“A Serviço do Rei”. Uma Análise dos Discursos Cristãos Midiatizados

Magali do Nascimento Cunha[*] []

Resumo

As ênfases predominantes nos discursos religiosos midiatizados, resultado da crescente presença dos mais distintos grupos cristãos na mídia latino-americana na contemporaneidade, estão centradas na Teologia da Prosperidade e a Guerra Espiritual. A análise desses discursos indica a adoção de uma linguagem própria da lógica e da cultura do mercado, ou seja: no momento em que a lógica do capitalismo globalizado prevalece como ordenadora da sociedade contemporânea, a mídia religiosa cristã revela-se sua extensão; em outras palavras, como expressão cultural desse capitalismo em versão religiosa. Isto não ocorre somente por meio dos discursos veiculados pela mídia, mas também por meio das práticas de consumo e de entretenimento religiosos. A contradição reside no fato de, juntamente com essas mudanças, conviver a conservação de aspectos tradicionais do Cristianismo no continente. Não se observa alteração substancial do “dominante”; o que se expressa como “modernidade cristã” parece ser nada mais do que “o mesmo” com tecnologia, consumo e diversão. Aquilo que se apresenta como novo na realidade das igrejas é, de fato, uma expressão do mercado.

Palavras-chave: Cristianismo, Discurso, Mídia, Mercado, Hibridismo Cultural

Abstract

The predominant emphases on the mediated religious speeches are centered in the Prosperity Theology and the Spiritual War, as a result of the growing presence of the various Christian groups in the contemporary Latin American media. The analysis of these discourses points to the adoption of a language that is part of the logic and the culture of the market. It means that in the moment that the logic of globalized capitalism prevails as the order of contemporary society, Christian religious media is revealed as its extension – a cultural expression of capitalism in a religious version. This occurs not only because of the speeches disseminated by the media but also through the practices of religious consumerism and entertainment. The contradiction resides in the fact that, coupled with these changes, lives a process of conservation of traditional aspects of Christianity in the Continent. A substantial change in the “dominant” aspects is not perceived. Elements expressed as “Christian modernity” seem to be “nothing more than the same” with technology, consumerism and entertainment. The aspects presented as new in churches everyday life are, in fact, a face of the market.

Keywords: Christianity, Speech, Media, Market, Cultural Hybridism

Introdução

Um olhar sobre o cenário religioso brasileiro indica que manifestações culturais plurais têm inserido novas significações no modo de vida cristão, configuradas por elementos que são assimilados pelos diferentes segmentos e por eles reprocessados a partir da vivência própria deles, entre eles mesmos e na sociedade. A cultura do consumo e a cultura da mídia são duas dessas manifestações da contemporaneidade.

Entenda-se por cultura do mercado o modo de vida determinado pelo consumo, conforme o pensamento desenvolvido por Renato Ortiz: "O consumo se desvenda, assim, como uma instituição formadora de valores e orientadora de conduta.(...) O espaço do mercado e do consumo tornam-se, assim, lugares nos quais são engendrados e partilhados padrões de cultura” (ORTIZ s.d: 121). A cultura do mercado é baseada na oportunidade de participação em um sistema de gratificação comercial e inserção na modernidade[1], oferecida a todas as pessoas, desde que tenham possibilidade de adquirir um conjunto de bens e serviços que lhes são oferecidos. Participar do sistema e obter satisfação são alvos de um modo de vida cuja ação central é o consumo.

Entenda-se por cultura midiática o novo quadro das interações sociais, uma nova forma de estruturação das práticas sociais, marcada pela existência dos meios. É produto da midiatização da sociedade, ou seja, a reconfiguração do processo coletivo de produção de significados por meio do qual grupo social se compreende, se comunica, se reproduz e se transforma, a partir das novas tecnologias e meios de produção e transmissão de informação. Essa cultura se expressa por meio de imagens, de sons, de espetáculos, de informações, que mediam a construção do tecido social, ocupando o tempo de lazer das pessoas, fornecendo opiniões políticas, oferecendo formas de comportamento social. É uma cultura da imagem que explora a visão e a audição e, com isso, trabalha com idéias, sentimentos e emoções. Para isso a cultura midiática é uma cultura de alta de tecnologia, o que a torna um setor dos mais lucrativos na economia global. Além disso, a cultura da mídia é parte do mercado, isto é, trabalha como uma indústria que precisa produzir em massa para servir ao mercado em expansão (BIBAL 1995; MATA 1999; KELLNER 2001).

Por conseguinte, o reprocessamento desses elementos culturais da atualidade (mercado e mídia), concretizado nas transformações no modo de ser cristão, é realizado por meio da introdução de novas significações religiosas, que enfraquece algumas das bases que dão sentido à existência dos grupos, mas reforça outras. Esse processo provoca, muito especialmente na passagem do século XX para o século XXI, uma crescente presença de distintos grupos cristãos no mercado e na mídia, o que promove a elaboração de um novo modo de vida religiosa e, portanto, novos discursos que o alimentam.

A crescente presença dos distintos grupos cristãos na mídia

As igrejas, em geral, nunca rejeitaram os meios eletrônicos de comunicação social. Portanto, discutir a presença das igrejas na mídia não é discutir um assunto novo.

Com um referencial predominantemente aristotélico e funcionalista, vendo o processo da comunicação como um movimento de convencimento do outro, as igrejas, desde a época da emergência desses meios, em especial do rádio e da televisão, baseavam-se no pensamento de que convencer pessoas a optarem pelo Evangelho e, conseqüentemente, pela adesão a um determinado segmento cristão, geraria um efeito-chave: o crescimento do Cristianismo. Ao lado disso, a perspectiva da visibilidade também era elemento importante na aproximação Igreja-mídia eletrônica. Os meios de comunicação tornavam possível uma publicidade das igrejas, a visibilidade de sua presença nos espaços sociais.

