O artigo aborda a questão da confrontação do Catolicismo com a modernidade na França. A Sociologia da Religião tratou o tema em duas direções distintas: o “paradigma da unidade”, pelo qual a Igreja Católica se contrapõe como um todo à sociedade e aos valores modernos e o “paradigma da pluralidade”, em que o Catolicismo se fragmenta e setores seus se compõem com a modernidade. Este artigo, entretanto, opta por uma solução de articulação dialética das duas lógicas, embora em tensão contínua. Na base, a “lógica centrífuga” que leva à pluralização e, na cúpula, a “lógica centrípeta” que leva à unificação; sua combinação permite à Igreja Católica uma coextensividade com a sociedade francesa.
Palavras chave: Catolicismo, modernidade, unidade, pluralidade
This article addresses the confrontation between Catholicism and modernity in France. Sociology of Religion has addressed the subject in two different directions: the "paradigm of unity", according to which the Catholic Church as a whole is opposed to modern society and its values and the "paradigm of pluralism", that states that Catholicism has been fragmented and some of its sectors ended up relating to modernity. This article, however, opts for a joint solution dialectically articulating both logics, albeit the remaining of the continuous tension. At the bottom of the pyramid, there is a “centrifugal logic” that leads to pluralism and, at the top of it, a “centripetal logic” that leads to unification; their combination allows the Catholic Church to be coextensive to French society.
Keywords: Catholicism, modernity, unity, pluralism
A Sociologia contemporânea não aborda a História recente do Catolicismo francês de uma maneira uniforme. Mas, sem dúvida, ela se baseia em um mesmo questionamento: como a Igreja Católica Romana fez frente, ao longo das últimas décadas, aos avanços de uma modernidade, cuja particularidade é organizar a vida em comum , à distância de todo ditame magisterial, unicamente baseada na razão agnóstica? No entanto, ela não traz uma única resposta. Correndo o risco de simplificar uma realidade provavelmente mais complexa, podemos afirmar que a produção científica se organizou em um espaço de polemicidade (Quentin Skinner) estruturado em cima de dois grandes modelos de inteligibilidade (PORTIER 2004).
O primeiro pode ser chamado de paradigma da unidade: o século XX nos confronta, explicam os seus defensores, com um mundo católico reunido em torno de uma concepção partilhada da existência. Guy Michelat vai claramente nesse sentido, quando evoca, nas suas análises de Sociologia Eleitoral, a inclinação contínua dos católicos praticantes em direção à direita. Emile Poulat o faz de maneira mais significativa ainda nas suas pesquisas de Sociologia Histórica (MICHELAT & SIMON 1977). De Leão XIII (1878-1903) até Bento XVI, observa ele, o Catolicismo romano organizou-se, sem solução de continuidade, em uma estrutura uniformemente singular e englobante. Singular? Em oposição às grandes narrativas políticas - liberal e socialista - procedentes do Iluminismo, ele foi empregado para desenhar um espaço alternativo de proposições, visando recolocar o mundo sob a dependência das significações cristãs, elas mesmas ligadas a uma definição orgânica da ordem social. Um projeto mobilizador, ao qual a nova evangelização de João Paulo II deu expressão renovada, veio completar essa intenção restitucionista: o magistério convocou os christifiéis a infundir por toda parte e na unidade, a verdade que a hierarquia, através da doutrina social, lhes transmitia. Englobante? Sem dúvida, o corpo católico apresenta, à primeira vista, durante todo o último século, um aspecto fragmentado. Ele abriga desde os católicos socialistas até democratas cristãos, dos progressistas até os tradicionalistas, em uma pluralidade de famílias de pensamento. No entanto, Emile Poulat observa que essa diferenciação, excetuando-se o Catolicismo Burguês (POULAT & FOUILLOUX 2001), opera a partir “da mesma teologia, aquela nascida do projeto integralista/intransigente, que não se pode nem apagar, nem esquecer” (POULAT 1994:64). Bem, se pode querer opor o Catolicismo de direita ao Catolicismo de esquerda; eles são produtos, um e outro, de uma matriz idêntica, que os coloca numa proximidade teórico-prática baseada na mesma inquietude frente aos desregramentos da modernidade, bem mais sólida do que se costuma dizer habitualmente.
O segundo modelo apoia-se sobre o paradigma da pluralidade. Aqui, insistimos mais sobre a ideia segundo a qual o Catolicismo nunca conseguiu durante o período recente, apesar de sua intenção de converter os fiéis em um exército em ordem de batalha, unificar aqueles que se reivindicavam em torno de um essencial comum. René Rémond muitas vezes assinalou: “as fraturas entre os católicos frequentemente são incomparavelmente mais profundas que aquelas que os opõem aos não-católicos” (RÉMOND 1958:530). Essa é também, em sua Sociologia do tempo presente, a análise de Jean-Marie Donégani: o Catolicismo, ressalta ele, pode ser analisado como um sistema ao mesmo tempo evolutivo e compósito. Evolutivo? Sem dúvida, o Catolicismo tomou, até os anos 1960, a forma intransigente descrita por Emile Poulat. O Vaticano II marca, contudo, uma ruptura decisiva. Longe de contentar-se, como o afirma o autor de Igreja contra burguesia, de cortar a lenha morta, os padres conciliares conceptualizaram, através de textos como Lumen gentium e Gaudium et spes, uma relação inédita com o mundo, acabando por reconhecer uma possibilidade de autodeterminação, e, por conseguinte, de pluralização, que o magistério ignorava anteriormente. Compósito? Jamais, no regime da modernidade, em todo o caso, o Catolicismo esteve unificado. No século XIX, os católicos liberais, que se adaptavam à modernidade, tinham pouco em comum com os católicos intransigentes. Por causa das transformações morfológicas da sociedade, mas também das evoluções doutrinais pontificiais, o fim do século XX nos confronta, observa o sociólogo, com um campo ainda mais fragmentado, no qual se distinguem católicos integralistas cujo propósito é por a fé no centro de suas existências, e católicos marginalistas, para os quais o apego à religião é, finalmente, muito secundário, cada uma dessas duas categorias subdividindo-se, em função de sua relação com a civilização da subjetividade, em transigentes e intransigentes.
