O mosteiro de Shaolin é provavelmente um dos mais famosos templos budistas do mundo. A razão não está ligada a contribuições doutrinárias de seus monges residentes, tampouco às tradições que associam o mosteiro à figura de Bodhidharma (Ta Mo), o fundador lendário da Escola Chan. A fama de Shaolin se assenta sobre as artes marciais: muitas das tradições marciais chinesas consideram o mosteiro como seu lugar de nascimento. O século XX testemunhou uma fascinante transformação cultural, com as técnicas marciais chinesas ganhando crescente popularidade no Ocidente. Apresentando uma mistura única de finalidades militares, terapêuticas e religiosas, tais artes marciais tornaram Shaolin conhecido de muitas pessoas nem sempre familiarizadas com a fé budista.
Esta fama experimentada pelo mosteiro de Shaolin tem justificativa? Seus monges praticavam artes marciais? Poderiam eles ter ignorado a proibição budista referente à violência? Poderia o ambiente geográfico, econômico ou social de Shaolin ter favorecido - se isso, de fato, aconteceu - a violação de um preceito budista primário? Que atitude seria de se esperar dos governantes chineses diante de monges que, ao invés de ler as escrituras, praticavam artes marciais? Apesar de sua relevância para o estudioso do Budismo e para o historiador social, por muito tempo estas questões não receberam atenção dos scholars ocidentais. Sinólogos europeus e americanos não buscaram saber se os monges de Shaolin sempre praticaram artes marciais, e, se as praticaram, desde quando e por quê[1]. Em contraste, a história marcial de Shaolin foi estudada, desde o Período Republicano, por um proeminente scholar chinês, Tang Hao (1897 – 1959). Nem todas as fontes estavam disponíveis para ele, que se mostrou mais interessado no aspecto militar das artes marciais de Shaolin do que em sua relevância social ou religiosa. Ainda que seu trabalho pioneiro tenha sido muito significativo, nele são caracterizados os principais estágios de evolução das técnicas marciais de Shaolin.[2]
Histórias relacionadas às artes marciais escritas por scholars chineses e japoneses direcionaram a pesquisa de Tang Hao sobre o mosteiro de Shaolin[3]. Da mesma forma, as descobertas do pesquisador chinês servem de ponto de partida para este estudo, no qual eu examino a prática marcial em Shaolin durante o período Ming tardio, o primeiro a ser pesquisado para o qual existem evidências sólidas de treinamento militar no mosteiro. Avaliadas em seu papel por suas implicações militares, religiosas e sociais, tais evidências serão esboçadas cronologicamente no Apêndice.
Uma combinação de causas geográficas, políticas e religiosas contribuíram para a fama de Shaolin muito tempo antes do Período Ming. Fundado no final do século V d.C., o mosteiro foi beneficiado pela aura de santidade que cercava sua localização, nas encostas do monte Song em Henan (ver figura 1)[4]. Anteriormente, já nos primeiros séculos antes de Cristo, o monte Song havia sido escolhido como uma das “cinco montanhas [sagradas]” (wuyue), para as quais o imperador chinês deveria prestar homenagem na forma de rituais. Além disso, a relativa proximidade entre a montanha e Luoyang - cerca de 56 km – facilitou o patrocínio imperial. Muitas dinastias medievais, que escolheram Luoyang como sua capital, generosamente sustentaram o mosteiro de Shaolin. O imperador da Dinastia Sui, Wendi (que reinou entre 581 e 604), por exemplo, acrescentou ao mosteiro uma área de 1400 acres chamada de “Forte do Vale dos Ciprestes” (“Baigu wu”); esta denominação é preservada até hoje, no nome de um vilarejo localizado na vizinhança do mosteiro[5]. Finalmente, a lenda de Bodhidharma assegurou uma posição eminente de Shaolin para a Escola Chan. Por volta do início do século VIII, uma tradição já determinava que os ensinamentos Chan haviam sido transmitidos por Bodhidharma para Huike (por volta do século VI) no monte Song.
A mais antiga evidência da participação de Shaolin em assuntos militares data do período Tang. Várias inscrições em estelas (marcos de pedra) que ainda existem no mosteiro atestam que em duas ocasiões monges de Shaolin estiveram engajados em combate: nos últimos anos da Dinastia Sui (por volta de 610) eles impediram um ataque de bandidos, e, na primavera de 621, participaram da campanha do futuro imperador Tang, Li Shimin, contra outro contendor pelo trono do imperador Sui morto, Wang Shichong. A batalha contra Wang teve lugar nas imediações de Luoyang, onde ele havia estabelecido sua capital[6]. Logo após a derrota (de Wang), a corte Tang recompensou substancialmente os monges Shaolin; um deles, inclusive, foi alçado à condição de General-em-Chefe (Da jiangjun) no exército de Li Shimin. As inscrições incluem uma carta de agradecimento de Li Shimin aos monges Shaolin, bem como vários documentos oficiais nos quais o governo Tang concede terras e outros privilégios ao mosteiro, em reconhecimento por seu apoio militar (ver Apêndice)[7].
As estelas Tang não deixam dúvidas de que, em pelo menos duas ocasiões, alguns monges de Shaolin lutaram. Entretanto, o que essas fontes epigráficas não citam é igualmente importante: as inscrições não aludem nem ao treinamento marcial no mosteiro de Shaolin, nem a alguma técnica na qual os monges fossem especialistas. Poder-se-ia afirmar que a participação de monges Shaolin em batalha é um indício de que eles teriam recebido treinamento militar no mosteiro. A existência de monges que aparentemente se distinguiram em combate poderia fortalecer este argumento. Há, ainda, duas outras possibilidades: os monges que lutaram teriam recebido treinamento marcial fora do mosteiro, ou, ainda, poderiam ter recebido treinamento ad hoc para os confrontos militares de que participaram (ao invés de receber instrução marcial como parte do regime monástico). É possível, ainda, que estes monges do período Tang tenham lutado sem jamais ter tido qualquer tipo de treinamento militar.
As estelas de Shaolin são as únicas fontes do Período Tang que aludem ao envolvimento do mosteiro com a marcialidade. Nos diários de viagem e poemas de renomados literatos Tang que visitaram o mosteiro não há alusões a treinamento militar no mosteiro. Além disso, a literatura dos períodos seguintes, Song e Yuan, também não alude à prática marcial em Shaolin. Assim, mesmo que seja possível – e, mesmo, provável – que em um período tão recuado quanto o da Dinastia Tang as artes marciais tenham figurado no regime monástico de Shaolin, as fontes disponíveis não permitem concluir isso com certeza.
Pelos sete séculos que se seguiram à gravação das inscrições em Shaolin não se ouviu mais nada a respeito do engajamento do mosteiro em assuntos militares. Então sem aviso, no período Ming tardio, se dá uma invasão de evidências do aspecto marcial do mosteiro: pelo menos quarenta fontes dos séculos XVI e XVII atestam que, na fase tardia da Dinastia Ming, monges Shaolin praticaram artes marciais (ver Apêndice). Tais fontes mostram que a prática marcial havia se tornado como que um elemento integrante da vida monástica em Shaolin, a ponto de os monges terem criado novas tradições orais para justificá-la. O crescimento interno de lendas etiológicas de Shaolin foi relacionado ao crescimento externo da fama do mosteiro. Por volta da metade do século XVI especialistas militares vindos de todo o império viajavam ao mosteiro de Shaolin para estudar suas técnicas de combate.
Referências às artes marciais de Shaolin são encontradas em vários gêneros literários do Ming tardio: enciclopédias militares, manuais de artes marciais (da escola Shaolin e também de suas rivais, que se definiam como “opositoras a Shaolin”), composições geográficas (listas de nomes locais e histórias monásticas, bem como diários de viagem e poemas escritos por visitantes do templo), escritos históricos (como crônicas da campanha do século XVI contra a pirataria, da qual os monges Shaolin tomaram parte), epitáfios (de monges guerreiros de Shaolin) e ainda ficção (em linguagem clássica e vernacular). As fontes mostram que as atividades militares do mosteiro chamaram a atenção de diversos segmentos da elite Ming. As artes marciais de Shaolin aparecem nos escritos de generais, oficiais do governo, scholars, monges e poetas. Historiadores estavam, do mesmo modo, intrigados com o nexo entre o Budismo e a marcialidade. Em um ensaio intitulado “Shaolin seng bing” (“Tropas Monásticas de Shaolin”), Gu Yanwu (1613–1682) examinou várias fontes escritas – em Shaolin e em outros mosteiros semelhantes – do envolvimento budista com a marcialidade[8]. Seu questionamento a respeito da origem das técnicas militares em Shaolin mostra que, por essa época, elas já estavam consolidadas.
Fontes do período Ming tardio acerca do mosteiro de Shaolin diferem dos precedentes materiais da Dinastia Tang não somente em quantidade e diversidade, mas também na precisão das informações que fornecem sobre as técnicas de luta praticadas pelos monges de Shaolin. As fontes epigráficas Tang não dizem se esses monges eram especialistas em um determinado método de combate. Em contraste, textos dos séculos XVI e XVII aludem aos métodos de luta com lança e com as mãos vazias (“Quan” ou “Chuan”), não deixando dúvida, porém, de que o bastão era a arma na qual os monges de Shaolin se tornaram especialistas – e que, certamente, tornou o mosteiro famoso.
O mais antigo manual existente sobre as artes marciais de Shaolin foi dedicado às técnicas de combate com bastão. Intitulada Shaolin gunfa chan zong, (“Exposição sobre o Método Original do Bastão de Shaolin”, a que chamaremos daqui para a frente de “Método do Bastão de Shaolin”), a obra foi compilada por volta de 1610 por um especialista militar chamado Cheng Zongyou (que assinava como Chongdou) de Xiuning, área administrativa de Huizhou, na parte sul da atual Anhui. A família Cheng pertencia à elite local e seus membros no período Ming tardio incluíam vários graduados e também scholars reconhecidos. Entretanto, os interesses de Zhangyou – como o de muitos irmãos e sobrinhos dele – não estavam nos ensinamentos clássicos, mas nas artes militares. Nós temos uma descrição da casa de Cheng – Zongyou e seus irmãos – demonstrando técnicas marciais ao yamen local, bem como uma contagem de uma poderosa força militar de 80 homens treinada por Zongyou e formada inteiramente por membros de sua propriedade.[9]
Cheng Zongyou não era nem um bandido e nem um membro dos grupos militares herediários Ming - de quem se poderia esperar o desenvolvimento de maestria marcial. Na verdade, ele pertencia a um cenário de literatos, e entre seus conhecidos se contavam renomados scholars.[10] Ainda assim, as artes marciais eram sua paixão, um gosto compartilhado com outros integrantes de sua classe. O mais antigo existente manual da “escola interna” (neijia) de combate, por exemplo, foi compilado por Huang Baijia (1643 - ?), filho do renomado scholar Huang Zongxi (1610 – 1695); métodos do século XVII de combate com lança foram registrados por Wu Shu (1661 – 1695), que também foi poeta e crítico literário. Estes literatos eram freqüentemente treinados por instrutores de baixo estrato social. Sua contribuição para a história das artes marciais está ligada ao registro das técnicas, que, por sua origem nas classes iletradas, poderiam ter ficado sem registro.[11]
Em adição a esse “Método de Bastão de Shaolin”, Cheng Zongyou compilou um manual de técnicas de arco-e-flecha intitulado She Shi (“História do Arco-e-Flecha”, com prefácio de 1629)[12], bem como tratados sobre as técnicas da lança, facão e besta. Em 1621 ele lançou esses três tratados, junto com o seu manual sobre o bastão de Shaolin, em uma edição combinada intitulada Geng yu sheng ji (“Técnicas de Passatempo para depois do Trabalho no Campo”)[13]. A relativa extensão dos manuais incluídos nesta edição (que possuía várias ilustrações feitas à mão) não deixa dúvidas de que, como o próprio Cheng reconhecia, o bastão era a sua arma de escolha. A extensão do texto do “Método de Bastão de Shaolin” é a mesma dos outros três manuais combinados.
A familiaridade de Cheng com o combate com bastão se devia ao longo tempo que ele passou no mosteiro Shaolin. De acordo com seu próprio testemunho, seu aprendizado durou não menos que dez anos. Sua descrição do treinamento mostra que pelo menos um mosteiro budista forneceu à sociedade Ming tardia um original serviço de educação marcial. O ambiente de Shaolin surge de seus escritos como um lugar onde clérigos e leigos eram treinados juntos nas técnicas de combate com bastão: “O Mosteiro de Shaolin está aninhado entre duas montanhas: a da cultura (wen) e a do combate (wu). De fato este mosteiro transmitiu o método de combate com bastão e as doutrinas da seita Chan juntos, por esta razão cavalheiros de todo a região sempre o admiraram. Desde a minha juventude eu estive determinado a aprender artes marciais. Sempre que ouvia falar de um famoso professor, não hesitava em viajar para longe a fim de ganhar sua instrução. Consequentemente eu obtive o dinheiro necessário para as despesas de viagem e viajei para o Mosteiro de Shaolin, onde gastei, ao todo, mais de dez anos. Primeiro servi ao Mestre Hongji, que foi suficientemente tolerante para me admitir em sua turma. Mesmo que tenha ganho um conhecimento incompleto das linhas gerais principais da técnica, não adquiri a maestria.
