Doutrina e Ética da Perfect Liberty no Resgate de Papéis Femininos Tradicionais

Beatriz Muniz de Souza[**] []
Leila Marrach B. Albuquerque[***] []

"Casar não é sentir a alegria de oferecer uma xícara de café para o marido? A gentileza é fundamental, é aprender a não esperar o chefe pedir."

"A mulher deve mostrar ao homem que é dedicada, amorosa e bonita, a fim de despertar o seu sentimento. Deve também demonstrar surpresa ou "burrice" mesmo sobre assuntos que já conhece, pois o homem pode ter uma interpretação diferente ou complementar daquilo que ela já sabe".

"Eu estou educando minha namorada. Ela pode ou não trabalhar fora, não vai ser minha escrava, mas precisa tomar conta da comida e da roupa e isso depende apenas do bom senso dela ".

"Em meu trabalho doméstico não sou auxiliada por ninguém. Faço o almoço e o jantar, cuido da casa, das crianças, levo-as e trago-as da escola. Acho que meu marido não deve ser importunado. Ele, às vezes, ajuda levando as crianças ppara pescar ou ao parquinho. De madrugada sou eu que atendo as crianças. Ele nunca atendeu nem trocou uma criança, pois eu nunca permiti a fim de não sobrecarregá-lo".

"A função da mulher é respeitar o sentimento do marido. Uma esposa preguiçosa , que abre mão do seu papel, leva o marido a procurar outra companheira".

"O homem tem como instintos os apetites alimentar e sexual: comer e procriar filhos, mas é a mulher que cuida e vive para isso, sendo, portanto, motivo de um grande orgulho ser mulher".

"O homem tem prazer em tomar iniciativa e a mulher sente prazer em ser objeto da iniciativa"[1].

"Há um caminho para o homem e um para a mulher"[2].


As falas que iniciam este artigo retratam a doutrina e a ética da PL voltadas para os papéis femininos na cidade de São Paulo, neste final de século[3]. Trata-se de uma nova-seita japonesa e que, como tal, desempenhou, até por volta de 1960, funções de preservação do patrimônio étnico e cultural da colônia nipônica. Desde então vem apresentando crescimento expressivo como religião universal[4].

As novas seitas, contudo, mereceram pouca atenção dos sociólogos brasileiros, embora apresentassem crescimento significativo na sociedade nacional, ao mesmo tempo em que se configuravam em fenômeno sociológico inesperado. O descaso por estas religiões talvez se deva ao próprio momento político em que vivia o país. A preocupação com a possibilidade de algumas instituições resistirem ao regime autoritário que vigorava teria criado um pressuposto tácito entre os estudiosos de que as religiões - sobretudo as de tradição cristã - poderiam ser divididas entre as que se acomodariam e as que resistiriam à opressão. Como, por um lado, se esperava que as novas-seitas desaparecessem com a assimilação dos descendentes na sociedade nacional e, por outro, envolveriam ainda elas elementos distantes da nossa cultura, constituiriam objetos de estudo problemáticos de serem enquadrados naquele esquema tácito. Em outras palavras, os estudiosos da religião não tiveram sensibilidade para vislumbrar nuanças da emergência deste novo fenômeno na cultura religiosa nacional.

A Perfect Liberty, nascida no início deste século, tem como fundador Tokumitsu Kanada,que antes de criar sua própria seita, Tokumitsu-Kyo, foi fervoroso adepto da seita budista Shingon e da nova-seita Mitake-Kyo. Seus poderes de clarividência e cura de doenças atraem, em 1916, um monge budista, Tokuharu Miki, que se torna seu discípulo. Após a morte de Tokumitsu, em 1919, Tokuharu passa a receber revelações e estabelece os 21 preceitos doutrinários básicos da religião ( Anexo 1), originalmente denominada Hitonomiti (Caminho do Homem), vindo a ser o seu primeiro patriarca.

