A influência da França nos estudos sociológicos modernos sobre o fenômeno religioso no Brasil, segundo Pierre Sanchis em seu texto “As Ciências Sociais da Religião no Brasil”, se deve a duas instituições, o Groupe de Sociologie des Religions da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) - com sua revista Archives de Sociologie des Religions - e o Groupe de Sociologie des Religions et de la Laïcité da École Pratique des Hautes Études (EPHE) e do CNRS. Nomes dessas instituições, como Henri Desroche, Jean Séguy e, mais recentemente, Danièle Hervieu-Léger, funcionaram como referência para doutorandos, pós-doutorandos e pesquisadores brasileiros em seu fluxo de formação e interlocução com esses centros. Sanchis ainda sublinha que o primeiro grupo se transformou no Centre d’Études Interdisciplinaires des Faits Religieux (CEIFR), mas não fornece mais informações sobre outros desdobramentos acadêmico-institucionais envolvendo estes Laboratórios de pesquisa franceses.
Atualizando o registro feito pelo mestre no referido artigo, REVER tem, agora, o prazer de informar aos leitores brasileiros a realidade de um laboratório de pesquisas em estudos da religião que vem despontando como um dos centros mais avançados na matéria, o Groupe Sociétés, Religions et Laicïtés (GSRL). Na verdade, ele é a atualização do segundo grupo mencionado por Sanchis, que pertence tanto à École Pratique des Hautes Études - EPHE (particularmente com sua Session de Sciences Religieuses, onde lecionaram Marcel Mauss e Levi-Strauss, e onde treze de seus pesquisadores são docentes), quanto ao Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), equivalente francês do nosso CNPq, em que o GSRL é considerado “groupe prioritaire”, também equivalente ao conceito 07 para nossos programas de pós-graduação.
O GSRL conta com 186 pesquisadores, entre membros estatutários e associados. No caso destes, eles estão na França e no Exterior. No caso dos associados brasileiros, podemos citar os colegas Roberto Motta (UFPE) e Patrícia Birman (UERJ). Em seus cursos, o laboratório também acolhe doutorandos e pós-doutorandos de diversos países.
O laboratório concentra suas pesquisas em dois grandes objetos: religiões e laicidades. No primeiro caso, focando as atitudes religiosas dos indivíduos e na relação Igrejas-Estado-Sociedade e, no segundo, realizando investigações históricas e sociológicas do regime de laicidade na França e suas mutações com comparações internacionais. Dentro dessa perspectiva, se renovam análises sobre decomposições e recomposições contemporâneas do religioso, assim como as reações das sociedades modernas ao pluralismo religioso e às demandas individuais e coletivas de reconhecimento identitário.
No Projeto Quadrienal (2010-2013) do GSRL, no que tange ao ítem “perspectivas e objetivos”, encontramos a seguinte avaliação sobre o campo de estudos em torno da temática da religião na modernidade:
a retomada de paradigmas historicamente ligados aos Estados-nação (secularização, laicidade, modernidade...) e a indigenização de conceitos em diversos países nos quais as ciências sociais das religiões conhecem um imenso crescimento quantitativo e qualitativo (China, Índia, Rússia, Brasil, países árabes-muçulmanos) (grifo nosso) contribuirão para remodelar o campo das ciências sociais das religiões, tanto nos objetos quanto nos métodos e conceitos (p.12).
Constatamos, pois, que o Brasil se encontra no horizonte do laboratório como um dos centros mundiais produtores de reflexão avançada na área das Ciências Sociais da Religião. O que abre um campo de possibilidades de interlocução de nossos pesquisadores e estudantes com esta instituição.
Neste número de REVER, apresentamos quatro artigos de pesquisadores do GSRL. De Philippe Portier, diretor do laboratório, diretor de estudos na EPHE e da Science-Po Paris, dois artigos - “Regulação estatal da religião na França (1880-2008): ensaio de periodização” e “Pluralidade e unidade no catolicismo francês”. No primeiro, examina a problemática da regulação das religiões pelo Estado laico francês, estabelecendo uma periodização deste mecanismo. Propõe três grandes modelos: a “lógica da separação”, que funcionou até os anos 1970, a “lógica do reconhecimento”, até os anos 2000, e a “lógica da integração”, da atualidade. No segundo texto, aborda a relação do Catolicismo com a modernidade na França a partir das análises clássicas da Sociologia da Religião francesa que veem a questão ora como resistência em bloco do Catolicismo (o “paradigma da unidade”), ora como fragmentação e composição do Catolicismo com os valores modernos (a “lógica da pluralidade”). Propõe uma terceira via, que articula as duas lógicas mesmo que em tensão contínua.
De Martine Cohen, socióloga da religião e laicização, “Judeus e Muçulmanos na França: mudando respostas para uma diversidade cultural e religiosa”. A partir do caso das comunidades de judeus e muçulmanos na França, em contexto de globalização, a autora examina as consequências das reinvindações religioso-identitárias face ao Estado laico francês. Recorrendo a uma perspectiva histórica que remonta o final da Segunda Guerra Mundial, ela analisa o atual debate “laicidade x multiculturalismo”, indagando como o multiculturalismo/globalização pode desestabilizar estruturas jurídico-políticas do Estado laico na França.
De Olivier Bobineau, mestre de conferências na Faculté de Sciences Sociales et Economiques do Institut Catholique de Paris e da Sciences-Po Paris, “O que é ágape? Da exegese a uma síntese antropológica passando pela teologia”. Nesse texto, o autor problematiza de um ponto de vista ontológico - o conceito de ágape, o amor cristão - em quatro instâncias: uma exegese do conceito, a perspectiva histórica, a perspectiva teológica e, por fim, a perspectiva antropológica, dentro da “chave da dádiva”, conceito de Marcel Mauss.
Desejamos ao leitor de REVER uma boa leitura desses textos, que certamente dão conta, em termos de uma amostra significativa, do atual panorama de estudos de religião na França produzidos no GSRL.
Marcelo Ayres Camurça[*]
[*] Docente do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF-MG). Realizou seu estágio pós-doutoral no ano 2009-2010 no GSRL.