De um lado, a reunião , do outro a fragmentação. Esta minha contribuição escolhe, porém , a via da superação. Ela gostaria de mostrar que o Catolicismo francês contemporâneo foi marcado, ao longo dos trinta últimos anos, por duas lógicas simultâneas, em tensão contínua. Uma está ligada à base da Igreja, outra a sua cúpula. Embaixo difundiu-se, com efeito, uma lógica da pluralização: o povo cristão, mesmo nas camadas mais integradas ao aparelho, dissociou-se voluntariamente do logos da instituição para deixar-se levar a doravante, na disseminação de suas posições, por sua única capacidade hermenêutica (Yves Congar). Em cima, pelo contrário, foi perpetuado, e, sem dúvida, consolidado em fim de período, uma lógica de unificação, exprimindo-se, apesar dos empréstimos à semântica da modernidade, nos códigos persistentes da episteme integrista. Explicava-se habitualmente nos anos 1970 que o próprio de todas as grandes instituições era de desenvolver-se na oposição entre o instituinte e o instituído (LOURAU 1970; 1972.). O espetáculo contemporâneo da cena católica confirma essa intuição: a Igreja de hoje só pode ser entendida a partir da dialética do centrífugo e do centrípeto.
Não cairemos na facilidade de opor a primeira metade do século XX, toda homogênea, e essas últimas décadas, inteiramente deixadas à desregulação do crer. Sabe-se, desde André Siegfried, que a França antes da guerra conhecia, da Charentes aos Ardennes, os seus territórios do vazio, onde o fato de se dizer católico não provocava nenhuma sujeição, nem no terreno religioso, nem no terreno político, à ortodoxia hierárquica. Essas zonas de depressão, no entanto, estavam lado a lado dos lugares cheios, ajustados, seguindo o modelo da civilização paroquial. Como na Bretanha galesa ou leonarda, onde a norma católica se impunha, longe da arte das separações própria à modernidade, como um sistema não-negociável de certezas e atitudes organizando, do berço até a tumba, a totalidade das existências individuais e coletivas. É esse modelo, da unidade, que não existe mais. Mesmo nas suas zonas de força, o Catolicismo francês entrou na época do heteróclito (De CERTEAU 1987:273). Não é o desaparecimento da fé que chama atenção. Como dizia Emile Poulat em um texto recente: “Muitas outras organizações sonhariam ter tanto apoio e recursos quanto a Igreja católica” (POULAT 2008:12). É a sua disseminação: o grande corpo da Igreja perdeu sua capacidade de submeter à sua regra mesmo aqueles que se declaram pertencer-lhe ainda. A disseminação atinge, por um lado, suas coroas exteriores, compostas por aqueles - os credentes, diz Yvon TRANVOUEZ (1987) - cuja implicação intereclesial resume-se a uma declaração de afiliação, acompanhada de uma prática mais ou menos regular. Afeta, por outro lado, suas “coroas interiores”, onde se encontram todos aqueles - os perfecti – que, pelo compromisso nas atividades da Igreja, são identificados como os mais integrados ao aparelho.
Paremos primeiro na categoria dos católicos declarados. Seria falso considerar que constituem, na França, uma comunidade minoritária. Mais de 60% dos franceses reconhecem ainda pertencer à Igreja católica[1], contra, é verdade, mais de 80% no fim dos anos 1950. A hierarquia episcopal cultiva, no entanto, um sentimento contrário. Frequentemente considera nos seus textos que o Catolicismo se refere somente a uma parte restrita da população. Como explicar essa análise? Ela encontra seu princípio provavelmente na relação doravante distanciada, que os franceses mantêm com a linhagem crente a qual eles se dizem pertencer. Os não-praticantes, sem dúvida, os praticantes igualmente, mesmo regulares, encontram-se presos em um vasto processo de autonomização, que os leva a por os dispositivos de fé sob a dependência de sua única consciência decisória. Esse processo impôs-se em dois momentos lógicos.
Ele procede certamente de uma dissociação dos fiéis com a normatividade da instituição. Chegou-se a falar de deseclesialização (ASHFORD & TIMMS 1992). As práticas, que acabamos de destacar, diminuíram consideravelmente. Dos católicos declarados, eram 25% os que, ainda nos anos 1950, assistiam todos os domingos à missa. Hoje, eles não são mais que 4,5%[2]. Igualmente a diminuição atinge o batismo das crianças, a assistência ao catecismo, as primeiras comunhões, os casamentos religiosos. Alguém objetará que, talvez, ao lado desse Catolicismo de experiência, ligado às práticas rituais, permanece na França, visível através de outros investimentos como o pagamento do dízimo à Igreja, a frequência a lugares espirituais, a associação às obras humanitárias e caritativas, a participação em grupos de leitura e reflexão bíblica, todo um Catolicismo de ação (BERTRAND & MULLER 2002). Esse último não é nada desprezível. No entanto, não compensa o enfraquecimento do primeiro. O vínculo, é verdade, poderia ser mais forte no campo das crenças. Não é o caso. Para os católicos de hoje, que não frequentam a Igreja na maioria das vezes, ainda que o sino toque para eles (Gabriel Le Bras), a instituição eclesiástica é uma presença longínqua. Ela permanece associada a uma paisagem mental, às lembranças da infância, a uma memória do passado nacional. Ignora-se tudo, ou quase, de sua inteligência do mundo. Isso também diz respeito aos artigos da moral. Os católicos franceses são capazes de identificar uma diferença de tonalidade entre a moral social e a moral sexual da Igreja. Nada mais. Pode-se medir muito claramente esse déficit cognitivo em uma pesquisa, realizada em 2008-2009, junto aos requerentes de assistência médica para a procriação: mais de 90% dos católicos declarados, homens e mulheres, reconheciam não ter, nesse assunto, normatizado em instruções importantes como Donum vitae em 1987 ou Dignitas personae em 2008, nenhum conhecimento dos preceitos do magistério[3]. Os dogmas da Igreja não são objeto de maior receptividade. Nem a encarnação, nem a transubstanciação fazem sentido hoje em dia, para a maioria dos nossos contemporâneos, aliás, a ideia da estrutura trinitária do divino também não. Visível nos mais de quarenta anos, essa exculturação é mais acentuada ainda nas gerações mais jovens, pouco ou mal catequizadas (DONEGANI 2007). Acrescentemos então, que, mesmo quando eles conhecem a palavra do magistério, os católicos declarados relativizam seu alcance performativo. Em Objetivismo, relativismo e verdade Richard RORTY (1994) fazia referência à ideia de verdade a duas concepções possíveis dela mesma. A concepção coerentista, explicava ele, se mantém à distância do relativo: ela concede aos enunciados - no caso, os enunciados de fé - um valor objetivo. A concepção adequacional desconfia do absoluto quanto a ela: toma os discursos no seu valor pragmático, avaliando-os somente a partir da satisfação que proporcionam para aqueles que os recebem. Pode-se dizer que os católicos, globalmente, aderem doravante à segunda opção não fundacionista : a Igreja é, para eles, a produtora de uma opinião tão questionável quanto as outras opiniões. Decerto ela enuncia, às vezes, proposições úteis; ela não dispõe em si, no entanto, de nenhum privilégio de veracidade. Essas cifras frequentemente citadas permitem dar conta dessa banalização do discurso romano: em 1952, 45% dos católicos entre 20-35 anos aderiam à ideia segundo a qual a veracidade existe unicamente em uma religião só; em 1999, eles não são mais, dentro de uma faixa de idade similar (18-25 anos), que 4% nessa situação.
