O artigo discute a questão da laicidade, em especial no meio educacional, mostrando sua distância de ideias anticlericais. A autora afirma que é a laicidade que permite a convivência pacífica entre as religiões e o respeito aos indivíduos que optam por não professar nenhuma religião. A escola é o espaço onde esses universos culturais se encontram, onde os conflitos podem se acirrar ou serem desarmados.
Palavras-chave: laicidade, ensino religioso, formação do professor
The article argues that laity in the realm of education does not stand for anticlerical ideas. Rather, laity is a prerequisite for a peaceful relationships between religions and for a respectful attitude towards individuals who consider themselves non-religious. Since the school is a place where different worldviews meet it depends on the educational concept whether conflicts arise or coexistence in a tolerant atmosphere is promoted.
Keywords: laity, religious education, teacher training
A existência da disciplina “Ensino Religioso” no currículo da escola fundamental brasileira pode parecer um contrasenso, quando se considera que o Brasil é um Estado laico. A própria definição do que seja um Estado laico é mal-compreendida, quando se confunde laicidade e anticlericarismo, ou laicidade e ateísmo. Na tentativa de se separar o espiritual do temporal (Estado e Igreja), muitos movimentos surgiram e culminaram com o aparecimento dos Estados laicos. Mas muitas pessoas ainda confundem Estado Laico com Estado sem religião ou contra a religião. A laicidade não é o antirreligioso na sociedade, mas o arreligioso na esfera pública. É a separação entre fé (domínio privado) e instituição (Igreja = instituição de domínio público).
É interessante observar que, constantemente, nas discussões, há uma contraposição entre os “a favor” e os “contra” a religião, à interferência do religioso no Estado, a “tirar ou colocar” Deus na vida pública. Poucos se preocupam em discutir a possibilidade de não se ter ou não se acreditar em uma religião sem, no entanto, combatê-la. É o caso do agnóstico.
Já havíamos alertado anteriormente sobre o espaço que a omissão sobre o tema , por parte da academia, em especial a comunidade universitária, havia deixado para que os “curiosos” ou grupos sectários dele se apropriassem. Dizíamos:
Ora, abster-se de discutir não conduziu o meio acadêmico a contribuir significativamente para o esclarecimento dos fatos. A transferência das discussões sobre os fatos religiosos a ambientes exteriores aos da transmissão racional e publicamente controlada do conhecimento como as Universidades favorece a difusão de ideias distorcidas, fanatizantes e de crendices. (DOMINGOS 2009:154)
Nossa proposta então é discutir alguns conceitos e trazer novos elementos para o debate.
Um dos primeiros conceitos a ser discutido é o de laicidade. Essa discussão é necessária quando se coloca a questão: “como ensinar religião ou falar de religião em um Estado Laico?”
A laicidade é um dos princípios dos Estados Modernos, como, por exemplo, o Brasil. Mas o termo carrega significados bem mais fortes do que o mero fato de ser um preceito. Atribui-se o início das discussões sobre o assunto ao Estado francês, que já em 1880 – notadamente com as leis escolares – institucionaliza este princípio. Considerada mesmo como uma “exceção francesa” pelos críticos, BAUBÉROT prefere apresentá-la como uma “invenção francesa e realidade exportável cujos elementos podemos encontrar em outros lugares.” (BAUBEROT 1997: 2089) A laicidade francesa deu-se através de uma construção histórica de mais de um século e hoje se encontra difundida em diversos países, sem jamais ter suscitado tantos debates como naquele país, em especial no campo da educação.
Fruto da separação entre Estado e Igreja, onde esta é excluída do poder político e administrativo e, em particular, do ensino, o Estado laico nasceu de um longo processo de laicização, de uma emancipação e construção progressiva, através de um afastamento dos dogmas, do clero e, sobretudo, do poder da Igreja Católica, ganhando vulto sob o influxo da Reforma Protestante, da filosofia de Rousseau, do Iluminismo, apenas para citar alguns exemplos.
Pode-se dizer que a origem da palavra laico ou leigo remonta à Antiguidade e refere-se ao que não é clerical, ao que pertence ao povo cristão como tal – e não à hierarquia católica – e ao que é próprio do mundo secular, por oposição ao que é eclesiástico. Contudo, é bastante difícil situar e datar com precisão o aparecimento do Estado laico.
A ideia de separação entre governo e Igreja pode ser visto na antiguidade greco-romana. No Século V, o Papa Gelase I propôs a doutrina dos dois gládios, que visava separar o poder temporal do poder espiritual. Alguns vão mais atrás e atribuem esta ideia de separação à frase bíblica “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”.
Três filósofos iniciaram as discussões sobre a laicidade: Descartes, Condorcet e Comte. O primeiro vai traçar os primeiros caminhos da ideia de separação, através do “Discurso do Método” (1638) e dos “Princípios de Filosofia” (1644). Descartes aponta o fato de que há domínios que escapam à razão humana, domínios diante dos quais a razão inclina-se. Para ele, a revelação não é contraditória às realidades racionais; a liberdade de pensamento deve ser respeitada e a interpretação dos textos sagrados é possível através da utilização da razão.
CONDORCET, ao distinguir educação e ensino, distingue também a ordem da razão da ordem dos valores. Para ele, a moral é concebida como uma ciência. Compete à família dar a educação e à escola promover o ensino ou instrução. Para ele, a pergunta é clara: “como se pode instruir e converter ao mesmo tempo”? Ou, ainda: “a religião não é uma questão de consciência e de cada Igreja?” Assim a separação entre a escola e a religião, ou o princípio da laicidade na escola, aparece pela primeira vez. CONDORCET foi o primeiro a explicitar uma concepção laica de educação, no seu documento “Cinco memórias sobre a instrução pública”. (1791)
Comte foi a fonte que guiou os republicanos a partir de 1860, defendendo a idade positiva, a idade da ciência, que assegura a ordem e o progresso da humanidade. Ele propõe que a religião de um Deus transcendente seja substituída pela religião da humanidade.
