O tema do fundamentalismo reveste-se de atualidade impressionante. Em meio a tantas guerras, atentados ou mesmo simples discussões acaloradas em torno de desavenças de cunho religioso, aparecem referências ao fundamentalismo, tanto pelos próprios contendores, quanto pelos analistas. Pedro Lima Vasconcellos, renomado estudioso da religião, aceitou o desafio de apresentar um panorama geral e introdutório desse amplo e fascinante aspecto da religiosidade. Logo na Introdução, Vasconcellos adverte que o fundamentalismo poderia ser pensado na relação com a intolerância diante de quem compreende possuir e viver outra percepção da verdade. Sua definição do fenômeno, portanto, parte de uma percepção pluralista e aberta à diversidade.
No primeiro capítulo, o autor apresenta sua leitura da trajetória histórica do fundamentalismo, a partir dos movimentos religiosos norte-americanos de fins do século XIX e início do século XX, como reação à teologia liberal. Esta enfatizava Deus como amor, a presença de uma centelha divina nos seres humanos, Jesus como exemplo, a Bíblia como testemunho múltiplo e as doutrinas das Igrejas subsidiárias à experiência religiosa dos crentes. A reação veio da elite branca, anglossaxônica e protestante (Wasp). Esses movimentos deram destaque à infalibilidade das Escrituras, à divindade de Cristo, à virgindade de Maria, a remissão dos pecados pela crucificação de Jesus e a certeza do seu retorno no fim dos tempos. Era uma luta cultural (Kulturkampf) no seio das denominações protestantes.
No segundo capítulo, o autor mostra como o conceito de fundamentalismo pode ser aplicado a outros campos religiosos, para além do Protestantismo americano. Define o fundamentalismo pela defesa da verdade religiosa contra o que é percebido como perigos da Modernidade, como o caráter histórico e subjetivo da fé, assim como pela aversão ao socialismo e a busca da recuperação da base religiosa da sociedade. Vasconcellos ressalta seis traços comuns aos fundamentalismos, a começar pela rejeição da hermenêutica, pois o texto sacro é considerado objetivo e não histórico. Como consequência, nega-se o relativismo e, com isto, o pluralismo. Rejeitam as teorias evolucionistas de matriz darwinista e adotam uma postura escatológica, à espera do próximo fim do mundo. Ao mesmo tempo, o pragmatismo leva os movimentos fundamentalistas a utilizarem a Modernidade para combatê-la, como no caso dos meios de comunicação.
O terceiro capítulo volta-se para os fundamentalismos do século XX, em sua diversidade, com itens dedicados ao Hinduísmo, Sikhismo, Judaísmo, Cristianismo e Islamismo, estes três últimos apresentados de forma mais detalhada. No Protestantismo, Vasconcellos apresenta, por meio de referência a documentos, o caráter elitista e reacionário de alguns segmentos, que associam pobreza a pecado e propugnam até mesmo o restabelecimento da escravidão, assim como o extermínio de populações inteiras de “pecadores” ou “infiéis”. No Catolicismo, destaca a recusa da Modernidade e da subjetividade e contrapõe a ascese intramundana protestante à ascese extramundana católica. No Islamismo, acrescenta-se à recusa da Modernidade o antiocidentalismo, já que o declínio e os males das sociedades orientais são tributados ao domínio ocidental.
O quarto capítulo volta-se para as situações do mundo contemporâneo. O conflito entre Israel e palestinos é esmiuçado como parte de um confronto assentado em visões fundamentalistas, a começar pelos radicais judeus que acabaram por assassinar o primeiro-ministro Yitzak Rabin, por ter entregue uma terra dada por Deus aos israelitas. Impressionam as citações de Vasconcellos de pregadores fundamentalistas norte-americanos, para os quais a religião muçulmana é considerada muito maléfica e perversa. No Brasil, os fundamentalismos cristãos têm por alvo as expressões religiosas afrobrasileiras, assim como a outras formas de manifestação que são associadas ao demônio, como o culto ao santos católicos, por parte de pregadores evangélicos fundamentalistas. Grupos humanos também têm sido vítimas desse fundamentalismo, como os homossexuais.
O volume é concluído com um balanço sobre o tema. Para Vasconcellos, os fundamentalismos relacionam-se às limitações do individualismo burguês, filho do Iluminismo do século XVIII. O consumismo individualista constitui um ideário só acessível, se o for, às elites burguesas. As massas marginalizadas atraem-se e dão sustento a fundamentalismos que ressaltam a falibilidade e a maldade intrínsecas ao ser humano. Tais movimentos tocam, portanto, em feridas importantes criadas pela Modernidade. O fundamentalismo mostra-se como sintoma de males do individualismo excludente e preocupa o autor, na medida em que a busca por seguranças exclusivas e excludentes afasta-se do diálogo, do respeito à alteridade e da convivência pacífica. O volume conta, ainda, com apêndices que esclarecem temas como a relação entre a Bíblia e o ministério católico, o Integrismo católico espanhol, Sunismo e Xiismo, Gandhi, e mesmo o ataque de 11 de setembro de 2001, entre outros.
O livro de Pedro Lima Vasconcellos constitui um pequeno tesouro. Sua análise, sempre clara e bem argumentada, conta com a referência a inúmeros documentos pertinentes e elucidativos. Sua argumentação de fundo consiste em identificar nas contradições da Modernidade, com sua ênfase no individualismo, as raízes últimas do fundamentalismo. Os movimentos elitistas ocidentais defendem uma interpretação literal da Bíblia, tendo em vista a defesa explícita do status quo e da exploração de pobres e daqueles definidos como outros: os pecadores. Já os fundamentalismos de massas empobrecidas exercem um papel de socialização excludente, na medida em que procuram criar uma comunidade homogênea e coesa, oposta àquela dos ímpios. Dentro de cada uma delas, há de comum o autoritarismo e a submissão, mesmo no interior do grupo fundamentalista. Pode discordar-se deste ou daquele argumento, na medida em que, de fato, a imensa diversidade de situações e de movimentos dificulta a generalização. Contudo, não resta dúvida de que as ponderações de Pedro Lima Vasconcellos levam-nos a refletir, de forma crítica, sobre alguns dos desafios mais importantes da nossa época e do ensino religioso, em particular. A diversidade e o respeito ao outro devem estar na raiz de qualquer pedagogia e, tanto mais, daquela religiosa.
[*] Professor no Departamento de História, IFCH, UNICAMP.