Desde 1970, com a renovação da Historiografia, os estudos históricos, em especial os voltados para a sociedade escravista brasileira, surpreendem pela sua vitalidade, consistência e criatividade. A compreensão de suas diversas faces, tráfico, escravidão e alforria, se refina a cada dia, desvelando os intricados meandros das relações sociais no cativeiro.
A remissão do cativeiro: a dádiva da alforria e o governo dos escravos nos Campos de Goitacases, c. 1750- c.1830, de Márcio de Sousa Soares, ocupa lugar de destaque no âmbito da História Social da escravidão no Brasil. Destaque, pela proposta de releitura e apresentação de um modelo interpretativo, com potencialidade para superar leituras consagradas da alforria no período colonial. Afirma o autor:
o presente estudo se propõe a tratar do tema da alforria de um ângulo distinto. Ao procurar romper com as dicotomias que opõem “expansão” versus “crise econômica” ou expressividade das alforrias nas áreas urbanas versus insignificância das mesmas nas zonas rurais,considero que como um fenômeno de longa duração - a escravidão produzia e reiterava procedimentos socialmente determinados que visavam amortecer os conflitos inerentes. (pp.25-26, grifo nosso).
Alguns pressupostos lastreiam sua amplíssima pesquisa, entre eles a superação de uma visão essencialista da condição escrava, que passa a ser vista como algo em contínua transformação; a íntima relação entre tráfico, escravidão e horizonte de alforria e a presença de valores sociopolíticos e morais-religiosos na vida social das sociedades do antigo regime. Sua área geográfica de pesquisa é a planície açucareira de Campos de Goitacases, Rio de Janeiro, no período que se estende de 1750 a 1830. Para Soares, as alforrias desempenham um papel estrutural na sociedade escravista brasileira ao suavizar as relações entre senhores e escravos.
O livro, versão concisa da tese de doutorado defendida na Universidade Federal Fluminense em 2006, está organizado em sete capítulos enucleados em quatro partes. Nosso propósito, nesta resenha, é, em um primeiro momento, colher as informações basilares apresentadas pelo autor e, em seguida, discutir um dos tópicos tratados e apontar as contribuições relevantes do livro para os estudos históricos da sociedade escravista brasileira.
No século XVIII, Campo de Goitacases já se tornara a principal área agroexportadora da capitania, graças aos seus inúmeros engenhos, volumosa produção de açúcar e ao grande contingente de escravos. Essa presença massiva de escravos, comprovada pelos passaportes emitidos pela Intendência de Política da Corte e pelos registros de batismo, revela a habilidade e a agressividade dos senhores no mercado das almas.
A grande maioria dos escravos, proveniente da África Central Atlântica, constituía uma concentração que, certamente, gerava tensões frente aos recursos escassos, como casamento, roça própria e alforria, e renderia dividendos políticos para os senhores. Os grandes senhores possuíam, na media, entre 20 e 49 escravos; digna de nota era a presença massiva de pequenos produtores, que mantinham um relacionamento mais próximo com seus escravos. Relacionamento marcado pelo exercício de domínio e pela tecitura de relações que abrissem o caminho para uma futura alforria.
Entre os habitantes da região, os forros e seus descendentes merecem destaque. Eles tiveram forte crescimento até o início do século XIX. A região exercia uma forte atração sobre os egressos de outros distritos, que, uma vez na região, por segurança, registravam sua carta de alforria. Alforriava-se de várias maneiras. Uma delas era a alforria na pia batismal, prática extremamente seletiva, um prêmio difícil de ser obtido Nesse caso, o batismo não só apagava o pecado original do recém-nascido, como também parte das penas temporais dos senhores.[1]
Para que a alforria na pia batismal fosse alcançada logo após o nascimento, tudo dependia da consciência culpada de um senhor por deixar um filho ou parente amargar as agruras do cativeiro, combinado com a habilidade das mães desses pequenos escravos. (p.56)
As escravas-mães não só se utilizavam de vários expedientes para conseguir a liberdade de seus filhos, como empregavam esses expedientes na hora certa. O sentimento de piedade cristã e laços consanguíneos era a motivação mais frequente que levava os senhores a alforriar na pia. A cor e o sexo das crianças não influenciavam.