A primeira grande investigação sobre a intensa inserção de grupos religiosos nos meios de comunicação social no continente latino-americano foi solicitada nos Anos 80 pela World Association for Christian Communication (WACC), realizada por Hugo Assmann e publicada em diferentes edições – única obra extensa até hoje produzida sobre o tema –, com o título A Igreja Eletrônica e seu impacto na América Latina. (ASSMANN 1986)

A análise de Hugo Assmann abordou a atuação dos principais televangelistas dos Anos 70 e 80: Oral Roberts, Jerry Falwell, Jim Bakker, Robert Schüller, Paul Crouch, Robert Tilton, Bill Bright, Rex Humbard, Jimmy Sweaggart e Pat Robertson. Eles fizeram sucesso no continente com programas em horários comercializados em TVs abertas, com a venda de publicações e com a realização de concentrações “evangelísticas” em estádios de futebol. O eixo salvação-milagres-coleta de fundos era comum a todos, bem como o viés fundamentalista da interpretação bíblica, mas as ênfases na pregação variavam. A programação era exportada para todo o mundo e penetrou na América Latina com ampla aceitação do público.

Diferente dos grupos norte-americanos, a presença dos evangélicos brasileiros nos meios de comunicação sempre foi mais intensa no rádio – pela facilidade de aquisição de concessões ou de compra de espaços na grade das programações. O fato é que a partir dos anos 90 há um amplo empreendimento da presença cristã na mídia eletrônica. Pode-se constatar o avanço da presença católico-romana na TV e dos evangélicos, e mais intensamente pentecostais, nas diferentes mídias. Esse avanço não pode ser avaliado de forma desconectada das transformações vivenciadas no contexto sociopolítico e religioso no País e no mundo.

Transformações sociopolíticas e religiosas

O avanço do capitalismo globalizado a partir dos anos 90 imprimiu uma nova ordem mundial, na qual o investimento tecnológico é estratégia determinante. A informação passa a ter espaço privilegiado, bem como os canais de comunicação. Cerca de 10% da economia mundial passam a ser centrados na informação e na comunicação, e a previsão é de que, no século XXI, a indústria da comunicação e informação se consolide como a maior do mundo.

Nesse contexto sociopolítico e econômico, o campo religioso brasileiro experimenta o fenômeno do crescimento dos movimentos pentecostais. Surge um sem-número de igrejas autônomas, organizadas em torno de líderes, baseadas nas propostas de cura, de exorcismo e de prosperidade, sem enfatizar a necessidade de restrições de cunho moral e cultural para se alcançar a benção divina. Baseiam-se também no reprocessamento de traços da religiosidade popular, da valorização da utilização de símbolos e de representações icônicas. Há ainda um tipo de Pentecostalismo mais recente que privilegia a busca de adeptos da classe média e de faixa etária jovem e a música como recurso de comunicação. É formado pelas “Comunidades”, pelos “Ministérios” e outras igrejas independentes. Essa presença dos novos movimentos é percebida no continente principalmente de duas formas: um alto investimento em espaços na mídia e participação política partidária com busca de cargos no poder público.

O crescimento pentecostal passou a exercer uma influência decisiva sobre o modo de ser das demais igrejas cristãs. Para os evangélicos, ele provocou incômodo em relação a um aspecto que marcou as igrejas históricas – a estagnação e o não-crescimento numérico significativo – e promoveu uma espécie de motivação para a concorrência e busca do aumento do número de adeptos. Para os católico-romanos representou uma ameaça, já que os seus fiéis são alvo do proselitismo pentecostal, o que se manifestou na forma de um declínio numérico. A influência se concretizou de maneira especial no reforço aos grupos chamados “avivalistas” ou “de renovação carismática”, que possuem similaridade de propostas e posturas com os pentecostalismos e passaram a conquistar espaços importantes na prática religiosa das igrejas chamadas históricas para que elas recuperassem ou alcançassem algum crescimento numérico[2].

Paralelamente, ganham espaço no continente duas correntes religiosas denominadas “Teologia da Prosperidade” e “Guerra Espiritual”, estreitamente relacionadas à nova ordem mundial. Na lógica de exclusão que caracteriza o capitalismo globalizado, essas correntes pregam a inclusão social com promessas de prosperidade material ("Vida na Bênção"), condicionada à fidelidade material e espiritual a Deus. Na mesma direção, prega-se que é necessário “destruir o Mal” que impede que a sociedade alcance as bênçãos da prosperidade. Por isso, os “filhos do Rei” devem invocar todo o poder que lhes é de direito para estabelecer uma guerra contra as “potestades do Mal”.

A pregação sobre o direito a reinar com Deus e desfrutar das suas riquezas e do seu poder parece responder à necessidade de aumento da auto-estima dos membros das igrejas históricas, inferiorizados pelo crescimento pentecostal e vitimados pelas políticas excludentes do capitalismo globalizado implantadas no continente. Por outro lado, a “confissão positiva” carrega elementos da religiosidade popular: concebem-se pobreza, doença, as agruras da vida, qualquer sofrimento do cristão como resultado de um fracasso – concretização da falta de fé ou de vida em pecado. Individualismo e competição também se tornam palavras de ordem, no que diz respeito a pessoas ou a grupos.

Eficiência e marketing: elementos compulsórios

Observam-se pelo menos duas conseqüências dessas transformações no campo religioso. Uma delas diz respeito ao corpo pastoral. A eficiência passa a ser um valor a ser alcançado pelos líderes das diferentes igrejas à luz do que ocorre no mercado secular. Neste, um funcionário é estimulado a ser eficiente e mostrar resultados; nas igrejas, um pastor eficiente deve liderar uma igreja que apresente resultados: crescimento do número de membros e aumento de patrimônio da igreja e dos seus membros. Às lideranças em escala hierárquica superior cabe a tarefa de cobrar os resultados, estabelecendo alvos numéricos a serem alcançados pelos pastores e igrejas – isso estimula a busca de reconhecimento e, conseqüentemente, a competição (CUNHA 2001).