A nova-seita, que contaria em 1937 com mais de 1 milhão de adeptos, foi bastante reprimida no Japão, somente se firmando em 1946, já com a denominação de Instituição Religiosa Perfect Libert, sob direção do patriarca Toku chika Miki. Em 1953, este movimento religioso construiu sua "Sede Eterna" em Tondabayashi, Osaka, também denominada de "Terra Sagrada" da P.L. . Ali existem, além de um grande espaço destinado a abrigar, em salas e auditórios, os adeptos reunidos em peregrinação, um hospital, escolas, dormitórios e um campo de golfe. Ensinam os mestres que todo seguidor da P.L. deve tomar parte, pelo menos uma vez, na caravana religiosa que se organiza anualmente a partir da segunda semana de julho em memória do primeiro Patriarca.

À medida que se consolida no Japão, a nova-seita começa a se expandir para outras regiões, penetrando na América Latina em fins da década de 50. O trabalho missionário mostra-se especialmente vigoroso no Brasil, Argentina, Paraguai, Peru, Bolívia e Chile. O início das atividades nacionais coincide com o período de intensificação do proselitismo de outras modalidades religiosas japonesas, tendo como base, principalmente, a decisão de permanência definitiva dos imigrantes japoneses no Brasil. Já em fins dos anos 60 do século XX, pessoas de origem não japonesa, oriundas primordialmente da classe média, passam a freqüentar a Perfect Liberty.

Segundo informações da própria religião, há no Brasil, em 1986, 36 igrejas, 14 das quais no Estado de São Paulo, entre elas se distinguindo, na cidade de São Paulo, a igreja central no bairro da Liberdade, reconhecida como matriz da P.L. na América Latina. Também na cidade de São Paulo situa-se, no Arujá, a Terra Sagrada, semelhante à matriz japonesa em Tondabayashi, realizando, entre outras atividades, as cerimônias de Lensei, retiros espirituais de aprimoramento da fé e confraternização entre os adeptos. No mesmo ano de 1986 foi organizado, neste local, o primeiro Lensei conjunto para a América Latina, quando se pôde perceber claramente a importância da sede nacional para o trabalho missionário fora da colônia japonesa.

Já os informes colhidos através dos segundo período pesquisado, apontam, em março de 1994, ocasião da visita do Patriarca ao Brasil, para acentuado crescimento do número de adeptos e igrejas. Assim, as igrejas brasileiras somam 190, das quais l00 se localizam no Estado de São Paulo, predominantemente concentradas (76) na Grande São Paulo. O número de adeptos fornecido pelo Departamento de Divulgação da Igreja Central da P.L. perfaz o total de 360.000, medido pelas fichas de ingresso. A distribuição deste total é a de 160.000 participantes no Estado de São Paulo, 120.000 dos quais filiados às igrejas da Grande São Paulo. Os restantes fiéis distribuem-se, em ordem decrescente, nos Estados do Rio de Janeiro , Paraná e Minas Gerais. Vale ressaltar que estes números referem-se bem mais ao amplo espectro dos eventuais participantes da P.L., fortalecido pelo proselitismo que precedeu à visita do Patriarca ao Brasil, podendo ser diminuídos, segundo julga a liderança, em cerca de 30%.

Confirmando caracterização sociológica como religião universal, a porcentagem de adeptos brasileiros sem ascendência japonesa é expressiva, perfazendo 95% do total de peelistas. Os 21 preceitos da P.L. revelam os aspectos fundamentais tanto da doutrina como das práticas dessa nova-seita. Dentre eles, distinguem-se como principais para compreensão de sua teodicéia, os que têm o seguinte enunciado: "Vida é arte" e "A vida do homem é auto-expressão". Explicam os mestres que todos os animais se alimentam e procriam, mas só o ser humano pode fazer isso com arte, pois a arte é a expressão do sentimento e do pensamento do indivíduo através da matéria. Esses princípios gerais são aplicados a situações concretas, de modo a se constituir em fonte de orientação da vida para o adepto.

