O texto analisa as formas de regulação do religioso pelo regime de laicidade do Estado francês ao longo da república buscando estabelecer uma periodização do fenômeno. Examina a “singularidade” do caso francês de “separação radical” entre o religioso e o espaço público em relação a outros modelos europeus marcados mais pela “harmonização” entre as duas esferas. Aponta, no entanto, nessa modernidade de indiferenciação das fronteiras, que a rigidez do modelo laicidade francês, baseado na lei e no discurso oficial, parece perder eficácia. Defende que está se passando uma “atenuação progressiva” da “exceção” francesa. Estabelece, como proposta de periodização, três lógicas: a lógica da separação” que funcionou até os anos 1970, a “lógica do reconhecimento” até os anos 2000 e a “lógica da integração” nos dias atuais.
Palavras chave: Laicidade, Regulação, Estado, Religioso, França
The text analyses the manner of regulating the religious by the Secularism regime of the French State throughout the Republic. It seeks to establish a timeframe of the phenomenon. It examines the “uniqueness” of the French case of “radical separation” between religious and public spaces in relation to other European models mostly marked by the “harmonization” between the two spheres. It points out, however, that in this undifferentiated-borders modernity, the rigidity of the French Secularism model, based upon law and official discourse, seems to be losing its effectiveness. It states that there is an ongoing “gradual fading” of the French “exception”. Furthermore, it establishes – as a proposed timeframe – three different logics: the “logic of separation”, that prevailed up until the 1970’s; the “logic of recognition”, up until the 2000s and the contemporary “logic of integration”.
Keywords: Secularism, Regulation, State, Religious, France
Todos os países europeus conheceram a mesma aventura democrática. Entre os séculos XVIII e XX uns e outros, alcançados pela ideologia das Luzes, estabeleceram uma nova inteligência do político, cuja característica <é ter tirado do reino dos homens a lei divina que os subjugavam até então. Essa secularização se operou sob o fundamento de uma dupla ruptura. Uma diz respeito à concepção do sujeito. Nos tempos da cristandade, o homem é concebido como uma “criatura” de Deus, em situação de dependência em relação ao Ser superior que o levou à existência. Com a modernidade ele se torna, segundo a fórmula de Thomas Hobbes, um Deus por ele mesmo, a partir desse momento deixado à suas próprias determinações. A outra visa à concepção do poder. Antigamente, pensava-se como expressão mesma da vontade divina, que se impunha a conduzir os seres humanos pelo caminho da salvação e da virtude. Estabelece-se então um quadro do desenvolvimento do direito positivo: o Estado deveria se fixar, necessariamente, com a ajuda e às vezes sob o controle da Igreja, respeitando a ordem divino-natural. Nada disso no novo regime das coisas.
Referida doravante a sua origem humana (o contrato social), a autoridade política assinala de maneira imanente, abrir a seus assujeitados, protegendo às liberdades primeiras de que eles dispõem (as liberdades de consciência e de expressão, os direitos de propriedade e comércio), a possibilidade de construir à vontade, sem outra restrição que aquela imposta pela ordem pública, às normas de sua existência terrestre (MANENT 2007).
Na Europa, essa dissociação política com a ordem divina não se encarnou em toda parte, no entanto, nas mesmas formas práticas. As histórias nacionais pesaram na matéria (WILLAIME 2007). Na maior parte dos países, o poder secular manteve ligações com as instituições religiosas. Às vezes, como na Bélgica, nos Países Baixos ou na Alemanha, pela fórmula de cooperação. Às vezes, como na Dinamarca, na Inglaterra ou na Grécia, pela fórmula de confessionalidade. No primeiro caso, o Estado estabeleceu relações de parceria (tendencialmente) igualitária com várias confissões religiosas. No segundo, quando encontrou países religiosamente mais homogêneos, ele, Estado, privilegiou uma religião particular, que dota de imunidades e de responsabilidades específicas (MONSMA & SOPPER 1997). A França, por seu lado, entrou na modernidade de maneira mais brutal, como tentou fazer também, mas sem sucesso durável, Portugal dos anos 1910 ou a Espanha de 1930. Baseada numa “cultura de generalidade” que desconfia de corpos intermediários, ela escolheu estabelecer-se, a partir da 3ª República, em um esquema de uma laicidade estritamente separatista[1]. Conhece-se o conteúdo, que produziu os textos dos anos 1880 sobre a escola e a grande lei de 9 de dezembro de 1905: foi preciso, para dar direito aos axiomas de liberdade e de igualdade, banir a expressão religiosa na única sociedade civil, separada do espaço público do Estado no qual os regimes precedentes tiveram permissão de se instalar.
Esse regime de laicidade, que se afirmou durante muito tempo fazer parte da singularidade francesa, é ainda hoje semelhante ao que foi? As interpretações variam. Certos comentadores ainda compreendem nosso regime nacional de regulação da crença como uma exceção em relação ao padrão europeu. Os regimes vizinhos cultivam certamente suas idiossincrasias. Pelo menos eles conferem às identidades religiosas, na diversidade de suas fórmulas de organização, um reconhecimento ao qual a França permanece firmemente hostil. Os indícios? São inúmeros, desde a recusa à menção da “herança cristã” da Europa no Preâmbulo da Carta Europeia dos Direitos Fundamentais até a interdição, afirmada pela lei de 15 de março de 2004, de admitir o uso de símbolos religiosos ostensivos nas escolas públicas (RENAUT 2005). Outros, ao contrário, insistem na harmonização de sistemas. Sobre esse terreno, ao menos, assumem que a identidade francesa diluiu-se. Traços se mantêm certamente da ordem anterior das coisas, tanto no Direito como no discurso público. São remanescentes, nada mais, em um universo que se encaixa cada vez mais voluntário, longe das verticalidades republicanas, na indiferenciação “democrática” das esferas. Na França, como nas outras democracias, “o público se privatiza enquanto o privado se torna público” (GAUCHET 1999:65). É a esta segunda opção que os desenvolvimentos que se seguem gostariam de trazer o seu concurso, defendendo, não a tese do fim da exceção francesa, mas àquela de sua atenuação progressiva.