Nessa época o Mestre Hongzhuan já era um homem idoso, em seus oitenta anos[14]. Não obstante, seu método de bastão era soberbo, e os monges o veneravam ao máximo. Consequentemente, me voltei a ele como meu próximo professor, e a cada dia eu aprendi novas coisas, de que nunca ouvira falar. Além disso, fiz amizade com os dois Mestres, Zongxiang e Zongdai, e ganhei enormemente por praticar com eles. Mais tarde me encontrei com o Mestre Guang´an, um dos melhores especialistas na técnica budista. Ele havia herdado a técnica de Hongzhuan em sua totalidade, e ainda a fortaleceu. Guang´an instruiu-me pessoalmente e revelou-me maravilhosas sutilezas. Mais tarde o segui fora do mosteiro e nós viajamos juntos por muitos anos. A maravilhosa complexidade das transformações do bastão, a maravilhosa leveza das suas manipulações – inicialmente eu não as havia alcançado, mas gradualmente me familiarizei e fui iluminado. Escolhi este campo como minha especialidade e acredito que alcancei algumas realizações.
Também dediquei alguma atenção à investigação do arco-e-flecha e da equitação, bem como à das artes da espada e da lança, ainda que, por essa época, minha energia de meia-idade já tivesse sido gasta. Meu grande tio, o estudante militar (wu xuesheng) Yunshui e meu sobrinho Junxin e o estudante da Universidade Nacional (taixuesheng) Hanchu estudaram comigo uma vez em Shaolin. Eles observaram que o método de bastão de Shaolin era transmitido apenas oralmente, de um mestre budista para outro. Como eu havia sido o primeiro a produzir ilustrações e a compilar por escrito fórmulas para o método, ele sugeriram que eu o publicasse para benefício para meus semelhantes. Em princípio declinei, dizendo que não estava à altura da tarefa. Mas, então, ilustres cavalheiros de toda a terra começaram a elogiar os supostos méritos do meu trabalho. Eles então me responsabilizaram pela manutenção do método em segredo, o que os privava dele. Então finalmente encontrei algum tempo livre, reuni as doutrinas passadas a mim por professores e amigos, e as combinei com o que eu havia aprendido em minha própria experiência. Contratei um artesão para fazer os desenhos, e, como meus escritos são algo medíocres, acrescentei à direita de cada desenho um fórmula rimada (gejue).
Juntos, esses desenhos e fórmulas constituem um volume, que intitulei: “Exposição sobre o Método Original de Bastão de Shaolin”. Um olhar de relance sobre um dos desenhos provavelmente seria suficiente para imaginar a posição nele representada. Dessa forma, o leitor estaria habilitado a estudar o método sem a ajuda de um professor. A despeito de sua aparente simplicidade, cada sentença captura o segredo da vitória e da derrota, cada desenho abriga a essência do movimento. Mesmo que a luta com bastão seja conhecida como uma arte trivial, neste livro ela é resultado de um esforço extenuante.
Se esse livro ajudar meus semelhantes a alcançarem o outro lado, se eles confiarem nele para fortalecer o Estado e pacificar suas fronteiras e, assim fazendo, reforçar a glória dos métodos de meus professores, outra de minhas metas terá sido cumprida.[15]
A esperança de Cheng, de que o “Método de Bastão de Shaolin” pudesse fortalecer a fama de seus instrutores monásticos, não foi frustrada. Logo depois da publicação do manual, o renomado Mao Yuanyi (1549 – cerca de 1641) comentou: “Todas as técnicas de combate derivam dos métodos de bastão, e todos os métodos de bastão derivam de Shaolin. Para o método [de bastão] de Shaolin não há descrição tão detalhada quanto... a “Exposição do Método Original de Bastão de Shaolin”, de Cheng Zongyou.”[16] Mao estava tão impressionado com o manual de Cheng que o incorporou quase que na totalidade em sua enciclopédia Wubei Zhi (“Tratado de Preparações Militares”).[17]
A exaustiva apresentação do método de bastão de Shaolin de Zheng começa com uma descrição da arma. Ele fornece especificações de altura, peso e materiais para a produção do bastão, arma que, como a maioria dos especialistas do período Ming tardio, ele chama gun. De acordo com Cheng, o bastão poderia ser produzido em madeira ou ferro. No caso do bastão de madeira, a altura recomendada variava entre 8 e 8.5 chi (o que, durante a Dinastia Ming, equivaleria uma medida entre 2,40 m e 2,50 m) e o peso entre 2,5 e 3 jin (1,4 kg a 1,7 kg). O bastão de ferro era ligeiramente menor (7,5 chi ou 2,2 metros), com peso recomendado variando entre 15 e 16 jin (8,8 kg a 9,4 kg).[18] Cheng também discute o tipo de madeira a ser utilizado na preparação do bastão: Da mesma forma como variam as regiões do país, também variam os tipos de madeira. Assim como a madeira é sólida e densa, assim como ela é ao mesmo tempo dura e flexível, crescendo e afinando da base até o alto da árvore como um rabo de camundongo, ele [o bastão] será satisfatório. Uma vara reta, que seja naturalmente livre de cicatrizes e nós, será preferível. Em contraste, se um bastão é fabricado por desbaste ou serra, ele poderá se quebrar facilmente a partir dos veios da madeira.[19]
Cheng distinguiu 53 posturas individuais de bastão (shi). Cada uma delas foi representada por um desenho, acompanhado por uma “fórmula rimada” explicativa (ver fig. 1). Posturas individuais eram colocadas juntas em seqüências de prática chamadas lushi (“seqüência de posições”). Intrincados diagramas guiavam o praticante na execução dessas seqüências que simulavam o tipo de movimento que caracterizava uma batalha real (ver fig.2). Finalmente, muitas seqüências de prática eram combinadas naquilo que Cheng chamou de um “método” (fa). Ao todo, ele listou cinco diferentes métodos de bastão de Shaolin: “O Pequeno Espírito Yaksa” (Xiao Yecha); “O Grande Espírito Yaksa” (Da Yecha) “Mãos Ocultas” (Yinshou); “Bastão que Empurra” (Pai gun); e “Bastão de Aplicação Compassada” [no original, shittling – N.T.] (Chuansuo). O “Bastão que Empurra” diferia dos outros quatro métodos por ser mais de execução em dupla do que individual; e, tanto ele quanto o método do “Bastão de Aplicação Compassada” diferiam dos outros três por serem “métodos livres sem posições fixas” (huo fa wu ding shi).[20]
De acordo com Cheng, todos os cinco métodos eram originários do mosteiro. A esse respeito, não é por acaso que a palavra “original” (zong) aparece no título de seu manual: “Exposição do Método Original de Bastão de Shaolin”. A meta de Cheng era expor o que ele afirmou serem autênticas técnicas de Shaolin, distintas dos numerosos outros métodos que – ainda que carregassem o nome do mosteiro – haviam sido há muito removidos do ensinamento original. Sua observação sobre a originalidade do método reflete a fama que o mosteiro de Shaolin havia adquirido no início do século XVII. Não fosse por seu reconhecimento, praticantes de outras técnicas não teriam desejado capitalizar sobre o nome do mosteiro e nem Cheng teria alertado para o fato de estar apresentando o método “original” de bastão de Shaolin.
Assim, o “Método de Bastão de Shaolin” revela um cenário familiar no atual mundo das artes marciais: de competição entre escolas, com cada uma afirmando ser a única herdeira de um mesmo ensinamento original. A rivalidade entre especialistas em artes marciais que chamavam para si a posse do “autêntico” ensinamento de Shaolin é mais visível na seção de “Perguntas e Respostas” do “Método de Bastão de Shaolin”, onde Cheng coloca o seguinte questionamento, feito por um interlocutor hipotético: “Hoje não há poucos especialistas no bastão de Shaolin. E seus métodos, todos, variam entre si. Como é possível que, pela escolha de um professor diferente, um praticante termine por aprender uma técnica diferente?
Eu expliquei: “Os ensinamentos derivam todos da mesma fonte. Ainda assim, com a passagem do tempo as pessoas voltaram suas costas para esse fato. Professores estimam métodos incomuns, e preferem técnicas estranhas. Algumas pegam a seção inicial desta seqüência de prática (lu) e misturam com a seção de fechamento daquela seqüência. Outros tomam a seção de encerramento daquela seqüência e a misturam com a seqüência intermediária desta seqüência. De tal forma que, aquilo que era originalmente uma seqüência acaba sendo transformado em duas. Assim, professores confundem o mundo e levam os praticantes a erro, tudo em busca de fama e fortuna. Estou muito magoado com essa situação e é exatamente por isso que estou lutando para colocar as coisas direito.”[21]
Ainda que a exposição de Cheng sobre o bastão de Shaolin seja a mais detalhada, ele não foi o único especialista a discutir o tema. Ao contrário, referências sobre as técnicas de combate com bastão vindas de Shaolin aparecem regularmente em enciclopédias militares do período Ming tardio, a começar pela obra Wu bian (“Tratado de Assuntos Militares”), de Tang Shunzhi (1507 – 1560), escrita cerca de sete anos antes da publicação do manual de Cheng.[22] Outras compilações militares que apresentam o bastão de Shaolin incluem Jixiao xinshu (“Novo Tratado sobre Eficiência Militar”, de cerca de 1562), escrito pelo renomado general Qi Jiguang (1528 – 1588); “Tratado de Preparações Militares”, pelo supra-mencionado Mao Yuanyi; e Zhenji (“Registros de Táticas Militares”), de autoria do comandante militar He Liangchen (fl. 1565)[23]. Esta última publicação indica que houve uma extensão das artes marciais de Shaolin para fora dos círculos monásticos. Ela registra que o método de bastão de Shaolin foi transmitido aos monges do “Monte Niu”, nome que provavelmente se refere ao centro monástico situado no monte Funiu em Henan [24]
Especialistas militares do período Ming tardio normalmente não poupavam elogios ao método de bastão de Shaolin. Qi Jiang, por exemplo, listou-o entre as famosas técnicas de luta de sua época, e Mao Yuanyi concluiu que ele serviu como fonte de todos os demais estilos de bastão. Ainda assim, as críticas de autores do período ao método não foram menos significativas. Artistas marciais que desaprovavam o método de Shaolin nos proporcionam detalhadas informações a respeito. Isto é especialmente verdadeiro no caso daqueles especialistas militares que viram na ênfase de Shaolin sobre o bastão uma falha, porque eles oferecem o mais poderoso testemunho de sua posição central [da posição do bastão] no regime do mosteiro.
Um especialista que questionou a concentração de Shaolin sobre as técnicas de bastão, argumentando que elas apresentavam resultados desprezíveis e que implicavam em distorção no treinamento de outras armas, foi Wu Shu. Wu nasceu às margens do rio Lou (conhecido atualmente como Liuhe), na área administrativa de Taicang, a cerca de 50 km de Suzhou, na atual Jiangsu. Como Cheng Zongyou ele possuía formação de literato e, sob seu outro nome, Wu Qiao, tornou-se conhecido como o autor de Weilu shihua (“Conversas Poéticas junto à Fogueira”).[25] Wu foi um especialista em combate com lança, arma que começou a estudar em 1633, sob a orientação de um especialista chamado Shi Dian (hao: Jingyan) (?–1634). Cerca de 40 anos mais tarde ele reuniu seus estudos em uma antologia intitulada Shou bi lu (“Registro de Mãos e Armas”, com prefácio de 1678), que inclui sete diferentes manuais.[26] Um deles, Menglü tang qianfa (“Método de Lança do Salão do Sonho da Folhagem”) é atribuído ao monge Shaolin Hongzhuan, que Cheng Zongyou menciona como seu professor de bastão. Ainda que tenha incorporado o manual de Hongzhaun a sua antologia, Wu foi muito crítico em relação ao método de Shaolin ali representado. “[Monges de] Shaolin não entendem nada de luta com lança”, ele frisou. “Na verdade, eles empregam sua [técnica] de bastão para a lança.” (Shaolin quan bu zhi qiang, jing yiqi gunwei qiang).[27] Em outras palavras: como enfatizavam demais o treinamento do bastão, os monges Shaolin falhavam ao tentar apreender os aspectos únicos da lança, como Wu explica:
O método de bastão de Shaolin tem origem divina e ganhou fama desde a antigüidade até nossos dias. Eu mesmo estive profundamente envolvido nele. Certamente, é tão alto quanto as montanha e tão profundo quanto o mar. Pode, certamente, ser chamado de “técnica suprema” (jueye)... Ainda assim, uma arma como a lança é inteiramente diferente do bastão. O velho provérbio diz: “A lança é o senhor de todas as armas e, em seus domínios, o bastão é um assistente.” Certamente, isto é assim... Os monges de Shaolin nunca tiveram consciência disso. Eles tratam a lança e o bastão como se fossem armas similares.[28]
Se Wu Shu desaprovava a negligência dos monges por outras armas que não o bastão, outro especialista militar, Yu Dayou (1503 – 1579) criticava diretamente o método de bastão de Shaolin. Yu passou à História como um general bem-sucedido que serviu como comandante regional em cinco das áreas de fronteira da China. Ele nasceu em uma família de militares em Jinjiang, Fujian, e o brilhantismo de sua carreira militar foi esteve ligado, em grande parte, ao sucesso com que ele suprimiu a pirataria ao longo da costa sudeste da China.[29] Yu se distinguiu não apenas como um estrategista, mas também como um artista marcial completo. Ele se especializou em um método de bastão conhecido como Jingchu changjian (“Espada Longa de Jingchu”), e compilou um manual sobre combate com bastão intitulado Jianjing (“Clássico da Espada”), pelo qual recebeu elogios de especialistas militares contemporâneos.[30]
Intrigado pelo renome de Shaolin, Yu viajou até lá em 1560 para observar a técnica monástica de luta, mas, segundo seu próprio registro, ficou profundamente desapontado. A arte no mosteiro havia decaído tão profundamente, afirmou, que ele mesmo acabou por repassar suas próprias técnicas marciais aos monges. No registro seguinte de sua visita ao mosteiro, Yu utiliza a palavra “espada” (jian) para descrever o bastão, como mostra no título de seu manual:[31]
Eu ouvi falar que o Mosteiro de Shaolin em Henan possui um método de esgrima (jijiang) [isto é, de luta de bastão] transmitido divinamente. Mais tarde, quando eu estava em meu caminho de volta de Yunzhong [em Shanxi], segui pelo trajeto para o mosteiro. Mais de dez monges que se consideravam especialistas neste método deram-me uma demonstração. Imaginei que o mosteiro havia perdido os antigos segredos da arte e, abertamente, disse isso para eles. Os monges imediatamente manifestaram o desejo de ser instruídos, ao que respondi: “Uma pessoa deve dedicar muitos anos para atingir a maestria nesta técnica.” Então eles escolheram dois jovens e corajosos monges dentre os do próprio grupo, um chamado Zongqing e o outro Pucong, que seguiram comigo para o Sul e fixaram residência em meus quartéis. Eu ensinei a eles a “Verdadeira Fórmula das Transformações de Yin e Yang”[32], bem como os profundos e esclarecedores imperativos.