Nessa linha, um sem-número de ofertas de consultorias de marketing especializadas no campo religioso estão à disposição das igrejas para contribuir no estabelecimento de estratégias a fim de alcançar os resultados previstos. Basta uma breve visita a páginas de busca na Internet para se conseguir uma ampla lista desses grupos de consultoria.

Marketing religioso já se consolidou como disciplina curricular de diversos cursos de Teologia evangélicos (e também católicos) e de cursos especializados em Administração e Marketing aplicado à religião tanto no nível de graduação quanto de pós-graduação. Há um significativo número de publicações que embasam os conteúdos oferecidos. Uma das referências do marketing religioso é o norte-americano George Barna, presidente do Barna Research Group, empresa de marketing da Califórnia/EUA. Ele é autor do livro Marketing the Church, traduzido no Brasil com o título O marketing na Igreja: o que nunca lhe disseram sobre o crescimento da Igreja (BARNA 1993; CAMPOS 1999; CUNHA 1999).

Um dos indícios da força desta corrente tem sido a adoção de uma linguagem mercadológica nos discursos das igrejas, como a dos “planejamentos estratégicos”.[3]

O mercado da religião e a religião de mercado

Não é possível abordar as transformações no campo religioso sem vincular a análise a uma nova força e forma do mercado de consumo e sua presença na mídia num contexto religioso. Esse mercado, ao longo dos anos de presença cristã no continente, já era forte no campo editorial, mas sua expansão deu-se principalmente por meio do mercado fonográfico, estimulado pelo “movimento gospel”.

Gospel é, no Brasil, o termo de classificação de um gênero musical que combina formas musicais seculares (em especial as populares) com conteúdo religioso cristão. A palavra “movimento” justifica-se, de acordo com vários analistas e entusiastas do processo, pelas novas práticas desencadeadas a partir da profissionalização de músicos, cantores e grupos musicais cristãos ocorrida no período, aliada ao desenvolvimento da mídia religiosa, ambos fundamentados numa teologia que enfatiza o valor superior do louvor e da adoração no culto[4].

No mundo evangélico, um número expressivo de cantores há algumas décadas comercializava seus discos, a maioria com produção independente. No entanto, com o incentivo do mercado teve início uma proliferação de cantores, agora com uma nova característica: passam a ser profissionais da música, com a realização de espetáculos para promover seu trabalho (inclusive em casas de espetáculos populares) e cobrança direta ou indireta de cachês para apresentação em igrejas e eventos de massa. Foi esse mercado fonográfico que impulsionou, nos anos de 1980, o sucesso das rádios com 100% de programação religiosa, com significativo alcance nas áreas metropolitanas.

A partir daí foram surgindo as estrelas gospel; dentre elas destacam-se o mexicano Marcos Witt e a brasileira Aline Barros, ambos ganhadores do Premio Grammy Latino na categoria “Música Cristã”. O mercado gospel da música também tem atraído artistas da esfera secular que se encontram em declínio no mercado fonográfico dominante.

Nessa conjuntura, soma-se o considerável aumento do número de produtos gospel e a transformação dos cristãos em um segmento de mercado. Por isso tornou-se possível encontrar produtos os mais variados, como roupas, cosméticos e doces, com marcas formadas por slogans de apelo religioso, versículos bíblicos ou, simplesmente, o nome de Jesus.

Os grandes magazines também descobriram os consumidores cristãos. Se, no passado, para um adepto ou simpatizante buscar artigos cristãos, como camisetas, discos ou livros, o caminho era procurar as lojas especializadas; hoje ele pode ir a qualquer grande magazine ou rede de supermercados para encontrá-los. Importa também destacar que o mercado gospel passa a representar uma fonte alternativa de renda e de trabalho para o crescente número de desempregados vinculados às igrejas – incluídos aqueles do chamado mercado informal, que comercializam, inclusive, produtos “piratas”.

Não foram apenas os grandes magazines que atentaram para esta nova realidade; também as grandes empresas. Um exemplo é ilustrativo: o lançamento, em 2003, do celular “Fiel” da Ericsson – “O celular para quem acredita no poder da palavra” e toca até oito hinos diferentes ao receber chamadas, oferece serviços como a "caixa de promessas eletrônica" (serviços de mensagens temáticas via SMS e portal de voz), além da distribuição de cartões de recarga de pré-pago veiculando mensagens bíblicas.

Como parte desse quadro, o marketing e seus princípios ganham força no campo cristão. Conforme já descrito anteriormente, são de expressivo número as empresas cristãs de consultoria de marketing, que vêm se dedicando a trabalhar com a imagem e o alcance de público por parte de congregações locais, denominações, grupos e empresas cristãs.

Conceitos Financeiros Cristãos – Gospel Business é um dos grupos que promove seminários, pois, segundo o texto divulgado pelo grupo em prospecto:

Mentalidade negativa tem evitado muitos empresários de alcançar o caminho da prosperidade. O Ministério de Conceitos Financeiros Cristãos estará capacitando esses executivos a praticarem o conceito da palavra do Senhor nos negócios, e desse modo, criar o ambiente necessário para identificar as oportunidades e administrar de maneira eficaz as rápidas mudanças que vivemos.

“Revolucionando seu negócio de acordo com a Bíblia” e “O Reino de Deus no mundo dos negócios” são temas de seminários realizados por Conceitos Financeiros Cristãos, em luxuosos Centros de Convenções.