A desinstitucionalização do crer tem como correlato sua individualização. Os católicos retrocedem ao seu foro íntimo: não se ligando mais à palavra da Igreja, eles constroem sua relação de sentido a partir de sua própria subjetividade. Raymond Lemieux descrevia assim a situação: “A crença se dá não como a apropriação de um sistema de solidariedade, mas como a apropriação de uma performance pessoal na economia do sentido” (LEMIEUX 1992). Resultado: o religioso se reconfigura. Ei-lo deixado ao jogo da inventividade e da mundanidade. Inventividade? Os católicos ordenavam-se antes pelas codificações da Igreja. Eles criam, agora, seguindo a sua conveniência, os seus sistemas de sentidos e de ritos. Podemos vê-los, isso vale para uma parte deles, recusar a ideia de existência de Deus (só 53% dos católicos declarados pensam que Deus existe), e aquela ideia, central na ortodoxia católica, da ressurreição dos mortos (10% dos fiéis aderem a ela); ou, às vezes, combinar, de maneira perfeitamente antinômica, a ideia de reencarnação e a de ressurreição[4]. Essa mixagem de códigos (Liliane Voyé) atinge os rituais também. Como “usuários do serviço do culto”, os fiéis não hesitam em pedir aos padres, para as cerimônias que os concernem (os casamentos ou as exéquias, por exemplo), algumas adaptações litúrgicas – inserindo no ritual tal canção popular, tal poema, tal modo de participação do grupo familiar ou de amigos – fora dos moldes propostos pela Igreja. Mundanidade? Essas adaptações doutrinais e rituais inscrevem-se em um âmbito axiológico renovado. Os teóricos da pós-modernidade insistiram muitas vezes sobre o fato de que uma das características fundamentais da nossa época foi ter posto em primeiro plano o primado do crescimento individual (LASH 1990). Esse tropismo trabalha de parte a parte os comportamentos dos católicos declarados. A verdade que eles criam para si responde a uma intenção antes de tudo imanente: Ela só tem um valor de uso (DONEGANI 2007:64). Isso se vê, por exemplo, no que se relaciona com a crença em Deus. Quando ela persiste, muitas vezes não concerne ao Deus pessoal - criador, juiz e salvador - da ortodoxia católica, mas uma força vital, própria para servir de suporte a todas as intenções de realização pessoal. Quanto à vida depois da morte, crença em progressão segundo as pesquisas de opinião, a ela é creditada uma qualidade imediatamente positiva: os católicos, cada vez mais, se recusam a crer que ela possa acontecer no inferno ou no purgatório descritos pelo catecismo. Eles a identificam a um lugar de quietude eternal, dedicado à busca do agradável, que não viria perturbar nenhuma das preocupações da existência ordinária. Essa metaforização do crer não afeta do mesmo jeito todas as categorias de católicos. Os praticantes regulares são muito mais integrados ao aparelho simbólico do Catolicismo que os não-praticantes ou os praticantes irregulares: eles conhecem, e aceitam, bem mais as normas e as crenças. Seria falso, no entanto, reduzi-los a ser unicamente os receptáculos passivos do pensamento magisterial. Pode acontecer, para eles também, de negociar subjetivamente seus termos, encontrando-se, como o anotou há pouco, o padre Congar, “dentro da Igreja sobre um ponto, e fora da Igreja sobre outro” (CONGAR 1995:240).
Essa autonomização do crer não coloca a adesão em uma única concepção da existência. As categorias de Jean-Marie Donégani, já entrevistas, são aqui muito esclarecedoras. O individualismo religioso pode resultar, como se notou mais em cima, ora em marginalismo, ora em integrismo. No primeiro caso, a fé conta pouco na configuração existencial: ela não é estruturante dos comportamentos. No segundo, ela está, ao contrário, no centro da vida: é a partir da figura divina que o sujeito, à distância mais frequente dos ditames magisteriais, constrói sua relação com o mundo. Essas duas famílias têm suas subdivisões internas. O intransigentismo, que se encontra tanto nos marginalistas como nos integralistas, manifesta-se por uma percepção habitualmente pessimista do mundo contemporâneo, articulada a uma demanda de regras fortes. O transigentismo encalha, por sua vez, em um modo mais otimista de apreciação do mundo contemporâneo, ligado habitualmente a um voto mais à esquerda.