Para demonstrar isto, devemos voltar à História. Desde o advento da 3ª República, a laicidade foi trabalhada por três lógicas sucessivas. Pela lógica da separação, primeiro: até a década de 1960, apesar de alguns compromissos entre a Igreja Católica e o Estado, permanecemos num sistema de estrita dissociação de instâncias: a crença pode ser expressa no espaço privado, individual ou social; ela não tem direito de cidadania no universo estatal. Esse modelo desaparece na virada da década de 1970. Em seguida, entramos em uma lógica de reconhecimento. A favor da recomposição do conceito de liberdade, e da reestruturação dos modos de gestão públicos (PORTIER, 2008a), o religioso encontra seu lugar no ambiente público: o direito francês engaja-se num esquema inédito de articulação da igualdade e da pluralidade, da cidadania e da identidade. Os anos 2000 inauguram um terceiro momento. Os governos identificam fatores de dissociação na sociedade francesa, que encontram sua origem na retração de determinadas comunidades étnico-religiosas sobre uma identidade fechada. Sem questionar o imperativo do reconhecimento, eles vêm preparar, segundo uma inclinação detectável por toda Europa, uma parcela maior da lógica de integração.
Com a ascensão ao poder de Napoleão Bonaparte, a França recupera a “paixão irreligiosa, primeiro iluminada e depois apagada” (DE TOCQUEVILLE 1952:83) na qual se tinha consumido a década revolucionária. O primeiro cônsul tem consciência de que não poderá estabilizar a sociedade, nem disciplinar o povo, sem reassociar política e religião, e restabelece a política concordatária. Sem rejeitar certamente o princípio moderno da soberania, o sistema que ele instaura em 1801-1802 estabelece um regime de cultos reconhecidos, permitindo ao Catolicismo, religião da maioria dos franceses, ao Protestantismo (em suas formas reformada e luterana) e, a partir de 1808, ao Judaísmo, participar, com o apoio (especialmente financeiro) do Estado, da regulação pública da ordem social. Esse regime de aliança se reforçará ao longo do século XIX.
Ainda que às vezes se perceba a possibilidade de submissão do Catolicismo à vigilância do poder público, a geração que assume o poder em 1877 não espera permanecer nessa cooperação institucionalizada. É certamente reivindicando o principio da igualdade que ela justifica sua posição. A Revolução de 1789 permitiu a civilização ir além de seus limites, banindo qualquer distinção de direito entre os indivíduos. A ordem concordatária toma um rumo contrário. Privilegia as crenças de religiões que são reconhecidas, principalmente aquelas de culto católico ao qual ele concede a parte maior, e rejeita às margens da sociedade os fiéis dos cultos não reconhecidos e os cidadãos sem religião. Sonhava-se com uma comunidade de iguais; é sobre a hierarquia dos seres que se apoia, de novo, a convivência coletiva. Mas é ainda mais, alegando o principio de liberdade, que os republicanos expressam sua recusa ao sistema napoleônico. Do racionalismo de Kant, ao positivismo de Comte, eles retêm que só existe a cidade humana com “seres esclarecidos”. Pois, constatam, o regime de associação não responde de forma alguma à essa intenção. Pelo fato de ter reinstalado o Catolicismo romano, em um curso que não fez mais que se acentuar ao longo do tempo[2], no coração de dispositivos de socialização, incluindo a escola, ele favoreceu, ao contrário, a difusão de uma ética de submissão e credulidade, em todos os pontos contrários à visão da emancipação enaltecida pelo Iluminismo. Esse anticatolicismo não é recente entre os devotos franceses da modernidade: basta ler Voltaire ou Diderot. O anticatolicismo ganha força nesse fim do século XIX, com a restauração intransigentista, assinalada especialmente nas propostas do Syllabus (1864), em que se engaja então, a Igreja romana.
A tal recusa é anexado um projeto. É sobre o único poder do Estado, longe das mediações sacrais instituídas pelos regimes precedentes, que se deve estabelecer a nova ordem das coisas.
Nessa perspectiva, os republicanos lembram ao poder o seu dever de neutralidade religiosa. Nada, nos seus princípios de organização, nem nas atitudes dos funcionários que o servem, deve lembrar qualquer subjugação a uma confissão religiosa particular. Porque é na sua soberania, mas também na liberdade dos cidadãos que ele dirige, que o Estado deverá se pensar como uma instância universal, reunindo a sociedade em torno somente da razão comum, aceitável por todos. Exceto em alguns que, como Viviani, desejavam ver apagar, no céu, luzes que não se acenderão mais, essa opção não leva à vontade de erradicar o sentimento religioso. Se era necessário manter a instituição religiosa, e sua ideologia retrógrada, à parte da esfera pública, não se devia dessa forma impedir os franceses que desejavam se reencontrar nas suas crenças e rituais. Jules Ferry exprime assim, na década de 1870, esse ponto de vista majoritariamente compartilhado: Anticlerical sim, antirreligioso jamais!. Paralelamente, os republicanos atribuem ao Estado uma missão de regeneração moral (FURET 1988:506)[3]. Tal é o sentido da fórmula de Charles Renouvier: O Estado é o lar da unidade moral da nação. Ele se encarrega almas como as Igrejas, mas de um modo mais universal. Como se sabe, a escola pública é o instrumento essencial do poder político: se pede à ela para trabalhar, contra os obscurantismos de ontem, na difusão da razão universal e, assim, transformar os indivíduos em cidadãos autônomos, atentos a seus direitos, mas conscientes também de seus deveres com respeito ao corpo social. Através dessa direção das inteligências (Ferry), encontramos o grande objetivo lançado pela Revolução de 1789, de articular, enfim, a pluralidade e a razão.
Como dar forma jurídica a esse projeto político? Os republicanos comprometem-se desde a década de 1880 com a separação Igreja x escola. Eles trabalham, por um lado, na marginalização da rede de escolas privadas. Não se trata, apesar das propostas nesse sentido do partido radical-socialista quando de seu Congresso de 1903, de suprimir a liberdade de ensino, mas de dificultar o seu exercício. A batalha das Congregações de Ensino forneceram testemunho deste fato. É o próprio Jules Ferry que a inicia no começo dos anos 1880, obtendo a dissolução da Companhia de Jesus e sujeitando outras congregações a um regime de aprovação. Combes, em uma conjuntura que o “Caso Dreyfus” tornou mais conflituosa ainda, relança o processo duas décadas mais tarde. Assim que se torna chefe do governo depois das eleições de maio de 1902, fecha, a partir de julho, mais de três mil escolas que não tinha recebido autorização ministerial exigida pela lei Waldeck-Rousseau de 1º de julho de 1901. A lei de 5 de julho de 1904 leva o movimento a seu ponto crítico, quando interdita os religiosos ligados ao ensino e dá prazo de dez anos a todas as congregações para porem fim a suas atividades de ensino. Essas disposições (que, no entanto, deixam subsistir estabelecimentos diocesanos) permanecerão até o regime de Vichy. Os republicanos se envolvem, por outro lado, com a desclericalização da rede das escolas públicas. Eles procedem a laicização do pessoal, pela lei Goblet de 1886, retirando dos eclesiásticos o direito de ensinar nos estabelecimentos públicos e formando, nas escolas normais, um corpo de professores conforme a nova ideologia. Eles procedem, sobretudo, na laicização do ensino. A lei Ferry, de 28 de março de 1882, proíbe o catecismo no interior das escolas primárias e substitui a instrução moral e religiosa do período anterior por uma instrução moral e cívica, fundada, apesar da referência (kantiana) dos deveres para com Deus, sobre a única “moral independente”, ela própria articulada em torno dos valores de autonomia e solidariedade.