Nas sociedades tradicionais africanas o escravo era o outro, aquele que não era parente, mas estranho. Extraneidade sociológica, não étnica. Estudiosos apontam para a incompatibilidade entre parentesco e escravidão. Para Soares,
é forçoso reconhecer que boa parte - se não a maior – das alforrias de crianças ilegítimas era, sem dúvida alguma, uma tentativa quase sempre silenciosa de corrigir aquela contradição fundamental que, além do mais, carregava consigo a agravante do pecado da carne, objeto de reprovação divina e responsável por sofrimentos póstumos atrozes, em caso de falta de arrependimento e de reparação. (p.84)
Da proximidade com os senhores eram as mulheres que mais tiravam proveito, ao conquistar a confiança dos mesmos. Confiança que explica, também, o alto índice de alforria concedida aos crioulos e a importância da constituição da família no caminho da liberdade. Atravessar a porta estreita do cativeiro exigia tempo.
Tempo necessário à acumulação de uma série de recursos por parte dos cativos, sobretudo imateriais: antiguidade no seio das escravarias; estabelecimento de relações familiares; mobilidade ocupacional (própria ou de parentes) que facultasse uma maior proximidade com os senhores e o acesso aos privilégios decorrentes dessa aproximação e, é claro, correspondência às expectativas comportamentais nutridas pelos seus donos. (pp.105-106).
Alforriava-se de várias maneiras: alforrias gratuitas, gratuitas condicionais e alforrias pagas. Em Campo de Goitacases, as manumissões eram frequentes. Entre as principais motivações senhoriais estão os bons serviços, fidelidade, bom comportamento e aspectos morais e religiosos. Vários vetores indicam ser alta a intenção de libertar, como a baixa incidência de alforrias pagas, preço baixo coberto pela alforria e bens valiosos deixados aos escravos pelos senhores. As alforrias eram vantajosas para cativos e senhores. Para estes, a reprodução da ordem escravista e a estabilidade; para aqueles, o coroamento de um longo investimento.
Tendo introduzido o leitor nas diversas modalidades de alforria, o autor apresenta sua tese com clareza: “penso que acima de tudo as alforrias eram uma dádiva. Inclusive as pagas” (p.152).
Portanto, quanto às alforrias pagas, as oscilações do mercado não as explicam; há outros interesses em jogo como interesses políticos, religiosos e morais. Recorre a Marcel MAUSS (2008) e a Maurice GODELIER (2001), estudiosos da dádiva, para respaldar sua posição. A dádiva, entendida como um meio de selar novos pactos e renovar antigos, possibilita repensar a natureza da alforria. Ela não só amplia o poder do doador, prolongando a obrigação de retribuir, como amplia o dom: o filho de uma forra nasce livre.
Soares pontua que, entre vários povos africanos, a antítese da escravidão não era a liberdade, mas a superação do estado de liminariedade, característico do cativo. “Convém lembrar que a liberdade era vivida como pertença a um determinado grupo ou contexto de relações que definiam o lugar social e os direitos de cada um.” (p.160).
Nas sociedades escravistas a autonomia não pressupunha a igualdade de seus membros; liberdade e subalternidade não se excluíam. Numa sociedade fundada sobre relações pessoais, a necessidade de se ter bom conceito, de estabelecer laços que assegurassem a pertença, eram fundamentais. Assim como a ideia de gratidão. Com frequência, libertos se envolviam em demandas intrasenhoriais, como testemunhas. O contradom - como missas, legados, adoção do sobrenome do antigo senhor, adotado livremente por libertos do antigo senhor - renovava obrigações recíprocas.
A expressão presente na fórmula usada para alforriar – “como se livre nascesse do ventre de sua mãe” - aponta para uma concessão de uma nova vida, para um renascimento.
O que dizer das alforrias pagas? Podem ser consideradas, também, um dom? Para o autor, sim, pois ele não as enquadra nos termos das categorias jurídico-econômicas da transferência, de simples troca econômica ou transação comercial.
Em qualquer ato de alforria, gratuita ou paga, o senhor demitia de si mesmo a posse e domínio que por direito exercia sobre o escravo. Entretanto, este ato era entendido como um favor e a liberdade dele resultante como uma doação (p.178).
Para o autor, as práticas de reescravização legal ou ilegal de forros eram raras e difíceis de ser concretizadas. “Aos senhores de escravos interessava muito mais a possibilidade da revogação da alforria do que a sua realização propriamente dita” (SOARES,2009:181). Virtualidade, esta, extremamente eficaz. Mesmo prevista pelas Ordenações Filipinas [Título 63 do Livro IV], a reescravização enfrentava dificuldades legais, devendo ser arbitrada em juízo. Não são muitos os casos de reescravização registrados pela historiogafia. As alforrias, a possibilidade de reescravização e a própria experiência social dos libertos reduziam em muito as tensões, facilitando a reprodução da ordem escravista.