O mundo dos católicos militantes também merece uma investigação. Entende-se por militantes o pequeno número daqueles que se encontram comprometidos com o movimento católico. Resultado da estratégia ofensiva posta em prática por Leão XIII ao fim do século XIX, ele inclui todo um conjunto de organizações - sociais, caritativas, humanitárias, apostólicas - dedicadas a difundir a mensagem de Cristo na sociedade secular. Até o Concílio Vaticano II, a hierarquia consegue, globalmente, manter unido este conjunto díspar. Onde estamos hoje? Se as tensões constatadas no momento da crise católica (PELLETIER 2002) dos anos 1965-1975 se acalmaram, não voltamos de modo algum ao statu quo ante. O espaço católico militante aparece profundamente dividido. De maneira ideal-típica, podemos falar em duas redes, tendo uma e outra os seus movimentos, os seus teólogos, os seus órgãos de reflexão, os seus lugares de encontro, e localmente até mesmo as suas paróquias, que se enfrentam, baseadas em “inteligências de mundo irreconciliáveis” (LAGROYE 2006:15).
A primeira rede reúne os católicos de abertura (.PORTIER Philippe 2002). Aqueles constituíam, nos anos 1960-1970, a ala mais ativa do Catolicismo. Eles perseveram , mesmo que pareçam ser hoje em dia os mal-amados do vínculo de fé (Guy Coq). Encontram-se do lado da Ação Católica (Missão Operária, Movimento Rural da Juventude Cristã...), e das semanas sociais animadas por Jérôme Vignon ou da Confrontação. Várias revistas levam a sua reflexão, como Economia e humanismo, Luz e vida, Estudos, a revista dos jesuítas da França, ou o semanário Testemunho cristão; alguns teólogos também, como Paul Valadier, Maurice Belley, ou Joseph Moingt, ou mesmo alguns bispos como Monsenhor Rouet, bispo de Poitiers.
A esse conjunto seria preciso acrescentar, porém especificando seu posicionamento como claramente mais contestador, as redes do adro, constituídas em torno do caso Gaillot e ligadas ao movimento internacional We are the Church. Essa corrente abriga-se por trás de uma filosofia personalista da existência, inspirada em Mounier e em Kant. Podemos vê-la aparecer na concepção que ela desenvolve na sociedade e na Igreja. A sociedade? A filosofia tomista, que sustenta as produções do magistério romano, analisa-a de maneira perfeccionista: como uma realidade de essência moral, na qual cada um estaria condenado a situar-se no lugar que a natureza lhe destina. Tal não é a posição dos católicos de abertura: a escolástica fixa o Estado em um papel de retificação moral que o leva a limitar, em vários domínios (divórcio, contracepção, aborto), o campo de expansão da liberdade humana. É preciso, ao contrário, consideram eles, devolver o poder político à sua autonomia, demandando-lhe para articular as independências privadas. Com certeza, isso não resulta em uma política de poder. Nada, aqui, de utilitarismo liberal : o Estado deve trabalhar, porque diz respeito à dignidade do homem, em construir uma sociedade solidária. A Igreja? Esses católicos claramente, durante esses últimos anos, redescobriram o lugar do espiritual, e atenuaram as suas críticas com respeito à hierarquia. Não os vemos mais, como foi o caso nos anos 1970, denunciar o modelo sacerdotal, nem defender uma laicidade radical (aliás, muitos deles militaram, no âmbito de um abaixo assinado lançado pelo Testemunho Cristão, a favor de uma referência ao Cristianismo no texto da Constituição europeia em 2004). No entanto, eles se posicionam, o vimos recentemente com o manifesto iniciado pelo semanário A Vida, a propósito da suspensão da excomunhão dos bispos integristas contra o funcionamento da Igreja, que eles julgam ainda tridentina.
A hierarquia é necessária, sem dúvida. Ela não saberia querer impor sozinha as suas regras ad intra, não mais, aliás, que as ad extra. Um Vaticano III é às vezes desejado para dar forma, enfim, às intuições democráticas do Vaticano II (BOBINEAU & MIGNARD 2009). Essa tendência, que se esforça para renovar-se, prolonga suas adesões religiosas fora da Igreja no âmbito da esquerda política (do Partido Socialista, mas cada vez menos) ou nos clubes que gravitam em torno dela (como Democracia e Espiritualidade, de Jean-Baptiste de Foucauld), às vezes, ainda no movimento sindical ou em diversas mobilizações a favor dos sem (BAUDOUIN 2002).
A segunda rede reagrupa os católicos de identidade (FRÖLICH 2002). Essa tendência desenvolveu-se no meio da militância católica dos anos 1970, em reação a uma Ação Católica julgada politizada demais. Dominante desde os anos 1980 graças, por um lado, ao apoio da hierarquia (ver infra), ela tem dois subgrupos, que distinguem sua relação diferenciada para com a emoção religiosa. De um lado, os “carismáticos”, em torno dos grupos: Emmanuel, Caminho Novo ou Beatitudes. De outro, os restitucionistas, à distância, por sua vez, das inclinações pentecostais dos precedentes, ao redor do Opus Dei, da Comunidade São-Martinho, da Comunidade dos Irmãos de São João, dos Legionários do Cristo, das Casas de Caridade[5]. Essa corrente, como a precedente, tem os seus órgãos de informação como Família cristã, ou de reflexão (Khépas, Communio) e os seus teólogos de referência (Urs von Balthazar, Marie-Dominique Philippe, Joseph Ratzinger). Sua teologia, inteiramente dedutiva, articula dois elementos. Um elemento crítico, por um lado. Se essa tendência, ao contrário da corrente lefebvrista, não se entrega à nostalgia dos tempos pré-democráticos, não adere no entanto, como o fazem os católicos de abertura, à civilização da autonomia. Em sintonia com o discurso mantido por Roma, ela assegura que sua separação com a regra divina arrastou a sociedade para um declínio, do qual testemunham, dentre tantos outros signos, a opressão dos pobres, a destruição das famílias, o holocausto das criancinhas. Um elemento prescritivo, por outro lado.
