Em Riscos e Rabiscos: Concepções de Ensino Religioso dos Docentes do Ensino Fundamental do Estado do Paraná

Edile M. Fracaro Rodrigues[*]
Sérgio Rogério Azevedo Junqueira[**]
Dilmeire Sant’Anna Ramos Vosgerau[***]

Resumo

O Ensino Religioso, como área de conhecimento, tem se preocupado com uma formação específica levando em conta as necessidades dos professores, pois um docente formado por uma determinada escola de pensamento vai formar segundo esses moldes. A partir de duzentos e dezoito desenhos e frases foram investigadas as concepções de Ensino Religioso dos professores do Ensino Fundamental do Estado do Paraná. A utilização do software ATLAS.ti constitui um aspecto importante da investigação, pois demonstrou eficácia e versatilidade na associação de textos e imagens. Os dados apontaram quatro concepções: Transmissão e Desenvolvimento de Valores, Respostas às Questões Existenciais, Estudo das Tradições Religiosas e Área de Conhecimento. Os riscos e rabiscos esboçam o desenho de uma mudança significativa para a história do ER no Paraná: a superação das aulas de religião catequéticas e a preocupação com conteúdos que tratem da diversidade de manifestações religiosas.

Palavras-chave: Ensino Religioso; Formação de professores; Concepções de Ensino Religioso.

Abstract

Religious Education, as an area of knowledge, is concerned with the training of teachers, according to the specific needs and challenges of this profession. The article is based on the analysis of concepts of religious education expressed in 218 drawings and phrases of elementary school teachers. Since the object consisted in a combination of texts and images the research used as its main tool the program ATLAS.ti, a software well known for its effectiveness in the context of related studies. The data indicate the coexistence of four pedagogical concepts associated with religious education: the transmission and development of value; responses to existential issues; the study of religious traditions; religious education as a autonomous field of learning. In general the results indicate a significant change in the history of religious education in the State of Paraná, particularly in terms of overcoming the catechetical bias of religious education and the concern with issues that reflect diversity of religious manifestations. .

Keywords: Religious Education, Teacher Training, Concepts of Religious Education

Os desafios do Ensino Religioso

Para compreender uma sociedade é preciso entendê-la como um todo, observando suas relações entre as gerações, os gêneros, as classes e também os fatos sociais ocorridos em determinado contexto (MATTOS 2001). Por isso, a caracterização social do sujeito e dos papéis por ele exercidos é necessária para reconhecer o quanto as relações sociais são efetivas na formação do indivíduo.

Todo sujeito é político, religioso, social, lúdico, racional, individual, mas não é nada disto isoladamente, pois mesmo mantendo uma relação consigo mesmo, o encontro com o outro é o ponto inicial da construção de sua identidade (MATOS 1998:282).

E, para imprimir ao Ensino Religioso um enfoque de disciplina escolar, a nova redação do Artigo 33 da LDBEN 9.394/96, Lei n. 9.475/97, declara que:

Art. 33. O ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo.
§ 1º Os sistemas de ensino regulamentarão os procedimentos para a definição dos conteúdos do ensino religioso e estabelecerão as normas para a habilitação e admissão dos professores.
§ 2º Os sistemas de ensino ouvirão entidade civil, constituída pelas diferentes denominações religiosas, para a definição dos conteúdos do ensino religioso.

Ao lado de outros campos de saber, o Ensino Religioso pode acrescentar à visão sobre a realidade mais um modo de discuti-la, principalmente ao adotar uma metodologia pautada na interdisciplinaridade. Por isso, os debates e as reflexões são importantes para estabelecer o Ensino Religioso como espaço para pensar o ser humano, numa abordagem fenomenológica que observe as diversas manifestações religiosas de forma cultural. O processo de alteração do Ensino Religioso de caráter catequético para área de conhecimento foi lento e por vezes, apesar da legislação, não foi aplicado na prática e, em momentos da história da educação do Paraná, ficou distanciado das demais disciplinas escolares (PARANÁ 2006:17).

O fato de ser facultativo para o cidadão em fase escolar, a compreensão de sua natureza e o tratamento metodológico a ser efetivado na prática, assim como a necessidade de análise e pesquisa do campo religioso dentro de sua diversidade a partir de uma visão mais ampla, têm sido alguns dos desafios do Ensino Religioso para efetivar-se como área de conhecimento. Essa é a relevância desta pesquisa de abordagem qualitativa, de caráter exploratório, que apresenta como objetivo geral verificar a concepção de Ensino Religioso dos professores do Ensino Fundamental do Estado do Paraná.