Planejada no programa de Belleville de 1869, a “grande separação” Igreja x Estado é anunciada desde os anos 1880 por uma série de medidas parciais: fim das orações públicas na abertura das sessões parlamentares, retirada de insígnias religiosas de locais públicos, secularização dos cemitérios. Ela só se realizará totalmente, apesar dos vários projetos anteriores, com a lei de 9 de dezembro 1905. Fruto da reflexão de Briand e Jaurès, ela se baseia sobre dois grandes princípios. O princípio de privatização expresso notadamente no Artigo 2º, em que é afirmado, em ruptura com o dispositivo concordatário, que a República não reconhece, não subvenciona, nem assalaria nenhum culto. Despossuídas de sua legitimidade institucional anterior, as religiões se veem doravante obrigadas a se organizar, sem nenhum apoio financeiro, sob o fundamento exclusivo de estatuto de direito privado. O princípio de independência se manifesta, quanto a ele, a partir do Artigo 1º da lei. Contrastando com o projeto Combes de 1904, que continha as reivindicações da linha mais dura do campo republicano[4], a nova lei afirma: a República assegura a liberdade de consciência. Ela garante o livre exercício de cultos sob as únicas restrições editadas dentro do interesse da ordem pública. Essa disposição, que vai ao encontro da vontade do sujeito de cultivar à seu modo sua própria fé, encontra-se reforçada por outros elementos, como aqueles que permitem às associações encarregadas de gerir os bens religiosos – as famosas cultuelles - de se organizar conforme as regras gerais do culto do qual elas se propõe executar (Artigo 4º) e as Igrejas de intervir no espaço social. Certas menções podem inquietar, como a referência à ordem pública. A jurisprudência do Conselho de Estado fará rapidamente uma interpretação liberal, que contribuirá para o apaziguamento das tensões com a Igreja.
Devemos, nesta fase, nos interrogar sobre a genealogia dessa forma política que há muito tempo faz da França, segundo as palavras de Ferdinand Buisson, o país mais laico do mundo. Dois fatores parecem ter desempenhado um papel decisivo. O primeiro é de ordem cultural. Ela se refere à própria natureza da religião que a modernidade precisou confrontar. O Catolicismo não teve, em relação à civilização emergente, a mesma plasticidade do Protestantismo. Não concedendo nada frente à expressão da subjetividade política, mobilizando mesmo suas massas a serviço da restauração da antiga ordem, por um efeito lógico, conduziu os partidários do Iluminismo a entrar num processo de confrontação radical com ele. Hegel havia percebido isso desde os primórdios do século XIX: “Por falta de conhecer a Reforma”, escreve ele em suas Leçons de philosophie du droit, “a França tomou a direção do combate contra o direito existente”. O segundo fator é de ordem política. Ao contrário da Bélgica, onde a religião dominante é também o Catolicismo e onde a Igreja, porém, se beneficia desde o século XIX de apoio público, a despeito da pressão livre-examinista, a França não conheceu, quando de sua entrada na modernidade, uma divisão do poder entre laicos e católicos. Nenhuma composição em seu interior entre os diferentes pilares constitutivos da sociedade. Os partidários da Igreja se encontraram excluídos, até a década de 1940, do espaço governamental e puderam, assim, somente influenciar à margem dos dispositivos jurídicos que lhes interessavam.
Vimos o que fez originar a singularidade da laicidade francesa. Ela visa não erradicar o religioso ou sujeitar as Igrejas, mas estabelecer uma relação de separação estrita entre o privado e o público. Dentro desse quadro, a esfera pública aponta para o universal: ela reúne os indivíduos independentes de seus credos sobre a base de uma lei comum ancorada na razão natural. A esfera privada não é, portanto, absorvida pela política. Ela se afirma como um lugar juridicamente protegido, no qual os indivíduos podem se exprimir suas fidelidades particulares, especialmente as religiosas. Esse modelo vai permanecer sem alterações até o meio do século XX.
As quatro primeiras décadas do século XX constituem uma segunda etapa na história da laicidade francesa. Sem dúvida, certos discursos carregam o legado da época anterior - aqueles, por exemplo, do Comitê Nacional da Ação Laica no momento da controvérsia da escola livre em 1982-1984, aqueles dos intelectuais mobilizados contra o Munich da escola republicana no começo do caso do véu em 1989, e mesmo aqueles, em 2000, quando Lionel Jospin fazia oposição, juntamente com Jacques Chirac, a toda referência à herança cristã da Europa no preâmbulo da Carta Europeia dos Direitos do Homem. O que tem se reter, no entanto - apesar da manutenção da lei de 1905 na ordem jurídica, apesar do reconhecimento do caráter laico da República pela Constituição de 1946, e a de 1958[5] - é que o modelo de articulação da relação Igreja x Estado muda de forma. Atribuía-se ao Estado anterior a tarefa de simplesmente preservar a liberdade negativa de consciência. A partir de então lhe será pedido, sem que seja obrigado a abdicar de sua soberania ou mesmo reinstalar o quadro concordatário, conceder às instituições (e às identidades) religiosas o benefício de um reconhecimento verdadeiramente positivo.