Pressupõe ainda a doutrina da P.L. que o homem possui alguns problemas espirituais que impedem o seu desenvolvimento. Esses problemas são designados por propensões espirituais, como raiva, teimosia, pressa, etc. . As pessoas apresentariam formas de agir, pensar, sentir e aceitar as coisas que impediriam a manifestação correta da personalidade. Caso esta personalidade não estivesse se manifestando plenamente, surgiriam problemas tais como doenças ou um desenrolar indesejado de vida. Para a P.L., Deus criou o homem para o bem-estar e a felicidade e não para o sofrimento e nesse sentido apresenta soluções para situações problemáticas, principalmente relacionadas com a cura de doenças.

O desaparecimento da doença é o mistério que implica na força do juramento do Patriarca a Deus e no compromisso do peelista em assumir os seus ensinamentos. Por outro lado, essa religião também apresenta uma interpretação psicossomática dos males físicos, entendendo que a mudança de sentimentos seria responsável pela cura de doenças ou, inversamente, a ocorrência de uma doença, por exemplo, de um enfarto, estaria relacionada com o sentimento de raiva alimentado por uma pessoa. Esse aspecto dos ensinamentos da P.L. torna-se claro em casos de problemas de ordem psicológica que demandem internações . Algumas informantes afirmaram sentir-se melhor após ingressar na P.L., a ponto de substituir as internações por tratamento psiquiátrico ambulatorial. Uma dessas adeptas comprara livros editados pela P.L. para presentear seu psiquiatra, demonstrando, portanto, elevado grau de internalização religiosa.

Nesse sentido, a P.L. enfatiza a necessidade do adepto mudar seus sentimentos, tais como teimosia, arrogância , insatisfação, etc., para que a vida cotidiana se desenrole artisticamente . Afirmam seus ensinamentos que o mundo tal qual percebido - em oposição aquilo que é em realidade - não passaria do reflexo do nosso espírito, pois, segundo um dos preceitos da P.L., tudo é espelho de nós mesmos. Coerentemente com seus preceitos, a doutrina da P.L. está mais voltada para a busca da felicidade enquanto se vive, não a transferindo para uma outra existência após a morte. Afirmou uma das adeptas, que havia sido freira católica: "No Cristianismo a salvação é ir para o céu depois da morte. Esta filosofia é uma filosofia de medo e de temor. Na P.L. , a salvação é se livrar do mal aqui e agora."

É comum afirmarem, tanto os adeptos como os líderes religiosos, que a P.L. não tem doutrina fixa, mas apresenta apenas os 21 preceitos que devem ser seguidos por aqueles que querem se tornar peelistas. Segundo o patriarca Tokuchika Miki, vivemos em sociedade e faz-se necessário obedecer à lei do trânsito social que é a própria lei humana, derivada do costume e da moral. Afirma, ainda, que as pessoas são livres em sociedade para fazer o que quiserem, ou seja, fazer uma ponte entre o agradável e o ambiente, estabelecendo um equilíbrio. Mas , para isso, faz-se necessário observar a lei do trânsito social, oriunda do diálogo e da decisão dos homens para estabelecer sua conduta. Tal lei mudaria de país para país, de época para época, sendo que a obediência aos 21 preceitos da PL ajudaria o homem a viver em sociedade. Afirmou uma adepta: "Deve-se buscar o agradável pela religião, na própria terra, levando em consideração a lei humana. É preciso estabelecer adaptações às condições do país e às épocas diferentes, porque Deus manda um homem para cada época".

Os preceitos da P.L. levam o adepto a atribuir transcendência ao histórico e a considerar que o Bem é aquilo que é bom aqui e agora, e o Mal é aquilo que desagrada aqui e agora, resultando, enfim, na aceitação da sua situação material. Exemplificou uma adepta: "Um peelista não gostava do seu emprego, pois era servente. O mestre lhe respondeu: É servente porque Deus mandou, para tirar o seu orgulho. Precisa fazer missassagê ( desempenho de tarefas em benefício do próximo) para progredir. Ele progrediu e, atualmente, é recepcionista". Entendem ainda os mestres que todas as coisas têm sua origem em Deus e se movem em direção ao progresso e ao desenvolvimento, transformando o mal em verdade, a infelicidade em felicidade. Pode-se afirmar que a maioria das atividades da P.L. acha-se relacionada com a solução de problemas, sobretudo a cura de doenças. Das concepções antes descritas - do mundo tal como é em realidade e do mundo tal como aparenta ser - a doença teria uma existência verdadeira no mundo das aparências. A P.L. vê nela um aviso divino (michirassê) ou chispa de luz, para convidar o adulto à reforma de si mesmo. Para tal, a P.L. tem expedientes para situações rotineiras ou de crise. Em todos eles, o recurso aos dirigentes e ao patriarca envolve identificação das causas psicológicas da doença através de um ensinamento divino (miochiê). O processo terapêutico se vale de procedimentos tais como relatórios pormenorizados dos sintomas enviados à sede central, visando diagnóstico, conformidade com o voto do Patriarca, uso de amuletos, freqüência a cerimônias (oiachikiri) e também o missassagê.