Depois que mais de três anos se haviam passado, os dois disseram: “Nós já estamos aqui por tempo suficiente. Pedimos permissão para retornar, para que possamos ensinar a nossos confrades monges o que aprendemos. Dessa forma, o [vosso] método será transmitido para sempre.” Assim, os deixei ir. Treze anos se passaram rapidamente quando um dia, inesperadamente, minha sentinela anunciou que um monge desejava me ver. Ele foi trazido para dentro e – eis que era Zongqing! Ele me disse que Pucong já se havia reunido entre os seres divinos e que apenas ele, Zongqing, havia retornado ao mosteiro de Shaolin, onde ensinou as Fórmulas de Espada (jianjue) [isto é, as fórmulas de bastão] e regras Chan. Entre os monges, pelo menos uma centena adquiriu profundo conhecimento da técnica. Então, ela poderá ser transmitida para sempre![33]
O general Yu tinha a impressão de que seu método de bastão poderia ser transmitido para gerações no mosteiro de Shaolin. Teria ele superestimado seu impacto sobre a tradição de Shaolin? Um exame do manual de Cheng Zongyou mostra que a técnica de bastão que ele aprendeu em Shaolin – cerca de 50 anos depois da visita de Yu ao mosteiro – era completamente diferente da delineada no “Clássico da Espada”. Os dois estilos de bastão – o ensinado pelo general e o estudado por Cheng – variam em tudo, dos nomes dos métodos (fa) e posições (shi) às fórmulas rimadas e ilustrações.[34]
Além disso, nós podemos identificar pelo menos parte da nomenclatura presente no “Método de Bastão de Shaolin”, de Cheng, em uma enciclopédia que antecedeu o encontro de Yu com os monges Shaolin.[35] Claramente, pode-se observar que uma tradição própria de combate de bastão Shaolin, anterior à visita do general ao mosteiro, continuou a prosperar lá depois dela.
O general Yu julgou mal sua influência sobre as técnicas de combate de Shaolin, mas não é impossível que ele tenha deixado uma marca nelas. Um indício disso é fornecido pela seguinte passagem de “Registro de Mãos e Armas”, de Wu Shu, que foi compilado cerca de cem anos depois da visita do general a Shaolin:
O Mosteiro de Shaolin possui um método de combate chamado “Interceptação de Cinco Tigres” (Wuhu lan). “Um golpe em cima, um golpe embaixo” (yi da yi jie) - a técnica se resume a isso. Golpeando embaixo, o bastão pode alcançar o solo; golpeando em cima, pode atingir a cabeça. É um método simples, e não há nada de espetacular nele, é quase como [o movimento de] um fazendeiro escavando o solo. Ainda assim, praticando por tempo suficiente é possível chegar ao refinamento. “Golpeando alto e baixo” (dajie), alguém pode obter força. Mesmo as demais técnicas de Shaolin temem este método. Apenas por ser tão simples é que ele pode não ser captado facilmente (377,l 4).[36]
Wu Shu destaca a fórmula “um golpe em baixo, um golpe em cima” como característico da “Interceptação dos Cinco Tigres”. A mesma fórmula figura proeminentemente no “Clássico da Espada” de Yu Dayu, razão pela qual o método que o professor ensinou não é outro senão, provavelmente, o descrito por Wu Shu. Se Tang Hao, que formulou está hipóteses, está correto, então por volta do século XVII os monges de Shaolin estavam engajados em dois métodos de treinamento de bastão: um, registrado no “Método de Bastão de Shaolin”, de Cheng, que é anterior à visita de Yu ao mosteiro, e o outro chamado por Wu Shu de “Interceptação dos Cinco Tigres”, que eles aprenderam do general Ming.[37]
Deixando de lado a questão referente à precisa influência de Yu Dayou sobre as artes marciais de Shaolin, resta a observação de que sua associação com o mosteiro revela uma conexão com dois segmentos da sociedade durante o período Ming tardio, que o universo acadêmico tende a ver como absolutamente distintos: a sangha budista e os militares. O general Yu tratou os monges de Shaolin como companheiros de profissão, com os quais comparou especificidades técnicas de seu campo. Sua concepção do mosteiro como uma instituição militar enriquece nosso conhecimento sobre os multifacetados papéis que o Budismo desempenhou durante o período Ming tardio.[38]
De acordo com o registro de Yu, ele instruiu os monges de Shaolin. Em outras instâncias, monges de Shaolin forneceram a maestria marcial deles para membros da classe militar. O mais claro exemplo é o dado pela campanha do século XVI contra a pirataria, em que oficiais militares da região de Jiangnan chamaram os monges de Shaolin para socorrê-los. Os monges que responderam e se uniram ao esforço de guerra não abandonaram sua identidade religiosa. Mais do que apenas se misturar a outros soldados, eles formaram suas próprias unidades militares monásticas. Ainda assim, pelo menos a um clérigo foi oferecida uma posição de comando no exército e, consequentemente, ele retornou à condição de leigo. Este monge é Liu Dechang, personagem do século XVII que foi indicado como Comandante dos Corpos Móveis (Youji jiangjun). Mesmo depois que abandonou a ordem monástica em favor do corpo de oficiais, Liu manteve contato com a alma mater monástica, aceitando como estudantes monges de Shaolin que desejavam sua instrução em métodos de luta com lança.[39]
Se monges de Shaolin trocaram experiências com generais, também se associaram à emergente comunidade de artistas marciais que não pertenciam à classe militar. Nós temos conhecimento da existência de dois membros letrados desta comunidade, Cheng Zong You e Wu Shu. Um terceiro membro (também letrado), Cheng Zhenru (fl. em cerca de 1620), não recebeu sua educação marcial em Shaolin, mas em outro centro budista, o Monte Emei em Sichuan. Cheng viajou para lá para receber instrução do monge Pu´en (fl. em cerca de 1600), cujas técnicas de lança ele, mais tarde, registrou em seu Emei qiangfa (“Método de Lança de Emei”).[40] Ele observa que Pu´en recebeu sua técnica de um ser divino, razão pela qual, talvez, o monge se mostrasse relutante em compartilhá-la. Cheng foi obrigado a passar dois anos recolhendo lenha antes que Pu´en estivesse convencido de sua sinceridade e lhe revelasse os mistérios da lança.[41]
Cheng Zhenru viajou para longe a fim de ser ensinado pelo melhor mestre lanceiro. Nisto, ele se assemelha a outros artistas marciais do período Ming tardio – monges e também leigos – que possuíam um estilo de vida itinerante. Pu´en “viajou por toda a terra, mas não encontrou rival”; Shi Dian viajou de vilarejo a vilarejo na procura por estudantes; Cheng Zongyou gastou muitos anos na estrada com seu mentor Guang´an; e o monge Shaolin Sanqi Yougong (?–1548), diz-se, reuniu cerca de mil estudantes em suas extensivas jornadas através de Henan, Hebei, Shandong e Jiangsu.[42] Pertencessem eles ao clero ou fossem leigos, estes artistas marciais itinerantes usualmente tomavam residência em templos locais. Wu Shu faz alusão à estada em um templo local chamado “Retorno da Amabilidade” (Baoben si), e, de acordo com Huang Baijia, Wang Zhengnan recebeu lições no “Templo do Buda de Ferro” (Tie Fo si).[43] Proporcionando um abrigo para o artista marcial errante, o templo local também oferecia espaço para a instrução militar.
Artistas marciais do período Ming tardio estavam normalmente, assim, na estrada, ou, como diriam os chineses, “na água”. Autores dos séculos XVI e XVII se referem a artistas marciais no contexto de “rios-e-lagos” (jianghu)[44], termo que designava a todos aqueles que possuíam uma vida “transitória”: atores, caixeiros viajantes, caçadores de fortuna e semelhantes. Poderiam artistas marciais, como outros “rios-e-lagos” itinerantes, viajar por razões econômicas? Num primeiro momento pode parecer que estes especialistas militares viajavam por razões educacionais: para estudar, ensinar ou testar sua força contra adversários dignos do desafio. Ainda assim, o cultivo de habilidades profissionais é difícil de separar de considerações financeiras. Presumivelmente professores eram remunerados por estudantes, e competições poderiam tomar a forma de performances públicas pagas por espectadores. A esse respeito, fontes da comunidade marcial do século XIX podem jogar luz sobre suas antecessoras do século XVI. Em seu Jianghu congtan (“Recolha de Conversas sobre os Rios-e-Lagos”), Yun Youke (fl. 1900) descreve em detalhes vívidos o modo de vida dos artistas marciais errantes: alguns serviam como escoltas armadas (baobiao) que acompanhavam bens em trânsito; outros viajavam para bairros e vilarejos, onde, nas feiras locais, “vendiam sua arte” em apresentações públicas de destreza marcial.[45]
A condição de mobilidade criou um elo de ligação entre artistas do Ming tardio e seus sucessores, do Qing tardio. E também associou ambos os grupos com suas representações ficcionais. Assim, tão antigo quando a ficção do período Tang, o reino itinerante dos “lagos-e-rios” foi o cenário inevitável para os feitos heróicos do “cavaleiro errante” (xiake). Seguramente, para a “ficção de artes marciais” (wushia xiaoshuo), há muito tempo os “rios-e-lagos” haviam deixado de representar apenas um meio de subsistência e, tampouco, apenas cursos d´água. Eles simbolizavam um reino de liberdade, onde as leis de família, sociedade e Estado há muito tempo não se aplicavam. Situados além da vida cotidiana, eram nos “rios-e-lagos” que os sonhos da cavalaria errante eram satisfeitos.[46]
Composições militares do Ming Tardio dão a impressão de que as artes marciais de Shaolin eram praticadas desde tempos muito recuados. Wu Shu, por exemplo, comenta: “O método de bastão de Shaolin ganhou fama desde os tempos antigos até o presente”, e Yu Dayou vai mais longe ao lamentar o declínio da lendária técnica monástica. Os Monges de Shaolin, afirma o general, “perderam os antigos segredos de sua arte”. Assumindo que estes autores do século XVI estejam corretos, e que as artes marciais de Shaolin tenham de fato se originado muito antes de sua época, por que é durante o período tardio da Dinastia Ming que nós somos inundados por informação a seu respeito? Que circunstâncias do século XVI poderiam explicar o súbito interesse pelas técnicas de combate dos monges?
A média das enciclopédias militares do Ming tardio pode dar uma explicação parcial sobre o porquê de as artes marciais de Shaolin – mesmo que tenham sido praticadas anteriormente – só terem sido descritas por essa época. O século XVI testemunhou a publicação de numerosas compilações militares, nas quais uma grande variedade de tópicos – de canhões e navios de guerra à luta monástica – foi discutida.[47] Uma outra razão, mais significativa, para o crescimento de interesse pelos monges guerreiros foi o declínio do exército regular Ming. Por volta da metade do século XVI, o exército estava em um tal estado de calamidade que “as instalações de defesa do império, junto com seus marcos logísticos, haviam em grande parte desaparecido.”[48] A situação era tão grave que, em 1550, o príncipe mongol Altan foi capaz de saquear os subúrbios de Beijing. A deterioração do exército hereditário Ming se refletiu na atenção dada a uma grande variedade de tropas locais (xiangbing), que poderiam se recrutadas para suplementá-lo. Analistas militares produziram comentários sobre a capacidade de luta de grupos tão diversos quanto os monteses (de Henan), arremessadores de pedras (de Hebei), marinheiros (de Fujian) e trabalhadores do sal (de muitas províncias).[49] Como no caso dos monges de Shaolin, uma atenção particular foi dada às capacidades militares desses grupos em relação à campanha anti-pirataria da metade do século XVI, de que eles tomaram parte.