A densa população de origem ou ascendência africana, em Campos dos Goitacases, superou o estigma de “desclassificada de açúcar” e inseriu-se na estrutura socioeconômica local. Inclusão hierarquizada e desejada pelos senhores, é verdade.
O costume entre os senhores de deixar legados a ex-escravos confirma esta vontade senhorial. Os desdobramentos desses gestos revestem-se de importância para senhores e escravos. “Se os primeiros reforçavam a estabilidade política da escravidão, os segundos tinham suas chances de ascensão social ampliadas.” (p.208). Disposições testamentárias confirmam que a perfilhação habilitava os filhos naturais à herança paterna. As perfilhações serviam de base material para que libertos ordenassem suas vidas, pois, facilitavam casamentos, ascensão social – enfim, mobilidade social. O exame de testamentos e inventários post-mortem da população livre de ascendência escrava oferece um retrato pormenorizado dos investimentos e bens por ela acumulados.
A documentação aponta, portanto, para uma tendência contundente: o acesso à mão-de-obra escrava não só era uma possibilidade aberta, aos libertos e às gerações posteriores, como também os deixava bastante comprometidos com a escravidão. (p.234)
A expressiva presença de mulheres adultas nessas pequenas escravarias diminuía significativamente a tensão. Forros e pardos investiam em escravos, casas, trato das benfeitorias e também em artefatos de ouro e prata.
A combinação entre a posse de uma casa - o que para os forros, em particular, significava o abandono de uma senzala ou da moradia de seu senhor- escravos e joias, certamente, traduziam uma trajetória de ascensão social, além de contribuir para afirmar socialmente sua condição de pessoas livres. (p.241)
A legislação metropolitana, até o século XVII eivada de preconceitos, contribuiu para discriminar forros, escravos e homens livres pobres. Assim, chamar alguém de negro era uma grande ofensa, pois relembrava seu passado escravista. Nessa sociedade marcada pela distinção e hierarquização, qualquer mudança social realizada por aqueles que ocupavam posições inferiores era notada e revestia-se de profundo significado. Constatação que abre para a questão: a escalada social dos escravos traz consigo algum prestígio social?
Para os não-brancos certamente, pois,
numa sociedade em que as chances de mudança de estatuto social de um estrato mais baixo para um muito mais alto eram reduzidíssimas, quanto maior fosse a distância entre eles, contava mais aos indivíduos a possibilidade de se distanciarem de seus pares e, por extensão daqueles situados nos estratos inferiores. (p.247)
A noção de prestígio social não deve ser tomada como absoluta, uma vez que a busca de status, na Metrópole e na Colônia, visava mais aos seus “iguais” do que às pessoas das camadas superiores. Dinâmica esta que multiplicava os mecanismos de estratificação social. O mesmo se diga da cor. Longe se ser estática, fixa, era fluída construída socialmente. Fato que torna relevante o seu silêncio na documentação de casamentos, batismos e óbitos, um autêntico recurso simbólico para dissolver as nódoas da escravidão e afirmar a liberdade.
Para Soares, até as alforrias pagas devem ser compreendidas como uma doação senhorial. Recorre a Orlando Patterson (1982:17-35;210-211;294) para uma percepção mais matizada da sua natureza. Diz ele: “não podem ser reduzidas a uma simples transação comercial ou consideradas como um ato primordialmente presidido pelas oscilações do mercado”. (p.174). Explicitação correta - os estudos históricos têm mostrado que até o ato de venda de ]um escravo não se reduz a uma simples transação econômica. Aprofundando a reflexão, sempre na esteira de Patterson, pontua que o senhor não transmitia seu dominium sobre os escravos para o próprio.
O que o dono efetivamente fazia era libertá-lo desse domínio, instaurando imediatamente uma nova modalidade de subordinação, derivada da obrigação de retribuir inerente à troca de dons. (p.175, grifo nosso).
Soares, ao longo do texto, convidou e ofereceu dados para seu leitor matizar o entendimento da alforria, isto é, captar seu caráter estrutural inserindo-a na dinâmica do dom. No afã de ampliar sua tese o mais possível embarca numa perspectiva mecânica, instaurando imediatamente uma nova modalidade de subordinação. Subordinação supõe aceitação mínima, livremente ou por coerção. Quem garante que o ex-escravo quer continuar subordinado? O que garante que continuará mantendo relações verticalistas?