Na passagem a essa laicidade de diálogo (WILLAIME 2008), que tem como característica associar novamente o privado e o público, observa-se dois terrenos explorados anteriormente. O primeiro terreno, é claro, é o da secularização escolar. Ensino privado? A 3ª República, com exceção da lei Astier de 1919 sobre os estabelecimentos de ensino profissional, rejeitara todas as demandas de financiamento a ela endereçadas pelas associações católicas: “Para escolas públicas, fundo público, para as escolas privadas, fundo privado”[6]. Não será da mesma forma nos regimes seguintes. Antes de Vichy (que subsidiará, mas moderadamente), a 4ª República lança um movimento com as leis Marie e Barangé (1951). Mas é, sobretudo, com o retorno do general De Gaulle ao poder que o apoio público ganha verdadeira amplitude. A lei Debré de 1959 abre aos estabelecimentos privados[7], que aceitam fazer um contrato com o Estado, a possibilidade de receber, sem prejuízo do seu “caráter próprio”, financiamentos públicos que vão cobrir uma parte substancial de seus custos com funcionários e funcionamento. Outras medidas virão em seguida, tal como os acordos Lang-Cloupet (1992-1993) que, alegando o fato de que a escola privada exerce uma missão de serviço público, instauram a responsabilidade pelo Estado com as despesas relacionadas à formação de seus mestres. Quanto ao ensino publico, ele é em parte dessantuarizado. Foi colocada, na 3ª e ainda na 4ª República, a parte das influências da sociedade civil. A 5ª República inscreve, principalmente a partir da década de 1970, numa lógica mais liberal, uma abertura dos conselhos de administração dos estabelecimentos e dos conselhos de classe para a participação dos pais dos alunos, ou na integração ao currículo escolar de ensino (facultativo) das línguas regionais e “de origem” [ELCO] (BARTHÉLEMY 2001). Essa abertura vale para a religião? As coisas mudaram sobre esse plano também.
Os alunos adquiriram, no começo da década de 1960, o direito de dispor de orientação religiosa, na forma de capelania nas escolas externas primárias e secundárias; na década de 1980, se beneficiaram de autorizações para ausências (coletivas e individuais) por razões religiosas e, com a lei de orientação sobre a educação de 1989, do direito de manifestar suas opiniões no interior do recinto escolar, e mesmo, para os jovens muçulmanos, até 2004, de usar o véu. As cantinas escolares não permanecem à parte do movimento. Sob a ordem das prefeituras, elas se colocam cada vez mais favoráveis às demandas por cardápios específicos. Certamente, com exceção da Alsace-Moselle - regida ainda de acordo com o regime concordatário e nas escolas europeias que ele financia -, o governo francês, contrariamente aos seus homólogos europeus, não constituiu a educação religiosa como disciplina ordinária; os anos 1990 assistem-no integrar, não obstante, de maneira muito mais firme do que anteriormente, o estudo das tradições espirituais nos programas de História e Letras, segundo uma visão que é certamente cognitiva (permite aos alunos não-cristãos ou descristianizados apreender o patrimônio cultural do Ocidente), mas igualmente integradora (desenvolver o conhecimento e o respeito da cultura do outro, o que pressupõe aproximar-se da religião como uma dimensão possivelmente constitutiva da identidade das pessoas[8]).
A laicidade estatal oferece um segundo campo de observação. O dossiê de financiamento dos cultos é bastante ilustrativo. Durante o período de referência, o poder público traz cada vez mais de bom grado seu apoio, a ponto, aliás, de contornar a regra proposta no Artigo 2º da lei de 1905, não somente quanto às atividades seculares (culturais, de saúde, sociais, esportivas e, como vimos, educativas) das instituições religiosas, mas também o que proíbe expressamente a lei de separação, suas atividades de culto. Esse financiamento não toma a forma, como na Alemanha ou na Dinamarca, de imposto confessional, nem, à exceção da Alsace-Moselle, de uma dotação orçamentária, como é o caso da Bélgica ou da Grécia. As transferências são operadas, aqui, de maneira mais indireta. A subvenção passa tanto pela outorga de vantagens materiais - colocação à disposição de terrenos (por contratos de longa duração), locação de imóveis a preços moderados[9], abertura gratuita de antenas públicas às emissões religiosas, acesso dos clérigos a uma agência especial de seguro social (financiada, de um lado, pelo regime geral) - quanto por um conjunto de bonificações fiscais. As associações de culto são assim exoneradas, desde os anos 1960, de taxas sobre o fundo que elas gerem; quanto aos contribuintes, eles se beneficiam, a partir da década de 1980, do direito de deduzir do total de seus impostos de renda uma parte de somas que eles doam às Igrejas. Qual o resultado da intervenção das religiões no espaço público? A exemplo de outras democracias ocidentais, a França é conduzida, durante as quatro últimas décadas, em direção a uma fórmula de corporativismo fluido (ou de pluralismo integrado), que rompe com sua tradição estatista (PORTIER 2009). As religiões se encontram investidas, várias vezes, numa função de mediação. Viu-se de maneira emblemática no momento do “Caso Nova Caledônia”, em 1988, logo que Michel Rocard, então chefe de Governo, enviou rapidamente diante das partes em conflito uma delegação composta de representantes de diferentes famílias espirituais. Fenômeno que chega muitas vezes também a um nível local, como quando os prefeitos patrocinaram, em Roubaix ou Marselha, as associações dedicadas ao diálogo de comunidades, ou constituíram, como em La Roche-sur-Yon ou Rennes, comissões interculturais em dialogo frequente com as diversas comunidades religiosas da cidade (LAMINE 2005). De maneira ainda mais significativa, o religioso é visto como dotado, igualmente, de uma missão de perícia. Através de audições parlamentares as quais são, doravante convidadas (desde 1967 no quadro da preparação da lei Neuwirth sobre a contracepção) através dos comitês de reflexão, tal como o Conselho Nacional de Ética e de Ciências da Vida (criado em 1983), as Igrejas participam cada vez mais, ao nível de qualquer caso de etapas preparatórias da decisão, à produção da norma, que suas organizações setoriais colocam em ação, no quadro seguinte de parcerias contratualizadas com o Estado ou coletividades locais[10]. Essas novas regras de organização causarão tensão: à exceção da possibilidade de utilizar o véu na escola pública, elas permanecerão durante o período seguinte (2000-2008).
O advento desta forma de laicidade não resulta, imediatamente, em um efeito de pêndulo político, mesmo se foi encenado com a chegada do general De Gaulle ao poder. Desde o fracasso, em 1984, do projeto Savary (que visava terminar a rede de escolas privadas num grande serviço público unificado da Educação Nacional), a esquerda se mostra igualmente acomodada que a direita em relação ao lugar das instituições religiosas. É nos governos que ela formou, que se terá talvez percebido na leitura dos desenvolvimentos precedentes - a inserção de famílias espirituais nos dispositivos de reflexão estabelecidos em volta da questão bioética, o crescimento de ajudas à escola privada em 1992 e, em seguida, em 2002 - o estabelecimento de uma relação institucionalizada entre o governo e a Igreja romana. Esse sistema inédito é devedor de preferência às recomposições axiológicas e institucionais que as conhecidas da sociedade francesa durante as quatro décadas anteriores., em favor da passagem da “modernidade triunfante” a uma modernidade incerta (PORTIER 2008b). Evolução das estruturas axiológicas? A igualdade promovida pela 3ª República é uma igualdade abstrata. O poder se concentrou simplesmente nos direito-liberdade de 1789 (liberdade de opinião, de circulação, de propriedade...), aos quais ele adicionará logo, antes da Segunda Guerra Mundial, os direitos sociais, uniformemente distribuídos. Entende-se considerar os homens naquilo que eles têm em comum, rejeitando para a esfera não-estatal a expressão de suas diferenças. A 4ª República vai tornar a noção mais “concreta”, identificando-a cada vez mais à identidade (BUI-XAN 2004).