As décadas de 1540 e 1550 testemunharam incursões piratas pelas costas leste e sudeste da China com uma freqüência numa escala sem precedentes. Os piratas, que eram conhecidos como wokou (literalmente, “bandidos japoneses”), incluíam, além de japoneses e outros estrangeiros, um grande número de chineses que estavam ligados ao comércio marítimo ilegal. Seus ataques eram especialmente pesados na região costeira de Jiangnan, onde eles pilhavam não apenas os campos, mas, também, cidades muradas. Em 1554, por exemplo, a cidade de Songjiang foi capturada e, seu magistrado, condenado à morte. O governo encontrou tremenda dificuldade em suas tentativas de controle da situação em parte porque as autoridades locais estavam envolvidas no comércio com os bandidos e, em parte, em função do declínio do exército regular. A ordem em Jiangnan não foi restaurada antes de 1560, e isso foi só possível graças aos esforços dos acima mencionados generais Yu Dayou e Qi Jiguang.[50]
Muitas fontes do século XVI atestam que, em 1553, durante o período mais grave das incursões de piratas, oficiais militares de Jiangnan decidiram mobilizar Shaolin e outras tropas monásticas. O registro mais detalhado está em “A Primeira Vitória dos Exércitos Monásticos” (Seng bing shou jie je), de Zheng Ruoceng, incluído em seu Jiangnan jing lüe (“A Defesa Estratégica da Região de Jiangnan”, com prefácio de 1568).[51] Ainda que nunca tenha passado em exames, Zheng ganhou a reputação de geógrafo especialista nas regiões costeiras chinesas. Por essa razão, foi selecionado em 1560 como conselheiro por Hu Zongxian (1511 – 1565), que era, então, o supremo comandante dos exércitos em Fujian, Zhejiang e na chamada “Região Metropolitana Sul” (a atual Jiangsu). A permanência de Zheng no quartel-general de Hu deve ter contribuído para a sua familiaridade com a campanha contra a pirataria, com a qual este estava envolvido.[52]
Examinando o registro de Zheng e de outros autores da época é possível determinar o nome do oficial que iniciou a mobilização dos monges: foi Wan Biao (hao: Luyuan, 1498–1556), que serviu como vice-comissário-em-chefe na Comissão de Chefatura Militar em Nanjing.[53] É possível indicar pelo menos quatro batalhas que tiveram a participação de tropas monásticas. A primeira delas aconteceu na primavera de 1553, na área do Monte Zhe, que controlava a entrada do Golfo de Hangzhou, através do rio Qiantang, para a cidade de Hangzhou.[54] As outras três batalhas foram travadas na rede de canais do delta do rio Huangpu (que, durante a Dinastia Ming, pertencia à área administrativa de Songjiang): em Wengjiagang (julho de 1553), a Majiabang (primavera de 1554) e em Taozhai (outono de 1555).[55] A incompetência de um general do exército levou a uma derrota dos monges na quarta batalha, com quatro mortes em suas fileiras. Os restos mortais dos quatro monges foram sepultados sob o “Stupa dos Quatro Monges Heróicos” (Si yi seng ta), no monte She, a cerca de 37 km da atual Xangai.[56]
Os monges obtiveram sua maior vitória na batalha de Wengjiagang. No dia 21 de julho de 1553, 120 monges guerreiros derrotaram um grupo de piratas, perseguindo os sobreviventes por dez dias ao longo da rota sul, que tinha extensão de cerca de 32 km, na direção de Wangjiazhuang (na área costeira da área administrativa de Jiaxiang). Lá, no dia 31 de julho, o último bandido foi morto. No total, mais de cem piratas morreram, enquanto os monges tiveram apenas quatro baixas. Efetivamente, os monges não tiveram piedade de ninguém nesta batalha – um deles usou um bastão de ferro para matar a esposa de um pirata, que tentava fugir (Zheng Ruoceng não comenta nada sobre a não-observância, pelos monges, da regra budista que proíbe os assassinatos, ainda que, neste caso, a mulher assassinada estivesse presumivelmente desarmada).[57]
Nem todos os monges que participaram da vitória na batalha de Wengjiagang eram provenientes do mosteiro de Shaolin, e enquanto alguns possuíam alguma experiência militar prévia, outros presumivelmente foram treinados ad hoc para a batalha. Ainda assim, o clérigo que os levou à vitória havia recebido sua educação militar em Shaolin. Seu nome era Tianyuan, e ele foi exaltado por Zheng tanto por suas capacidades marciais quanto por seu gênio estratégico. O autor se referiu, por exemplo, à facilidade com que o monge Shaolin derrotou 18 monges de Hongzhou que desafiaram seu comando das tropas monásticas.
Tianyuan disse: “Eu sou um verdadeiro Shaolin (Wu nai zhem Shaolin ye). Existe alguma arte marcial na qual vocês sejam bons o suficiente para justificar sua reivindicação de superioridade sobre mim?” Os 18 monges [de Hangzhou] escolheram dentre eles oito homens para desafiá-lo. Os oito imediatamente atacaram Tianyuan usando suas técnicas de combate com as mãos vazias. Tianyuan estava esperando por isso sobre o terraço aberto diante do muro. Seus oito assaltantes tentaram escalar as escadas vindo do jardim situado embaixo. Entretanto, ele os viu chegando e golpeou-os com seus punhos, impedindo-os de escalar. Os oito monges correram em torno da entrada na parte de trás do muro. Então, armados com espadas, eles se apressaram através do muro rumo ao terraço em frente. Eles investiram com suas armas contra Tianyuan, que rapidamente agarrou a comprida barra usada para trancar o portão e golpeou horizontalmente. Eles tentaram com todas as forças, mas não conseguiram penetrar no terraço. Ao contrário, foram batidos por Tianyuan.
Yuekong [o líder dos desafiantes] rendeu-se e implorou perdão. Então, os 18 monges se prostraram na frente de Tianyuan e declararam sua submissão.[58]
A descrição das habilidades marciais de Yuekong provavelmente soaria familiar para leitores do gênero ficção em artes marciais. Vários aspectos da narrativa de Zheng Ruoceng se tornaram características deste gênero literário imperial tardio e moderno. Novelas de artes marciais (e, mais recentemente, filmes) normalmente celebram heróis que, sozinhos e desarmados, derrotam tropas de adversários fortemente armados.[59] Entretanto, na perspectiva de Zheng Ruoceng, as habilidades marciais de Tianyuan não eram fictícias. Este analista militar do século XVI estava tão impressionado com as habilidades marciais dos monges de Shaolin que tentou persuadir o governo para fazer uso regular de exércitos monásticos: Nas artes marciais atuais não há, nesta terra, quem não se renda a Shaolin. Funiu [em Henan] pode ser colocado em segundo lugar. A razão principal [para a excelência de Funiu] é que seus monges, procurando se proteger contra os mineiros, estudaram em Shaolin. Em terceiro lugar vem Wutai [em Shanxi]. A fonte da tradição de Wutai é o método da “Lança da Família Yang” (Yangjia qiang), que foi transmitida por gerações dentro da família Yang. Juntos, estes três [centros budistas] compreendem centenas de mosteiros e incontáveis monges. Nossa terra é sitiada internamente por bandidos e externamente por bárbaros. Se o governo lançar uma ordem para o recrutamento [desses monges], irá ganhar toda batalha de que participar.[60]
Zheng pode ter superestimado o poder das forças monásticas do século XVI, e ele provavelmente exagerou a contribuição delas na guerra contra a pirataria. Além de tudo, a participação clerical nesta campanha foi limitada. A maior unidade monástica – na batalha de Wengjiagang – contava com 120 guerreiros, e as outras incluíam não mais do que dúzias cada. Portanto, apesar da qualidade técnica e da coragem de soldados individuais, tropas monásticas podem não ter tido um grande impacto sobre a campanha. Ainda assim, Zheng estava convencido que monges guerreiros poderiam prestar grandes serviços ao Estado. Seu chamado pelo recrutamento dos monges foi ouvido? Estiveram os monges de Shaolin envolvidos com outras campanhas além da referente à guerra contra a pirataria?
Como havia acontecido durante as guerras contra a pirataria, as autoridades provinciais de Henan perceberam o potencial militar dos monges de Shaolin e os chamaram para participar de campanhas locais. Em 1552, por exemplo, 50 monges de Shaolin liderados por Zhufang Cangong (1516–1574) contribuíram para a bem-sucedida ofensiva do governo contra o bandido de Henan Shi Shangzhao.[61] Em outra ocasião, na década de 1630, monges de Shaolin foram conscritos por um magistrado no condado de Shanzhou, Oeste de Henan, para acalmar descontentamentos locais. Aqueles eram os anos finais da dinastia [Ming], e o tecido governamental estava esgarçado. O magistrado, chamado Shi Jiyan, não pode mais contar com o suporte da capital. Consequentemente, pegou dinheiro do próprio bolso para financiar uma milícia local. Alistou monges de Shaolin para treiná-la e obteve muitas vitórias antes de ser derrotado pelas tropas muito mais numerosas do líder rebelde Ma Shouying, que era mais conhecido pelo apelido de Lao Huihui (“Companheiro Muçulmano”).[62]
A contribuição dos monges de Shaolin para campanhas militares em Henan – como sua distribuição na região costeira de Jiangnan – prova que o treinamento monástico foi endossado por pelo menos alguns dos oficiais Ming. Assim, é geralmente aceito que o governo Ming tenha visto com bons olhos a prática marcial em Shaolin. Um scholar vai mais longe ao sugerir que: “As tropas do mosteiro de Shaolin foram transformadas em uma força militar especial, subordinada ao aparato militar do governo”.[63] Ainda assim, se alguns oficiais Ming davam as boas-vindas para o treinamento militar monástico, outros tinham profundas suspeitas a seu respeito. Dentro do governo havia aqueles que temiam que os monges voltassem suas habilidades marciais contra o establishment. Em seu Yu Zhi (“Notícia de Henan”, de cerca de 1595), por exemplo, Wang Shixing (1547–1598) critica severamente os monges guerreiros como sendo propensos ao banditismo e à revolta. Wang, que alcançou postos de censor em altos escalões do governo, condenou toda a comunidade monástica de Henan por sua cumplicidade com bandidos e rebeldes integrantes de seitas, guardando os monges de Shaolin para as reprovações mais ásperas.[64]
A “Notícia de Henan”, de Wang, delineia as tristes condições sócio-econômicas na província, jogando uma nova luz sobre a emergência das artes marciais por lá. Uma imagem sombria da grave miséria que assolava a região surge de seu relato, que descreve, por exemplo, a fome dos anos de 1593-1594 na área administrativa de Runing, na região sul de Henan, onde ocorreu canibalismo: “Pessoas eram assassinadas para ser comidas... carne humana era vendida abertamente, sendo colocada nas lojas dos açougueiros.”[65] A fome resultou em declínio da lei, e Wang enumerou a miríade de tipos de foras-da-lei, de jogadores aos notórios mineiros (kuangtu), para quem “minerar era uma vocação, e matar pessoas um meio de vida.”[66] É nesse contexto que ele discute o clero de Henan, que acusa explicitamente de banditismo e revolta: Os monges de Henan nunca obtém certificados de ordenação (dudie). Hoje eles raspam a cabeça e se tornam monges; amanhã, deixam o cabelo crescer e retornam à laicidade. Eles fazem o que querem. Consequentemente, sempre que o Ensinamento do Lótus Branco emerge, são milhares sobre milhares que a eles se unem, e o governo não tem como investigar. Bandidos (dao) também freqüentemente raspam suas cabeças, mudando a aparência e se unindo à ordem monástica. Quando os problemas acabam, retornam à condição de leigos. Não importa que sejam sedentários ou itinerantes, você não vai encontrar um monge entre mil que não beba vinho ou [não] coma carne.”[67]
Como Barend ter Haar mostrou, durante o Período Ming o termo “Ensinamento do Lótus Branco” (Bailian jiao) raramente significou uma religião com este nome. Ao contrário, oficiais de governo usaram a denominação para denunciar todos os grupos apontados como suspeitos (acertada ou erradamente) de intenções sediciosas.[68] O uso do termo feito por Wang Shixing é um perfeito exemplo. Ele não examina se havia um único grupo em Henan que se auto-denominava “Ensinamento do Lótus Branco” e nem se suas opiniões eram semelhantes às de outras congregações de mesmo nome. Certamente Wang não poderia se importar com a teologia das seitas na província. Antes, pelo uso do rótulo “Ensinamento do Lótus Branco”, ele alertou seus colegas oficiais de que os monges de Henan eram perigosamente sediciosos. Wang não hesitou em “abrir fogo” contra os mosteiros por admitir em suas fileiras bandidos fugitivos, e sua acusação de que os monges bebiam vinho e comiam carne serviu para criar a mesma impressão: a indiferença para com as prescrições dietéticas indicava que a maioria dos internos nos templos de Henan não era de monges verdadeiros.
Wang Shixing reserva uma diatribe especial para os monges de Shaolin, que, afirma, não apenas violavam as leis budistas referentes à dieta: segundo Wang, eles também não sabiam nada a respeito do Budismo Chan. Por exemplo, não estavam familiarizados com as práticas elementares de gritos e golpes utilizadas pelos mestres Chan para “chacoalhar” seus discípulos e levá-los à iluminação.[69] Os residentes de Shaolin, resume, eram vagabundos que gastavam seu tempo bebendo, comendo e lutando: Sobre Shaolin, apenas os monges itinerantes, que viajam para longe, mantém seus preceitos budistas, como seria condizente em um mosteiro. Seus próprios monges [de Shaolin] bebem vinho, comem carne e praticam artes marciais (xiwu jiaoyi). Eles conhecem apenas o combate com as mãos livres (quan) e também com a lança (gun), e não sabem nada sobre o bater e gritar [do Budismo Chan].[70]
Assim, pode-se observar que a atitude do governo Ming para com as atividades militares de Shaolin estava longe de ser uniforme. Ainda que alguns oficiais pretendessem confiar nas tropas monásticas nos campos de batalha, outros suspeitavam das intenções revoltosas dos monges guerreiros.[71] Entretanto, oficiais Ming parecem unânimes em sua explanação sobre as inclinações militares dos clérigos, estabelecendo uma ligação entre as habilidades marciais destes monges e as condições de crescente violência naquela província. Wang Shixing, que acusou os monges de Henan de cumplicidade com bandidos e integrantes de seitas rebeldes, sugere que as condições de pobreza e anarquia social propiciaram um ímpeto para as atividades marciais dos monges, exatamente como fizeram com outros segmentos sociais. Zheng Ruoceng, que incitou o governo a recrutar tropas monásticas, é da mesma opinião. Em seu ensaio “A Primeira Vitória dos Exércitos Monásticos”, ele observou que os monges de Funiu (na região sul de Henan) haviam recebido instrução marcial em Shaolin visando autoproteção contra os mineiros, cujas atividades criminosas são apresentadas no relato de Wang. Confrontados, os dois escritores indicam que a anarquia reinante em Henan contribuiu para as inclinações marciais da população monástica local.