Longe da teologia do “acompanhamento” própria à corrente precedente, os católicos de identidade restauram a Igreja no seu estatuto tradicional de guia da cidade, de defensor civitatis. Já que o mal vem da afirmação da subjetividade soberana, basta, para reencontrar a harmonia, repor o mundo sob a influência da lei divina, tal como o magistério romano, através da sua doutrina social nomeadamente, lhe confere o sentido. A nova evangelização encontra aqui a principal de suas tropas. Vê-se seus seguidores intervir no quadro das atividades religiosas, no qual eles reatam, através das procissões ou de vias-sacras organizadas no espaço urbano, os laços com a manifestação pública da fé, encarada como o elemento fundamental da missão. Também eles são vistos, mais do que se costuma dizê-lo, tomar parte em todo um conjunto de atividades sociais, nas formações políticas de direita (UMP, Democracia Cristã de Christine Boutin, Movimento pela a França de Philippe de Villiers), mas também, a partir da junção do público e do privado, em associações familiares, caritativas ou humanitárias, muitas vezes centradas na proteção da vida. Esse modelo do Catolicismo constitui, em nosso mundo da subjetividade, um enclave de objetivismo? Sua doutrina apoia-se, certamente, sobre o duplo princípio da prevalência do direito natural sobre a vontade popular, e da jurisdição da sociedade religiosa sobre a sociedade civil. No entanto, não conseguiríamos perceber inteiramente esse perfeccionismo moral. Nos seus comportamentos, os militantes da identidade cristã são influenciados, eles também, pela liberdade de escolher: eles aderem de maneira voluntária a uma comunidade, quase sempre situada fora da influência diocesana , fazendo prevalecer nessa caminhada seu desejo de auto-realização (PINA 2001).
Lembramo-nos da observação de Michel de Certeau: a Igreja era um corpo; tornou-se um corpus. O que acaba de ser dito confirma o julgamento do autor da Fábula Mística. Primado do sujeito, lógica da rede: as significações da fé são a partir de hoje, com efeito, deixadas inteiras ao trabalho de interpretação da consciência. Devemos dizer que, à semelhança da democracia tal como descrita por Claude Lefort, que o Catolicismo na França transmutou-se em um lugar vazio, aberto à indeterminação e a infinidade das experiências do mundo? Sem dúvida, isso seria ir rápido demais, e esquecer particularmente a estratégia da hierarquia para refundar na unidade teológica, a comunidade que ela anima.
O projeto de nova evangelização desenvolvido por João Paulo II, desde o início do seu pontificado, e retomado por Bento XVI (como o vimos na sua alocução de Verona), respondia a uma dupla preocupação. Visava ad extra a trazer de novo para a órbita da doutrina cristã uma sociedade liberal, entregue à sistemática do sujeito: era preciso, dizia o papa, abrir as portas da cultura à potência civilizadora do Cristo. Mas visava também ad intra a reunir o coletivo eclesiástico em torno da palavra hierárquica. Reencontrávamos aqui, expresso em um estilo menos guerreiro - Leão XIII falava de um exército em ordem de batalha -, a intenção unificadora dos papas da época pré-conciliar, que já se inquietavam com os riscos de divisão no interior da Igreja.
Como o episcopado francês se comportou frente a essa injunção de reunir as tropas tão dispersas, aquelas dos credentes, bem como aquelas dos perfecti ? Observou-se, às vezes, que “avisado das realidades e das dificuldades do terreno”, o episcopado francês havia reservado uma recepção muito moderada à iniciativa pontifical, satisfazendo-se em “gerir pouco a pouco a pluralidade que se lhe impunha” (HERVIEU-LEGER 2003:295). É outro ponto de vista que gostaríamos de propor aqui. Sem dúvida há, no plano processual, uma adaptação ao terreno. O episcopado não usa mais, como foi o caso no passado, um modo de governo autoritário para impor sua linha. No plano substancial, o projeto wojtyliano está longe de ter sido recusado, no entanto: praticando ao mesmo tempo a negociação, os bispos –cujo carisma se encontra, apesar de suas diferenças, em desempenhar um papel de certeza (LAGROYE 2006:155) nunca cessaram, durante o período recente, de querer refixar as existências na fidelidade aos enunciados magisteriais.
A Ciência Política insiste habitualmente sobre a transformação dos modelos de administração das sociedades contemporâneas. O regime de governo, ela explica, é substituído, a partir dos anos 1970-1980, pelo regime de governança. O primeiro descreve uma gestão univetorial, piramidal da sociedade. O segundo, uma organização mais flexível, apoiada no diálogo, na arbitragem e no compromisso. Foi dito às vezes que, nesse quadro, o âmbito decisório central não era mais que uma estrutura oca. Não é o caso: ele decide em última instância. Mas ele o faz segundo um modo de funcionamento inédito, associando ao processo de construção da regra uma multiplicidade de atores (GAUDIN 2002; SCHMITTER 2000). A Igreja católica parece, na França pelo menos, estar alinhada com esse modelo profano. Até o Vaticano II prevalece uma gestão vertical da instituição. Mesmo que se manifestem às vezes, sobretudo em fim de período, conflitos abertos entre o responsável e a base, o bispo determina sozinho, aplicando as regras romanas, as normas de organização da sua diocese. O pároco procede da mesma forma no nível da paróquia. O período pós-conciliar inaugura outro modo de proceder - que a restauração de João-Paulo II não questionou -, que podemos qualificar de dialógica ou comunicativa: “Passou-se na Igreja de um regime de imposição autoritária da norma para uma concepção mais flexível, mais negociada do poder, marcada pelo compromisso” (PALARD 2001:249-250).
Essa inclinação se encontra ad intra. Primeiro indício: o reforço das práticas de participação. Com o Vaticano II, a Igreja constitui-se em polissinodia. No nível da diocese, o bispo está cercado agora por uma litania de órgãos consultivos, dentre os quais se devem contar, além do Capítulo catedral, o Conselho episcopal, o Conselho sacerdotal, e o Conselho pastoral. A essa consulta institucionalizada acrescentam-se iniciativas mais conjunturais, decididas por iniciativa do ordinário do lugar. Em particular pensamos nas mobilizações sinodais (ou protossinodais)[6] tão numerosas desde os anos 1980, consagradas quase sempre à renovação dos instrumentos paroquiais da Igreja[7]. Essas experiências reflexivas, nas quais geralmente a palavra se faz mais intensa do que desejaria a autoridade episcopal, reúnem ora os militantes habituais da Igreja, ora uma população muito mais ampla, como em 2007 na diocese de Luçon, onde vimos o bispo chamar à reflexão todos aqueles batizados. No nível da paróquia - que o Código de Direito Canônico de 1983 estabeleceu sob um fundamento associativo e não mais sob um fundamento territorial -, o padre encontra-se cercado de conselhos - conselho pastoral, conselho dos assuntos econômicos, equipe pastoral -, com os quais ele deve constantemente firmar compromissos. Ele se vê, além disso, levado a trabalhar com outros, diáconos e leigos, aos quais foram delegadas, em um contexto de crise do recrutamento sacerdotal, novas tarefas. Nesse ambiente pleno de interações e, às vezes, de tensões, ele não pode mais aparecer como o único mediador (BOBINEAU 2009).