A revista Veja, em 2002, após a divulgação dos números do censo brasileiro de 2000, que indicou o crescimento da população evangélica, publicou reportagem especial intitulada “A força do Senhor”, que afirmou: “Somando tudo – de CDs a bares e instituições de ensino –, o mercado impulsionado pelos protestantes movimenta 3 bilhões de reais por ano e gera pelo menos 2 milhões de empregos”.

A formação da cultura gospel[5]

Podem ser listadas como conseqüências desse processo:

Portanto, pode-se identificar um novo modo de vida que emerge entre grupos cristãos no Brasil, como conseqüência da força adquirida pelo trinômio novos movimentos religiosos-mercado-mídia. Esse modo de vida manifesta-se principalmente na ênfase à música como cultivo e enlevo espiritual com valorização da diversidade de gêneros musicais; na relativização da tradição de santidade puritana de recusa da sociedade e das manifestações culturais por meio da abertura para a expressão corporal; na inserção do consumo de bens religiosos como processo de aproximação/apropriação do sagrado. Este modo de vida é aqui denominado “cultura gospel”, que hoje alcança, senão todas, certamente a grande maioria das confissões cristãs.

A cultura gospel é causa e conseqüência de um novo relacionamento dos cristãos com a mídia. “Causa e conseqüência” exatamente pelo papel mediador da mídia no contexto de uma nova forma religiosa cristã desenvolvido por esta nova manifestação cultural.

A ênfase no consumo e o novo tratamento destinado aos cristãos como segmento de mercado dão à mídia religiosa um novo caráter e um novo papel. Algumas características da relação entre cristãos e mídia no presente ilustram este novo perfil:

  1. Entre os anos de 1960 e 1980 os programas religiosos de rádio e TV privilegiavam os cultos, as missas e as pregações, no espaço evangélico com ênfase nas experiências de cura e de exorcismo e na proposta de salvação em Jesus Cristo (ASSMANN 1986). Hoje, a programação é variada e adaptada à dinâmica dos programas seculares (busca da modernidade), com ênfase no entretenimento. A cura, o exorcismo e a pregação da salvação em Cristo já não mais predominam nos espaços evangélicos; cedem espaço à diversão. Na TV, a programação dos canais e espaços cristãos exibe os clips e os shows musicais, filmes bíblicos, programas de auditório, de entrevistas e debates. Nas rádios, o modelo é o mesmo das seculares: programação musical na maior parte da grade, entrevistas, debates, jornalismo (menor parte da grade), quiz e distribuição de brindes para os ouvintes. Tanto na TV quanto no rádio, o conteúdo troca o eixo salvação-milagres-coleta de fundos pela ênfase na pregação da prosperidade econômico-financeira como bênção de Deus e da guerra espiritual, e oferece também respostas religiosas para questões atuais como depressão, estresse, drogas, crises familiares. As poucas exceções ficam com a programação de algumas rádios que ainda cultivam as dimensões dos serviços à comunidade e da educação.
  2. No período de 1960 a 1980, os programas religiosos na mídia, especialmente os evangélicos, eram centrados em um personagem carismático, portador das promessas de cura e de salvação – os tele/rádio-evangelistas. Na atualidade, não há personagem carismático destacado e, sim, apresentadores mais ou menos “famosos” que possuem seus próprios programas, de acordo com a faixa de público-alvo e com a temática trabalhada, dividindo a exposição de sua imagem com os cantores-artistas, a exemplo da mídia secular, com poucas exceções.
  3. Na programação de rádio e TV e na literatura impressa, a ênfase da mensagem transmitida não é na “Igreja” e na adesão a ela, mas no cultivo de uma religiosidade que não depende da Igreja, mas que é intimista, autônoma e individualizada. Elementos próprios da teologia gospel. O que se enfatiza não é tanto a Igreja, mas a experiência religiosa mediada pelo meio TV ou rádio, isto é, o meio possibilita o cultivo da religiosidade, independente da adesão a uma comunidade de fé.
  4. A inculturação das igrejas e grupos religiosos na cultura midiática é refletida tanto na sua presença na programação do rádio, da TV, na literatura e na internet, quanto na prática religiosa cotidiana. A imagem passa a ser um valor para os momentos de culto/missa nas igrejas que se tornam veículo promocional dos discos e dos cantores cristãos e do seu discurso religioso. Os cultos/missas passam a ser espaço privilegiado de apresentações. A liturgia fica reduzida a dois momentos: momento dos cânticos e da pregação. O momento dos cânticos denominado pela maior parte das igrejas como “momento de louvor” passa a seguir um padrão: tudo é coordenado pelos “grupos de louvor” e pelas “bandas gospel”, que são intérpretes reprodutores dos modelos-cantores assistidos nos shows. A ênfase é a apresentação de um programa. Sistemas de som são adquiridos para manter o padrão estabelecido, bem como um retroprojetor ou datashow, entre as comunidades com mais recursos financeiros, para reprodução das letras das canções, não importando as condições físicas do templo[6].
  5. É mantido o recurso a tradicionais baladas românticas de forte cunho emotivo e a abertura ao rock pesado, mas é aberto o espaço para outros ritmos, seguindo as trilhas do mercado musical “profano”. A “modernidade” dos gêneros contrasta com os conteúdos tradicionais que privilegiam a exaltação e a reafirmação de Deus como Rei e como Poder, que também é concedido aos fiéis, e os “cânticos de guerra espiritual”, que têm espaço de destaque no “momento de louvor”.