Se as condições sócio-econômicas de pobreza e violência em Henan fornecem uma explicação parcial para a evolução do combate entre os monges, nós também poderíamos esperar delas a produção de outros métodos militares. É significativo que, no período Ming tardio e durante todo o Qing, Henan foi um solo fértil para artes marciais. O mundialmente conhecido Tai-Chi-Chuan nasceu (provavelmente no século XVII) no vilarejo de Chenjiagou, a cerca de 50 km ao norte do mosteiro de Shaolin, e Chang Naizhou (fl. 1760) compilou seu manual de artes marciais próximo de Sishui.[72] Os estilos Baguaquan, também originário de Henan (provavelmente no século XVIII) e Xingyiquan, nascido próximo de Shanxi, também eram praticados lá. De modo semelhante, o Bajiquan originou-se em Henan, ou na próxima – e igualmente pobre – província de Hebei.[73] O mosteiro de Shaolin estava situado, por conseqüência, em uma região onde nasceram muitas das técnicas de combate do período imperial tardio.
Scholars indicaram a importância da violência endêmica para a história das artes marciais nos planaltos do norte da China. A economia predatória transformou as artes marciais em um elemento integral da sociedade rural em toda a Henan e também nas províncias vizinhas. Roubados de suas colheitas, os habitantes dos vilarejos formavam milícias de autodefesa que freqüentemente eram usadas para pilhar a produção de outros vilarejos. Como Joseph Esherick e Susan Naquin mostraram, a prática marcial no nível dos vilarejos serviu como pano de fundo para rebeliões como as de Wang Lun (1774), dos Oito Trigramas (1813) e dos Boxers (1898–1900), que varreram completamente Henan, Hebei e Shandong.[74] Douglas Wile conclui que a cruel ecologia das planícies do norte da China desempenhou um papel crucial para a evolução do método de Tai-Chi-Chuan de Henan.[75]
Suspeitas a respeito das intenções sediciosas dos monges não eram provavelmente incomuns na sociedade do século XVII. Fossem elas fundadas ou não, a percepção de que os monges poderiam se rebelar está refletida em pelo menos uma história vernacular, incluída na coleção anônima Zuixing shi (“A Pedra da Temperança”, de cerca de 1650). A história, escrita depois da conquista Manchu mas ambientada no período Ming, é intitulada “Kuang heshang wang si dabao; yu shushi kong she nimou” (“O monge maluco sonha loucamente com o trono imperial; o estúpido adivinho em vão arquiteta planos de revolta”).[76] Seu protagonista é um monge chamado Mingguo, que estuda técnicas de combate com bastão no mosteiro de Shaolin (o narrador comenta que o mosteiro é famoso por seu método de combate). Um estúpido adivinho examina as características de Mingguo e lhe garante que ele está destinado a assumir o trono imperial. Enganado por essa profecia, o ensandecido clérigo abandona a vida monástica e acaba envolvido em um plano revolucionário. Acaba preso e executado, juntamente com o sortista e com todos os demais envolvidos na sedição.
O argumento utilizado pelo adivinho para convencer o monge Mingguo é interessante. A fim de convencê-lo da possibilidade de concretização do futuro previsto, ele evoca o nome de outro monge que chegou a imperador. É o nome do fundador da Dinastia Ming, Zhu Yuanzhang (1328–1398), que começou sua carreira como noviço no mosteiro de Huangjue, em Fengyang, Anhui. Não há evidências de que Zhu, que entrou no mosteiro aos 16 anos, tenha praticado artes marciais. Ainda assim, sabe-se que, depois de viver lá até os 33 anos, ele se tornou comandante de um exército, com o qual conquistou o Império Chinês.[77] A esse respeito, portanto, o sortista não mentiu. Pelo menos um monge havia se tornado um líder militar e estabelecido uma dinastia que durou 300 anos.
O debate travado no século XVI a respeito da lealdade dos monges ao Estado nos proporciona informações a respeito do armamento que eles usavam. Zheng Ruoceng, que apelou ao governo para que empregasse monges de Shaolin, alerta para o fato de que eles não utilizavam apenas o bastão. Em seu relato sobre a campanha contra pirataria, ele observou que os monges usavam – além dos bastões – tridentes de aço (gangcha) e lanças dotadas de ganchos (gouquiang)[78]. Outras fontes do período Ming tardio confirmam que monges de Shaolin eram treinados em várias técnicas militares, além da de combate com bastão. Wu Shu discute o método de lança de Shaolin, Cheng Zongyou reconhece o fato de que os monges se envolviam em confrontos corporais sem armas (quan)[79]. “Aqueles [monges de Shaolin] que se aplicavam em combates de mãos livres”, observa, “faziam isso com a esperança de alçar a técnica ao mesmo nível de perfeição alcançado pela luta com bastão.”[80]
Ainda assim, mesmo autores que atribuíram outras armas a Shaolin não deixam dúvida de que os monges eram especialistas no bastão. Wu Shu critica os clérigos de Shaolin por aplicarem técnicas de bastão à lança, e as ilustrações de monges de Zheng Ruoceng se referem invariavelmente a bastões ou a armas usadas como tal. Em uma historieta ele celebra as habilidades de Tianyuan, que usou uma tranca de portão como bastão; em outra, fala de um monge chamado Guzhou que usou um bordão para atingir oito assaltantes. Esta segunda vinheta descreve o oficial militar Wan Biao, que iniciou a mobilização dos monges de Shaolin contra os piratas: Os três oficiais provinciais (sansi) zombaram de Luyuan: “Monges são inúteis”, disseram. “Por que você os honra, então?” Luyuan falou para ele de algumas realizações culturais e militares dos monges. Os três oficiais provinciais sugeriram discutir o tema bebendo vinho, então Luyuan arranjou um banquete no Portal Yongjin [em Hangzhou]. Os três oficiais provinciais chegaram e, secretamente, ordenaram a oito instrutores militares que preparassem uma emboscada. Eles insistiram com Luyuan para que convidasse um eminente monge para debater com eles. Lyuyan convidou Guzhou, que não sabia do que se tratava e foi alegremente. Quando Guzhou chegou, os oito instrutores militares, cada um armado com um bastão, saltaram sobre ele e começaram a golpeá-lo por todos os lados. Guzhou estava completamente desarmado e usou as mangas de sua túnica de monge para escapar dos golpes. Um dos bastões ficou preso em sua manga e ele, sem esforço, o agarrou e começou a contragolpear os oito assaltantes. Ele instantaneamente os jogou no chão com seu bastão. Os três oficiais provinciais irromperam em aplausos.”[81]
A tradição religiosa, mais do que fontes históricas ou militares, atesta que os monges de Shaolin eram especialistas em luta com bastão. O bastão é a única arma que, durante o período Ming tardio, influenciou os mitos e rituais do mosteiro. Antes mesmo do século XVI, monges de Shaolin buscavam justificar sua prática de bastão atribuindo-a a uma divindade budista chamada Jinnaluo (em sânscrito, Kimnara). De acordo com uma lenda originado no próprio mosteiro, Jinnaluo encarnou como um serviçal. Quando o mosteiro foi atacado por bandidos, ele empregou um bastão divino para repelir os agressores. Em agradecimento, os clérigos de Shaolin apontaram Jinnaluo como o Espírito Guardião (qielan shen) do mosteiro, e, a partir daí, passaram a praticar a divina arte do bastão. Então, os monges de Shaolin passaram a adorar uma divindade que era especializada em sua arma quintessencial.
A lenda do empunhador de bastão Jinnaluo sobreviveu em pelo menos quatro outras publicações do século XVII: no “Método de Bastão de Shaolin”, de Cheng Zongyou, no “Song Shu” (“Livro sobre o Monte Song”, com prefácio de 1612), em uma listagem oficial do Condado de Dengfeng datada de 1652 e em outra lista oficial da área administrativa de Henan, datada de 1661.[82] Ainda assim, a evidência mais antiga é epigráfica. Uma inscrição datada de 1517 em uma estela intitulada Naluoyan shen hufa shiji (“A Deidade Naluoyan protege a Lei e Mostra Sua Divindade”) contém uma versão da lenda, cuja autoria pertence ao abade de Shaolin Wenzai (1454–1524). De modo diferente do de interpretações subseqüentes, a inscrição se refere ao salvador empunhador de bastão como sendo Naluoyan (Narayana) ao invés de Jinnaluo (Kimnara): No vigésimo sexto dia do terceiro mês do período onze de Zhizeng, ano de xinmao (22 de abril de 1351), na hora si (entre nove e onze horas da manhã), quando a rebelião dos Turbantes Vermelhos (Hongjin) em Yingzhou [na área oeste da moderna Anhui] apenas começava, uma multidão de bandidos chegou ao mosteiro. Havia um santo em Shaolin que, até então, havia trabalhado na cozinha do mosteiro. Por muitos anos ele diligentemente transportou lenha e alimentou o fogão. Seu cabelo era desgrenhado e ele vinha descalço. Vestindo apenas calças de tecido fino, a parte superior de seu corpo permanecia exposta. Dificilmente dizia uma palavra da manhã até a noite, não despertando interesse entre seus companheiros monges. Seu sobrenome, lugar de nascimento e primeiro nome eram desconhecidos. Ele constantemente cultivava todos os passos da Iluminação (wanxing). Naquele dia, quando os Turbantes Vermelhos se aproximaram do mosteiro, o Bodhisattva (pusa) agarrou um atiçador de fogão (huo gun) e, poderosamente, permaneceu sozinho no ponto mais alto da montanha. Os Turbantes Vermelhos ficaram aterrorizados com ele e fugiram, após o que ele desapareceu. Pessoas procuraram por ele, mas nunca mais foi visto. Somente então puderam imaginar que ele era um Bodhisattva mostrando sua divindade. Daí por diante, ele se tornou o protetor da lei de Shaolin (hufa)[83] e passou a ocupar o assento do espírito guardião do mosteiro (qielan shen).[84]
A lenda não está desligada de eventos históricos. O mosteiro de Shaolin foi atacado por bandidos durante a rebelião dos Turbantes Vermelhos na década de 1350.[85] Como Tang Hao demonstrou, o ataque ao mosteiro aconteceu provavelmente em 1351 (como afirmado na estela em Shaolin), mas foi apenas em (ou por volta de) 1356, durante a ofensiva norte dos rebeldes, quando eles capturaram a maior parte de Henan, incluindo a cidade de Kaifeng.[86] O fato de o mosteiro ter sido pilhado e, depois, parcialmente destruído (pelos Turbantes Vermelhos ou por outros bandidos que tiraram vantagem da rebelião) é confirmado por duas inscrições do século XIV (uma datada provavelmente de 1371), que celebram sua restauração durante os primeiros anos do período Ming. Dois epitáfios, datados de 1373 e referentes a monges que viveram durante o período da rebelião, também confirmam a informação.[87]
Ainda que as fontes do século XIV confirmem que Shaolin foi atacado por volta de 1350, a versão delas para os fatos difere significativamente da versão presente na lenda do século XVI. Enquanto a mais recente se refere a uma divindade portadora de bastão que repele os Turbantes Vermelhos, a anterior não menciona nem ela e nem qualquer outro monge que tenha resistido aos agressores. Ao invés de se referir a uma vitória monástica, as fontes primitivas Ming elaboraram seus conteúdos sobre a destruição que os bandidos provocaram em Shaolin. Com efeito, os rebeldes arrancaram a cobertura de ouro aplicada às imagens de Buda e depois as quebraram, na esperança de encontrar tesouros escondidos em seu interior. A destruição do mosteiro foi tão séria que os monges foram forçados a abandoná-lo. Tang Hao conclui que eles não puderam retornar ao mosteiro pelo menos até 1359, quando a contra-ofensiva governamental, liderada por Chaghan Temür, forçou os Turbantes Vermelhos a saírem de Henan.[88]
A mais antiga versão (da estela) da lenda identifica o salvador de Shaolin como sendo Naluoyan (Narayana), que aparece na mitologia budista muito antes de sua associação com as técnicas de bastão de Shaolin. A literatura budista normalmente descreve Naluoyan como um guerreiro, armado com o legendário vajra (“jingangchu”, às vezes traduzido como “relâmpago”).[89] Como Ade aponta, desde o século XII Naluoyan era venerado no mosteiro de Shaolin. Uma estela de Shaolin, comissionada pelo abade Zuduan (fl. 1150) mostra esta assustadora divindade guardiã brandindo o vajra.[90] A mais antiga associação entre Naluoyan e Shaolin pode ser explicada porque, no início do século XVI, ele foi escolhido como progenitor das artes marciais no mosteiro. Ainda assim, na seqüência do século XVI a identidade de Naluoyan se misturou à de outra divindade budista, Jinnaluo. Talvez isso tenha ocorrido por nenhuma outra razão que não a da semelhança entre os nomes – Naluoyan e Jinnaluo – os monges de Shaolin confundiram as duas divindades. Assim, uma estela de Shaolin datada de 1575 identifica como Jinnaluo o guardião empunhador do bastão[91], nome pelo qual ele passa a ser conhecido a partir de então.