Segundo indício: o desenvolvimento das práticas de diferenciação. Durante o período pré-conciliar, a Igreja quase não tem intenção de satisfazer a demanda social: ela se julga ainda suficientemente forte o bastante para impor os seus requisitos aos seus fiéis. Não estamos mais nessa situação hoje em dia: cada vez mais, ela ajusta a sua oferta à demanda. Demanda dos clérigos, certamente. O bispo não gere mais do mesmo jeito o seu presbyterium. Ele conta com os seus padres na sua singularidade, esforçando-se em designá-los, segundo seus próprios desejos, para paróquias que correspondem à suas sensibilidades ou a seus estilos (LAGROYE 2006:82). O corpo diaconal depende de uma política similar. Os diáconos provenientes da Ação Católica são massivamente orientados em direção a postos de dominância social; aqueles que vêm do movimento carismático em direção a postos mais próximos do pólo espiritual[8].
Demanda dos leigos também. O pároco, sob o olhar compreensivo do bispo, não hesita mais em fazer arranjos e combinações com a liturgia ou com a doutrina. Ele usa frequentemente, frente aos pecados do mundo, a linguagem da compaixão (HERVIEU-LÉGER 2003), e atende com boa vontade, em matéria de ritos, aos pedidos, às vezes imprevistos, das populações secularizadas. O vemos também nos bairros onde é forte a população imigrante, a realizar todo um trabalho litúrgico de articulação com a cultura dos recém-chegados (BLEUZEN 2008). Mas a prática da negociação vale também ad extra. A relação da Igreja com a sociedade secular está daqui em diante caracterizada por dois princípios estreitamente interligados. De um lado, pelo princípio de aculturação. Até os anos 1960, a Igreja coloca-se em oposição frontal ao mundo moderno. Basta ler os textos de João-Paulo II e Bento XVI para dar-se conta de que ainda continuam fortes traços desse tropismo na cúpula da Igreja (PORTIER 2006). Os bispos franceses, os padres a fortiori, optaram, em geral, por uma atitude mais conciliadora: eles se querem solidários com o mundo no qual estão embarcados. Típico de esse ponto de vista é A Carta aos católicos da França, aprovada pela Conferência dos Bispos em 1996 e que é, desde então, “a grande referência para a reflexão da Igreja sobre o seu lugar na sociedade atual” (COQ 2009:134). “Nós aceitamos sem hesitar em situar-nos, como católicos, no contexto cultural e institucional de hoje, marcado nomeadamente pela emergência do individualismo e pelo princípio de laicidade” (DAGENS 1996:20).
De outro lado, pelo princípio de deliberação. A apresentação dos textos católicos evoluiu. O clero, durante muito tempo, tomou emprestado à retórica da injunção: enunciava a verdade, que a sociedade civil deveria passivamente receber. Esse axioma do ascendente eclesial permanece ainda hoje em certos textos da Santa Sé. Não é mais empregado naqueles da Igreja local. O episcopado se contenta, exprimindo-se na semântica da proposição, em querer trazer uma contribuição a um debate do qual ele se declara aceitar a indeterminação. A Carta aos católicos da França, de 1996, testemunha isso através mesmo do seu título de Propor a fé na sociedade atual, como, mais recentemente, em 2009, o texto de intervenção dos bispos a propósito da revisão das leis bioéticas, Bioética. Palavras para um diálogo (D’ORNELLAS 2009). Essa abertura do episcopado francês à horizontalidade das trocas de sentido explica, evidentemente, sua evolução quanto à questão dos comportamentos políticos dos católicos.Desde Para uma prática cristã da política (1972), a hierarquia desistiu em dirigir a partir de orientações eleitorais as escolhas dos fiéis, e legitimou o pluralismo deles. Apenas, durante esses últimos anos, o voto a favor da extrema-direita foi objeto de uma declaração de interdição.
Como explicar este enraizamento em um modo de funcionamento comunicacional? É necessário, evidentemente, levar em consideração a interpretação estrategista: o Vaticano II modificou, em parte, o habitus tridentino do Catolicismo romano. No entanto, não se pode desconhecer a interpretação estratégica. A política de negociação, à qual acabamos de fazer referência, responde, por um lado, a uma intenção de adaptação interna. Além do fato de os católicos serem melhor formados que no passado - não podendo mais, por conseguinte, a não ser sob risco de saídas em massa da Igreja, serem conduzidos como um rebanho de vacas (Monsenhor Rouet) -, eles estão também mais divididos: as práticas de consultas permitem construir uma relação e um consenso entre sujeitos, e muitas vezes entre comunidades de afinidades, que se ladeiam mesmo sem realmente frequentar-se. A política de negociação responde, por outro lado, a uma estratégia de adaptação externa. Jean-Pierre Faye explicava antes que não existe nenhuma instituição que possa privar-se de uma retórica da aceitação. É com esse desafio da plausibilidade que os bispos franceses se acham confrontados. O seu discurso se tornaria propriamente inaudível se eles permanecessem, em ruptura com o código democrata-liberal de condutas unanimemente compartilhado hoje em dia, na postura de dominação que ainda era a deles ainda ontem.
