciência da Religião, Michael Pye visitou no dia 2 de outubro o Instituto Teológico de São Paulo (ITESP) para debater com uma das turmas dessa entidade sobre particularidades da Ciência da Religião e da Teologia e os pontos de interseção entre essas duas disciplinas.
Como fruto de contatos pessoais com colegas de outras cidades, o professor inglês foi também convidado para palestras em três universidades fora do Estado de São Paulo. No dia 8 de setembro, Pye falou sobre O Pluralismo Religioso no Japão e no Sudeste Asiático na Universidade Estadual de Rio de Janeiro. Dois dias depois, apresentou na Universidade Federal de Minas Gerais, em Juiz de Fora, o paper Pluralismo religioso no Japão, seguido por um debate com colegas do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião daquela universidade sobre futuras medidas em prol do fortalecimento da disciplina no Brasil e sua melhor inserção internacional. Algo análogo aconteceu no dia 25 de setembro no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião na Universidade Católica de Goiás, onde Michael Pye proferiu a palestra O Estudo das Religiões e a Teologia Hoje.
Uma vez que as especificidades da Ciência da Religião brasileira não refletem apenas os esforços meta-teóricas dos seus representantes e as condições materiais das entidades acadêmicas afins, mas também as características do campo religioso nacional como referência principal de pesquisas empíricas, o projeto designado para Michael Pye tinha previsto um espaço adequado tanto para o estudo bibliográfico quanto para visitas a alguns grupos religiosos representativos para a situação religiosa contemporânea do País.
No que diz respeito ao primeiro aspecto, o professor visitante, apoiado por alunos da PUC-SP, dedicou uma boa parte do seu tempo ao estudo do material bibliográfico encontrado na Biblioteca da Universidade ou de documentos acessíveis no Centro de Documentação e Informação Científica (CEDIC) da própria instituição. Paralelamente, ele aproveitou uma série de convites de colegas e alunos para conhecer pessoalmente algumas comunidades religiosas e suas instalações, sobretudo em São Paulo, mas também no Rio de Janeiro e em Brasília.
A primeira categoria de visitas refere-se a instituições cristãs de todas as confissões, sobretudo católicas (Catedral da Sé, Mosteiro São Bento de São Paulo, Mosteiro São Bento do Rio de Janeiro) e protestantes (filiais da Igreja Anglicana, Catedral da Fé da IURD em Santo Amaro), mas também à Igreja Ortodoxa Antioquina da Anunciação à Nossa Senhora no Centro da cidade de São Paulo.
O segundo bloco de visitas abrangeu contatos com religiões orientais em seus ambientes específicos. Além da excursão para o “Solo Sagrado” em Guarapiranga da Igreja Messiânica Mundial no último dia (27 de agosto) da conferência Herança Espiritual Japonesa no Brasil - Modalidade de Transplantação Religiosa e Adaptação Cultural desde 1908, Michael Pye foi várias vezes ao bairro da Liberdade, onde teve a oportunidade de conhecer instituições como o templo Zen Busshinji, o templo budista dedicado à divindade Kannon ou o grupo Sukyo Mahikari. Visitou também o Templo do Budismo Shin em Brasília.
Quanto a contatos com fenômenos religiosos espontaneamente identificados como “tipicamente brasileiros”, Pye ficou impressionado com o Vale de Amanhecer e encontrou-se com representantes do Santo Daime. Infelizmente, não teve a oportunidade de entrar em contato com uma instituição ou um grupo associado ao sub-campo de religiosidade afro-brasileira.
A visita do professor inglês Michael Pye ao Programa de Pós-Graduação de Ciências da Religião da PUC-SP teve o objetivo de incentivar a reflexão sobre o status e a constituição epistemológica da(s) Ciência(s) da Religião no Brasil a partir de um olhar externo. Como previsto, graças ao seu conhecimento amplo e profundo sobre a situação da Ciência da Religião em várias partes do mundo e uma experiência acadêmica rica, o professor Michael Pye contribuiu consideravelmente para o progresso dessa discussão entre docentes e discentes particularmente da PUC-SP, mas, devido aos contatos criados na primeira fase da sua estadia, também em outras universidades brasileiras. Além do incentivo para o debate teórico propriamente dito, a visita de Michael Pye desempenhou um papel construtivo para a dinâmica da vida acadêmica interna do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião uma vez que todos os colegas e muitos alunos se engajaram na organização da estadia do professor inglês. Uma outra conseqüência positiva dessa visita foi o fato de que a apresentação do professor visitante para algumas instâncias internas da PUC-SP chamaram atenção especial para o perfil do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião.
Os que tiverem contato com o Michael Pye durante as semanas em questão lembrarão não apenas da sua competência analítica teórica e retórica brilhante em prol de identificar as conquistas e lacunas na área de Ciência da Religião, mas também da sua autenticidade e seu brilhante humor inglês. Imagina-se que o professor Michael Pye, depois da sua estadia no Brasil, esteja suficientemente familiarizado com as especificidades empíricas tanto do campo religioso nacional quanto da Ciência da Religião brasileira para que ele continue a contribuir para uma ampliação e intensificação de contatos internacionais relevantes para a consolidação da disciplina.
[1] Cf. Franke, E.; M.Pye: The study of religions and its contribution to problem-solving in a plural world, Marburg Journal of Religion, 9/2 (Dec.2004), http://web.uni-marburg.de/religionswissenschaft/journal/mjr/art_franke_2004.htm#english (acesso 10/11/2008)