Testemunha e ator dessa mudança ideológica, Edouard Balladur, então primeiro-ministro, não hesita em declarar nesse sentido, no começo da década de 1990, que “igualdade não deve ser considerada de maneira abstrata. A igualdade, não é nada mais que a identidade”[11]. Essa transmutação de valores, que tem por objetivo tornar possível a expressão pública das singularidades religiosas e culturais, individuais, mas certamente também coletivas[12], tem nela mesma, sem dúvida, um duplo fenômeno. Pesou, por um lado, a reflexão teórica dos anos 60: não se pode minimizar em particular a influência dos pensamentos neonitzcheseano (Foucault, Deleuze) ou neoproudhoniano (Touraine, Ricoeur[13]), que afirmam um e outro, segundo suas lógicas próprias, a necessidade de colocar o homem, nesse momento, contra o racionalismo desencarnado e mutilado do Iluminismo, a partir das territorialidades ou das narratividades que ele escolheu. Contribuiu, por outro lado, o ativismo militante dos anos 70: fez a sua parte, as reinvindicações que encaminhou o movimento associativo com o apoio, aliás, de uma opinião cada vez mais tolerante considerando a diferença[14], em favor do reconhecimento das idiossincrasias regionais, sexuais, etnoculturais, mas também, sob o efeito, principalmente, das mobilizações islâmicas (KÉPEL 1987) – religiosas.
A reconfiguração das estruturas institucionais não deve mais ser subestimada (CHEVALLIER 2003). A 3ª República desconfiava das forças da sociedade civil, em que se alojava, aos olhos de seus dirigentes, a particularidade. Tinha o Estado, sozinho, consciência clara da sociedade (Durkheim), que assegurar a racionalização das existências individuais e coletivas. Nesse sistema, evidentemente, a Igreja não podia pretender nenhum lugar oficial. A partir, sobretudo, do fim da década de 1960, em resposta ao advento da ultramodernidade, marcada por sua vez pela incerteza e globalização (BECK 2001), a 5ª República instaura outro regime de governo. A ideia que se impõe é a de que o Estado não pode mais controlar sozinho, nem no plano cognitivo, nem no plano prático, a totalidade dos problemas. É necessário, com vistas a uma melhor eficácia, desenvolver parcerias com as múltiplas instituições da sociedade civil. Engajando as Igrejas em missões de serviço público, em razão dos recursos de sentido e ligação os quais elas seriam portadoras, as fazendo concorrer para elaboração e à aplicação da norma, a nova secularização, essa que emerge nos anos 1960-1970, responde a sua maneira a esse imperativo de gestão. Assinalando, no começo da década de 1970, o caráter mais ingovernável das nossas sociedades ocidentais, Michel de Certeau resumiu em uma fórmula esse processo de recarga simbólica: “O religioso reaparece quando o político enfraquece” (DE CERTEAU 1974).
Enfim, não se pode encarar a evolução da laicidade francesa sem relacioná-la à disposição do espaço europeu. Se as instituições comunitárias (entende-se aqui a União Europeia e o Conselho da Europa) não têm por hora colocado em questão, apesar de alguns debates em seu interior, o direito dos Estados à determinar soberanamente suas fórmulas nacionais de gestão da relação Igrejas/Estado, elas têm, no entanto, elaborado normas gerais em matéria de liberdade religiosa (o Artigo 9º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, por exemplo, em sua Cláusula 1ª, enuncia uma definição ampla da liberdade de religião), e introduz práticas de cooperação entre suas instâncias de decisão e forças religiosas (tal é o objetivo do programa Uma alma para Europa, proposta por Jacques Delors [MASSIGNON 2006]), que o Tratado de Lisboa, em 2007, de alguma forma, institucionalizou. Ora, esse dispositivo, consolidado no reconhecimento do fato religioso, não deixou a França ilesa. Sem que se possa imputar a essa influência toda a responsabilidade da transformação de seu regime de organização, ela, pelo menos, conjugada com outros fatores, contribuiu a abrir, seja por um efeito da aplicação da hierarquia de normas, seja por um processo de impregnação mimética (PALIER & SUREL 2006), a ideia de uma presença mais forte, e às vezes pouco controlada, das religiões no espaço estatal.
Os anos 2000 foram aqueles de um recrudescimento de documentos públicos sobre a laicidade. Alguns deles nascem de uma intenção reflexiva: caso do relatório Debray de 2002, sobre o ensino do fato religioso na escola pública; do relatório Debré, de 2003, sobre a laicidade na escola; do relatório Stasi sobre o princípio da laicidade na República, de 2003; do relatório Rossinot sobre a laicidade nos serviços públicos, de 2005; ou ainda, do relatório Machelon sobre o financiamento dos cultos, de 2006 (CONSEIL D’ETAT 2004; STASI 2004; MACHELON 2006.). Outros têm uma visão normativa, como a lei sobre os desvios das seitas de 2001, a lei sobre os símbolos religiosos na escola pública, de 2004, ou a circular do Primeiro Ministro sobre a laicidade no serviço público, de 2007 (vindo, ela mesma, precisar a Carta da laicidade nos serviços públicos, elaborada um ano mais cedo pelo Alto Conselho Superior para Integração). Essa efusão discursiva abriria espaço para um retorno às salvaguardas da era separatista? De forma nenhuma. Ela expressa de preferência, segundo a fórmula de Christian Jöppke, um terceiro “modelo, centrista, de integração cívica” (JÖPPKE 2005:305), tendente, sem dúvida, às garantias das identidades pessoais, mas no respeito reafirmado da unidade da comunidade política.