Enfatizam os mestres que cada adepto faça as leituras que a própria igreja edita, siga os 21 Preceitos, freqüente as reuniões, faça as orientações e orações, participe de todas as cerimônias e dos retiros espirituais (Lensei) e obedeça às Instruções para a Vida Religiosa (Anexo2). As orações são dirigidas à grande força da natureza designada de "mioyaookami" e são executadas frente a um altar, "omitama", que simboliza a janela através da qual comunicam-se com Deus. Devem ser realizadeas no início e no final de todo culto e de qualquer trabalho realizado na igreja, como orientações, reuniões, etc. . As orações expressam reverência a Deus e têm por objetivo, segundo um líder entrevistado, "tirar pensamentos desconexos, unificar o sentimento e atingir o estado de confiar totalmente em Deus". Há preces diurnas e noturnas que podem ser realizadas individualmente, em casa, ou coletivamente, na igreja.

A P.L. aconselha aos adeptos que entrem em contato com seus ensinamentos básicos através de fitas gravadas, livros e periódicos a fim de que aprendam a fazer corretamente as reverências que indiquem posição de ausência do Ego e a exercitar o primeiro dos 21 Preceitos. As reuniões dominicais reforçam esse propósito, pois têm por objetivo fazer com que os peelistas passem a semana com alegria e espírito renovado. Voltadas principalmente ao aconselhamento e à aplicação da doutrina da P.L. em situações cotidianas, as reuniões nas igrejas oferecem oportunidade às mulheres para trocar idéias e conversar. Sempre sob a direção de um mestre, ocorrem uma vez por mês agrupando de 6 a 8 mulheres. Inicia-se a reunião com uma prece, seguida por uma explanação do mestre sobre um ou dois dos seguintes assuntos: crianças mimadas, crianças problema, educação infantil, sentimento de esposa, problemas enfrentados pelo casal, etc. . Esses temas são sempre apresentados através de exemplos rotineiros, concluindo-se que os problemas advêm do não aprimoramento da conduta da esposa no lar. Depois da explanação, as mulheres são incentivadas a iniciar uma conversa informal sobre o que foi tratado. Geralmente essa conversa gira em torno de depoimentos pessoais que confirmam as palavras do mestre. Finaliza-se esta reunião com uma prece de agradecimento. Seguem-se momentos de conversa descontraída enquanto é servido um lanche frugal, a cada vez organizado e oferecido por uma das participantes.

A oposição entre os papéis masculinos e femininos reflete-se no próprio conteúdo dos depoimentos, pois os homens apontam para o sucesso na vida profissional e as mulheres reafirmam seu desempenho como esposas e mães. Ademais, a própria organização interna da PL tem Associações específicas que definem os papéis de marido e esposa. Em síntese, os adeptos orientam suas vidas conforme esse modelo ,vivendo, na verdade, segundo princípios de uma religião de conversão. Nas reuniões femininas mensais, os mestres procuram contrastar as características de ambos os sexos, argumentando que o homem é por natureza mais ativo e a mulher mais passiva. Essa não poderia ser ativa, pois dois ativos acabariam por se chocar. Ambos têm os mesmos direitos, mas não as mesmas qualidades, devido ao fato de o homem ser fisicamente forte e másculo e a mulher, "macia e arredondada". Enfim, concluem: "a alegria de dirigir e a alegria de ser dirigida se fundem no amor, marcando o caminho do homem e da mulher".