Assim como Naluoyuan, Jinnaluo é uma divindade de origem indiana. Jinnaluo é a transliteração chinesa do sânscrito Kimnara, nome que aparece nas literaturas budista e hindu. Na mitologia indiana, os Kimnaras são descritos às vezes como seres semi-divinos e semi-humanos, e algumas vezes como músicos celestiais.[92] Na China eles eram conhecidos como membros do séquito de Buda, que era composto por oito tipos de seres divinos, chamados coletivamente como “Oito Categorias de Devas, Nagas [e Outros Seres Divinos]” (Tianlong babu).[93] Uma escritura Mahayana que desempenhou um importante papel na composição dos conceitos chineses sobre Kimnara é o “Sutra do Lótus”, que foi traduzido para o chinês seis vezes. Este sutra distingue entre quatro “Reis Kimnaras”: O Rei Kimnara do Dharma (Fa Jinnaluo wang); do Dharma Perfeito (Miaofa Jinnaluo wang); do Grande Dharma (Dafa Jinnaluo wang), e o Rei Kimnara Portador do Dharma (Chifa Jinnaluo wang).[94] Algumas representações visuais de divindades tutelares em Shaolin mostram quatro Jinnaluos (Kimnaras), cada um dos quais armado com um bastão.[95]
Jinnaluo (Kimnara) é, então, uma divindade de origem estrangeira, ainda que sua aparência, na tradição de Shaolin, esteja relacionada a conceitos locais. Armando Jinnaluo com um bastão, os monges de Shaolin transformaram esta divindade budista no progenitor divino de suas artes marciais. Desta forma eles fortaleceram o prestígio de seu método de luta como tendo sido transmitido divinamente ao mesmo tempo em que, colorindo-o com uma aura budista, o tornavam condizente com o mosteiro. É notável que o apelo estabelecido pela lenda para as origens divinas do bastão de Shaolin ecoou na literatura militar contemporânea. Especialistas militares como Yu Dayou e Wu Shu se referem à origem sobrenatural das artes marciais de Shaolin.
A mais antiga versão da lenda se refere à divindade lutando com um bastão, mas não especifica se o seu método de luta foi transmitido para os monges de Shaolin. Em contraste, versões tardias do mito, como a de Cheng Zongyou, fazem uma conexão explícita entre as técnicas de luta do deus e as dos monges: “Durante o período de Zhizheng (1341-1367) da Dinastia Yuan as Tropas Vermelhas se revoltaram. O mosteiro foi seriamente devastado por esta seita (jiao). Por sorte, então alguém deixou a cozinha do mosteiro e tranqüilizou os monges, dizendo: “Vocês todos deveriam se acalmar. Eu vou dar conta deles sozinho.” Empunhando um bastão divino, ele se jogou no forno. Então, irrompendo [do forno], colocou um pé sobre o Monte Song e o outro sobre o “Forte Imperial”. As Tropas Vermelhas se desestruturaram e bateram em retirada. Os residentes do mosteiro se maravilharam com este evento. Um monge se dirigiu à multidão perguntando: “Você sabem quem expulsou as Tropas Vermelhas? Ele é o Mahasattva Guanyin (Guanyin dashi), encarnado como Rei Jinnaluo (Jinnaluo wang).” Eles confecionaram uma estátua dele em vime e, desde então, continuaram a praticar sua técnica [de luta].”[96]
Os monges de Shaolin alteraram a imagem de Jinnaluo em mais de um aspecto. Eles não apenas lhe dotaram de um bastão, como também o elevaram a uma posição em que ele nunca antes estivera: a de Bodhisattva. Na versão de Cheng Zongyou, Jinnaluo é identificado com ninguém menos do que o Bodhisattva Guanyin (Avalokitesvara), que, em algumas representações gráficas, é mostrado atrás do avatar portador do bastão (ver figura 3)[97]. Ainda assim, mesmo que a santidade de Jinnaluo tenha sido fortalecida, ela ficou cuidadosamente escondida atrás de uma fachada de um serviçal. Jinnaluo surge da lenda de Shaolin como um santo disfarçado – uma divindade encarnada em um faxineiro vestido com trapos. Além disso, apesar de sua posição como espírito guardião de Shaolin, o excêntrico santo não hesita em desafiar regras monásticas: ao invés de raspar a cabeça, ostenta uma “desgrenhada cabeleira”. A esse respeito, o divino progenitor das artes marciais se assemelha a outras divindades budistas cuja santidade é mascarada por roupas miseráveis, ocupações menores e, algumas vezes, comportamentos ultrajantes.[98] De acordo com o “Liuzu tan jing” (“Sutra Essencial do Sexto Patriarca”), mesmo o renomado Huineng (638-713) iniciou sua gloriosa carreira no Budismo Chan como o serviçal que operava um pilão na cozinha do mosteiro.[99] A origem servil do patriarca Chan e da divindade tutelar de Shaolin sugerem que a carreira do primeiro pode ter influenciado a lenda referente ao segundo. O mito de Jinnaluo faz seu protagonista tomar um símbolo de seus tempos de habitante da cozinha: o atiçador (huo gun), que em suas mãos se transforma em um bastão de combate. Assim, a origem pobre do santo foi habilidosamente associada à arma fundamental de Shaolin.
A versão de Cheng Zongyou para a lenda contém um curioso elemento: Jinnaluo, afirma o autor, se jogou em um forno do qual emergiu para apoiar os pés no Monte Song e no “Forte Imperial”. Situado no pico da montanha Shaoshi, o “Forte Imperial” dista cerca de 8 km do Monte Song.[100] Apenas um gigante de dimensões sobrenaturais poderia ter apoiado simultaneamente os pés em tais pontos, o que indica que Jinnaluo deve ter passado por um processo transformação mágica enquanto estava dentro do forno, entre as chamas. Esta informação de Cheng Zongyou é confirmada pela ilustração que acompanha seu texto (ver figura 3) e, também, pela versão de Fu Mei para a lenda, que especifica que o corpo de Jinnaluo “foi transformado e cresceu muitas centenas de metros de altura.”[101] As proporções gigantescas de Jinnaluo explicam porque os aterrorizados bandidos se dispersaram depois de vê-lo. Ele se lhes apresentou não como um mortal, mas como uma divindade.
Os poderes de transformação de Jinnaluo fazem lembrar os de outra divindade, que o mito chinês também dotou de um bastão. Ele é o amado protagonista símio Sun Wukong, do ciclo de histórias “Xiyou Ji” (“Jornada para o Oeste”). Possivelmente o mais famoso guerreiro budista da literatura chinesa, Sun Wukong aparece em um corpo de lendas a respeito da jornada histórica de Xuanzang (596-664), que viajou da China para a Índia em busca de escrituras budistas. As lendas, cuja origem pode ser traçada até o período Song, envolvem séries completas de narrativas e peças, culminando, no século XVI, com uma das obras-primas da ficção chinesa, a novela em cem capítulos “Jornada para o Oeste”[102]. Ao longo desta longa evolução literária Sun Wukong, que era conhecido como o “Monge Noviço Macaco” (Hou Xingzhe), foi equipado com um bastão mágico, peça que, em uma novela do século XVI, foi chamada de “Bastão com Argolas Douradas [que assume as dimensões] que Você Desejar” (Ruyi jingu bang). Como indicado pelo nome, as dimensões da fabulosa arma mudavam de acordo com a vontade de seu proprietário: [Sun Wukong] segurou o tesouro [isto é, o bastão] com as mãos e falou “Menor, menor, menor!” e então a peça foi encolhendo até ficar do tamanho de uma minúscula agulha de bordado, pequena o suficiente para ser escondida dentro de sua orelha. Aterrorizados, os monges gritaram: “Grande Rei! Apresente o bastão e brinque com ele mais um pouco.” O Rei Macaco tirou o bastão da orelha e colocou-o na palma da mão. “Maior, maior, maior!”, ele gritou, e novamente o bastão cresceu até ficar com a espessura de uma barrica e mais de seis metros e meio de extensão. Ele ficou deliciado brincando com o bastão até que saltou para a ponte e caminhou para fora da caverna. Ávido, segurou o bastão nas mãos e começou a fazer a mágica da imitação cósmica. Virou-se para o alto e gritou “Cresça!”, e então cresceu até ter mais de três quilômetros de altura, tendo ficado com uma cabeça como a Montanha Tai e o peito como um pico escarpado, olhos como relâmpagos e uma boca como uma tigela de sangue, e dentes como espadas e alabardas. O bastão em suas mãos era de tal grandeza que sua extremidade superior alcançava o trigésimo terceiro Céu e sua extremidade inferior o décimo oitavo círculo do inferno. Tigres, leopardos, lobos e criaturas que se arrastam, todos os monstros da montanha e reis-demônios das setenta e duas cavernas, todos eles estavam tão aterrorizados que se prostraram e pagaram homenagem ao Rei Macaco, tremendo de medo. Em alguns instantes ele desfez sua aparição mágica e transformou o tesouro novamente em uma minúscula agulha de bordado que foi guardada em sua orelha.[103]
A performance de Sun Wukong é espantosamente simliar à de Jinnaluo. Os dois guerreiros budistas estão equipados com a mesma arma mágica, e realizam a mesma transformação milagrosa que lhes permite assumir dimensões super-humanas. Qual das duas divindades “operadoras de bastão” inspirou o outro mito? Poderia o ciclo de histórias “Jornada Para o Oeste” ter servido como fonte para a literatura hagiográfica do mosteiro de Shaolin, ou, ao contrário, poderiam as lendas monásticas de Shaolin ter influenciado o personagem Sun Wukong?
Duas razões nos levam a crer que foi a lenda de Sun Wukong que inspirou o mito de Jinnaluo, mais do que o contrário: primeiramente, porque durante o período Ming tardio o ciclo de histórias “Jornada Para o Oeste” era muito mais conhecido do que a lenda da divindade tutelar de Shaolin. Enquanto este último era um mito local, familiar apenas para os residentes e visitantes do mosteiro, o primeiro foi difundido em toda a região na forma escrita e, também, em adaptações e dramatizações orais em muitos dialetos. Em segundo lugar, o ciclo “Jornada Para o Oeste” e a transformação mágica de seu protagonista símio precederam em vários séculos ao mito de Jinnaluo. Acredita-se que a mais antiga versão em prosa da jornada “Da Tang Sanzang fashi qu jing ji” (“O Mestre da Lei, Tripitaka do Grande Tang, Procura as Escrituras”) tenha sido escrita durante o período Song do Sul, aproximadamente 300 anos antes do aparecimento do espírito guardião de Shaolin. Tão antiga quanto esta narrativa do período Song é a figura do Monge Noviço Macaco, que é representado armado com um bastão mágico e que assume dimenões super-humanas.[104] Se uma das lendas influenciou a outra, é mais provável que a de Sun Wukong tenha inspirado a de Jinnaluo.
Sun Wukong não é o único guerreiro budista armado com um bastão que existe na literatura dos períodos Yuan e Ming. A tradição chinesa apresenta dois outros guerreiros que portam esta arma: Lu Zhishen, da novela de artes marciais “Shuihu zhuan” (“À Margem das Águas”), e Huiming, da novela romântica “Xixiang ji” (“A Ala Oeste”).[105]
A complexa evolução destes ciclos de histórias de monges guerreiros não pode ser abrangida por este estudo. Aqui eu vou apenas mencionar que, como no caso de Sun Wukong, a origem de suas lendas pode ser traçada até a Dinastia Song do Sul.[106] Assim, os ciclos de histórias dos três monges portadores de bastão – Sun Wukong, Lu Zhishen e Huiming – fortalecem a impressão adquirida de fontes do século XVI de que a luta monástica com bastão surgiu antes do período Ming tardio. Admitindo-se que a caracterização dos três monges da ficção tenha sido feita a partir da observação de monges reais, pode-se afirmar que a luta com bastão era praticada tanto em Shaolin quanto em outros mosteiros budistas já por volta do século XIII (há que se observar ainda assim que, nas histórias, a prática de bastão de Lu Zhishen e de Huiming é apresentada como uma peculiaridade, algo não compartilhado por seus companheiros monges).