Tais características listadas, levantadas a partir de pesquisas na programação religiosa na mídia e em igrejas, unem-se ao fato de que os cristãos são, agora, um segmento, um mercado em plena expansão, como referido anteriormente. A mudança de postura quanto ao proselitismo religioso retrata bem esse processo. Se no passado havia ênfase no convite à conversão e na divulgação da denominação religiosa, no presente a programação das rádios e os programas televisivos são majoritariamente dirigidos ao público já vinculado a alguma igreja ou confissão.

A divulgação dos locais de reuniões públicas dos grupos condutores da programação é apenas um apêndice à veiculação massiva de conteúdo musical por meio de clips ou exibição de cantores/as e grupos musicais gospel – dada a força do mercado fonográfico. Os demais aspectos da programação (debates, sessões de oração, estudos e sermões) não têm o cunho proselitista clássico, mas ênfase doutrinária para conquista de público para a programação e de consumidores para os produtos veiculados.

Nas programações de rádio ou TV, por exemplo, são transmitidas peças comerciais em que se repetem slogans como: “presenteie o seu pastor”, “enriqueça a sua igreja/comunidade com o produto x”, “aprofunde a sua fé com o produto y”, “fique mais perto de Deus com o produto z”.

Portanto, os programas e a literatura da mídia cristã, disseminadores e alimentadores da cultura gospel, são os mediadores de uma comunidade de consumidores, em que a vinculação religiosa já não é o que mais importa, e sim uma vivência religiosa e o consumo de bens e de cultura que possibilitem aproximação com Deus e entretenimento “sadio”.

É assim que o gospel é levado para além de uma expressão musical e se transforma em conteúdo disseminado e acessado por diferentes grupos em diferentes contextos socioculturais e econômicos. A mídia gospel mais forte – a fonográfica – tem reforço direto da mídia mais popular: o rádio. Na TV, programas dedicados à música têm conquistado espaço. Nas livrarias e nas bancas de jornais surgem as revistas e os livros dedicados à propagação de um “modo de vida gospel”, que alcançam rapidamente a lista dos mais vendidos. Um número incontável de sites na Internet é dedicado à música gospel, com cifras disponíveis para os cristãos cantarem os sucessos com suas igrejas.

Não é possível abordar as transformações no campo religioso cristão sem vincular a análise a uma nova força e forma do mercado de consumo e sua presença na mídia num contexto religioso – o chamado "mercado gospel". Essa configuração do mercado gospel deu-se principalmente por meio do mercado fonográfico.

O poder sagrado da música e do mercado

Ao colocar em evidência os artistas e os ministérios de louvor e adoração, o mercado fonográfico trabalha a música como símbolo sagrado, um bem religioso. O gênero musical gospel atinge sentimentos caros aos consumidores de música religiosa.

Em um contexto socioeconômico e cultural marcado pela exclusão social, pelo individualismo, pela competição, e em um contexto eclesial configurado por uma vasta maioria de mulheres, temas musicados como a realeza de Deus, a vitória sobre as dificuldades da vida, a escolha que Deus faz de quem é fiel, o Deus que se coloca como o ser amante e amado, que espera intimidade no relacionamento, que preenche vazios são de forte acolhimento por parte do público.

A música gospel é música de consumo, é produto industrial, de qualidade melódica e poética passível de críticas, pois visa à satisfação das demandas do mercado fonográfico, mas também constitui um alívio das tensões do cotidiano dos fiéis. Ela ajuda a escapar de cargas pessoais, pois é canal que torna as pessoas mais próximas do divino. Além disso, pronuncia um discurso que tem embutidos traços componentes da religiosidade popular, o que lhe permite extensas possibilidades de uma resposta positiva.

A ampla aceitação pelo público cristão da música religiosa de consumo ainda se explica pelo fato de que a cultura gospel redesenhou as linhas divisórias entre o sagrado e o profano, entre a igreja e o mundo, estabelecidas pela tradição protestante dualista, e reafirmou a demonização da música secular e seus similares, como os espetáculos musicais, a programação musical nas rádios e na televisão. No discurso que predomina na cultura religiosa evangélica contemporânea, o verdadeiro adorador, aquele que deseja intimidade com Deus, não ouve, canta ou toca música profana.

Um estudioso do consumo como expressão cultural, Nestor Garcia Canclini, já teorizou que as pessoas consomem em cenários de diferentes escalas e com lógicas distintas, o que significa que a forma de consumir é a forma de uma sociedade ou um grupo comunicar a lógica de sua organização. Com base nesta reflexão é que Canclini elaborou seu conceito de consumo e de consumo cultural:

[O consumo é] o conjunto de processos socioculturais em que se realizam a apropriação e os usos dos produtos.
[O consumo cultural é] o conjunto de processos de apropriação e usos de produtos nos quais o valor simbólico prevalece sobre os valores de uso e de câmbio, ou onde ao menos estes últimos se configuram subordinados à dimensão simbólica. (CANCLINI 1993: 5,8)

Canclini evoca os estudos antropológicos sobre os rituais para avançar nessa reflexão. Ele cita Mary Douglas e Baron Isherwood que afirmam, por meio de seus estudos, que os rituais permitem que cada sociedade selecione e fixe (graças a acordos coletivos) os significados que a regulam. Portanto,

... os rituais servem para conter o curso dos significados e tornar explícitas as definições públicas do que o consenso geral julga valioso. Os rituais mais eficazes são os que utilizam objetos materiais para estabelecer os sentidos e as práticas que os preservam. Quanto mais caros são os bens, mais forte será a inversão afetiva e a ritualização que fixa os significados que lhe são associados. (CANCLINI, 1991:8)

É por isso, diz Canclini, que Douglas e Isherwood definem que muitos dos bens que se consomem são “acessórios rituais”, e compreendem o consumo como um processo ritual “cuja função primária consiste em dar sentido ao rudimentar fluxo dos acontecimentos”. Comprar objetos, distribuí-los pela casa, dar-lhes um lugar e uma utilidade são recursos para pensar o próprio corpo, a ordem social instável e as interações com o outro. Por isso,“as mercadorias servem para pensar”.