Demonstrando ter internalizado princípios da PL, uma adepta assim sintetiza sua opinião sobre a condição feminina: "Todos são iguais perante Deus. Existe um caminho para o homem e outro para a mulher, embora sejam biologicamente diferenciados. O homem faz gerar e a mulher gera. Ele propicia, à mulher, condições para gerar. São dois caminhos diferentes. Para evitar o caos, existe uma união permanente do homem com a mulher. Pela opção pela união se estabelece a unidade que é o casal". Disse o segundo Patriarca: "O homem é dono do amor e de amar, enquanto que a mulher possui o amor de ser amada. Quando a mulher dedica a um homem em particular o amor de ser amada, só nesse momento ela pode superar o conhecimento sobre o homem em geral, sentir e compreender seu companheiro inteiramente, concreto. Mais ainda: tornar-se una com ele". Entendem os peelistas que a mulher tem em seu âmago o desejo de ser guiada. Ao homem cabe o respeito e a inteligência e à mulher valorizar o sentimento através de uma atitude de "proteção ao lar".

Ao normatizar sobre o padrão de conduta específico da mulher peelista, a literatura doutrinária e os mestres enfatizam que ela se ocupe das roupas e alimentação da família, bem como da casa, com arte, pois assim estará vivendo de acordo com a essência da vida humana. Afirma a P.L. que os homens são treinados para escolher as mulheres. Elas não precisam ser bonitas, mas dóceis e simpáticas; embora a beleza não seja necessária, a mulher deve usar cosméticos e cuidar de sua aparência. Assim definiu uma adepta o seu papel: "Mulher deve ser passiva em relação ao esposo, mas isso não é negativo, pois alegrando o esposo ela se torna positivamente passiva. E isso é ser mulher, sentir a satisfação de ser mulher".

A diferenciação dos papéis masculinos e femininos se reflete também nos objetivos das respectivas associações. Afirmam os peelistas que as mulheres se reúnem para conversar, diferentemente dos homens que preferem falar de negócios. E, para a mulher, a conversa tem por objetivo evitar o estresse, na medida em que está mais exposta a situações de depressão nervosa. Procurando justificar essa inclinação, advertem que o sofrimento é característica de uma pessoa normal psiquicamente, pois uma pessoa que seja mentalmente doente não sofre.

A P.L. também apresenta prescrições para a organização familiar, que sugerem preferência pelo tipo nuclear. Um mestre assim se expressou: "A mulher tem que se voltar para o marido e os filhos. Não pode ficar apegada a pessoas distantes, pais, amigos... " Além disso, entendem os peelistas que a boa educação dos filhos é sempre expressão da harmonia conjugal, cabendo à esposa a responsabilidade por algum problema que lhes possa ocorrer. Afirmam que os filhos são a extensão do corpo dos pais, dependendo seu bem-estar do pleno desempenho dos papéis do casal.

Para a continuidade dos ensinamentos dessa religião, nas gerações futuras, a P.L. procura desenvolver atividades na Associação Infantil que sejam coerentes com os papéis já mencionados. Além de freqüentarem as cerimônias, as crianças são treinadas através de cursos e atividades específicas: os meninos aprendem Ken-dô e as meninas fazem curso de Ikebana. Estas e outras atividades proporcionariam oportunidade para o desenvolvimento da disciplina e responsabilidade nos meninos e da meiguice e docilidade nas meninas que, segundo os mestres, refletem as aspirações diferenciadas de ambos os sexos.

Os dados que se acabou de apresentar carecem de uma interpretação mais rigorosa no escopo das muitas possibilidades teóricas da Sociologia da Religião. Aliás, o estudo das novas-seitas encaminha questões interessantes como as transformações da cultura religiosa brasileira, a nacionalização de traços culturais estranhos a nossa cultura, os sincretismos, os papéis femininos e masculinos e também uma reflexão sobre os estudos sociológicos da religião no Brasil. Optou-se por tratar de aspectos da experiência religiosa feminina no contexto da instalação e crise da modernidade com vistas a encaminhar questões ao próprio projeto modernizador e à produção sociológica que nele se apoia. O projeto modernizador previa a expansão da mentalidade racional aos mais diversos setores da sociedade. Este modelo aguardava o enfraquecimento da experiência religiosa na medida em que a sociedade brasileira adentrasse na modernidade e se instaurasse a mentalidade racional e secularizada. Também das mulheres se esperava o desempenho de novos papéis, compatíveis com a experiência modernizadora.