O significado de Jinnaluo no panteão de divindades budistas de Shaolin – e da luta com bastão no regime monástico – é atestado por numerosos ícones que ainda existem no mosteiro. Em Shaolin, o Pavilhão Lixue (Lixue ting) contém uma estátua de uma divindade portadora de bastão (datada do século XVII?) e o Salão Baiyi (Baiyi dian) é decorado com um mural do século XIX representando o gigantesco Jinnaluo pisando sobre o monte Song e sobre o “Forte Imperial”.[107] Além disso, por volta do século XVIII (ou mesmo antes) Jinnaluo ganhou seu próprio espaço ritual quando uma capela foi erigida em sua honra. Uma estátua da divindade construída em vime ocupava o centro do “Salão de Jinnaluo”, que também continha imagens de ferro e bronze da divindade (ver figura 4).[108] A escultura em vime é mencionada, também, na obra do século XVII o “Método de Bastão de Shaolin”, de Cheng Zongyou. Na obra, o autor especifica que a peça foi construída pelas próprios monges. Ainda assim, uma visão comum um século depois era a de que a própria divindade a tinha feito, razão pela qual a semelhança seria acurada.[109] Esta adição à lenda de Jinnaluo reflete uma ansiedade, não incomum na religião chinesa, a respeito da veracidade de uma imagem de divindade. Os mitos de muitas divindades chinesas apresentam seus protagonistas como criadores de seus próprios ícones, provavelmente para amenizar a preocupação dos crentes com a possibilidade de estarem prestando homenagem a uma imagem visualmente enganosa.[110] A estátua de vime construída pelo próprio Jinnaluo não sobreviveu. Em 1928 ela queimou durante um incêndio que consumiu todo o Salão de Jinnaluo. O santuário foi reconstruído em 1984 e, agora, abriga três novas imagens da divindade, que é objeto de um culto religioso rejuvenescido.[111]
Fontes dos séculos XVII e XVIII observam que o culto de Jinnaluo em Shaolin distinguia o mosteiro de todos os outros templos budistas. Jinnaluo foi apontado como o “espírito guardião” (qielan shen) do templo, tarefa desempenhada na maioria dos mosteiros por outra divindade marcial: Guangong.[112] Ao contrário de Jinnaluo, Guangong não é uma divindade de origem budista. Ele foi um general do século III d.C. cuja veneração nasceu na religiosidade popular. O heróico general foi provavelmente incorporado ao panteão budista de divindades não antes da Dinastia Song, quando surgiu uma lenda surgiu a respeito de sua “iluminação póstuma”. De acordo com a lenda, o espírito de Guangong foi levado à salvação pelo monge histórico Zhiyi (538-597) e, em gratidão, passou voluntariamente a servir como divindade-guardiã no mosteiro de seu salvador.[113] até hoje Guangong ocupa o posto de divindade tutelar na maioria dos templos budistas, enquanto Jinnaluo ocupa tal lugar no mosteiro de Shaolin.[114]
Jinnaluo não foi a única divindade budista a que os monges de Shaolin armaram com sua própria arma. O “Salão dos Mil Budas” (Qianfo dian) do mosteiro de Shaolin contém um enorme mural pintado representando os “500 Arhats” (Wubai Luohan), muitos dos quais estão armados com bastões. Nesta magnífica pintura, que data da década de 1630[115], bastões aparecem em numerosos formatos, e cumprem diversas funções. Alguns são adornados com anéis de metal, identificando-os com o bastão-com-anéis budista, o xizhang (em sânscrito, khakkhara). Outros servem como bastões de apoio para caminhantes ou, então, para o transporte de cargas. Ainda assim, nas mãos de muitos arhats, o bastão assume o aspecto de uma arma. Pode-se considerar, por exemplo, o bastão portado por um intimidante arhat com nariz protuberante, grandes olhos e sobrancelhas espessas, que exemplifica a tendência dos artistas chineses a exagerar os traços exteriores dos santos Mahayana (ver figura 5)[116]. O movimento do bastão, não menos que os braços musculosos de seu portador, sugere que o mesmo é usado em combate, e o apavorante tigre contribui para a atmosfera marcial. Evidentemente, monges de Shaolin projetavam a própria arte marcial sobre os domínios das divindades Mahayana.
Porque teriam os monges de Shaolin atribuído suas técnicas de combate a divindades budistas? Visando aumentar o prestígio do mosteiro, a atribuição das mesmas aos deuses provavelmente chancelaria as artes marciais. A esse respeito, a lenda de Jinnaluo reflete a percepção dos monges do século XVI em relação à possibilidade de que sua prática marcial violasse o proibição budista tocante à vida. A divindade armada com o bastão exonerava os monges da responsabilidade pela criação de técnicas militares. Sua lenda pode ser lida, por esta razão, como uma apologia budista para o exercício monástico da violência: se uma entidade budista encarnada podia apelar para a guerra na defesa de um mosteiro, então, por conseqüência, monges budistas poderiam fazer o mesmo. Evidências de que a lenda foi entendida sob esta ótica são proporcionadas por inúmeros hinos (zan) do período Ming tardio em honra a Jinnaluo, que foram registrados no “Método de Bastão de Shaolin” de Cheng Zongyou. Os hinos visam conferir uma base moral para as ações militares da divindade na virtude budista da compaixão (ci, em sânscrito, maitra). Eles sugerem que a proteção da fé budista – mesmo quando envolve violência – é um ato de compaixão. O irmão de Cheng Zongyou, Yinwan, que assinou um hino, resume o argumento: “Compaixão”, afirma, “é cultivada através do heroísmo”.[117]
Assim, nós encontramos na literatura do período Ming tardio uma advertência a respeito da tensão entre prática marcial e a proibição budista do assassinato. A lenda de Jinnaluo pode ser interpretada como uma tentativa de solucionar esta tensão. Ela sugere que a guerra travada em defesa da fé – para a qual a divindade fornece um precedente – é permissível. É igualmente importante, ainda assim, observar algo que nós não encontramos: nenhuma peça da literatura de Shaolin do século XVII associa as artes marciais à procura pela iluminação budista. Autores do Ming tardio não sugerem que a prática marcial pode levar à perfeição espiritual e, tampouco, que esta pode fortalecer as habilidades marciais. A esse respeito, a relação entre o Budismo e as artes marciais de Shaolin difere da estabelecida no Japão. Ao mesmo tempo em que a lenda de Jinnaluo surgia, Takuan Soho (1573-1645) formulava a teoria da “não-mente” (mushin). O mestre Chan japonês argumentava que a perfeição mental é indispensável para a técnica da esgrima, como se a segunda nascesse da primeira. Séculos mais tarde, o conceito de Takuan, de conexão entre o cultivo espiritual e o marcial seriam popularizados no Ocidente graças aos trabalhos de Suzuki, Herrigel e outros.[118] Ainda assim, durante o período Ming tardio, uma retórica similar de iluminação budista não figura nas artes marciais chinesas. Pesquisas futuras poderão determinar se o seu aparecimento na China – possivelmente no século XIX – foi resultado de influência japonesa.[119]
As evidências existentes não nos permitem concluir quando os monges de Shaolin começaram a praticar artes marciais. Ainda assim, não há dúvida de que por volta do século XVI o treinamento militar figurou com proeminência no regime do mosteiro. Uma razão para a atenção dada por autores do Ming tardio às artes marciais de Shaolin foi o declínio da atividade militar profissional Ming. Alguns especialistas militares apelavam para que o governo suplementasse o exército regular com tropas monásticas, e monges lutadores efetivamente contribuíram para a campanha do século XVI contra a pirataria. Em contraste, outros oficiais governamentais guardavam suspeitas em relação ao treinamento militar dos monges, temendo deixar que os mesmos voltassem suas habilidades marciais contra o Estado.
Shaolin não foi o único mosteiro onde artes marciais foram praticadas. Fontes dos séculos XVI e XVII aludem ao treinamento militar em outros centros budistas que também merecem ser pesquisados: Monte Emei (em Sichuan), Monte Wutai (em Shanxi) e Monte Funiu (na parte sul de Henan). Além disso, combates eram praticados em vários templos locais que ofereciam abrigo para artistas marciais itinerantes. Ainda assim, os clérigos de Shaolin eram considerados os melhores monges lutadores. Uma razão para seus expressivos conhecimentos marciais era a localização de Shaolin, na área central de Henan. Pobreza e violência desenfreada integraram o treinamento militar à estrutura da sociedade em Henan, o que explica, em parte, a contribuição daquela província para as artes marciais do período imperial tardio.
A prática marcial teve reflexos sobre a tradição religiosa do mosteiro. Durante o período Ming tardio monges de Shaolin atribuíram suas técnicas de combate com bastão a uma divindade budista chamada Jinnaluo, que eles veneravam no mosteiro como sendo sua divindade tutelar. A lenda de Jinnaluo fortaleceu o prestígio das artes marciais de Shaolin e proporcionou uma sanção religiosa às atividades militares dos monges. A lenda trai a influência da ficção e drama do período Ming. Jinnaluo foi parcialmente construído a partir do portador de bastão Sun Wukong, o símio protagonista do ciclo de histórias “Jornada para o Oeste”.
A questão a respeito do porquê de os monges de Shaolin terem escolhido o bastão como sua arma merece um estudo em separado. Aqui eu meramente observo que o papel do bastão como arma pode derivar de sua importância como emblema budista. No início do período medieval chinês, monges carregavam um bastão ornado com anéis chamado “xizhang” (em sânscrito, kakkhara) que servia como símbolo da autoridade religiosa.[120] Pesquisas futuras deverão determinar se os bastões empregados em batalha pelos monges de Shaolin descendiam dos bastões portados como insígnia monástica por monges de gerações anteriores.
(Detalhes biográficos e bibliográficos, incluindo caracteres chineses, aparecerão na lista a seguir apenas se já não constarem no texto anterior ou nas notas)
728 – Vários textos, entre eles um inscrito em 728 em uma estela no mosteiro de Shaolin, mencionam que, na primavera de 621, monges de Shaolin participaram da campanha do futuro imperador Tang, Li Shimin, contra outro contendor pelo trono, Wang Shichong. A estela ainda existe no mosteiro. Os textos nela inscritos são: Na parte da frente: a) - Uma detalhada história do mosteiro de Shaolin, escrita pelo Ministro de Pessoal (Libu shangshu) Pei Cui (cerca de 670 – 736). Pei se refere não apenas à assistência militar dada pelos monges de Shaolin a Li Shimin, mas, também, a um outro incidente no qual eles pegaram em armas: durante os últimos anos da Dinastia Sui (por volta de 610), eles repeliram um ataque de bandidos. A inscrição de Pei, que é conhecida usualmente como “Shaolin si bei”, foi transcrita em inúmeras fontes, incluindo o capítulo 20 do “Song shu”, de Fu Mei, e no capítulo 279 do “Quan Tang wen”. Na parte de trás: b) - A carta de Li Shimin aos monges, na qual ele agradece a eles por seu apoio militar. Intitulada “Gao Baiguwu Shaolin si shangzuo shu”, é datada do “trigésimo dia do quarto mês” [do quarto ano do período de reinado de Wude], que corresponde ao dia 26 de maio de 621. A carta de Li Shimin foi transcrita em várias fontes, incluindo o capítulo 20 do “Song shu”, de Fu Mei; c) - Vários documentos (die) nos quais o governo Tang anuncia concessões de terra e outros privilégios ao mosteiro de Shaolin, em reconhecimento pelo suporte militar dado por sua comunidade ao fundador da dinastia, Li Shimin. Os documentos listam 13 monges que foram reconhecidos por Li Shimin por seu mérito. Um dentre eles, Tanzong, foi apontado como general-em-chefe (Da jiangjun) no exército de Li. Ainda que tenha sido inscrito na estela de Shaolin em 728, o documento foi promulgado antes (em 621, 625, 632 e 724). Os documentos foram transcritos em várias fontes, incluindo o capítulo 74 do “Jinshi cuibian”, de Wang Chang.
798 – Uma estela intitulada “Song yue Shaolin xin zao chu ku ji”, de autoria do magistrado-assistente do condado de Dengfeng, Gu Shaolian, alude rapidamente à participação de monges de Shaolin na campanha de Li Shimin contra Wang Shichong. Ainda que a estela já não exista há muito tempo, a inscrição foi transcrita em várias fontes, incluindo o capítulo 20 do “Song shu”, de Fu Mei.
1515 – Em dois ensaios, Du Mu aponta a origem das artes marciais de Shaolin na Dinastia Tang. Os ensaios se baseiam no estudo, feito por Du Um, de estelas do período Tang então existentes no mosteiro; ver: a) – O “You Song shan ji”, de Du Mu, no qual ele reconta sua visita, de 1513, ao mosteiro de Shaolin. O ensaio está incluído no “You mingshan ji”, de Du Mu (prefácio de 1515), que, por sua vez, foi incluído no “Baoyantang miji” (edição de 1606-1620, cópia da Biblioteca Harvard-Yenching); b) – A coleção epigráfica “Jin xie linlang”, na qual ele inclui a inscrição de 728 da estela de Pei Cui.
1517 – Uma inscrição em estela datada de 1517 contém a mais antiga versão da lenda que atribui o método de bastão de Shaolin ao “espírito guardião” do mosteiro (qielan shen). A estela, que ainda existe no mosteiro, identifica a divindade como sendo Naluoyan (Narayana). Todas as versões subseqüentes a identificam como sendo Jinnaluo (Kimnara). Versões do século XVII da lenda incluem: a) – O “Song shu”, de Fu Mei; b) – O “Shaolin gunfa chan zong”, de Cheng Zogyou; c) – O “Shunzhi Dengfeng xian zhi”, compilado por Zang Chaorui e Jiao Fuheng; d) – O “Henan fu zhi”, editado por Zhu Mingkui e He Bairu. Há, também, muitas versões do século XVIII.
1548 – De acordo com o epitáfio de Sanqi Yougong, este monge guerreiro (wuseng) de Shaolin ocupou postos militares na região fronteiriça de Shanxi e Shaanxi, e participou em uma campanha militar governamental em Yunnan. O epitáfio de Sanqi Yougong, que foi inscrito em sua stupa funerária, ainda existe na “Floresta de Stupas” (Talin) de Shaolin.
Cerca de 1550 – O ensaísta e especialista militar Tang Shunzhi se refere às artes marciais de Shaolin em duas de suas obras literárias: em seu “Wu bian”, Tang compilou uma fórmula de bastão de Shaolin e, em um de seus poemas, ele louva o método de combate de mãos vazias (quan) de Shaolin. Intitulado “Emei daoren quan ge”, o poema se refere, também, à prática marcial no centro monástico de Emei.
1556 – O epitáfio para Wan Biao, que serviu como vice-comissário-em-chefe na Comissão de Comando Militar de Nanijing, menciona que ele selecionou monges de Shaolin para lutar contra piratas na costa de Jiangnan. O epitáfio de Wan Biao está incluído no capítulo 107 do “Guochao xianxheng lü", de Jiao Hong.
1558 – No capítulo 1 de seu “Wobian shilüe”, Cai Jiude menciona a contribuição, em 1553, de monges de Shaolin na campanha contra pirataria em Zhejiang. Cao, que observa que os monges foram selecionados pelos supramencionado Wan Biao, se refere a uma batalha travada na área do monte Zhe, que controla a entrada do Golfo de Hangzhou, através do rio Qiantang, para a cidade de Hangzhou.