Uma primeira instituição leiga apareceu já em 1792, na França, com a instituição dos atos civis, aqueles ligados à vida do cidadão e que passam a ser regidos pelo Estado, tendo como elemento central o casamento (BAUBEROT 1997: 2089). Aparecem então o batismo civil (registro de nascimento), o casamento civil, o enterro civil (registro de óbito). Enfim, os atos da vida dos indivíduos deixam de ser regulados pela Igreja e registrados nos livros das paróquias, passando a ser realizados em instituições públicas e registrados em livros de registro civil.
Mas será Jules Ferry, principal fundador da escola laica, que a partir de 1879 envidará todos os esforços para arrancar as crianças da influência da igreja. Como ministro da Instrução Pública e de Belas Artes, à época ele nomeará protestantes espiritualistas liberais, como Ferdinand Buisson, Félix Pécaut, Jules Steig, dentre outros, para colocar essa escola laica em funcionamento. Ferry vai propor uma moral laica, ou independente das Igrejas, possibilidade por ele considerada viável.
A palavra laicidade foi formada no século XIX a partir do adjetivo laïc (leigo, aquele que não pertence ao clero). O termo deriva do grego laos, que significa povo. Este termo vai aparecer em 1871, quando será associado ao ensino público francês e seu surgimento será assinalado pelo Novo Dicionário de Pedagogia e de instrução primária, de autoria de Ferdinand Buisson, publicado em 1887.
No verbete laicidade, contido nesse dicionário, Buisson nos informa que:
A Revolução Francesa fez aparecer pela primeira vez com clareza a ideia de Estado laico, de Estado neutro entre todos os cultos, independente de todos os clérigos, liberado de toda concepção teológica. (...) Apesar das reações, apesar de tantos retornos diretos ao antigo regime, apesar de quase um século de oscilações e de hesitações políticas, o princípio sobreviveu : a grande ideia, a noção fundamental do Estado Laico, quer dizer, a delimitação profunda entre o temporal e o espiritual entrou nos costumes de maneira a não mais sair. (apud DOMINGOS 2008:157)
A criação desse verbete no dicionário visava diminuir a confusão entre os termos laicidade e laicismo, sendo que este último refere-se ao anticlericarismo. O laicismo é a doutrina que proclama o afastamento total e absoluto das instituições sociopolíticas, culturais e educativas de toda influência da Igreja. Não foi um movimento ou escola de pensamento. O laicismo reclama uma autonomia face à religião e uma exclusão das Igrejas do exercício do poder político e administrativo e, em particular, da organização do ensino público. Se o laicismo é antirreligioso, a laicidade é baseada no respeito ao princípio da separação do poder público e administrativo do Estado e do poder religioso.
O termo laicidade aparece para marcar a continuidade da história em um período de crise, uma história construída durante o século XIX, uma história de incessante secularização, na qual Estado e Igreja vão progressivamente separando-se e aonde esta vai gradativamente sendo excluída da administração, da política, da justiça e, finalmente, da escola. Esse processo de separação vai culminar com a lei de 1905, de separação da Igreja e do Estado e, posteriormente, vai se tornar preceito constitucional (Constituições Francesas de 1946 e 1958). Diz o preâmbulo dessas constituições: “A França é uma República indivisível, laica, democrática e social. Ela assegura a igualdade diante da lei de todos os cidadãos sem distinção de origem, de raça ou de religião. Ela respeita todas as crenças”. (República Francesa, Constituição de 1958).
Será a influência francesa que irá marcar a história da laicidade no Brasil. Se desde 1882, no Brasil, Ruy Barbosa sugeriu a liberdade de ensino, o ensino laico e a obrigatoriedade da instrução, será apenas em 1889 que a primeira grande reforma educacional promovida por Benjamin Constant, então ministro da Instrução, Correios e Telégrafos, colocará estes princípios em prática.
Os princípios da liberdade, laicidade e gratuidade da escola primária serão os norteadores dessa reforma. O princípio da neutralidade religiosa escolar, ou seja, da laicidade, será introduzido na sociedade brasileira. Mal compreendido desde esta época, o ensino laico será acusado de antirreligioso, ateu, laicista. Será a Constituição de 1891, a primeira Constituição republicana, que legislará sobre a separação entre Igreja e Estado, liberdade de culto e reconhecimento da diversidade religiosa.
Se hoje isso nos parece evidente, na época foi um grande avanço, tendo em vista que na Constituição Imperial, de 1824, além de a religião católica ser declarada “Religião do Império” (art. 5º), as outras religiões somente eram permitidas “com seu culto doméstico ou particular em casas para isso destinadas, sem fôrma [sic] alguma exterior de templo”.
Estas restrições tinham repercussão em diversos aspectos da vida social, sendo algumas profissões, cargos públicos e atividades reservadas aos católicos e restritas para os não-católicos.
Devemos lembrar que uma das razões que levou Jules Ferry a propor as diversas leis sobre a laicidade na escola, enquanto ocupou o cargo de ministro da Instrução Pública na França, entre 1870 e 1882, foi o fato de que não-católicos não poderiam assumir postos de professor no Estado. Também CONDORCET (1994), ao propor a retirada da Igreja do controle da escola, lutava mais pelo direito de não-católicos de terem liberdade de exercício profissional do que propriamente contra a religião.
Este também foi o espírito da reforma brasileira. Ora, resta-nos então voltar ao ponto inicial: o conceito de laicidade. O princípio da laicidade é, ao mesmo tempo, o de afastamento da religião do domínio político e administrativo do Estado, e do respeito ao direito de cada cidadão de ter ou não ter uma convicção religiosa e de professá-la. Tem como ideal a igualdade na diversidade, o respeito às particularidades e a exclusão dos antagonismos.
Por igualdade na diversidade, entende-se o igual respeito a todas as religiões e àqueles que não professam nenhuma religião. O mesmo princípio se refere ao respeito às particularidades. A exclusão dos antagonismos reflete não apenas o respeito, mas principalmente a tolerância ao outro, suas crenças e práticas.
A laicidade une de forma indissociável a liberdade de consciência, fundada sobre a autonomia individual, ao princípio de igualdade entre os homens. É a garantia da liberdade de pensamento do homem-cidadão dentro de uma comunidade política, a garantia da liberdade de espírito e da liberdade do próprio Homem (MENASSEYRE 2003). É por esta razão que a declaração dos Direitos do Homem, da Revolução Francesa (1789) já afirmava dentre seus princípios: “ninguém pode ser perseguido por suas opiniões, mesmo religiosas”.