Os dados foram coletados num simpósio promovido pela SEED — Secretaria de Estado de Educação do Paraná, na semana de 23 a 26 de outubro de 2006 em Curitiba (PR). Com o objetivo de verificar a concepção de Ensino Religioso dos professores do Ensino Fundamental do Estado do Paraná, foi proposto aos participantes que elaborassem uma frase - seus riscos - e um desenho - seus rabiscos - que expressassem o papel do Ensino Religioso na educação dos alunos.

Metodologia

Buscando uma ferramenta que possibilitasse a associação de texto e imagem e que comportasse o volume de dados levantados nos 218 documentos coletados, optou-se pela utilização do software ATLAS.ti. Conhecido como um instrumento eficiente na análise de questionários com questões abertas e fechadas, bem como na criação de banco de dados e networks (teias de relações — aqui designadas como representação gráfica do documento) que possibilitam um panorama eficaz para a proposta de toda pesquisa, esse software comprovou também ser versátil na associação de textos e imagens.

Tendo como foco a concepção de Ensino Religioso dos professores do Ensino Fundamental do Estado do Paraná, procurou-se delimitar o objeto de estudo nos indicadores que possibilitassem o levantamento de categorias das concepções apresentadas pelos professores nos “riscos e rabiscos” (frases e desenhos) produzidos para expressar o papel do Ensino Religioso na educação dos alunos do Ensino Fundamental.

A Identidade dos pesquisados

Em relação ao gênero dos participantes desta investigação, 183 professores informaram esse dado, sendo 22 professores e 161 professoras. Essa amostra é confirmada por Garcia et al. “Os docentes são uma categoria amplamente constituída por mulheres, pelo menos no ensino básico.” (GARCIA ET AL 2005:47).

O tempo de docência de 186 professores que apresentaram esse dado varia de um a 31 anos, sendo que 42 professores indicaram lecionar há mais de onze anos. Já o tempo de docência no Ensino Religioso revela o quanto realmente é jovem essa área do conhecimento, pois 94 dos 170 professores, no momento da coleta de dados, estavam atuando havia menos de três anos.

A formação dos 176 professores que apontaram essa informação nos documentos pesquisados é bem variada, não havendo uma formação específica em Ensino Religioso. A graduação em História foi a mais indicada pelos participantes, seguida por Pedagogia, Filosofia, Letras e Geografia. Chama a atenção só dois professores terem formação em Teologia. A Figura 1 mostra a especialização, extensão e pós-graduação de 31 professores, vindo a confirmar a pesquisa de OLIVEIRA et al. (2006) que diz que basicamente a oferta de cursos de formação de Ensino Religioso acontece, em sua maioria, na Pós-graduação Lato Sensu e Extensão.

Considerando as formações de Geografia, Filosofia, Pedagogia e História, áreas do conhecimento estabelecidas pela Deliberação 01/06 (PARANÁ 2006) para o exercício docente do Ensino Religioso, foi feita a análise de 53 documentos dos 126 elaborados por esses professores. As demais formações indicadas nos documentos analisados e outros indicadores, como por exemplo a recorrência de determinadas figuras que necessitariam de uma análise semiótica, não foram focos desta investigação.

Quatro concepções sobre o ER ficaram evidentes na análise dos documentos dos professores de Geografia, Filosofia, Pedagogia e História: o ER como transmissão ou desenvolvimento de valores, moral e ética; o ER como resposta às questões existenciais; o ER como estudo das tradições religiosas e a manifestação do sagrado e o ER como Área de conhecimento.

O Ensino Religioso como “Transmissão ou desenvolvimento de valores, moral e ética”

A concepção de ER como “Transmissão ou desenvolvimento de valores, moral e ética” se sustenta no entendimento da ligação entre a “Criatura e o Criador”. Nesse modelo, a religião é uma ação pessoal para estabelecer uma ponte entre Deus e o Homem, tendo o Cristianismo como a única religião verdadeira, sendo consideradas ideais as práticas cristãs. (JUNQUEIRA 2000).

Nesse modelo de ER, “a ideia da formação religiosa está voltada a fazer seguidores (reeligere) e de religar (religare) o homem a Deus, visando torná-los mais religiosos, voltados às práticas de formação de valores e atitudes éticas consideradas ideais” (CORRÊA 2006).