Calcada nessa expectativa, boa parte das teorias sociológicas sobre a modernidade trabalhou com categorias irredutíveis como tradição ou modernidade, progresso ou reação, comunidade ou sociedade, racionalidade ou carisma[5]. Como a religião - desde o século XIX - é entendida como antítese da mentalidade racional, os estudos de Sociologia da Religião no Brasil foram, muitas vezes, marcados, sub-reptícia ou declaradamente, pelo necrológico. Assim, as manifestações religiosas que acompanharam os processos de urbanização e industrialização foram entendidas como compensatórias ou alienantes, até que os adeptos, finalmente adaptados ou conscientes, fossem iluminados por alguns raios das Luzes.

Ora, a década de 1970 foi marcada pelo surgimento na sociedade brasileira, de novas modalidades religiosas ao lado das já existentes. Muitas delas, ademais, importadas de culturas distantes da nossa, como é o caso da PL. Este fenômeno vem se acentuando e, presentemente, proliferam seitas, terapias, técnicas e filosofias que são alternativas aos procedimentos institucionalizados de solucionar problemas e conferir sentido existencial.

Vários autores como MONTEIRO, CESAR e ALVES[6] haviam captado, já nos anos 70, nuanças de uma nova modalidade de fervor religioso que atingia não só as camadas carentes da população urbana, mas também setores da camada media, na nossa sociedade. Dando continuidade a essa reflexão, acredita-se que os processos de racionalização da modernidade têm sido insuficientes para fornecer realização das suas metas sociais. Neste sentido, abre-se uma fresta para religiões que, como a PL, oferecem alternativas aos papéis femininos modernos. As mulheres encontram, na doutrina e ética desta religião, possibilidades de reformulação de seus papéis através de um modelo tradicional.

Neste contexto, algumas hipóteses se apresentam ao campo da Sociologia da Religião:

1- Revertendo a expectativa, tão cara aos acadêmicos, de um afastamento da religião entendida como um fenômeno arcaico e irracional frente ao processo de racionalização da modernidade ocidental, parte das populações urbanas estaria produzindo uma recuperação do sagrado;

2- Este processo marcaria a convivência de fenômenos que se acreditava antagônicos como racionalização ou carisma, moderno ou tradicional - como no caso das peelistas - apontando, se não para uma crise da modernidade, para uma crise de suas categorias explicativas ou de sua utopia;

3- A Sociologia da Religião muito contribuiria para a compreensão deste paradoxo cultural ao contemplar o atual "boom" religioso como os limites históricos da modernidade em geral. Isso envolve, certamente, repensar a "sociodicéia" embutida na reflexão sociológica, através de uma atitude cética em relação ao projeto modernizador. O mesmo ceticismo que se empregou, com tanto sucesso, no estudo das religiões.

Quem o fará ?


ANEXOS

Anexo 1

PRECEITOS DA PL

1. Vida é Arte
2. A vida do homem é auto-expressão.
3. O Eu é a manifestação de Deus.
4. Há sofrimento se não se expressar.
5. Ao se deixar levar pela emoção, perde-se o Eu.
6. Você existe na ausência do ego.
7. Tudo existe em relatividade.
8. Viva radiante como o sol.
9. Todos os homens são iguais.
10. Felicite a si e aos outros.
11. Faça tudo confiando em Deus.
12. Há uma função conforme o nome.
13. Há um caminho para o homem e um para a mulher.
14. Tudo é e existe para a Paz Mundial.
15. Tudo é espelho.
16. Tudo progride e se desenvolve.
17. Capte o ponto central.
18. Postamo-nos sempre na bifurcação entre o bem e o mal.
19. Faça ao perceber.
20 Viva no estado de perfeita união material-espiritual.
21. Viva na Verdadeira Liberdade.