O Catolicismo seria um espaço autogerido, deixando a cada um a possibilidade de determinar a vontade suas concepções e suas práticas religiosas? Claro que não. Ao mesmo tempo em que atende à expressão da diversidade, a hierarquia se esforça por reduzi-la, recolocando-a na dependência das significações magisteriais. Michel de Certeau já o tinha anunciado em uma de suas reflexões sobre o acontecimento conciliar: “Não haverá liberdades e pluralismos a menos que outorgados e limitados por uma hierarquia” (DE CERTEAU 1977:152). A instituição religiosa reencontra aqui a instituição política: no seu seio, as lógicas de negociação não questionam o poder de decidir; elas renovam simplesmente as condições de atualização (BLONDIAUX 2008; LAGROYE 2006). No entanto, incorreríamos em erro ao abordar o período recente considerando-o como um bloco. Dois momentos sucederam-se. Como demonstrou Jacques Palard no seu estudo da diocese de Bordeaux (PALARD 1985), nos anos 1968-1975, aqueles da “crise católica”, a hierarquia hesita em afirmar sua autoridade: agarrada pela explosão das contestações, ela se contenta na maioria das vezes em acompanhar, por um discurso multifuncional e indutivo (Yves Lambert), as práticas latitudinárias dos seus fiéis. O fim dos anos 1970 veem as coisas evoluírem. Repreendidos por Roma, que já afirma, sob o último Paulo VI, e sob João-Paulo II sobretudo, a urgência de restaurar as disciplinas, os bispos adotam então outro tom, do qual não se separaram desde então.
Essa chamada à ordem, que marca a passagem de uma pluralidade confusa a um pluralismo ordenado (BECKFORD 2003), exprime-se nos dois níveis assinalados acima. Observa-se, de um lado, diminuir a pluralidade interna do Catolicismo. A diocese fornece um primeiro quadro de análise. O bispo pode consultar; in fine, é ele quem determina a linha. A Sociologia das experiências sinodais o mostrou bem. Tudo é feito para impedir os leigos de subverter, pela palavra, os equilíbrios da instituição eclesiástica. A montante, como mostram as cartas de convocação dos sínodos, circunscreve-se a deliberação: mais frequentemente, o ordinário, que inicia a experiência, lembra que a reflexão coletiva estará limitada às questões relativas ao funcionamento da Igreja e ao seu dispositivo missionário. A jusante, como mostram os textos pós-sinodais, se oblitera a dissidência. Pode acontecer que os debates empurrem a ordem preestabelecida, levem, e desemboquem notadamente sobre os assuntos ligados à moral sexual e familiar - divorciados casados de novo, celibato dos padres, contracepção, procriação medicamente assistida - ou à democratização da instituição diocesana, em proposições heterodoxas. Jamais as encontramos nos estatutos avalizados pelo bispo, que permanece o único mestre da sua promulgação. Flexível quanto às modalidades da evangelização, a doutrina entende permanecer intangível quanto aos seus fundamentos e suas finalidades (PALARD 1997).
A paróquia oferece um segundo espaço de exploração. Céline Béraud assinalou com razão a emergência de uma revolução silenciosa nas esferas locais da Igreja: em um contexto de rarefação dos padres, impuseram-se, explica ela, novas formas de divisão do trabalho religioso, permitindo aos leigos (e doravante aos diáconos) possibilidades de ação propriamente inéditas (BERAUD 2007). Essa redistribuição das tarefas acompanhou-se de uma redistribuição dos poderes? Não verdadeiramente. Se as decisões ordinárias podem resultar, com efeito, naquela comunidade que sente a necessidade, em uma situação de crise, de estreitamento nas fileiras, de negociações formais e informais entre os leigos e o padre (BOBINEAU 2009), em caso de situação-limite é sempre esse último quem decide, conformando-se às exigências da instituição. Esse regime de administração dispõe sobre dois tipos de fundamentos. Uns são de ordem jurídica: apesar da polissinodia que ele institui, o Código de Direito Canônico de 1983 instaura claramente o bispo na sua diocese, o padre na sua paróquia, como autoridades decisórias; os conselhos com os quais eles são cercados não são dotados de uma função deliberativa. Outros são de ordem cultural. Permanece nos bispos e nos padres, nas novas gerações de colarinho de clérigo ainda mais que nas mais antigas, assim como nos leigos e nos diáconos, uma forte ligação com a superioridade gestionária dos primeiros sobre os segundos (BERAUD 2006). Nada de muito surpreendente: eles só reproduzem essa longa tradição, surgida da reforma gregoriana (VILLEMIN 2003), segundo a qual o poder de ordem chama necessariamente o poder do governo.
Observa-se, por outro lado, reduzir a pluralidade externa do Catolicismo. Notávamos acima que a partir dos anos 1970 o episcopado, que prolongava aqui a carta apostólica de Paulo VI Octogesima adveniens (1971), havia reconhecido aos católicos a possibilidade de inscreverem-se em um espectro cada vez mais amplo de posicionamentos políticos. A doutrina não mudou desde então. Os fiéis são deixados doravante em seu engajamento social, apenas em sua autonomia? De jeito nenhum. Do discurso episcopal, tal como ele se desenvolveu desde o fim dos anos 1970, extraem-se dois princípios de ação. O primeiro toca à visibilidade. Sal da terra ou Luz do mundo? Os católicos militantes tinham, durante os anos 1968-1975, decidido a favor da primeira opção: era necessário recusar o triunfalismo antes de tudo, e se enfiar na massa humana. Nada devia distinguir o cristão, embarcado com os outros na construção de um novo mundo, que se esperava socialista. O silêncio dos bispos, sua aprovação, às vezes, tinha acompanhado o movimento. Tudo muda com o pontificado de João-Paulo II, ele próprio anunciado quanto a esse ponto pela exortação apostólica de Paulo VI, Evangelii nuntiandi (1975).