Como se impôs esse reequilíbrio do modelo de reconhecimento? Importa fazer um retorno às duas últimas décadas. Em uma conjuntura marcada por eventos pesados como o caso Rushdie, a guerra civil na Argélia, a 2ª Intifada, o 11 de setembro, o atentado do metrô de Londres em julho de 2005 e, durante todo o período, o crescimento, como uma reação, de uma extrema direita populista por quase toda a Europa (DE GALEMBERT 2008), a sociedade francesa não vive mais sua relação consigo da mesma maneira que nos anos 1970-1980. Uma inquietude foi ganha: ela se sente ameaçada pelas afirmações de identidade de um Islã que lhe parece se constituir à parte, distinto da cultura comum francesa.
Essa obsessão de desunião é vista em numerosos relatórios oficiais. Uma primeira vaga de estudos, produzidos no meio da década de 1990, sublinham a importância da pobreza social. É o caso dos relatórios de Michel Fragonnard, Cohésion sociale et prévention de l’exclusion (1993) e de Jean-Pierre Delevoye, Cohésion sociale et territoires (1994). A sociedade francesa, eles notam, é cada vez menos integrativa: como na primeira parte do século XIX, ela “deixa acampar nas portas da cidade”, numa destituição material, populações inteiras, muitas vezes vindas da imigração. Essa discriminação é inaceitável no plano dos valores, e é também, de um ponto de vista político: se não estivermos preparados, explicam os dois textos, os esquecidos da República se arriscam muito cedo, sobretudo as gerações novas, a se isolar fora do universo cívico para encontrar refúgio em receptáculos de suas fés de origem[15].
Uma dezena de anos mais tarde, o foco muda de lugar: os relatórios não ignoram o sofrimento social; eles insistem, não obstante, primeiro, como se a ameaça já tivesse se tornado realidade, sobre a expansão das retrações religiosas. O relatório Stasi, em 2003, consagra muitas páginas à multiplicação, nos hospitais, nas escolas, nas empresas, comportamentos identitários, muitas vezes contrários aos direitos das mulheres, produzindo em todo caso, fraturas no interior dos coletivos concernidos. Com evidência, o documento observa que a França foi muito longe na aceitação da diferença. Por seu lado, centrado sobre a questão específica da vida escolar, o relatório Obin desenvolve em 2004 o mesmo tipo de análise[16]. Em algumas periferias, explica, a escola abdicou de sua vocação universalista para virar um espaço segmentário onde os estudantes se reagrupam nos refeitórios por adesão religiosa, onde as garotas sentem a imposição pelos rapazes para comportamentos “religiosamente corretos”, onde mesmo os professores não podem mais evocar em suas aulas alguns assuntos do currículo como o evolucionismo, a História do Islã ou o Holocausto. Stasi e Obin retomam daí o projeto que já estruturava em parte os relatórios Fragonnard e Delevoye: é necessário que o Estado construa uma política da coesão[17]. Que supõe, certamente, colocar os dispositivos de luta contra as discriminações sociais; ela exige também de reunir as populações marginalizadas em torno da ética comum da sociedade liberal, sem negar, no entanto, seus enraizamentos primeiros.
Em consonância com a opinião pública[18], esta proposta é ainda melhor recebida, pois está em adequação também com os referenciais emergentes ao nível europeu. A política do Conselho da Europa é, desse ponto de vista, fortemente significativa. O Conselho se fez, nas décadas de 19701980, defensor de um multiculturalismo pesado. No entanto, ei-lo desde os últimos anos sob o caminho do recentramento. São, primeiramente, suas instâncias deliberativas que são reorientadas. O Memorando de Lisboa, de 1997, dá o tom, como indica esta lista de prioridades que encontra o principal de seu sentido no último sintagma: “Nós devemos reforçar nossa ação nas matérias particulares dos direitos do homem, dos valores democráticos, da diversidade cultural, e com certeza, da coesão social”.
Os textos que virão em seguida reconduzirão à mesma mensagem. Para constatar isso, basta abrir o “Livro Branco” sobre o diálogo intercultural, Vivre ensemble dans l’égale dignité, adotado em maio de 2008. O Conselho lembra que convém - como prevê também, para a União Europeia, o Tratado de Lisboa - manter um diálogo aberto, transparente e regular com as organizações religiosas, mas isto deve se fazer com a condição de que elas adiram aos valores comuns da Europa: “os direitos do homem, o Estado de direito, a democracia”[19]. São, em seguida, as instâncias jurisdicionais que evoluíram. Em apoio à Cláusula 2ª do Artigo 9º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, o Tribunal de Justiça de Estrasburgo não hesitou em indicar, em algumas peças recentes, que, se é conveniente respeitar as particularidades culturais e religiosas, não haveria problema em aceitar as manifestações externas de crença que iriam ao encontro de determinações da ordem constitucional liberal.
Restaria, nesse sentido, a questão Leyla Sahun x. República Turca, que veio mostrar, em 2004, a convencionalidade de uma lei que interdita o porte do véu islâmico nas universidades do Estado sob alegação que sua autorização poderia provocar pressões externas sobre as jovens. Acrescentamos, então, que esse dispositivo de contenção não diz respeito somente às instancias centrais da Europa. Enquanto as filosofias constitucionalistas, essas de Bryan Barry ou de Giovanni Sartori, por exemplo, retomam “o direito da cidade” face às filosofias comunitaristas, este direito foi adotado também, da Grã Bretanha aos Países Baixos, da Bélgica à Alemanha, pela maioria de seus componentes nacionais, as mesmas que antes foram mais longe nas políticas da diversidade (PORTIERS 2009).
Os governantes franceses não ficam indiferentes a essas diversas produções discursivas. Sob sua influência, os vemos logo abordar a questão da relação com o religioso a partir do mesmo referencial da coesão (ou da integração). O paradigma da coesão se distingue daquele da assimilação, empregado sob a 3ª República: cada um deve poder exprimir suas filiações à vontade, até no espaço público. Isto não se confunde com aquele da inserção, que se experimentou em alguns países ocidentais e que foi notado alguns traços na França dos anos 1980-1990: o reconhecimento das identidades não significaria a dissociação das comunidades com o todo social. Jacques Chirac, em sua intervenção de 17 de dezembro de 2003 (em que anunciou a proscrição de símbolos religiosos na escola pública), tinha fortemente apontado esta via mediana: Pilar da República [...], a laicidade requer a integração de todos, no respeito das diferenças. Nicolas Sarkozy, no fundo, não disse outra coisa. Certamente ele sublinha de maneira mais explícita que seus antecessores a necessidade de fazer valer a esperança levada pelo discurso religioso; no entanto, ele não cessa de lembrar, justificando por sua vez, a lei de 15 de março de 2004[20], que a intervenção pública das religiões só é justificável desde que elas aceitem o consenso ético próprio da sociedade liberal[21].