Anexo 2

INSTRUÇÕES PARA A VIDA RELIGIOSA PL

1. Viver dedicando o máximo de atenção aos seus atos e palavras, imbuindo Makoto neles.
2. Agir de forma a não se esquecer do espírito de criatividade e de engenhosidade para com tudo, descobrindo as falhas de suas idéias e métodos; sem sentir-se descontente com as pessoas, os objetos, os fatos ou o tempo.
3. Viver com gratidão pelas pessoas, objetos e fatos.
4. Pensando em prol do próximo, não se esquecer do espírito de Missassaguê.
5. Não se zangar com ninguém nem com nada.
6. Não teimar, preso por suas idéias.
7. Não se afobar, não se preocupar, nem ser pessimista a respeito de si e dos fatos.
8. Não manifestar sentimentos de cobiça.
9. Não manifestar sentimentos que sejam astúcia.
10. O casal viverá harmonizando-se de coração.
11. Considerando que a criança é filha de Deus, criá-la de forma que venha a ser útil à sociedade e ao próximo. Conscientizando-se, ainda, de que ela é espelho dos pais, não lhe dar uma educação na qual se é levado pela satisfação da emoção e eivada de amor cego.
12. De manhã, levantar-se com boa disposição.
13 Não cometer atos de sentir-se descontente com os alimentos, de gostar de uns e rejeitar outros, de ter preferências quanto a eles, de comer e beber em demasia e desordenadamente.
14. Não manifestar sentimento de preguiça, bem como, enquanto estiver trabalhando, não sentir-se descontente com o serviço ou as coisas, nem com os outros, incomodando-se com eles.
15. Em tudo, procurar não ultrapassar os limites.
16. Não manifestar sentimentos de vanglória nem de querer mostrar-se importante.
17. Não dizer nem fazer o que magoa o íntimo alheio.
18. Não ter pensamentos que menosprezem o próximo.
19. Não se esquecer do sentimento de fazer Hoshô.
20. Esforçar-se no sentido de ser agraciado com a Artina de Gratidão.
21. Não se esquecer das graças de Deus e de Oshieoyá-Samá.

Notas

[**] Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, Pontíficia Universidade Católica de São Paulo.

[***] Universidade Estadual Paulista, UNESP, Câmpus de Rio Claro, SP.

[1] Depoimentos de Peelitas.

[2] Preceitos da PL: n.13

[3] O referencial de dados baseia-se em pesquisas realizadas na cidade de São Paulo, respectivamente nos anos 85-87 e 91-94:
"Papéis femininos e religiões em São Paulo" (Projeto aprovado e financiado pelo CNPq, de autoria de SOUZA, Beatriz Muniz de e com colaboração de ALBUQUERQUE, Leila Marrach Basto de, especificamente na parte referente à P.L.);
"Ethnicity and National Integration of the Asian - Latinamericans: a Study on Inter - Ethnic Cohesion and Cleavage" (Projeto desenvolvido em convênio entre Shizouka University, Shizuoka, Japão (Autoria e Coordenação: MAEYAMA, Takashi), e Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, PUC/SP (Assessoria, no Brasil de SOUZA, Beatriz Muniz de na coordenação dos levantamentos sobre religião, com a colaboração de ALBUQUERQUE, Leila Marrach Basto de).

[4] CAMARGO, C.P.F. de. Católicos, Protestantes, Espíritas. Petrópolis: Vozes, 1973.

[5] HERF, F. O modernismo reacionário. São Paulo, Ensaio; Campinas, SP, Editora da UNICAMP, 1993.

[6] MONTEIRO, D.T. Igrejas, seitas e agências. Aspectos de um ecumenismo popular. Simpósio sobre Cultura do Povo, PUC-SP, 1977.
CESAR, W. A. Urbanização e religiosidade popular. Revista de Cultura Vozes. Petrópolis, Vozes, 1974.
ALVES, R. Misticismo: a imigração dos que não têm poder. Revista de Cultura Vozes. Petrópolis,Vozes, 1974.