Mais do que a recusa do controle religioso sobre a vida pública, o que a laicidade implica, necessariamente, é o reconhecimento do pluralismo religioso, a possibilidade do indivíduo viver sem religião e a neutralidade do Estado, que não privilegia nenhuma crença, religião ou instituição religiosa. A este respeito, o artigo 72 da Constituição brasileira de 1891 já se posicionava: ao mesmo tempo em que reafirmava a liberdade religiosa (§ 3º), o Estado se eximia de todo financiamento dos cultos (§ 5º).
Assim, Estado laico é aquele onde o direito do cidadão de ter ou não ter religião é respeitado e que assegura a “liberdade de consciência”. As únicas restrições feitas a esse direito referem-se à manutenção da ordem pública. Esse direito é assegurado pelo artigo 18 da Declaração Universal dos Direitos do Homem: “Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião”. A laicidade alia, então, a liberdade de consciência fundada sobre a autonomia individual e ao princípio da igualdade entre os homens. É a garantia da liberdade de pensamento do Homem dentro de uma comunidade política, a garantia de liberdade de espírito, a garantia da liberdade do próprio homem.
A laicidade não exclui, no entanto, as religiões e suas manifestações públicas, nem o ensino religioso, muito menos deve interferir nas convicções pessoais daqueles que optam por não professar nenhuma religião. A laicidade garante também aos cidadãos que nenhuma religião, crença ou igreja poderá cercear os direitos do Estado ou apropriar-se dele para seus interesses. Esta separação entre Igreja e estado é que garante a “pacificação” entre as diversas crenças religiosas, uma vez que não privilegia nenhuma delas. Assim, podemos apontar três princípios contidos no princípio da laicidade: a neutralidade do estado, a liberdade religiosa e o respeito ao pluralismo.
A neutralidade face a todas as crenças ou opiniões diz respeito à igualdade de tratamento que deve ser dada aos cidadãos: todos devem ser iguais perante a lei, no que concerne aos direitos e deveres. É esse princípio da neutralidade que permite o acesso de todos aos serviços públicos (dentre eles à escola pública e gratuita).
É o princípio também que deverá garantir que o Ensino Religioso ministrado nas escolas públicas não se detenha na formação religiosa específica para uma ou outra religião; que o Ensino Religioso seja feito sem proselitismo e que as práticas (usos e costumes) de cada religião sejam apresentados, descritos, de forma objetiva e com igual destaque, por professores habilitados nesta área do conhecimento. Assim como as convicções religiosas devem ser respeitadas, também a ausência delas merece igual consideração.
O que deve ser considerado não é a ausência ou não da fé, mas a importância que as diversas religiões têm para a formação da própria sociedade brasileira e mundial, nos seus aspectos históricos, sociológicos, políticos, etc. É por causa desse princípio também que a existência de símbolos religiosos em repartições públicas deve ser evitado, sob risco de estabelecer uma valorização de uma religião em detrimento de outras. A neutralidade do serviço público é a garantia do respeito às convicções de todos os usuários dos serviços; é a única forma de permitir o amplo respeito a todas as religiões.
O primeiro ponto a ser observado é o fato de que a laicidade é mais ampla do que a liberdade religiosa tendo em vista que essa última diz respeito ao direito individual de escolha de uma religião e o respeito devido pelo Estado a todas elas. Ou seja, a liberdade religiosa é a liberdade de escolher a religião que se quer ter, contanto que se tenha uma religião. Já a laicidade inclui não apenas o direito de escolher uma religião, mas também o direito de não ter religião. É o direito ao livre exercício do julgamento em relação ao domínio espiritual.
A sociedade laica não é apenas mista quanto aos cultos, mas neutra quanto aos mesmos. Respeita a todos, sem engajar-se na defesa de nenhum. Considera que a liberdade de religião é um dos elementos da consciência individual, princípio fundamental dos direitos do Homem e como tal deve ser considerada. Na escola laica, os alunos de todas as confissões religiosas, assim como aqueles que não professam nenhuma religião, devem ser admitidos indistintamente e igualmente respeitados na sua condição de indivíduos em formação.
Nenhum representante de comunhão religiosa deve ter acesso à escola e nem exercer sobre ela nenhuma autoridade. Isso não significa uma interdição ao exercício dos cultos ou o não reconhecimento à autoridade neles investida, mas apenas uma distinção de atribuições que não tem caráter agressivo ou repressivo. Da mesma forma que pareceria estranho que um professor se apresentasse a um templo religioso para aí ministrar uma aula, não cabe aos representantes religiosos utilizar a escola como local de pregação religiosa.
A concessão do espaço escolar a um representante de confissão religiosa, mesmo que em período não letivo, obrigaria a escola, pelo princípio da neutralidade, a concedê-lo a todas as outras que assim solicitarem. A laicidade inclui, então, o reconhecimento e o respeito aos espaços próprios de cada domínio. Ao respeitar a neutralidade confessional, respeita em primeiro lugar, a individualidade do seu aluno; as convicções de suas famílias. Em segundo lugar, ao dar o mesmo espaço no ambiente escolar ao conhecimento de cada religião, ensina o princípio da tolerância e o exercita. Assim, ao respeitar cada educando e exercitá-lo na prática da tolerância, colabora para a redução dos conflitos, inclusive do racismo, xenofobia e outras formas de intolerância. Neste aspecto, o “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova”, de 1932, ao tratar da questão da laicidade diz:
A laicidade, que coloca o ambiente escolar acima de crenças e disputas religiosas, alheio a todo o dogmatismo sectário, subtrai o educando, respeitando-lhe a integridade da personalidade em formação, à pressão perturbadora da escola quando utilizada como instrumento de propaganda de seitas e doutrinas.
Apesar de compreendido por diversos autores como um repúdio ao ensino religioso na escola, trata-se na verdade de um repúdio ao ensino religioso confessional, proselitista, que privilegia uma ou outra religião em detrimento das demais. O que nos remete à questão do pluralismo.