O próprio autor reconhece que escravos e senhores faziam leituras diferentes de códigos paternalistas. Se há tensões nas alforrias gratuitas, certamente essas seriam maiores nas pagas. Com frequência, os senhores alegavam infidelidade e ingratidão após a concessão das alforrias, fato que dava motivo para rescisão, revogação. Para Soares, a possibilidade de rescisão é mais uma confirmação de ser a alforria um dom. Para o senhor, sem dúvida, nem sempre para os escravos.
Como explicar as inúmeras ações cíveis, espaço privilegiado para a análise das tensões no mundo escravista? Faz-se necessário refinar a afirmação, a alforria paga pode instaurar uma nova modalidade de subordinação. Caso contrário, resgata-se o velho axioma que afirmava ser a liberdade uma questão que passava apenas pelas mãos do senhor. Entre as implicações desse axioma, pode-se enumerar a negação do papel dos escravos no processo de libertação. Perspectiva que o próprio autor não acata, pois reconhece que não se pode esquecer ou ignorar que muitos cativos influenciaram direta ou indiretamente na decisão tomada pelos senhores[2]. Nega-se, ainda, a dificuldade dos senhores de controlar as vontades cativas. Se, em fatos menores, a autonomia das relações sociais dos escravos se faz presente, muito mais em um fato de tal monta como a libertação.
Manuela Cardoso da Cunha, ao discutir a questão da alforria, mostra-se mais cuidadosa. Diz: “alforria revela é uma expectativa de transformar o escravo num cliente, agregado”. (CUNHA 1985:51). Expectativa distancia-se de uma instauração imediata de uma nova subordinação.
Pesquisas exaustivas e uma densa estrutura argumentativa dão ao livro cacife para desafiar interpretações velhas e novas da natureza, das características e das funções das alforrias na sociedade escravista. Para o autor, seu papel é estrutural. “A alforria significava a interrupção do cativeiro, por outro lado ela era um elemento chave, intrínseco ao processo que instituía a própria escravidão” (p.276). Sem sombra de dúvidas, A remissão do cativeiro - obra criativa e instigante - disponibiliza dados para uma visão da dinâmica interna das manumissões e convida ao diálogo e ao debate.
No prefácio, Sheila Faria sintetiza com precisão as vertentes da pesquisa:
a tônica do trabalho pode ser resumida em três questões: as diversas formas de acesso à alforria nas relações entre senhores e escravos, as inserções de libertos e seus descendentes no mundo livre e a questão sobre se a alforria teria sido um entrave ou um estimulo à escravidão como sistema. (FARIA, apud SOARES 2008:12)
No geral, concordo com as posições de Soares, posições por nós retomadas ao longo desta Nota Bibliográfica. No entanto, penso que o “dom” não é suficiente para o entendimento de todas as formas de alforria, ainda que certamente traga uma contribuição significativa. Outra característica marcante do texto é o convite constante para que as lacunas existentes nos estudos da sociedade escravista sejam preenchidas. O autor aponta, entre outras: as práticas de reescravidão (p.179), a escravidão miúda (p.238), a posse de bens suntuários por forros e pardos livres (p.240) e a análise das hierarquias, mobilidade e prestígio social nos patamares inferiores da sociedade na Colônia e no Império (p.245).
Uma rotina cumprida renitentemente por mim nos últimos anos tem sido o acompanhamento da bibliografia sobre a sociedade escravista publicada no Brasil. A remissão do cativeiro é um dos livros que mais despertaram meu interesse pela perspectiva singular, pela consistência da pesquisa, pelo texto analítico e revelador de um substrato sutil de humor.
As notas ao pé da página facilitam muito a leitura. A editora Apicuri está de parabéns pela opção feita.
CUNHA, Manoela Carneiro de. 1985. Negros Estrangeiros: os escravos libertos e sua volta à África. São Paulo: Brasiliense.
GODOLIER, Maurice. 2001. O enigma do dom. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
MAUSS, Marcel. 2008. Ensaio sobre a dádiva. Lisboa: Edições 70.
PATTERSON, Orlando. 1982. Slavery and Social Death: a comparative study. Cambrigde: Harvard University Press.
[1] No sacramento da Penitência redime-se as penas eternas (condenação do inferno), mas as penas temporais permanecem. Daí a necessidade de o pecador purificar-se ao longo da vida ou no pós-morte.
[2] Soares, páginas antes na explicação de sua tese, afirmava: “E para dissipar qualquer espécie de mal-entendido, esclareço de imediato que dádiva - da forma como é concebida neste trabalho - não é sinônimo de benevolência senhorial. Tampouco implica sugerir uma atitude passiva dos escravos diante do horizonte da alforria” (p.152).