Fato que pode se perceber na fala de uma professora de História: “Sempre trabalhei relacionado a ética e a moral, que hoje é muito necessário” (Professor 150 — História). O mesmo ocorre nos dados coletados de um professor de Geografia.

Tomando como exemplo a representação gráfica do documento de uma professora de Geografia, com 13 anos de docência em Geografia e 8 meses de docência no Ensino Religioso, gerada pelo ATLAS.ti, é possível observar os indicadores que possibilitaram a categorização da concepção de Ensino Religioso como “Transmissão ou desenvolvimento de valores, moral e ética”.

Os professores também apontaram a religiosidade de diferentes culturas e a busca do ser humano para se relacionar com o sagrado para tornar-se mais pleno. Essa plenitude coopera no desenvolvimento do respeito, da união, do amor e da solidariedade, valores apontados pelos professores.

Outro fator a ser considerado é o colapso das certezas morais que tem levado a uma cobrança para que os professores “cumpram funções de família e de outras instâncias sociais, que respondam à necessidade de afeto dos alunos; que resolvam os problemas da violência, da droga e da indisciplina” (SEVERINO; PIMENTA apud OLIVEIRA et al, 2007:12). Novas exigências da sociedade brasileira contemporânea que têm sido acrescentadas ao trabalho dos professores.

O Ensino Religioso como resposta às questões existenciais

Ao tratarmos do ER, nos deparamos com as questões fundamentais oriundas do pensamento filosófico: Quem sou eu? Para onde vou? De onde vim? A ciência e as diferentes religiões buscam incessantemente por meio da investigação ou da comunicação com o mistério, responder a cada uma dessas questões. O confronto entre a sensação de finitude e a busca de transcendência leva o Homem a um constante conflito, que buscará o Transcendente em rituais e em outras formas simbólicas. O enfoque antropológico dado ao conhecimento trata da experiência religiosa e da relação do ser humano com o desconhecido. Essa dimensão é, pois, subjetiva por envolver a consciência humana (JUNQUEIRA 2000).

O exemplo da professora 105, com 27 anos de experiência na docência em Filosofia e dois anos em ER, mostra uma coerência entre a frase (Procurar entender ou até responder as inúmeras perguntas que nos fazemos sobre que somos? Por que estamos aqui? E para onde vamos? Nas mais diferentes formas de expressão religiosa) e o desenho, deixando clara a concepção do ER como resposta às questões existenciais.

A questão “para onde vou e de onde eu vim” é refletida e respondida nos textos sagrados, representados nas pinturas, nas esculturas, nos poemas e em diferentes formas de representação do mistério, entre elas o mito. O texto religioso, a exemplo das outras representações, procura responder aos anseios do ser humano por intermédio de uma linguagem simbólica. Pela força de suas metáforas, os textos sagrados funcionam como orientador dos comportamentos em coletividade, conduzindo o pensamento e sugerindo pistas para os grandes enigmas da humanidade, questionando a própria existência do ser humano, participante das intrincadas relações socioculturais, favorecendo-se o conhecimento das diversas tradições religiosas responsáveis pela construção cultural do nosso país (JUNQUEIRA 2008).

Entretanto, tendo clara a ideia de que o “sujeito do conhecimento religioso busca respostas aos seus questionamentos existenciais, dentro ou fora de uma Religião, e está em contínuo desenvolvimento de suas potencialidades nas mais diversas dimensões” (JUNQUEIRA et al. 2007:137), é necessário respeitar as escolhas dos que têm e dos que não têm fé religiosa, ou dos que simplesmente não optaram por nenhum grupo religioso.

Para reforçar esse aspecto, observam-se os “riscos e rabiscos” dos professores de Pedagogia e História.

Vasconcellos (2002) considera que toda disciplina de algum modo tenta responder a perguntas básicas do ser humano: Que é o mundo? Quem é o Homem? Que é conhecer e qual o conhecimento que o Homem tem do mundo? Então, para a autora, todo aquele que pensa sobre um campo do saber ou um campo de práticas é epistemólogo, pois reflete sobre o ser e o conhecer.