O Estado não deve reconhecer nem ignorar nenhuma religião, sejam elas professadas no seu território ou não. Não é o fato da presença de uma crença ou convicção religiosa no país que dispensa a escola de discutir sobre a mesma ou incluí-la na formação dos alunos.
Inclusive, a este respeito, a “Declaração sobre a Eliminação das Formas de Intolerância”, já citada, lembra que:
Considerando que o desprezo e a violação dos direitos humanos e das liberdades fundamentais, em particular o direito a liberdade de pensamento, de consciência, de religião ou de qualquer convicção, causaram direta ou indiretamente guerras e grandes sofrimentos à humanidade, especialmente nos casos em que sirvam de meio de intromissão estrangeira nos assuntos internos de outros Estados e são o mesmo que instigar o ódio entre os povos e as nações, (ONU 1981)
Garantir a liberdade religiosa permite, mesmo que indiretamente, a proteção dos cultos minoritários contra a discriminação; já que a ideia de laicidade traz consigo a afirmação dos direitos de expressão de cada religião e da expressão dos não-adeptos de uma crença religiosa; ao mesmo tempo em que interdita a todos o direito de apropriar-se do Estado e do espaço público como bem lhes aprouver.
A laicidade também não permite uma hierarquização entre as diversas religiões, onde uma ou algumas gozariam de “reconhecimento oficial” enquanto outras seriam ignoradas ou mesmo banidas. Os critérios de antiguidade, número de adeptos, relevância dos locais de culto, organização mais ou menos formal, etc. não devem ser levados em conta para a utilização dos espaços públicos ou influência perante o Estado. RIVERO (2003) aponta um duplo aspecto do princípio da laicidade:
Independente dos preceitos constitucionais que já asseguram este direito, a “Declaração de Princípios sobre a Tolerância”, aprovada pela Conferência Geral da UNESCO em sua 28ª reunião, na cidade de Paris, em 16 de novembro de 1995, no seu artigo 4º reafirma:
4.1 A educação é o meio mais eficaz de prevenir a intolerância. A primeira etapa da educação para a tolerância consiste em ensinar aos indivíduos quais são seus direitos e suas liberdades a fim de assegurar seu respeito e de incentivar a vontade de proteger os direitos e liberdades dos outros.
Compete então ao Estado, livre de toda tutela das Igrejas, defender cada cidadão e garantir-lhe a liberdade de consciência, o pleno exercício dos seus direitos humanos e liberdades fundamentais sem discriminação e em princípio de igualdade perante a lei. As únicas restrições se fazem quando há risco à ordem pública ou quando o indivíduo se recusa a respeitar as leis do Estado alegando, em defesa de seus atos, a liberdade religiosa.
Vejamos que mesmo neste aspecto, o Estado laico tem uma vantagem: justamente por ser laico, encontra-se livre para fazer cumprir a lei, visto que esta se situa acima de qualquer preceito religioso e que aceitar o descumprimento da lei por razões ligadas às convicções religiosas seria conceder privilégios a um grupo em detrimento do princípio da igualdade perante a lei. Este princípio do pluralismo religioso necessário ao Estado laico nos remete, por sua vez, à questão do ensino religioso nas escolas como forma de exercício da tolerância.
Tolerância e laicidade caminham, como já dissemos, necessariamente lado a lado. A este respeito assinalava Xavier DARCOS, ministro delegado do Ensino Escolar, em sua palestra de abertura do seminário “O ensino dos fatos religiosos”:
No mundo de hoje, a tolerância e a laicidade não podem encontrar bases mais sólidas que o conhecimento e o respeito do outro, pois é o enclausuramento e a ignorância que alimentam os preconceitos e os comunitarismos. Reforçar o conhecimento das religiões, melhorar o ensino do fato religioso (…), confortará o espírito de tolerância nos nossos concidadãos, dando-lhes meios de melhor respeitar uns aos outros.
Na “Declaração de Princípios sobre a Tolerância” da UNESCO (1995), já citada anteriormente, encontramos outro alerta sobre a intolerância:
4.2 A educação para a tolerância deve ser considerada como imperativo prioritário; por isso é necessário promover métodos sistemáticos e racionais de ensino da tolerância centrados nas fontes culturais, sociais, econômicas, políticas e religiosas da intolerância, que expressam as causas profundas da violência e da exclusão. As políticas e programas de educação devem contribuir para o desenvolvimento da compreensão, da solidariedade e da tolerância entre os indivíduos, entre os grupos étnicos, sociais, culturais, religiosos, linguísticos e as nações.
4.3 A educação para a tolerância deve visar a contrariar as influências que levam ao medo e à exclusão do outro e deve ajudar os jovens a desenvolver sua capacidade de exercer um juízo autônomo, de realizar uma reflexão crítica e de raciocinar em termos éticos.
Todas estas discussões fazem sentido quando se observa que inversamente ao que ocorreu anteriormente (a secularização dos Estados), atualmente observa-se, cada vez mais, um reaparecimento ou acirramento dos conflitos, tendo a religião ou a religiosidade como pano de fundo. O surgimento de seitas, dos Estados religiosos (notadamente islâmicos) e a intolerância religiosa vêm suscitando debates apaixonados e, em geral, sectários. Movimentos integristas crescem devido à incapacidade do Homem moderno de compreender o mundo que o cerca.
É dentro desse contexto que Regis Debray elaborou um relatório ao Ministro da Educação Nacional da França, datado de fevereiro de 2002. Este relatório, denominado “O ensino dos fatos religiosos na escola leiga”, apresenta já na sua introdução a afirmação:
A incultura religiosa, de que tanto se fala, não constitui um sujeito em si. Ela é parte e efeito, de uma incultura montante, de uma perda de códigos de reconhecimento afetando igualmente os saberes, o savoir-vivre e os discernimentos, das quais a educação nacional foi avisada há bastante tempo. (DEBRAY 2002: 4)
Segundo o mesmo Debray, isso não significa "recolocar o religioso na escola", mas fornecer a todos a possibilidade de permanecer plenamente civilizados, assegurando-lhes o direito ao livre exercício do julgamento. Esse exercício do julgamento permitiria a todos e a cada um a possibilidade de ultrapassar o binômio consumo-comunicação que, para Debray, determina hoje a formação dos jovens.