Compreende-se a ambivalência da figura presente no sistema francês de laicidade; o reconhecimento deve fazer par, em seu seio, com a união. União? Constantemente se volta com a urgência do “fazer prevalecer a lei geral sobre as prescrições dos grupos restritos”[22]. Para fazer isto, o governo reativou o princípio, já existente, da neutralidade do Estado, ligado ele mesmo ao princípio da igualdade diante da lei. Uma ilustração: funcionárias mulçumanos entendiam que podiam usar o véu no exercício de suas funções. Sua hierarquia as sancionou sem prazo com o aval da jurisdição administrativa e, logo, com o apoio da circular do Primeiro Ministro Villepin sobre La laïcite dans le service public (2007). A ideia é simples: a comunidade política deve acordar aos cidadãos os mesmos direitos e os submeter aos mesmos deveres; não se poderia admitir que os funcionários pudessem, por seu porte particular, dar razão de tratá-los diferentemente. A questão, de resto, foi tratada da mesma maneira na Alemanha. O governo reafirmou, por outro lado, o princípio de autonomia do sujeito. Alguns comentaristas tinham visto na lei de 2001 sobre os “desvios sectários” ou na de 2004 sobre a interdição dos símbolos religiosos na escola pública, os sintomas de uma retratação da França sobre seu tropismo antirreligioso (BOWEN, 2008). Essa não é a interpretação mais crível. De preferência por sua natureza combista (refere-se a Combes, homem público e chefe de Estado francês na 3ª República), os dois textos se unem por sua filiação lockeana: eles se empregam um e outro, não tanto a colocar os indivíduos ao abrigo do religioso como tal, mas de forma filosoficamente liberal, para os proteger dos empreendimentos prosélitos que podem atentar à sua liberdade.
Retornando à lei de 2001. Ela define certamente um novo delito, o delito de “abuso de fraqueza/debilidade mental”, cujo legislador tem, aliás, até o presente, feito uso extremamente parcimonioso. Porque esta operação semântica faria incorrer um risco maior à liberdade de religião, em revanche, ela se guardou bem, ao construir a priori a noção de seita (ROLLAND, 2005). No mesmo sentido, a lei de 2004, que permitiu voltar sobre a jurisprudência do Conselho do Estado[23], não elimina todos os traços religiosos nas escolas públicas. Ela não proibiu aos estudantes, por exemplo, mostrar marcas “discretas” da afiliação religiosa (FERRY, 2005); admitir-se-ia mesmo, como vimos em setembro de 2008 em uma decisão do Conselho Acadêmico da Reunião, que ela não põe obstáculos em certos contextos ao uso da “bandana”. A proscrição de símbolos ostensivos de pertenças se sustenta no fato de um motivo de ordem pública[24] : ela foi pensada inicialmente, na sequência das audições (fortemente impressionistas, é verdade) conduzidas no âmbito da comissão Stasi, como uma réplica às intrigas dos grupos militantes ou dos jovens chefes de bandos, que pretendiam impor aos adolescentes muçulmanos comportamentos (incluindo vestimentas) que eles não escolheriam por si próprios (WEIL, 2005).
Esta exegese se justifica tanto mais porque o Estado tem, durante esses últimos anos, não somente mantido, mas consolidado os dispositivos de reconhecimento estabelecidos durante o período precedente. Reconhecimento das organizações religiosas primeiramente. O Catolicismo reclamava desde a década de 1980 a possibilidade de manter relações diretas, abertas, transparentes e regulares com as autoridades estatais: o governo Jospin veio atender tal demanda em 2002, institucionalizando o princípio de um encontro anual, do mais alto nível, com os representantes da Igreja. A comunidade islâmica não ficou à parte dessa recomposição. Desta vez, depois de vários anos tateando, é o direito político, com o governo Villepin, que construiu o mecanismo de interlocução, ao trazer à existência o Conselho Francês do Culto Mulçumano e seus desmembramentos regionais. Depois de ter pensado em integrar as forças religiosas no Conselho Econômico e Social, o presidente Sarkozy anunciou de acréscimo, em seu discurso de boas-vindas ao papa Bento XVI em setembro de 2008, que seus representantes seriam associados aos Estados Gerais da bioética programados para o ano seguinte. A pedido de protestantes e mulçumanos, a questão do financiamento dos cultos foi igualmente reconsiderada: na sequência do relatório Machelon (2006), o governo considera senão revisar a lei de 1905, pelo menos adicionar à regulamentação existente as disposições (em matéria de locações, de empréstimos ou mesmo de subvenções) suscetíveis a facilitar a ajuda municipal às lideranças religiosas, muitas vezes inquietas com a incerteza jurídica sobre sua situação atual no que se refere à construção de edifícios religiosos.
Reconhecimento paralelo das identidades religiosas. Hospitais, prisões, cemitérios[25], ginásios e piscinas[26]: apesar das resistências locais, a administração se coloca cada vez mais disposta aos pedidos dos crentes. O relatório do diretor geral da administração penitenciária sobre O Islã nas prisões, apresentado em 2 de outubro de 2008 diante uma plateia de responsáveis europeus dá, a partir de um lugar de observação até então pouco preocupado com o conforto religioso de seus usuários (KHOSROKHAVAR, 2006), a medida da evolução. Os mulçumanos representam aproximadamente a metade de sessenta e três mil prisioneiros. Eles contavam, há dois anos, com 60 capelães, orientadores espirituais; hoje são 114, nomeados depois da aprovação do Conselho do Culto Mulçumano. Os cardápios halal não existiam na década anterior; instruções foram dadas recentemente para que eles sejam doravante, na medida do possível, generalizados. Todos os comportamentos são autorizados? Não. Encontramos aqui as mesmas restrições “liberais” em curso nos hospitais ou escolas: a administração pune, na maioria das vezes, movendo os detentos fundamentalistas que incomodariam a liberdade de escolha dos outros prisioneiros, que se recusam obedecer as ordens das funcionárias [mulheres] ou que estabelecem relações de exclusão em relação aos prisioneiros de outras afiliações religiosas.