Na cultura gospel, os produtos são codificados e decodificados como mediações com o sagrado – é por meio deles que cristãos estariam mais próximos de Deus.

“Cristão” é hoje uma logomarca. Esta logomarca leva o consumidor cristão a sentir o desejo de consumir o produto. Temos os telefones Motorola, Nokia, LG, mas o produto da Ericsson, o aparelho que é destinado para esse mercado, com mensagem bíblica, palavra, música (há seis opções de hinos para a chamada)... o cristão em si gosta de tudo o que é relacionado ao seu mundo, o atrai... Ele não é um segmento conservador, mas é um segmento que passa por um sistema em que o produto é lançado e automaticamente os consumidores imitam, adquirem, gostam daquilo. Eles precisam de uma marca geral de quem somos nós – não uma logomarca da igreja, mas do cristão, religioso, no caso. Não uma identificação dos evangélicos, que é uma palavra que limita o mercado, mas do religioso, do cristão religioso. E, assim, cria-se uma comunidade de consumidores, altamente consumidora, de baixa inadimplência e de escassos recursos. Hoje se fala de crises, pelas quais as pessoas passam, no que diz respeito à parte financeira. No religioso, por poupar, ou porque ele economiza, o consumidor investe naquilo que dá retorno para ele e para a família: tem o valor religioso, o valor simbólico no produto.[7]

O mercado, portanto, funciona como pano de fundo para algo que é considerado maior: o cultivo da fé:

Quando a gente coloca “consumo” e “cristão” juntos, parece que dá uma pane, mas na verdade a gente compra roupa, a gente vai a supermercado, a gente vai a lojas, shopping... todo mundo vai, cristão ou não-cristão, todo mundo vai. Todo mundo vai ao cinema, compra televisão, compra microondas... por que não pode então comprar uma Bíblia, um cd, um vídeo, segmentado, que está de acordo com a sua fé? Então a gente está lidando com uma questão conceitual aí. Na verdade ele já faz tudo isto, só que a gente está falando: “olha, consumir não é pecado”...[8]

E além do cultivo da fé, o valor simbólico reside na propagação da fé por meio dos produtos, ou seja, a realização da missão, da “Grande Comissão”:

Nossos produtos têm que estar nas livrarias seculares, nos supermercados... Nós temos bons produtos que valorizam a família. Você vai numa loja de conveniência e vai encontrar camisinha, espermicida, revista de mulher pelada ... Nós temos mulheres e filhos, nossos parentes... nós vivemos no nosso meio [cristão], nessa comunidade da moral da ética. Nós temos que colocar os nossos produtos no mercado secular.[9]
Pode parecer um discurso ingênuo ou demagógico, mas a verdade é que quase todos os que trabalham com artigos cristãos sentem-se príncipes da Grande Comissão, razão de ser da Igreja de Cristo. (...) A maioria das empresas e dos lojistas cristãos é muito rigorosa com aquilo que negocia. Se determinado produto ou algum tipo de serviço não promove o Reino de Deus, direta ou indiretamente, não sobrevive (CONSUMIDOR CRISTÃO 2003).[10]

Observa-se que não há qualquer constrangimento em se tratar os produtos como produtos e como parte do mercado. Os consumidores e os empresários cristãos são interpretados como um segmento de mercado, que devem seguir a lógica do mercado e da modernização a partir da ética cristã: “É mercado, temos esta consciência. E este mercado já se renovou. Esta feira é para chamar os executivos para estarem interagindo. Eles têm que se integrar neste mundo moderno, que não é difícil, o custo-benefício prevalece muito mais para o investidor”.[11]

Nesse sentido, é possível chegar à premissa de que, na cultura gospel, o consumo não é apenas uma ação que responde à lógica do mercado, mas é elemento produtor de valores e sentidos religiosos. O fato de os cristãos terem se tornado um segmento de mercado já pode ser identificado na programação da mídia religiosa eletrônica, o que muda a relação dos produtores religiosos com os meios.

Ao comprar o CD, ao ouvir a parada de sucessos de uma rádio cristã, ao participar do espetáculo de determinado artista gospel, o público cristão está inserido, sim, na lógica e na cultura do consumo. Entretanto, a esse consumo é atribuído sentido emocional, religioso. Ouvir os artistas que são “instrumentos de Deus”, veículos de sua mensagem, ouvir os “ministros de louvor e adoração” que são “levitas separados por Deus” para adorá-lo e guerrear contra as forças do mal (inseridas na própria música profana) e apoiar o que eles fazem é o mesmo que ouvir e apoiar a Deus.

Além de proporcionar “acesso direto a Deus”, a indústria da música gospel coloca os evangélicos mais próximos do que há de mais moderno no campo da mídia. CDs e DVDs de qualidade, programações de rádio e TV que seguem o modelo secular, espetáculos com produção de alta tecnologia são alguns dos aspectos que provam às igrejas e à sociedade em geral que é possível ser religioso e ser moderno, sintonizado com os recursos disponíveis no mundo contemporâneo.

A conseqüência direta desse processo é a transformação na forma de os cristãos praticarem o culto religioso, o qual ganha novo cenário, novos protagonistas e novas ênfases. O altar toma a forma de palco, com suporte tecnológico e com a presença dos instrumentos musicais ao lado da mesa da eucaristia e do púlpito, os condutores são os cantores e músicos, e a música é o elemento privilegiado e catalisador, fazendo emergir até mesmo a prática da dança, outrora identificada como pecado pelos evangélicos.

