Este número da Rever é dedicado ao tema da mística. Conceito polissêmico, semântica e pragmaticamente instável, para muitos pesquisadores ele não existiria sequer no singular. Optamos por utilizá-lo dessa forma (no singular) para facilitar a expressão, guardando, é claro, a consciência dos aspectos contextuais diferenciadores da chamada "experiência mística"
Exemplos do que poderíamos entender como fenômenos místicos - êxtases iluminados, profecias, relatos de contatos diretos com divindades, enfim, alterações de estados da consciência, do corpo ou do uso da linguagem causados por instâncias descritas como "outras" - estão presentes em vários continentes religiosos. Alguns pesquisadores - movidos pelo interesse na consistência do foco da crença descrita ou, unicamente, por interesses metodológicos estritos - trabalham no sentido de estabelecer um estudo comparado, lingüístico, fenomenológico ou social, a fim de identificar a repetição de certos padrões. Outros mantém-se dentro de uma análise contextual (seja de base social, antropológica, psicológica, histórica ou lingüística), criticando ou simplesmente desconsiderando a validade de uma tentativa de comparação dos relatos ou fenômenos em questão.
Uma outra abordagem é a que tenta estabelecer um tratamento filosófico, teológico ou literário dos relatos místicos, buscando identificar as cargas noéticas presentes nos textos dos autores estudados. Uma última abordagem seria o diálogo entre os textos/autores e suas tradições histórico-religiosas específicas, buscando estabelecer continuidades temáticas e/ou comportamentais. Pensamos que, na busca de uma compreensão das várias faces desta categoria religiosa de modo o menos redutor possível (seja ela entendida, aqui, num sentido mais teológico-filosófico ou histórico-psicossocial), devemos discuti-la levando em conta as múltiplas formas epistemológicas existentes. Este número da Rever, em especial, ocupa-se do que poderíamos chamar de um esforço conjunto para estabelecer uma teoria da mística dentro do universo das religiões abrâamicas, isto é, uma discussão de teor lingüístico e filosófico que visa trazer à luz tramas conceituais externas e/ou internas aos textos e objetos tratados.
Mônica Udler Cromberg, lingüista (especialista em línguas semíticas) mestre em Estudos Judaicos pela USP (sua dissertação sobre o hassidismo de Martin Buber esta no prelo da editora Humanitas/USP), aluna especial do doutorado em Ciências da Religião da PUC-SP. Discute o conceito de mundo imaginalis a partir da obra do místico islâmico Ibn Arabi, defendendo a idéia de que tal conceito, perdido pela tradição pós-medieval, instrumentaliza eficazmente o pesquisador interessado na linguagem da mística islâmica e abrâamica em geral.
Faustino Texeira, professor da pós-graduação em Ciência da Religião (UFJF). Já há algum tempo vem produzindo edições e artigos acerca da mística do Islã e, aqui, faz uma análise da linguagem apofática e poética do místico islâmico Maulâna Djalâl od-Dîn Rûmî, iluminando sua paixão pela dissolução gozosa do "eu" na unidade verdadeira que é Deus, banhada pela idéia da evidência da presença da divindade diante do místico. Trata-se de um estudo de relato.
Alexandre Leone, sociólogo, mestre em Estudos Judaicos pela USP (sua dissertação de mestrado sobre Abraham Ioshua Heschel já foi publicada pela editora Humanitas/USP, como A Imagem Divina e o Pó da Terra). Atualmente está concluindo sua formação rabínica no Jewish Theological Seminary em Nova Iorque. Em seu trabalho na Rever, volta ao seu objeto de mestrado para discutir a questão da oração na abordagem mística de Heschel. Seu artigo traz importantes elementos para uma compreensão da mística judaica moderna e contemporânea.
Rafel Shoji, mestre em Ciências da Religião pela PUC-SP, doutorando em Ciências da Religião na Universidade de Hannover (Alemanha). Retoma as críticas contextualistas, principalmente a partir das análises da filosofia da linguagem de Wittgenstein, levantando algumas questões centrais para uma visão ingênua da perenidade singular da mística, opondo-se, assim, a certos autores clássicos como James, Otto e Eliade. Sua discussão acerca do problema da construção do significado do significado é especialmente importante para um aporte filosófico e sociológico contextualista consistente.
Luiz Felipe Pondé, professor do programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências da Religião e do departamento de Teologia da PUC-SP e professor-pesquisador convidado em mística medieval da Universidade de Marburg (Alemanha). Propõe alguns elementos conceituais, a partir da tradição teológica negativa cristã (fazendo uso de relatos místicos e análises de scholars da área), para a construção de uma teoria da consciência apofática como operadora numa compreensão da noésis negativa. Antes de abordar diretamente o tema, numa primeira parte, o autor estabelece algumas análises epistemológicas dentro de um recorte pragmático-evolucionista, que visam situar o estudo das religiões num cenário epistemológico pós-kuhniano.
Na seção "Intercâmbio", Rodrigo Wolff Apolloni, mestrando em Ciências da Religião pela PUC-SP, apresenta a tradução do artigo "Ming-Period Evidence of Shaolin Martial Art" ("Evidências da Prática Marcial em Shaolin durante o Período Ming"), do pesquisador Meir Shahar, da Universidade de Tel Aviv. O artigo, publicado originalmente no Harvard Journal of Asiatic Studies, aborda um tema pouco conhecido no Brasil: a relação entre o Budismo e a violência. Tomando como objeto de pesquisa o mosteiro chinês de Shaolin - fundado no século V e tido pela tradição marcial como o "berço do Kung-Fu" - Shahar mostra como a desestruturação institucional e a escalada da violência no final da Dinastia Ming afetaram o cotidiano, a prática religiosa e as tradições dos monges. O artigo também abre um campo interessante de discussão, sobre a "interpretação religiosa" nas artes marciais orientais.
Luiz Felipe de C. E S. Pondé