Equidistante das prescrições da filosofia republicana e da filosofia comunitarista, Jürgen Habermas descreveria que existe pouco daquilo que ele estimava ser o modelo de uma convivialidade razoável: “A igual coexistência dos estilos de vida não deve engendrar uma vida separada. Ela requer, ao contrário, a integração dos cidadãos nos marcos de uma cultura constitucional compartilhada” (HABERMAS 2003 :117) . Os desenvolvimentos anteriores terão mostrado que a França de hoje tenta - como, aliás, outros países da Europa -, construir uma figura desse tipo. Por razões de ordem ética (ninguém deve ser maltratado nas suas escolhas de vida) e prática (a religião assume uma função de estabilização social, um dos slogans do presidente Sarkozy[27]), a República atual entende dar as religiões um lugar na esfera pública do Estado, que a República das origens lhes recusava. No entanto, a postura multiculturalista, que tinha marcado, de maneira subreptícia, alguns discursos, e às vezes algumas práticas, nos anos 1970-1990, não está mais em curso. Porque sua pedra-de-toque é coesão social, a República exige das religiões, doravante, e mais firmemente, que elas permaneçam no círculo dos princípios de liberdade e de igualdade sobre os quais se baseia a sociedade democrática. Voltamos então, comodamente, à hipótese inicial. Evocávamos, no começo desse texto, a tese, culturalista de fundo, segunda a qual nosso sistema de regulação do crer teria permanecido fixo através dos séculos, na eternidade de seu ethos unitário. É uma perspectiva totalmente outra que apontaram os desenvolvimentos que acabamos de ler. Apesar de sua constitucionalização em 1946 e, ainda, em 1958, a laicidade não cessou de se transformar: concebida há um século para relegar o religioso num espaço de vida privada, termina por lhe fazer uma acolhida solene, sob as condições que relatamos, sob a pompa do Palácio da República. A mutação não é sem importância: ela coloca a França numa situação de desertar, sobre esse campo ao menos, ao teatro da excepcionalidade que ela tinha construído para si no momento de sua entrada na modernidade para se reunir então, às grandes determinações do padrão europeu.
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[*] Tradução: Stephanie Mertens; revisão: Marcelo Camurça.
[**] Diretor do GSRL e Diretor de Estudos na EPHE e na Science-Po Paris.
[1] É necessário, entretanto, precisar que a França se inspirou em países que já haviam adotado um regime de separação, como os Estados Unidos, o Canadá e, mais ainda, o México.
[2] Pensa-se, em particular, na lei Falloux de 1850, que dá de fato um direito de controle à Igreja sobre as escolas públicas.
[3] O autor afirma que a 3ª República desenvolve uma versão pacífica da regeneração revolucionária, ou que a formação do homem novo é acompanhada de respeito das crenças.
[4] Sobre as duas tendências, uma integral e a outra mais liberal no centro do campo republicano, cf. BAUBÉROT, 2007.
[5] As duas Constituições disponibilizam que a França é uma República indivisível, laica, democrática e social. A Quinta República acrescenta significamente que ela respeita todas as crenças.
[6] As disposições, muito limitadas, da lei Falloux, visam a possibilidade de financiamento para as despesas de investimento, que, no entanto, serão mantidas.
[7] Em 1959, pensa-se principalmente nas escolas católicas que representam próximo de 95% do total de estabelecimentos privados. Mas as disposições vão ser aplicadas a outros credos, o judaico especialmente, e, em seguida, um pouco ao mulçumano.
[8] Ver, sobre esse ponto, La Lettre aux Educateurs do presidente Sarkozy na volta em 2007. Para uma análise dessa argumentação, cf. BORNE, 2007.
[9] A jurisdição administrativa intervém, no entanto, apoiando-se sobre o Artigo 2º da lei de 1905, para sancionar os arranjos que eram vistos em toda evidência como uma subvenção disfarçada. Viu-se em 2007 a proposta da edificação da grande mesquita de Marselha.
[10] Um exemplo entre tantos outros: a municipalidade socialista de Landerneau assim delegou ao Seguro Católico a organização, em locais à disposição por ela, sessões de alfabetização para as populações imigrantes da cidade. Sobre esse ponto, cf. ABIVEN, 2009.
[11] Edouard Balladur, Entrevista, Le Monde, 20 novembro 1994.
[12] Como veremos com a possibilidade de oferta, aos territórios ultramarinos, de produção de um direito local exorbitante do direito comum.
[13] Esses dois autores serão os que introduziram na França as reflexões comunitárias de Charles Taylor ou Will Kymlicka.
[14] De muito mais do que em outros lugares que a Igreja católica, cuja intransigência contribuiu a configuração de uma maneira estrita a Separação, conheceu uma evolução doutrinal que derrubou uma grande parte dos preconceitos da opinião francesa ao seu lugar, e de maneira mais geral, o lugar do religioso quando se mostra razoável.
[15] Todas coisas iguais por outro lugar. Encontramos o mesmo tipo de analise sobre o islã de compensação em livros de sociólogos à mesma época, como aqueles nos Estados Unidos de D. Hollinger, ou na França de F. Khosrokhavar.
[16] Ele mesmo anunciado pelo livro de KALTENBACH & TRIBALT, 2002; e, sobretudo, de volume de BRENNER, 2002.
[17] Por uma análise de emergência desse novo referencial, cf. DONZELOT, 2006.
[18] Como mostram as sondagens realização durante o período de 1990-2008.
[19] Encontram-se os documentos na Internet no seguinte endereço: www.coe.int/dialogue.
[20] A lei de 15 de março de 2004, que proíbe os símbolos religiosos na escola pública, se encontra justificada, particularmente, no discurso do Latran de 20 de dezembro de 2007.
[21] A Ryad mesmo, em janeiro de 2008, ele formara o desejo de uma reconciliação do Islã e da modernidade.
[22] De acordo com a expressão do Conselho constitucional em sua opinião de novembro de 2004 Trait;e portant Constitution pour l’Europe.
[23] Jurisprudência elaborada na sequência da opinião de 1989 sobre o véu islâmico na escola pública, pedida por Lionel Jospin, então Ministro da Educação nacional.
[24] De acordo com a mesma expressão do relatório Stasi.
[25] Fazemos aqui referência aos lugares (“praças”) reservados aos mulçumanos nos cemitérios municipais.
[26] Lembramos, por exemplo, que muitos municípios, como a prefeitura de Lille, reservaram, em algumas de suas piscinas, horários para as mulheres mulçumanas.
[27] Isso não é exclusivo de Nicolas Sarkozy. Em setembro de 2008, Bertrand Delanoë, prefeito socialista de Paris, defendeu uma temática desse tipo na então inauguração do colégio católico de Bernardins, realizando a restauração do qual o município parisiense e o Conselho Regional D’Ile-de-France contribuiram largamente.