Os bispos da França não hesitam mais então em chamar os fiéis a confessar explicitamente a sua fé na esfera pública. A linha identitária começa com o relatório de Monsenhor Defois, Perspectivas missionárias, aprovado pela conferência episcopal em 1981. Ela encontra-se de novo no relatório de Monsenhor Dagens, Propor a fé na sociedade atual, em 1996, que chama à constituição de um civismo expressamente cristão: vivendo em um mundo onde as referências cristãs não ditam mais a lei, permanecemos cristãos, queremos ser cristãos. Ela não foi desde então questionada, apesar de algumas reflexões sobre o seu conteúdo em fim de período (na sequência notadamente do apelo vindicativo de Monsenhor Cattenoz sobre a urgência de uma reafirmação identitária da escola católica). O segundo princípio está ligado à obediência. Sua adesão ao regime liberal de existência não conduz de modo algum a hierarquia a atender, por sua vez, ao princípio de indeterminação filosófica que o sustenta ordinariamente: se ela aceita daqui por diante o pluralismo e a laicidade, é dentro de um contexto que continua a balizar os axiomas da lei divino-natural tal como interpretada pela Igreja, o que Monsenhor Defois, no seu relatório de 1981, chamava de visadas teológicas inalienáveis do mistério da Igreja.
Os debates recentes em torno do Pacs (Pacto Civil de Solidariedade, que permite a união entre homossexuais), das leis bioéticas, do trabalho no domingo mesmo, mostraram que a “proposição” católica, por mais aberta à discussão, ainda se inscreve, de fato, em um espaço não-negociável de veracidade. Eis o que determina uma máxima de ação: é preciso que os católicos, quaisquer que sejam suas pertenças, aceitem trabalhar no advento dessa ordem divinamente instituída, se posicionando no seguimento da doutrina magisterial que precisa o sentido dessa ordem. A condenação em 2006, pela comissão doutrinal do episcopado francês, da obra de Catherine Grémion e Hubert Touzard, A Igreja e a contracepção : a urgência de uma mudança (GREMION & TOUZARD 2006), aparece como uma ilustração a contrário dessa doutrina.
A insistência do episcopado francês quanto à identidade católica não é fruto do acaso. Pode-se ligá-la a dois tipos de dinâmicas. De um lado, a dinâmica do “em baixo”. A política identitária não deixa de se ligar, com efeito, à modificação da estrutura do Catolicismo francês. O Catolicismo de abertura, que constituía o polo dominante nos anos 1960-1970, está hoje em dia em situação de grande dificuldade A balança pende muito para o lado do Catolicismo de identidade: é este agora que fornece à Igreja a maioria de seus leigos comprometidos, de seus diáconos e de seus padres. Isso, é claro, não pôde não pesar sobre o clima geral da vida eclesiástica. De outro lado, dinâmica do “em cima”. A política identitária tem a ver também, sem nenhuma dúvida, com a transformação da posição do Catolicismo romano. A ascensão de Karol Wojtyla ao pontificado acarretou um recentramento não só dentro da esfera teológica (com o projeto de nova evangelização), mas também dentro da esfera governamental (com a nomeação de um episcopado mais “conservador” que aquele estabelecido por Paulo VI).
Esse percurso nos traz de volta à hipótese inicial. A comunidade católica na França está marcada por uma tensão. Encontramos, por um lado, uma lógica centrípeta, aquela dos bispos, que tentam, apesar de suas diferenças de sensibilidade, manter o laço, construir a unidade, segundo um modelo que, ao mesmo tempo em que deixa lugar à negociação, continua a apoiar-se sobre a ontoteologia tradicional, ou sobre o que Jacques Lagroye chamava o “regime de certezas”. Encontramos, por outro lado, uma lógica centrífuga, aquela dos leigos. Claramente, o corpo eclesiástico permanece marcado por uma pluralização que as políticas de dessecularização interna dirigidas pela hierarquia não conseguiram deter. Essa pluralização exprime-se, decerto, nas esferas externas da Igreja; vale também nas esferas internas, do lado daqueles mais engajados. Essa desavença faz debate. Duas teses enfrentam-se frequentemente nessa matéria. Uma, em torno dos teólogos da certeza, inquieta-se com fraqueza do centro, que conduz a dissolver a Igreja em uma diversidade anômica, e a fazê-la perder, assim, toda legibilidade. A outra, em torno dos teólogos do testemunho, vê na vontade da hierarquia de não assumir completamente a pluralidade constitutiva da comunidade eclesiástica uma causa decisiva do enfraquecimento do Catolicismo. Podemos optar a favor de uma terceira leitura: lembrando que este esquema um pouco fluido de funcionamento, em que ela, Igreja, se desvela sobre a dupla espécie do campo e do aparelho, abre à Igreja romana a possibilidade de manter, longe da precariedade que lhe atribuímos às vezes, certa coextensividade à sociedade francesa.
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[*] Tradução: Elie Ballester; revisão: Marcelo Camurça.
[**] Diretor do GSRL e Diretor de Estudos na EPHE e na Science-Po Paris.
[1] Sondagem IFOP, La Croix, 14-15 agosto 2006.
[2] Sondage IFOP, La Croi, 14-15 aôut 2006.
[3] Referência feita aqui à pesquisa que realizamos com Brigitte Feuillet, Religião e procriação medicamente assistada. Os primeiros resultados serão publicados em um número especial da Revista jurídica do Oeste, mi-2010.
[4] Sobre esses pontos, cf. BRECHON 2003 e BRECHON & TCHERNIA 2009. Essas obras apresentam os resultados das pesquisas internacionais, European Values Surveys.
[5] Podemos situar nessa categoria os católicos seguidores do Monsenhor Lefebvre, que se juntaram à instituição Fraternidade São Pedro, ou desde 2008, ao Instituto do Bom Pastor.
[6] A participação não institucional dos leigos toma às vezes, com efeito, formas não sinodais. Foi o caso, por exemplo, da diocese de Vannes, onde o bispo, em 2006, espalhou em todas as paróquias e em todos os movimentos um trabalho de reflexão sobre novas condições da missão, o que acabou de levar à produção de um conjunto de orientações estratégicas para um período de seis anos.
[7] A reconfiguração do tecido paroquial frequentemente aconteceu utilizando esse método. Hervé Quéinnec, Les recompositions paroissiales en France, TTC para o PhD de Ciência Política, Universidade de Brest, fevereiro 2008.
[8] Cf. nossa pesquisa Os diáconos em França realizada em colaboração com Jean-René Bertrand, Colette Muller, Yohan Abiven. Primeira apresentação dessa pesquisa em Bruno DUMONS et Daniel MOULINET (dir.), Le diaconat permanent en France, Paris, Cerf, 2006.