Entretanto, ao se deparar na escola com a figura tradicional do professor que detém a verdade, o aluno pode sentir-se inibido deixando de lado o diálogo e tomando a postura reclusa. “Mas nenhum de nós tem a verdade, ela se encontra no devir do diálogo”. A proposta é apresentar o verdadeiro como uma busca e não um resultado, pois o verdadeiro é um processo que se alcança “através do diálogo, através de rupturas” (FREIRE e FAUNDEZ 1985:22). A força, segundo os autores, está naquele que afirma ter parte da verdade, pois compreende que a outra parte está no outro, no próximo. Mas, segundo os autores, é possível que a curiosidade do estudante abale a certeza do professor, não tanto pela pergunta, mas pela resposta. Teme a pergunta pela resposta que deve dar, e assim um silêncio autoritário é imposto em nome da ordem, abafando nele a indagação.

Mas, não podemos perder de vista que o ER tem como objetivo discutir “a diversidade e a complexidade do ser humano como pessoa aberta às diversas perspectivas do sagrado presentes nos tempos e espaços histórico-cultural”. (OLIVEIRA ET AL. 2005:34)

O Ensino Religioso como estudo das tradições religiosas e a manifestação do sagrado

O Ensino Religioso, tal como proposto na LDBEN 9394/96, parte de uma visão mais ampla que reúne todas as áreas do conhecimento, numa abordagem fenomenológica que observe as diversas manifestações religiosas de forma cultural, seja por meio do estudo das Religiões Comparadas, seja buscando as histórias das Religiões.

Há diferentes opções e dimensões de fé na escola. Esse é um fator importante a ser considerado. A LDBEN 9394/96, em seu Art. 32, valoriza o pleno domínio da leitura, da escrita e do cálculo, assim como a compreensão do ambiente natural e social, do sistema político, da tecnologia, das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade e do desenvolvimento da capacidade de aprendizagem, de aquisição de conhecimentos e de habilidades, além da formação de atitudes e valores. Não menos importante, a LDBEN também valoriza o fortalecimento dos vínculos familiares, dos laços de solidariedade e de respeito à diversidade cultural e religiosa em que se assenta a vida social (BRASIL 2006).

No desenho da professora 007, a frase e o desenho têm o mesmo sentido de diversidade e respeito.

Percebe-se que essa professora tem clareza em relação à compreensão sobre a própria religiosidade e a do outro, bem como a diversidade universal do conhecimento humano e de suas diversas formas de ver o sagrado. Essa clareza possibilita a reflexão sobre a realidade contida na diversidade do ER.

Apresentar os conteúdos de Ensino Religioso a partir das tradições dos alunos e de seu contexto social é um aspecto que merece destaque. Firmar a identidade religiosa do aluno e as marcas de sua cultura é importante, pois a renúncia dessas marcas pode levar a uma desvalorização das novas culturas que lhe apresentadas (FREIRE e FAUNDEZ 1985:17). Entretanto, o relacionamento com o mundo é uma longa aprendizagem que implica na descoberta do outro, de outras realidades, das marcas de outras linguagens e de outros gestos.

A representação gráfica do documento elaborado pela professora 081 também colabora no sentido dessa reflexão e expressa unidade em meio à diversidade. Dentro do círculo estão os seres humanos unidos pelo que lhes é comum, a humanidade. O conhecimento e o respeito à diversidade fazem parte desse círculo de convívio. Fora do círculo as diversas tradições religiosas. Outro detalhe que chama a atenção é em relação às setas que parecem indicar uma abertura para fora, para o novo.

O reconhecimento do fenômeno religioso é um dado da cultura e da identidade de um grupo social e promove o sentido da tolerância e do convívio respeitoso com o diferente. Mas, o ER não está restrito “à identificação do fenômeno religioso, também visa à gradual descoberta e releitura de seus diferentes aspectos no cotidiano escolar e social”. (OLIVEIRA ET AL. 2007: 102)

Assim, o ER, ao contribuir para o reconhecimento e respeito às diferentes expressões religiosas advindas da elaboração cultural dos povos, possibilita a leitura das diferentes fontes da cultura sobre o fenômeno religioso.

O Ensino Religioso como Área de conhecimento

Pensar no ER como área de conhecimento é pensar nos seus fundamentos epistemológicos e na sua metodologia. Há muito que compreender para poder respeitar as relações entre os seres humanos e a natureza. Como área de conhecimento e fundamentado numa releitura religiosa do cotidiano, o ER colabora no processo da construção de um cidadão que compreende o seu contexto sócio-cultural, político-educacional, econômico e religioso.