O formato das apresentações musicais, de expressão corporal e da condução do programa nas igrejas é o estabelecido pelos artistas gospel e pelos líderes dos ministérios de louvor e adoração. As músicas cantadas são aquelas comercializadas em CD e DVD e veiculadas pelas rádios evangélicas; a postura do corpo e o gestual são modelados com base no avivalismo e na emoção religiosa: baladas românticas, olhos fechados, expressão facial chorosa, cabeça jogada para trás, braços levantados com punhos cerrados ou mãos abertas; ou ritmos mais animados, palmas, balanço de corpo, pulos e brados de palavras de ordem.

Os líderes religiosos que não são músicos ou animadores musicais deixam de ser os protagonistas do culto/missa. Os líderes dos “ministérios de louvor e adoração” é que se tornam as personagens centrais: além de apresentarem e animarem os cânticos coletivos, fazem orações, lêem a Bíblia e pregam pequenos sermões.

As ênfases dos discursos presentes em todos os momentos do culto religioso evangélico passam a ser as da Teologia da Prosperidade e da Guerra Espiritual. Essas teologias são alimentadas por uma linguagem que reprocessa formas teológicas conservadoras como a teofania da tradição monárquica de Jerusalém, a que relaciona a Deus imagens como a de realeza, poder, domínio, trono, soberania, guerra. Além disso, entre os evangélicos há ênfase na utilização da linguagem e de certos costumes religiosos judaicos, como por exemplo a figura dos levitas, hoje utilizada como terminologia para referir-se ao “ministro do louvor” nas igrejas. A teologia da tradição monárquica de Jerusalém parece ser a referência bíblica mais apropriada para justificar as teologias da prosperidade e da guerra espiritual.

Essas ênfases no culto/missa reproduzem os discursos predominantes na mídia evangélica, por meio de canções, sermões, e textos veiculados, e nos treinamentos oferecidos por líderes “de louvor e adoração”. A análise desses discursos indica a mediação sócio-histórica na religiosidade gospel expressa por meio da adoção de uma linguagem própria da lógica e da cultura do mercado. É dessa mediação que emerge a perspectiva da seleção, da separação a partir da qual os filhos de Deus, os verdadeiros adoradores, precisam ser purificados, separados das influências malignas do corpo social e hierarquicamente organizados, como na reinterpretação da figura dos levitas. Essa postura encontra embasamento na teologia judaica sacerdotal, que impunha a pureza do corpo como princípio fundamental para o alcance da atenção de Deus, o que é reprocessado pelo gospel.

No momento em que a lógica do capitalismo globalizado – caracterizada pelo permanente consumo de bens materiais (posse), pelos ideais da eficiência e do sucesso e pela conseqüente competição – prevalece como ordenadora da sociedade contemporânea, a cultura gospel revela-se sua extensão, ou seja, uma expressão cultural desse capitalismo em versão religiosa. Isto não ocorre somente por meio do culto e dos discursos veiculados pela mídia. Outros elementos, que caracterizam a cultura gospel, a descrevem em termos de um universo econômico-religioso, como o consumo e o entretenimento. Desse modelo, os cristãos em geral passam a ser interpretados e trabalhados como segmento de mercado. Já os empresários evangélicos vêem-se e agem como sócios do empreendimento de Deus, que é a salvação do mundo. Seus produtos são vistos como sagrados, abençoados por Deus para fazer com que mais pessoas se acheguem a ele. A base destas interpretações e destas ações encontra-se na premissa de que “consumir não é pecado”, mas evidência de que os evangélicos não devem ser um grupo isolado mas sim inserido socialmente, para sinalizar a atenção de Deus para com ele.

O alvo da inserção social introduz na cultura religiosa não apenas o consumo, mas também outros valores da modernidade como a modelagem do corpo, a adesão à moda e o prazer do corpo via entretenimento (consumo cultural religioso). O segmento evangélico passa a ter acesso a espaços de lazer e diversão que incluem a dança e a expressão corporal, encontra até mesmo no Carnaval um veículo de expressão religiosa e ganha produtos especiais como jogos e outras distrações.

O mercado de bens religiosos e a midiatização – a somatória destes elementos, estratégias e princípios – têm produzido no campo evangélico o que é denominado por alguns estudiosos “a espetacularização da fé”. Isso significa tratar a fé e a religiosidade como algo a ser exposto, apresentado, demonstrado da forma mais atraente possível, com a finalidade de se alcançar público. Toda religião tem um componente de espetáculo, de teatralidade, de performance. Os ritos e os rituais, relacionados ao encanto e ao mistério, dão à religião esse tom e esse dom. O que se observa nas últimas décadas no campo religioso cristão no Brasil, em especial na passagem dos Anos 90 para os 2000, é a religião, ela própria, transformada em espetáculo, performance.

A cultura gospel atenua, portanto, no caso dos evangélicos, a ética puritana restritiva de costumes e, ao mesmo tempo, refaz a imagem pública deles, ao incentivar a sua inserção nas culturas do mercado e da mídia. O sectarismo (o isolamento para preservação da santidade) deixa de ser um valor primordial entre os evangélicos. Vê-se como o consumo e o entretenimento são facilitados por uma postura de maior inserção social dos evangélicos, anteriormente marcados pela crise na relação igreja-sociedade, conforme foi analisado no corpo deste trabalho. Tal postura resultou em um crescimento significativo no número de adeptos das igrejas que processaram o novo modo de vida religioso.

Com isso, a busca da santidade ganha contornos diferenciados e passa a gerar benefícios no “aqui e agora” (e não mais a expectativa de uma vida no além, como na tradição escapista da expectativa de se alcançar o céu e a segunda vinda de Cristo), na busca individualizada, privatizada, de satisfação pessoal tanto do ponto de vista da religião como socioeconômico (reconhecimento social, lucro financeiro, acúmulo de bens, etc.).