A intolerância é resultado, na maior parte das vezes do estranhamento do outro, da incompreensão de seus gestos, atos e cultura. Ao perceber “o outro” como estranho, diferente, a reação inicial é de “autodefesa”, do procurar defender-se antes de ser atacado, de impor-se frente ao desconhecido a fim de não ser por ele dominado. É a reação do Homem diante de um mundo cada vez mas hostil e competitivo. Ao contrário do que possa parecer, a laicidade é um princípio que assegura a liberdade de consciência e garante o livre exercício dos cultos.
A laicidade, em virtude das reflexões particularmente nascidas destes problemas, é desde então concebida como um factor [sic!] que favorece a construção de uma sociedade livre, mas ansiosa por uma cidadania comum, activa [sic], que partilhe os ideais republicanos e democráticos - excluindo, por conseguinte, as particularidades antagónicas [sic!]. (Arenilla 2000:299).
Enquanto as religiões se mantêm no campo das demandas espirituais, não reivindicando o domínio do espaço público, laicidade e religião não são inimigas, não se contrapõem, ao contrário: é a laicidade que permite o pleno e livre exercício da religiosidade, seja de forma institucionalizada ou individualizada.
A restrição das opções espirituais à esfera do direito privado não significa o desconhecimento ou negação do caráter público, social e coletivo do fenômeno religioso ou das instituições religiosas. Mas esse caráter deve ser encarado como fenômeno religioso, passível de ser submetido às regras do método científico, deve ser analisado dentro de critérios que levem em conta o caráter associativo dos grupos religiosos. Também não restringe o direito de expressão de líderes religiosos ou práticas públicas. O que a laicidade restringe é a posse do espaço público pelas religiões. A laicidade é que permite então a distinção entre espiritual e temporal, pregada por Auguste Comte ou Victor Hugo.
A intolerância é, então, fruto do desconhecido, da ignorância de formas de vida outras que não aquelas que julgamos corretas, que fogem dos padrões do convencionado pelo grupo social ao qual pertencemos. O combate à intolerância passa pela aprendizagem do “com-viver”, ou viver com o outro, conhecendo e respeitando as suas diferenças. Reconhecendo que essas diferenças não são fonte de discórdia, mas que podem ser pontes de ligação e de enriquecimento, através de trocas possíveis. DELORS (1999), ao propor os “Quatro Pilares da Educação para o século XXI”, fala de “aprender a viver junto” ou “o com-viver”. O autor afirma que estes (conhecer, aprender a fazer, aprender a viver junto e aprender a ser) são, sem dúvida, um dos maiores desafios da educação.
Para evitar os conflitos decorrentes da diferença, a escola deve trabalhar com a descoberta progressiva do outro e incentivar a participação em projetos comuns, o que ajuda a resolver ou evitar os conflitos causados pelas diferenças e pela competição. A descoberta do outro passa também pelo conhecimento da diversidade, das diferenças e semelhanças e da interdependência entre todos os povos do planeta. Esse aprender a com-viver passa ao mesmo tempo pelo reconhecimento da diversidade e pela integração do indivíduo ao grupo. A construção da identidade passa pelo reconhecimento da desigualdade, das injustiças, dos preconceitos, passa pelo reconhecimento da história e da formação de cada um. Trabalho que, em geral, não é feito nos cursos de formação de professores. Não se percebe que nossas escolas precisam de um trabalho real e urgente de construção da identidade. Conceber a educação em um processo mais global é ultrapassar a velha noção de conteúdo, passando para uma noção mais completa de formação do homem completo, o homem omnilateral de Marx, com as devidas atualizações.
Este aprender a ser passa não apenas pela aquisição de conhecimentos pelo individuo mas também pelo exercício do discernimento, pelo desenvolvimento do espírito crítico e pela compreensão do mundo que existe ao seu redor e do qual este ser, sendo "ser social", é parte integrante e agente de mudanças. A Compreensão dos fenômenos religioso faz parte da compreensão deste ser social. Ora, um indivíduo só pode aprender a ser, se conhecer suas raízes, se tiver bases sólidas que lhe permitam construir esse ser baseado numa tradição, numa história, em elementos que fortaleçam seus alicerces e lhe permitam dar o salto para o futuro. O que nos conduz à questão da formação do professor para o ensino religioso, que discutiremos a seguir.
Para concluir a discussão sobre intolerância, devemos acrescentar que um dos aspectos mais difíceis de ser trabalhado dentro do tema (intolerância) talvez seja o relativo ao religioso. Sobretudo quando nos vemos confrontados a religiões que historicamente são minorias ou são associadas, preconceituosamente, a atos extremistas.
O princípio da tolerância para com os que manifestam crenças diferentes, do respeito às liberdades individuais e de convivência pacífica entre as diversas manifestações religiosas que compõem a diversidade étnica e cultural da nação brasileira, deve pautar a formação necessária para a vida em sociedade. Independente da opção ou posicionamento religioso de cada professor ou educando, o Ensino Religioso deve ser pensado como área do conhecimento, a partir da escola, como disciplina curricular, e não a partir das crenças ou religiões individuais; tendo como objeto de estudo o fenômeno religioso nas suas diferentes manifestações. Todas as religiões ou manifestações religiosas devem ser igualmente respeitadas e deve ser afastado o proselitismo religioso de sala de aula. Para ser pensada dessa forma, a disciplina Ensino Religioso deve pautar-se pela análise, pelo estudo crítico, objetivo, criterioso e consciente dos fatos religiosos. Não esquecendo que, sendo o Brasil um país laico e estando o Ensino Religioso previsto em lei, discussões sobre essa relação se tornam essenciais.
As discussões sobre o Ensino Religioso nas escolas de ensino fundamental abrem espaço para um debate mais amplo sobre o próprio papel que as religiões desempenham na formação do povo brasileiro. Essas discussões são necessárias, sobretudo levando-se em conta que o Ensino Religioso é matéria de lei e que não são claros os direcionamentos a serem dados a essa matéria. Ao contrário das demais disciplinas que são previstas em lei específica (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei Nº 9394/96), o Ensino Religioso é matéria constitucional (art. 210 § 1º da Constituição Federal). Essa especificidade, ao invés de beneficiar a disciplina, deixa-a à margem de uma discussão mais completa que ocorrerá quando da elaboração dos PCNs.