Indicadores como “cidadania”, “conhecimento” e “interdisciplinaridade” possibilitaram a categorização do ER como área de conhecimento. Os desenhos das professoras 071 e 068 expressam uma abertura para outros horizontes. Em seus documentos aparece o indicador “interdisciplinaridade”, o que permitiu a categorização do ER como área de conhecimento.

Alguns riscos e rabiscos que contribuíram para a categorização dessa concepção são:

Contribuir para a formação integral do aluno” [...] (professor 043 — Geografia).

Respeito e conhecimento na diversidade” (professor 104 — Filosofia).

Proporcionar conhecimento pela razão do sagrado [...]” (professor 137 — Filosofia).

O Ensino Religioso é a união das diferentes formas de pensar as diferenças na vida das pessoas” (professor 023 — Pedagogia).

O conhecimento historicamente acumulado é um valor humano inigualável, como a água é fonte de vida” (professor 077 — Pedagogia).

O ER como área de conhecimento subsidia a compreensão de conceitos básicos no campo religioso, na forma como a sociedade sofre inferência das tradições religiosas ou, até mesmo, nega um Transcendente. Crer ou não é um direito universalmente reconhecido, mas ao mesmo tempo é significativo para compreender como, ao longo da história da humanidade, a relação com as diferentes ideias de Transcendente impulsionaram os grupos humanos.

O exercício da cidadania e o direito da expressão religiosa podem ser desenvolvidos na escola, já que nesse espaço de aprendizagem podem ser trabalhadas as regras do espaço público democrático, buscando a superação de todo e qualquer tipo de discriminação e exclusão social, valorizando cada indivíduo e todos os grupos que compõem a sociedade brasileira.

O texto e a frase da professora 127 demonstram como o ER pode contribuir como marco estruturado de leitura e interpretação da realidade, essencial para garantir a possibilidade de participação autônoma do cidadão na sociedade.

Os desafios do Ensino Religioso, para efetivar-se como área de conhecimento, são inúmeros, e o fato de ser facultativo para o cidadão em fase escolar, a compreensão de sua natureza e o tratamento metodológico a ser efetivado na prática, têm sido alguns desses desafios (JUNQUEIRA ET AL 2007:133).

O acesso ao conhecimento favorece a compreensão do direito e dever de cada um, bem como a participação social e política na comunidade em que se está inserido, adotando, no dia-a-dia, atitudes de solidariedade, cooperação e repúdio às injustiças, respeito ao direito de todos. É o que se confirma na contribuição da professora 134, a seguir.

Observa-se a variedade de indicadores, além dos indicadores “conhecimento” e “cidadania” que apontaram para a categorização do ER como área de conhecimento. O desenho remete a uma convivência e harmonia entre as tradições religiosas. Esse respeito e harmonia são frutos de uma consciência cidadã. Aprendendo a conviver com as diferentes tradições religiosas, vivenciando a própria cultura e respeitando as diversas formas de expressão cultural, o educando estará também se abrindo para o conhecimento.

Educar para conhecer diversas religiões e compreender as culturas que lhes dão forma, analisar a relação entre presente e passado para produzir um saber histórico, implica em exercitar o diálogo com o diferente, baseado no respeito profundo e no desejo de preservar a dignidade e direito de existência de cada manifestação cultural-religiosa.

Os direitos fundamentais de liberdade religiosa e de expressão religiosa são frutos de uma sociedade pluralista que se expressa no Estado não-confessional e laico. A laicidade não é a negação da fé, mas protege as confissões minoritárias de discriminação e de forma democrática possibilita a relação entre o cidadão e o Estado, o privado e o público.

O desenho da professora 131, com 22 anos de experiência na docência em História e quatro anos em ER, e sua frase (“Ninguém é igual a ninguém”) apontam para esse diálogo. A partir de um exemplo bem concreto, como a diferença dos dedos das mãos, pode ser feita a relação com a funcionalidade, pois as nossas mãos não teriam a mesma funcionalidade se todos os dedos fossem iguais.