Os evangélicos passam, portanto, por um processo de dessectarização, de liberalização de costumes e pela modernidade, ao se integrarem a distintas esferas da vida social e à cultura urbana, caracterizadas pelo predomínio das novas tecnologias de comunicação e do audiovisual, pelo surgimento das tribos, pela privatização da vida coletiva, pelo individualismo, pelo confinamento em ambientes e redes sociais restritas, pelo consumo permanente de bens e pelo investimento em entretenimento.

Já os católico-romanos, que não basearam sua cultura na ética restritiva de costumes nem na ruptura com a sociedade e suas formas culturais, experimentam com a nova forma cultural cristã ideais de modernização e popularização da experiência religiosa. Isso se reflete, por exemplo, nas práticas dos padres cantores que dançam rock e promovem aeróbica litúrgica.

A cultura gospel permitiu aos cristãos, ainda, inserirem elementos profanos, aqueles integrantes da cultura do mercado, como o consumo e o entretenimento, na forma de viver a fé e relacionar-se com o sagrado; ou seja, um processo de sacralização de elementos profanos que dá ao duo consumo-entretenimento, mediado pelos meios de comunicação eletrônicos, o status de expressão de fé.

A contradição reside no fato de, juntamente com essas mudanças, conviver a conservação de aspectos do tradicionais/conservadores tanto do protestantismo quanto do catolicismo. O discurso dos artistas e dos “ministros de louvor e adoração” e o de lideranças das igrejas locais revelam isso, quando, por exemplo, os evangélicos reafirmam a divisão sagrado vs. profano na forma igreja vs. mundo, a necessidade de resguardo para purificação do corpo; ou quando católico-romanos pregam a castidade para os não-casados, a não-utilização de métodos anticoncepcionais ou o papel da mulher como cuidadora do lar (modelo tradicional de família). Tudo isso aliado à desqualificação de uma reflexão teológica mais profunda, coletiva e contextualizada. É o invólucro moderno numa internalidade conservadora, uma expressão cultural híbrida (CUNHA 2007).

Conclusão

Há uma padronização na oferta de bens simbólicos, que vem sendo processada pelas diferentes tradições cristãs. Essa padronização, facilitada pela programação religiosa na mídia, é expressa por práticas comuns na forma de cultuar a fé, de fazer a leitura bíblica e educar os adeptos, na re-interpretação das doutrinas e costumes e na compreensão da realidade da vida cotidiana.

No entanto, dizer que a mídia é a grande responsável por esse processo é equivocar-se. A mídia é uma das mediações neste quadro de transformações no cenário religioso evangélico. A hegemonia pentecostal, o capitalismo globalizado e a lógica do mercado são outras que operaram na produção de um novo sentido, uma nova expressão cultural religiosa – a cultura gospel.

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ORTIZ, Renato (sem data) Ensaios sobre a mundialização. São Paulo: Olho D´agua.

Recebido: 12/08/2008
Aceite final: 15/09/2008

Notas

[*] Professora assistente da Universidade Metodista de São Paulo, vinculada à Faculdade de Teologia.

[1] O termo modernidade é aqui utilizado em sua forma pejorativa, que significa adaptação aos novos tempos, ou “ligeireza, preocupação com a moda, tendência para abandonar-se sem juízo nem inteligência do passado, às impressões do momento”. Lalande, André. Vocabulário Teórico e Crítico da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. 693. [Verbete: Moderno].

[2] Além da Igreja Católica Romana, incluam-se entre os grupos aqui chamados históricos ou tradicionais, as Igrejas Evangélicas originadas da Reforma do século XVI, que se instalaram para no continente em épocas diferentes da história recente, por meio do trabalho missionário ou da imigração. As principais são as igrejas Adventista, Anglicana, Batista, Episcopal, Luterana, Menonita, Metodista, Valdense, Reformadas (Presbiterianas, Congregacionais, outras).

[3] O planejamento estratégico da Convenção Batista Nacional do Brasil, publicado no site da organização é um exemplo ilustrativo. "Planejamento Estratégico CBN - 2002/2007" http://www2.cbn.org.br/INTPlanej.asp

[4] Este trabalho enfatiza este fenômeno no campo das igrejas evangélicas, mas vale registrar que a Igreja Católica Romana experimenta similar processo, muito em virtude do crescimento do movimento carismático em seus arraiais. A escalada dos padres midiáticos e sua produção fonográfica, e a presença maior nos canais de TV UHF, têm sido alvo de vários estudos no campo da comunicação e da sociologia da religião.

[5] A explosão gospel no Brasil e a formação de uma nova cultura religiosa como resultado desse fenômeno foi o tema da tese de doutorado da autora deste artigo, intitulada Vinho novo em odres velhos. Um olhar comunicacional sobre a explosão gospel no cenário religioso evangélico no Brasil. Universidade de São Paulo, 2004. A tese foi atualizada e publicada sob o título “A explosão gospel. Um olhar das ciências humanas sobre o cenário evangélico contemporâneo”. Rio de Janeiro: Mauad/Instituto Mysterium, 2007.

[6] A Igreja Católica Romana, que ainda cultiva a prática da liturgia comum aos domingos, ainda consegue manter o caráter celebrativo tradicional, mas observa-se que há paróquias que adaptam a missa à prática a esse novo formato gospel.

[7] Depoimento do diretor da EBF Eventos Eduardo Pacheco Calissi, 29 anos, promotor da 1a Feira Internacional do Consumidor Cristão, realizada em São Paulo/Brasil, em setembro de 2002.

[8] Idem.

[9] Ibid.

[10] Consumidor Cristão, 2 (23), set. 2003, p. 12.

[11] Depoimento do diretor da EBF Eventos Eduardo Pacheco Calissi, op.cit.