A própria ideia de um ensino religioso é associada a uma imposição ao meio escolar, oriunda mais de preocupações político-religiosas do que verdadeiramente de uma formação integral e integradora dos educandos. Junte-se a isso a preocupação sobre o modo como se ministrará esse Ensino Religioso em um país de inúmeras formações, bases culturais ou religiosas, enfim, em um país de pluralidades, onde qualquer fenômeno adquire proporções equiparáveis às de um continente.
Consideramos que a melhor maneira de contribuir significativamente para essa discussão consiste em dar início ao diálogo, por meio do qual os diversos atores envolvidos (escola, sociedade, famílias e alunos, professores e demais profissionais da educação) possam discutir e interagir, de forma racional, buscando uma maior compreensão do tema. Ora, é impossível entender a própria existência da história da humanidade sem um conhecimento dos fatos religiosos que a determinaram. As tradições religiosas e a história da humanidade estão intrinsecamente ligadas, fornecendo o que denominamos cultura e que é uma característica que distingue a raça humana de todas as outras espécies. Entender o fenômeno religioso, então, é essencial para a própria formação do Homem racional, para a aquisição e desenvolvimento de um espírito crítico, que lhe permitirá posicionar-se diante dos fenômenos de atualidade ou dos fatos da história da humanidade. Mas a compreensão dos fatos religiosos não pode ser confundida com catecismo ou proposição de fé. Para se compreender os fatos religiosos, há de se compreender três princípios do Estado de Direito: a liberdade de consciência, a igualdade de tratamento e a ideia de que o poder político deve velar unicamente pelo que é de interesse comum.
O primeiro princípio garante a cada cidadão o direito à livre escolha de uma religião mas inclui também o direito de escolha de ser ateu ou agnóstico. Compete então ao Estado garantir a igualdade de tratamento dos cidadãos independente de terem uma das três opções espirituais (crentes, agnósticos ou ateus). Levando-se em conta que a fé é do domínio privado, de foro íntimo, não compete ao Estado velar por ela. Este princípio de universalidade permite igualar os cidadãos na diversidade.
A laicidade garante então o caráter facultativo da religião ou do ateísmo ou ainda do agnosticismo. Pressupõe a neutralidade confessional do Estado e das instituições para um tratamento igualitário entre os cidadãos. As diferenças não são negadas, mas respeitadas. A liberdade espiritual, que faz parte da esfera privada da vida do cidadão é, então, juridicamente livre e independente de toda intervenção temporal. Neste aspecto, há um diferença básica em relação à liberdade religiosa.
O princípio da liberdade religiosa não pode ser confundido com o de laicidade. Pois a liberdade religiosa é a garantia da liberdade de se escolher uma religião, dentre as professadas. Neste momento, percebe-se a diferença: pressupõe-se que o indivíduo seja livre para escolher uma religião, excluindo-se a possibilidade de que ele não tenha religião.
A laicidade baseia-se em dois princípios essenciais: liberdade radical de consciência e igualdade dos cidadãos em todos os pontos de vista: jurídico, simbólico e espiritual. A República laica é de todos, não apenas dos crentes ou dos ateus. Transcende todas as opções espirituais e todas as religiões, recordando à humanidade o princípio da fraternidade: a humanidade é una! A laicidade promove a união dos homens sem valorizar aquilo que os divide.
A grande questão, então, é de saber conciliar diversidade na unidade, articulando-as de tal forma que uma não comprometa nem oprima a outra. A laicidade, então, não é um produto cultural espontaneamente surgido de uma tradição particular, mas uma conquista de uma sociedade que buscou separar-se do poder teológico e político tradicional, estabelecendo a necessária distância entre um poder e outro. O ensino dos fatos religiosos propõe fornecer ao estudante os meios de poder escolher uma orientação religiosa, caso ele assim o deseje; mas uma escolha consciente, motivada por um desejo consciente e não uma opção forçada ou induzida por influências externas e muitas vezes extremistas.
Nesse aspecto, o Relatório Debray já afirmava que “ninguém pode confundir catecismo e informação, proposição de fé e oferta de saber, 'testemunhos' e relatos”. (DEBRAY 2000). O Ensino Religioso em um Estado laico tem toda a sua força baseada em uma aproximação descritiva, analítica, das religiões dentro da sua pluralidade.
O aval dado pelo enfoque científico do conhecimento religioso, transmitido através das instituições escolares, controladas não apenas pelo poder público através de seus agentes mas, e principalmente, pela sociedade, longe de ser inócuo, torna-se essencial para abalar as estruturas de modelos religiosos intolerantes ou fanatizantes. Ora, quem melhor poderia contribuir para essa formação do que os professores que, por causa da deontologia da profissão, devem estar preparados para transmitir o contexto histórico aliado à espiritualidade da época, ao contexto social e aos valores vigentes, sem, no entanto, promoverem seus ideais ou valores pessoais? Uma formação sólida permitirá a esse profissional adquirir uma didática e uma metodologia próprias ao ensino das religiões.
Buisson alertava para a necessidade de uma sólida formação para o professor, incluindo aí uma formação pessoal, sem excluir uma prática religiosa. Prática essa que, distanciada da tentativa de induzir seus alunos a incorporá-la, daria ao professor meios de transmitir algo mais do que apenas conhecimentos rudimentares.
Para poder bem exercer seu papel, o professor não pode deixar-se afetar pelo indiferença ou a negação da existência de questões de ordem moral, filosófica e religiosa. Isso não deverá, no entanto, ferir o princípio da laicidade. Por essa razão, o professor não pode tomar partido, no exercício de suas funções, nem a favor nem contra nenhum culto, nenhuma igreja, nenhuma doutrina religiosa, estando e devendo permanecer este domínio no domínio sagrado da consciência, no campo do foro íntimo. Formando seus alunos, o professor abre a perspectiva de conciliação entre seus alunos e ensina o princípio da tolerância.