De acordo com o que Carniato afirma

Além do conteúdo estabelecido, o ER tem um tratamento pedagógico diferenciado. Ele é mais do que só conhecimento. É preciso oferecer atividades interativas e participativas que proporcionem experiências. E estas por sua vez, refletidas e dialogadas, se transformem em construção de saber, de sabedoria, e levem à educação integral da cidadania terrena e do protagonismo na humanização e na construção de um mundo novo, de vida para todos. (2005: 37)

Dessa forma, o aluno participa ativamente da construção do processo da aquisição de seus conhecimentos, utilizando a dimensão racional de seu ser, e também as dimensões sensíveis, emocionais e intuitivas. É cidadão de um mundo complexo, onde se inscrevem relações em rede, não menos complexas. Porém, ele é um ser dotado de capacidades criativas e talentosas, autônomo em seu processo de aprender. Nesse sentido, alguns aspectos importantes precisam ser considerados: o contexto social dos educandos (seus conhecimentos prévios — bagagem cultural e religiosa); o papel das tradições religiosas na estruturação e manutenção das diferentes culturas e manifestações socioculturais; a complexidade dos assuntos religiosos em função da pluralidade cultural e religiosa; a compreensão do significado das afirmações e verdades de fé das tradições religiosas (FONAPER 1998).

Dois desenhos tratam dos símbolos das tradições religiosas.

Os sistemas de representações simbólicas estão inseridos em processos e contextos sócio-históricos específicos, nos quais eles são produzidos. Nesse sentido, as áreas do conhecimento possuem o papel fundamental de propor, localizar e compreender as representações simbólicas, a fim de que a consciência religiosa e mítica dos educandos possa servir de fundamento para a autêntica cidadania, a solidariedade e o respeito para com a diversidade (JUNQUEIRA 2008).

É certo que, ao se apresentar a diversidade cultural religiosa, favorece-se o desenvolvimento de uma liberdade da identidade pessoal, mas um aspecto a ser ressaltado nesse sentido é o de que o Ensino Religioso não fique restrito somente em informações e curiosidades, porém alcance a educação para a ação transformadora.

Riscos e rabiscos desenhando uma formação de professores

Cada área de conhecimento requer um curso que projete uma formação, pressupondo um perfil profissional, pois um docente formado por uma determinada escola de pensamento vai formar segundo esses moldes. A seriedade do ER aponta para a necessidade de uma formação de professor que possibilite uma visão dessa área do conhecimento que vá além da exposição de valores, e também garanta uma atuação que leve à criação de um espaço privilegiado de reflexão.

A compreensão da realidade do professor de Ensino Religioso possibilita verificar como esse profissional tem concebido essa área de conhecimento e qual é a contribuição desse saber para a reflexão pedagógica sobre um homem dotado de razão, afetividade, inteligência, corpo e desejo. Assim, a formação desse profissional da educação carece de uma leitura crítica das realidades sociais para se buscar os referenciais para a organização e redirecionamento do seu trabalho em sala de aula. O desafio, portanto, está na formação de professores de ER pautada nos diversos aspectos da condição humana e de suas potencialidades e que considere dialeticamente a realização pessoal do sujeito e de seu contexto social. Uma formação construída, avaliada e reconstruída para articular no espaço escolar o processo de educação que promova o reencontro da razão com a vida, e que considere as necessidades vitais, as aspirações e os conhecimentos de todos os sujeitos envolvidos nesse processo de educação.

Os dados levantados nesta investigação apontam a concepção de ER “Transmissão e desenvolvimento de valores, moral e ética”, que se enquadra no modelo interconfessional, como a mais indicada nas frases e desenhos dos professores de Geografia, Filosofia e História.

Essas concepções se enquadram em dois modelos de ER: o modelo Interconfessional ou Inter-relacional (“Transmissão e desenvolvimento de valores, moral e ética”, “Respostas às questões existenciais”) e o modelo fenomenológico (“Estudo das tradições religiosas e manifestação do Sagrado”, “Área de Conhecimento”) conforme se apresenta no Quadro 2. Um terceiro modelo de Ensino Religioso, o Confessional, não foi categorizado nesta investigação, pois apenas um documento apontou o indicador “confessionalidade”.

O modelo interconfessional toma o seu próprio grupo como o centro de tudo e todos e os outros fenômenos religiosos são lidos, pensados e sentidos por meio dos valores e modelos do grupo, no caso, o cristianismo. Nesse modelo,

a ideia da formação religiosa está voltada a fazer seguidores (reeligere) e de religar (religare) o homem a Deus, visando torná-los mais religiosos, voltados às práticas de formação de valores e atitudes éticas consideradas ideais” (CORRÊA 2006).

Segundo Junqueira (2000), o modelo fenomenológico abrange não apenas uma dimensão humana, mas também a vida religiosa concreta de cada grupo (cultos, práticas e crenças e métodos de socialização), sistematizações pastorais e teológicas e a autoridade expressa por meio de livros sagrados, normas, pessoas.

Se considerarmos que os professores viveram sob a vigência da LDBEN5692/71, em que o ER era compreendido como um elemento que colaboraria na “formação moral” das gerações, é possível relacionar que os saberes pessoais dos professores, advindos da história de vida, e os saberes provenientes da formação escolar, advindos da formação e da socialização pré-profissionais, têm papel importante na sua ação docente.

Além disso, as novas exigências da sociedade brasileira contemporânea, acrescentadas ao trabalho dos professores, dão indícios do motivo dessa concepção de ER ter sido a mais apontada, pois se espera que a escola cumpra a função de família.

Entretanto, os valores da fé continuam sendo prerrogativas da Família e da Igreja, por se constituírem em espaços da reflexão do conhecimento religioso. À escola cabe proporcionar um espaço de discussão e reflexão sobre as questões fundamentais da existência do ser humano, longe de quaisquer formas de proselitismo, favorecendo a inserção do aluno no dia-a-dia, nas questões sociais marcantes e em um universo cultural maior.

A análise dos documentos dos professores de Pedagogia revela uma mudança significativa para a história do ER no Paraná. Esse fato se constituiu em um dado surpreendente, pois o caminho percorrido pelo ER, apesar da laicidade apontada pelo sistema republicano brasileiro, mostra um caráter catequético na sua história até a década de 1960, momento em que, devido à pressão de diferentes manifestações religiosas e da sociedade civil organizada, surgiram grandes debates retomando a questão da liberdade religiosa. Contudo, os professores leigos e voluntários continuavam a ministrar as aulas e o caráter proselitista permanecia. Assim, os dados dão indícios de uma mudança paradigmática.

Pode-se atribuir essa mudança ao debate e à reflexão sobre o ER como área do conhecimento. Como apontado nas Diretrizes para o ER (PARANÁ 2006:19), no início da gestão 2003-2006, a responsabilidade sobre a oferta e organização curricular da disciplina no que se refere à composição do corpo docente, metodologia, avaliação e formação continuada de professores foi retomada. Os professores que ministram aulas de ER, bem como os demais professores, passaram a ser envolvidos num processo de formação continuada voltado à legitimação da disciplina na rede pública estadual. Essa formação continuada se deu por meio de simpósios realizados em 2004 e 2005, de proposição de grupos de estudo e do convite aos professores para participarem das discussões da elaboração das Diretrizes Curriculares do ER.

Permitir ao outro ser sujeito de sua cultura e de seus desejos é o desafio do contexto atual. Por isso, os debates e as reflexões prosseguem na busca para estabelecer o ER como um espaço para pensar o ser humano, partindo de uma visão mais ampla que reúna todas as áreas do conhecimento, numa abordagem fenomenológica que observe as diversas manifestações religiosas de forma cultural.

Os dados também sugerem uma superação das tradicionais aulas de religião e apontam que o professores estão procurando inserir em suas aulas conteúdos que tratem da diversidade de manifestações religiosas, dos seus ritos, das suas paisagens e símbolos, as relações culturais, sociais, políticas e econômicas de que são impregnadas as diversas formas de religiosidade.

No entanto, há que se preocupar com um esvaziamento se esses conteúdos forem trabalhados somente em nível de informação e curiosidade, pois é a transformação da informação em conhecimento que proporcionará a consciência cidadã. Assim, os conteúdos pensados e elaborados a partir de uma abordagem fenomenológica, podem auxiliar os alunos a enfrentar os conflitos existenciais e a desenvolver, orientados por critérios éticos, a religiosidade presente em cada um.

Grandes projetos nascem de esboços. São os primeiros riscos e rabiscos que possibilitam o início da concretização dos sonhos e ideais. Assim, vamos continuar riscando e rabiscando a fim de apontar para a construção de uma formação de professores que contribua para que o ER se constitua efetivamente como área de conhecimento, possibilitando ao educador a ao educando uma maior abertura e compromisso consigo mesmo, com o outro, com o mundo e com o Transcendente.

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Notas

[*] Profª. Ma. Facinter.

[**] Prof. Dr. PUC-PR.

[***] Profª. Drª PUC-PR