Conforme a UNESCO, a formação inicial e continuada do profissional atuando no Ensino Religioso, é, por conseguinte, uma necessidade premente e constante, tendo em vista sua responsabilidade na condução deste processo de construção de “seres solidários e responsáveis abertos a outras culturas, capazes de apreciar o valor da liberdade, respeitadores da dignidade dos seres humanos e de suas diferenças e capazes de prevenir os conflitos ou de resolvê-los por meios não violentos”.
A atenção dada à melhoria da formação dos docentes do Ensino Religioso, a constante adequação dos programas de ensino, materiais didáticos e recursos, a revisão dos materiais didático-pedagógicos, são essenciais para a educação para a tolerância, a não-violência, o aprender a ser e o aprender a viver juntos. Somente uma formação sólida fornecerá a esse docente conhecimento, recursos e metodologia próprios ao ensino das religiões. É a esta formação inicial e continuada, às discussões dela decorrentes, que o meio acadêmico, em especial as universidades públicas, não pode se furtar.
A liberdade de consciência pode ser derrubada de duas maneiras, segundo PEÑA-RUIZ (2004: 4): pela imposição de uma religião e a perseguição das outras, dos ateus e dos agnósticos; e pela imposição do ateísmo e da perseguição às religiões. A laicidade não permite hostilidade à religião como opção espiritual particular, bem como ao ateísmo ou agnosticismo. É a afirmação de um Estado de caráter universal em que todos possam se reconhecer e encontrar seu lugar. Assim, a laicidade não é antirreligiosa nem advém de um ateísmo implícito ou explicito, como se costuma afirmar. Também não é antiateísmo, mas rejeita o ateísmo oficial que pretende impor um repúdio às religiões.
No entanto, também não permite qualquer privilégio temporal ou espiritual a nenhuma opção religiosa em particular, quer seja ateia, agnóstica ou religiosa. Assim, o Estado laico rejeita o clericalismo e não a religião; o ateísmo oficial e não os ateus. Enfim, a laicidade não deve se ocupar das opções espirituais individuais, o que permite ao Estado Laico não ser árbitro de crenças.
A laicidade garante a igualdade de direitos e de conhecimento das diversas possibilidades de espiritualidade para permitir a todos a autonomia de julgamento e a cultura universal que lhes garantirá avaliar/analisar cada uma delas. Compete então ao Estado, através da educação, fornecer estas informações, assumindo um projeto de promoção do bem comum e de emancipação de cada um e de todos.
É o que propõe a Secretaria Especial de Direitos Humanos ao apresentar a cartilha “Diversidade Religiosa e Direitos Humanos”, de 2004:
O Programa Nacional dos Direitos Humanos pretende incentivar o diálogo entre os movimentos religiosos, para construção de uma sociedade verdadeiramente pluralista, com base no reconhecimento e no respeito às diferenças. (SEDH 2004: 6)
Já o laicismo, em que pesem todas as digressões a respeito do termo, encontra-se mais no campo do antirreligioso, no que possui de mais agressivo, intransigente e opositor de toda crença na transcendência. Algo muito próximo do ateísmo oficial. Segundo os defensores do laicismo, todo tipo de manifestação religiosa deve ser feita a título privado e sem amparo governamental. Laicidade e laicismo são palavras que têm a mesma origem, mas assumiram significados diferentes. Laicismo designa um princípio filosófico, uma ideologia de matriz humanista que entende o Homem na sua individualidade mais plural, excluindo qualquer tipo de ligação deste caráter individual com o caráter público do Homem social. Já a laicidade garante os meios de concretizar este direito à individualidade, dentro de um sociedade plural, onde nenhum grupo deve poder se impor de forma autoritária, totalitária autocrática aos outros. Ao contrário, uma sociedade onde o espaço público pertença igualmente a todos, sem exceções, sem constrangimentos, enfim, uma sociedade inclusiva, aberta e livre. O Estado laico deve, então ser neutro e isento de marcas identitárias particulares.
Laicidade e laicismo podem ser então considerados graus distintos do mesmo fenômeno, como de fato alguns autores afirmam. Mas o laicismo fere alguns direitos fundamentais do Homem, dentre eles o de possuir, e manifestar sua religião. O laicismo levado ao exagero tem aparecido como uma militância que se opõe tanto às procissões quanto aos toques de sinos das igrejas, conclamando os fiéis para as festas religiosas ou missas; tanto aos elementos religiosos em prédios públicos quanto às datas festivas do calendário referentes a datas religiosas. Pode mesmo ser considerado, de forma mais agressiva, um proselitismo laico, agressivo, que ofende à liberdade de consciência e à própria proibição do proselitismo em espaço público.
Muitos laicistas são mesmo associados a uma luta antirreligiosa explícita, que considera as religiões como obscurantismo e alienação. No entanto, não se pode deixar de assinalar que, em algumas línguas, não há diferença entre laicismo e laicidade pela própria inexistência de um dos termos.
A diversidade cultural é a fonte de riqueza da própria humanidade que, em tempos e espaços diversos, criam a identidade de um grupo ou de um povo. É a forma particular de cada grupo ou povo reagir aos diversos fenômenos e fatos que ocorrem e que os levam a construir formas diferenciadas de outros povos.
Na luta pelo poder e na construção das relações de dominação, a diversidade serve como justificativa para a hostilização e “demonização” de grupos baseando-se simplesmente no fato de que são diferentes. O diferente é visto como perigoso, ameaçador e, como tal, deve ser encarado como inimigo. Também pode-se “construir” ou tornar-se o outro diferente para transformá-lo em inimigo. Basta para isso que diferenças até então consideradas irrelevantes sejam valorizadas de tal forma que se tornem obstáculos à própria convivência entre os grupos.
Ao se discriminar uma diferença, tratando-a de forma desigual, abre-se o espaço para o conflito e para a busca de domínio de um grupo sobre o outro. Neste aspecto, o campo das opções religiosas é um dos mais propensos ao conflito. As diversas formas que podem tomar as religiões correspondem à diversidade cultural dos povos. Cada povo, à sua maneira, tenta compreender os fenômenos da natureza, os mistérios ligados à vida e à morte, o sagrado. Cria então rituais, seleciona objetos sacros, erige locais sagrados, etc.
Podemos afirmar, então, que a diversidade cultural é componente essencial na formação das diversas religiões, ao mesmo tempo em que as religiões assumem formas influenciadas pela diversidade cultural e influenciam as culturas.
A laicidade também não coloca em causa a questão das identidades culturais. A própria “Declaração Sobre os Direitos das Pessoas Pertencentes a Minorias Nacionais ou Étnicas, Religiosas e Linguísticas”, de 1992, aprovada pela ONU, prevê não apenas o respeito, mas a garantia à religião como direito:
Artigo 1
1. Os Estados protegerão a existência e a identidade nacional ou étnica, cultural, religiosa e linguística das minorias dentro de seus respectivos territórios e fomentarão condições para a promoção de identidade.
2. Os Estados adotarão medidas apropriadas, legislativas e de outros tipos, a fim de alcançar esses objetivos. (ONU 1992)
O artigo 4, inciso 2, apresenta a defesa dos direitos de exercer suas religiões e a obrigatoriedade do Estado de garanti-la:
Artigo 4
2. Os Estados adotarão medidas para criar condições favoráveis a fim de que as pessoas pertencentes a minorias possam expressar suas características e desenvolver a sua cultura, idioma, religião, tradições e costumes, salvo em casos em que determinadas práticas violem a legislação nacional e sejam contrárias às normas internacionais. (ONU 1992)
Somente um Estado laico pode garantir este direito, pois não professa nenhuma religião, ao mesmo tempo em que deve defendê-las igualmente. A laicidade, então, se constitui uma conquista de alcance mundial que deve ser preservada e promovida.
É no Estado laico que as religiões são mais livres, contanto que respeitem também as opções espirituais ateias ou agnósticas, a neutralidade confessional da esfera pública, a garantia de cuidar do bem comum, enfim, que respeitem a todos e não apenas alguns. Os espaço público deve ser um modelo de referência dos cidadãos livres, conscientes, capazes de escolher e não um mosaico de comunidades ou comunitarismos. As possíveis confusões entre cultural e cultual também são formas de comunitarismos e devem ser evitadas. PEÑA-RUIZ deixa clara a diferença:
É cultural tudo aquilo que pode interessar a todos os homens, tal como seja a arte religiosa ou a mitologia que uma abordagem laica esclarece. É cultual, a crença religiosa de alguns. As palavras têm um sentido e qualquer desvio que vise confundir o que é distinto, constitui uma desonestidade. (2006:10)
Considerar que, por exemplo, existam crucifixos ou imagens de santos em repartições públicas é “uma questão cultural”, como foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal em caso recente transforma um particularismo religioso em critério de identificação cultural, o que não é correto. Isso nos dá a impressão de que cultural e cultual se confundem. PEÑA-RUIZ, a este respeito, alertava: “Do religioso como essência da cultura ao fanatismo político-religioso em nome de uma identidade cultural, não há grande distância”. (2004:14). O que dizer do direito individual, quando o indivíduo ateu ou agnóstico é exposto obrigatoriamente a símbolos religiosos em locais públicos e, em especial, de serviço público? Ou do direito de crentes que abominam um ou outro símbolo religioso e são obrigados a conviver com os mesmos para poderem ser beneficiados por um serviço proposto pelo Estado, como tribunais ou hospitais?
São reflexões que merecem análises mais profundas.
Um outro ponto a ser levantado aqui é que normalmente buscamos, através de juízos de valor, qualificar as diversas opções espirituais, Ora, cada uma das opções não pode ser definida pelo que não possui (sem ou com crença, sem ou com religião, com ou sem valores éticos ou morais, por exemplo), mas pelas características que a ligam ao transcendente. Assim, o crente funda seus valores sobre uma ideia de transcendência divina; um agnóstico deixa em suspenso seu julgamento, mas concebe uma moral natural do Homem, enquanto um ateu, não crendo em um Deus, funda seus valores sobre outros princípios. Considerando as opções pelo que elas são, pela sua compreensão positiva, podemos diminuir as discriminações entre os cidadãos.
A laicidade é ao mesmo tempo, um direito jurídico e um ideal político, visando a fundação de uma comunidade de direito onde coexistem os princípios de liberdade de consciência, igualdade, prioridade ao bem comum, respeito e tolerância. A laicidade então permite a manifestação da diversidade sem comunitarismos, preservando o direito das minorias sem excluí-las do princípio de inclusão na sociedade. É a manutenção do princípio da unidade na diversidade, atenta à emancipação da pessoa humana nos planos intelectual, ético, social e espiritual.
Não podemos esquecer que o fato espiritual é uma tendência natural do ser humano, na busca de uma transcendência, enquanto o fato religioso é a resposta das religiões a esta tendência fundamental que aflora quando o Homem toma consciência da fragilidade da sua própria existência.
À guisa de conclusão, tendo em vista que pensamos estar apenas iniciando as discussões, poderíamos acrescentar que não se pode negar que o aspecto social ligado à desestruturação familiar, às novas formas de composição das famílias e às mudanças estruturais acabaram por transmitir à escola a responsabilidade quase exclusiva da formação do educando, inclusive da formação moral e religiosa.
Mesmo tendo consciência de que não cabe à escola a tarefa de resolver todos os problemas não resolvidos pela sociedade em geral e pelas famílias em especial, negar a necessidade de abertura de diálogo sobre o ensino religioso na escola laica é contribuir para o obscurantismo, o sectarismo e a intolerância. Toda experiência pedagógica acumulada pelos especialistas na área nos leva a concluir que a tolerância religiosa, característica essencial da cidadania, não se constrói sobre um fundo de ignorância religiosa.
A melhor maneira para contribuir significativamente para esta discussão é o início de diálogo no qual os diversos atores envolvidos (escola, sociedade, famílias e alunos, professores e demais profissionais da educação), podem discutir e interagir, de forma racional, buscando uma maior compreensão do tema.
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[*] Doutora em Sociologia pela Universidade de Paris I – Pantheon Sorbonne (2003). Professora da Universidade Federal da Paraíba – Centro de Educação e Programa de Pós-Graduação em Ciências das Religiões. Líder do Baobah – Grupo de Pesquisa em Educação e Ensino Religioso – CNPq.