1561 – O capítulo 60 do “Zhejiang tongzhi”, datado de 1561, menciona as contribuições de “tropas monásticas” para a batalha de maio de 1553 no monte Zhe. O relato oficial não especifica de que mosteiros seriam provenientes estas “tropas monásticas” (seng bing). A informação fornecida pelo “Zhejiang tongzhi”, de 1561, é repetida no capítulo 22 da obra “Ningbo fu zhi”, do período Jianjing (1522-1566), e no capítulo 7 do “Hangzhou fu zhi”, de 1579.
1562 – Em seu “Jixiao xinshu” o famoso general Qi Jiguang se refere ao método de combate com bastão de Shaolin como um dos mais renomados de sua época.
Cerca de 1565 – Em seu “Zhenji”, o comandante militar He Liangchen descreve brevemente o método de bastão de Shaolin, e observa que os monges de Niushan também o praticam (por Niushan, He Leiangchen provavelmente se refere ao centro monástico do monte Funiu, em Henan).
1568 – Em seu “Jiangnan jing lüe”, Zheng Ruoceng descreve a contribuição, em 1553, de monges de Shaolin à campanha contra a pirataria deflagrada na costa de Jiangnan. Ele se detém particularmente sobre duas vitórias dos monges: a primeira, na primavera de 1553, no monte Zha (nome pelo qual Zheng provavelmente se refere ao supramencionado monte Zhe; ele observa que a força monástica envolvida nesta vitória foi selecionada pelo vice-comissário-em-chefe Wan Biao); a segunda vitória, em julho de 1553, em Wengjiagang, na costa da região administrativa de Songjiang. (Zheng descreve como os piratas derrotados fugiram por todo o caminho de lá até Wengjiazhuang, no litoral da área administrativa de Jiaxing, onde o último bandido foi morto). Além do mosteiro de Shaolin, Zheng se refere à pratica marcial em muitos outros centros budistas, incluindo os complexos monásticos do monte Wutai (Shanxi) e do monte Funiu (Henan).
Cerca de 1570 – Em um poema escrito após uma visita ao mosteiro de Shaolin, Xu Xuemo (1522-1594) faz alusão à prática marcial dos monges, que, como outros autores do século XVI, ele relaciona ao período Tang. O poema está incluído no “Song shu”, de Fu Mei.
1575 – De acordo com o epitáfio de Zhufang Cangong, este clérigo de Shaolin comandou uma força de 50 monges na ofensiva governamental de 1552 contra o bandido de Henan Shi Shangzhao. O epitáfio de Zhufang Cangong, que foi inscrito em sua stupa funerária, ainda existe na “Floresta de Stupas” de Shaolin.
1577 – Em duas peças literárias, o general da Dinastia Ming Yu Dayou registra sua visita, em cerca de 1560, ao mosteiro de Shaolin. O general estava desapontado com o que descreveu ser o declínio do método original de bastão de Shaolin. De acordo com seu testemunho, ele passou a ensinar sua própria técnica aos monges de Shaolin. A visita está registrada na dedicatória de 1577 de Tu Dayou para a renovação das “Dez Direções do Pátio Interno Chan” (“Shifang Chan Yuan”) e, também, em um poema precedido por um prólogo, que ele escreveu aproximadamente na mesma época, e que foi enviado ao monge de Shaolin Zongqing. As duas peças foram incluídas no “Zhenqi tang xuji”, de Yu. O método do próprio Yu Dayou, que ele teria ensinado para os monges, está descrito em seu “Jianjing”, incluído na obra de sua autoria “Zhengqi tang yuji”.
1581 – Uma inscrição em estela initutulada “Dengfeng xian tie”, que ainda existe em Shaolin, observa a participação de monges pertencentes ao mosteiro em inúmeras ofensivas contra fora-da-lei de Henan, incluindo a campanha de 1510 contra Liu Liu, a campanha de 1520 contra Wang Tang, e a campanha de 1550 – referida no epitáfio de 1575 de Zhufang Cangong – contra Shi Shangzhao. A inscrição também menciona a participação de monges de Shaolin na guerra contra a pirataria.
Cerca de 1581 – Em seus trabalhos geográficos, “Yu Zhi” e “Song you ji”, Wang Shixing se refere às artes marciais. A primeira obra reflete uma suspeita a respeito da ligação entre a prática marcial pelos monges, o banditismo e as rebeliões de cunho político. O segundo texto foi escrito após uma visita de Wang Shixing em 1581 ao monte Song. Wang, como outros visitantes do século XVI, traça o envolvimento de Shaolin com acontecimentos militares desde o período Tang.
Cerca de 1601 – Em um poema intitulado “Shaolin guan seng bishi ge”, Gong Nai (jinshi 1601) faz referência ao treinamento de técnicas marciais com e sem o uso de armas no mosteiro de Shaolin. O poema de Gong foi incluído no “Shaolin si zhi”.
Cerca de 1604 – Em seu “Wusong jia yi wo bian zhi”, Zhang Nai descreve a contribuição, nos anos de 1550, dos monges para a campanha contra a pirataria na região costeira de Jiangnan. Ele trabalha sobre a vitória obtida pelos monges em julho de 1553, que foi descrita no “Jiangnan jing lüe”, de Zheng Ruoceng, mas alude também a duas outras batalhas (na primavera de 1554 e no final de 1555), nas quais as forças monásticas foram finalmente derrotadas.
1609 – No primeiro de seus cinco ensaios a respeito do monte Song, Yuan Hongdao (1568-1610) faz referência à prática de combate de mãos livres no mosteiro de Shaolin. Ver “Songyou di yi”, em “Yuan Hongdao ji jian jiao”, anotado por Qian Bocheng (Xangai: Shangai guji, 1981).
Cerca de 1610 – Em um ensaio intitulado “You Shaolin ji”, Wen Xiangfeng (jinshi 1610) se refere à prática marcial armada e desarmada no mosteiro de Shaolin. O ensaio está incluído em seu “Shaolin si zhi”.
1612 – Em um ensaio incluído no capítulo 9 de seu “Song shu”, Fu Mei, que serviu como magistrado no condado de Dengfeng, em Henan, lamenta que a prática marcial, o turismo e a prosperidade tenham distanciado o mosteiro de Shaolin da contemplação budista. O “Song shu”, de Fu Mei, inclui também outras passagens relevantes a respeito das artes marciais de Shaolin, incluindo uma versão da lenda de Jinnaluo.
Cerca de 1612 – Em seu ensaio “You Songshan Shaolin si ji”, Jin Zhongshi (fl. 1612) faz referência ao renome militar de Shaolin. O ensaio foi incluído no “Shaolin si zhi”.
1618 – Em sua coleção de notas diversas “Wu zazu”, Xie Zhaozhe faz alusão ao método de combate desarmado de Shaolin (quanfa).
1619 – De acordo com o epitáfio de Wanan Shungong (1545-1619), este monge de Shaolin se distinguiu em batalha (o epitáfio não especifica exatamente em que batalha). O epitáfio de Wanan Shungong, que está inscrito em sua stupa funerária, ainda existe na “Floresta de Stupas” de Shaolin.
1621 – Publicação do mais antigo manual sobre artes marciais de Shaolin, o “Shaolin gunfa chan zong”. Este manual foi assinado por volta de 1610 por Cheng Zongyou, que passou mais de dez anos no mosteiro de Shaolin estudando o método de bastão. Em 1621, este manual foi lançado em uma edição combinada com outros três outros tratados do mesmo autor (sobre tiro com arco, lança e facão), sob o título “Geng yu sheng ji”
1621 – No capítulo 88 de sua obra enciclopédica “Wubei zhi”, Mao Yuanyi louva Cheng Zongyou por ter escrito o melhor manual sobre o método de bastão de Shaolin, do qual – segundo Mão – se originaram todas as técnicas de combate com bastão.
1622 – A coleção de notas diversas “Yongchuang xiaopin”, de Zhu Guozhen, contém duas anedotas referentes a monges guerreiros: a primeira diz respeito a um monge Shaolin que se especializou em combate com as mãos vazias; a segunda se refere a um monge chamado Guzhou, que alcançou a excelência na luta com bastão. Esta última anedota deriva da obra “Jiangnan jing lüe”, de Zheng Ruoceng.
1625 – De acordo com o epitáfio de Benda (1542-1625), este monge de Shaolin se distinguiu em batalha (o epitáfio não distingue em qual delas). O epitáfio de Benda, que está inscrito em sua estela funerária, ainda existe na “Floresta de Stupas” de Shaolin.
Cerca de 1625 – Em um poema intitulado “Shaolin guan wu”, Cheng Shao (jinshi 1590), que serviu como Grande Coordenador (xunfu) para Henan, se refere à contribuição de Shaolin para a “defesa nacional” (baobang). O poema está incluído no “Shaolin si zhi”.
Cerca de 1660 – O autor anônimo da coleção de histórias populares “Zuixing shi” observa, na história de número 12, que o mosteiro de Shaolin era famoso em toda a região por seu método de bastão.
1669 – Em seu “Wang Zhengnan muzhi ming”, Huang Zongxi fornece a primeira descrição da “escola interna” (neijia) de combate de mãos livres, na qual Wang Zhengnan se havia especializado. Huang define a “escola interna” como uma antítese do combate de mãos livres de Shaolin, a que ele se refere como “escola externa” (waijia).
Cerca de 1670 – O renomado scholar Gu Yanwu discute as artes marciais de Shaolin em pelo menos três trabalhos: a) – Em um ensaio intitulado “Shaolin seng bing”, Gu traça a origem do treinamento marcial em Shaolin até o período Tang, e faz referência à participação do mosteiro na campanha do século XVI contra a pirataria. Ele também observa que, em outras ocasiões, tropas monásticas também participaram de esforços de guerra; b) – No segundo e terceiro capítulos de sua coleção epigráfica “Jinshi wenzi ji”, Gu discute as inscrições de Shaolin oriundas do período Tang, que serviram como uma importante fonte para o seu ensaio “Shaolin seng bing”; c) – Em um poema patriótico intitulado “Shaolin si”, Gu demonstra o desejo de ver os monges de Shaolin resistindo aos conquistadores Manchu (aos quais ele não alude explicitamente). O poema menciona a heróica assistência dada pelos monges ao primeiro imperador Tang, Li Shimin. O poema está incluído no capítulo 6 do “Gu Tinglin shi ji huizhu” (Xangai: Shangai guji, 1983).
1676 – Em seu “Neijia quanfa”, Huang Baijia segue o pai, Huang Zongxi, na descrição da “escola interna” em termos de oposição à escola “externa” de Shaolin (o “Neijia quanfa”, de Huang, é o mais antigo manual existente da “escola interna”).
1678 – O scholar do século XVII e especialista em lança Wu Shu inclui em sua antologia sobre a lança, “Shou bi”, um manual intitulado “Menglü tang qiangfa”, que, segundo o autor, foi autorizado pelo monge Shaolin Hongzhuan. Ainda que tenha incorporado o método de lança de Hongzhuan em sua antologia, Wu Shu o critica como tendo sido muito influenciado pelas técnicas de bastão de Shaolin. De acordo com ele, monges de Shaolin empregavam a lança como se fosse um bastão, falhando, por isso, em tomar vantagem das características únicas daquela arma. A antologia de Wu Shu inclui, ainda, um manual intitulado “Emei qiangfa”, que ao final é atribuído a um monge chamado Pu’en, do complexo monástico do monte Emei, em Sichuan.
1733 – O capítulo 33 de “Ningbo fu zhi”, de Cao Bingren (edição de 1846), contém uma biografia de um discípulo de Shaolin do século XVI chamado Biandeng, a quem extraordinárias habilidades marciais foram transmitidas por um fantasma em um sonho. Ainda que Biandeng tenha sido uma figura histórica, sua biografia é largamente lendária. O “Ningbo fu zhi” contém ainda uma biografia do artista marcial do século XVI Zhang Songxi, que é mencionado no “Wang Zhengnan muzhi ming” como sendo praticante da “escola interna”.
1739 – Em duas ocasiões, a obra oficial “Mingshi”, editada por Zhang Tingyu e outros, faz referências aos monges lutadores de Shaolin: a) – O ensaio sobre “milícias locais” (xiangbing) (no capítulo 91) inclui uma breve discussão sobre “tropas monásticas” (sengbing), das quais o “Mingshi” lista três: Shaolin, Wutai e Funiu. A participação de monges Shaolin na campanha contra a pirataria também é mencionada; b) – A biografia (no capítulo 292) de Shi Jiyan, que serviu como magistrado no condado de Shanzhou, na região oeste de Henan, menciona que nos anos de 1630 ele selecionou monges de Shaolin para treinar suas tropas, que combatiam forças rebeldes na província.
[*] Pesquisador da Universidade de Tel Aviv – ensaio publicado no Harvard Journal of Asiatic Studies, vol. 61, n.2, dezembro de 2001 (p. 359-413). Publicação mediante autorização do autor.
[**] Mestrando em Ciências da Religião pela PUC-SP.
[1] As poucas exceções existentes ou são vagas ou imprecisas; as principais incluem Paul Demiéville, “Le Buddhisme et la Guerre: Post-Scriptum à ‘L´Histoire des Moines Guerriers au Japon’, de G. Renondeau” [“O Budismo e a Guerra: Pós-escrito a ‘A História dos Monges Guerreiros no Japão’, de G. Renondeau”], reimpressa em “Choix d´études buddhiques” [“Estudos Budistas Escolhidos”] (Leiden: E.J. Brill, 1973), p. 261–99, e J.J.M. de Groot, “O Espírito Militante do Clero Budista na China”, TP 2 (1891): 127–39; entre os mais recentes, ver A.A. Dolin, “Legendarney monastyr´ili traditsii ushu”, em “Problemy Dalinevo Vostoka”, 4 (1988): 206–16; 5 (1988): 152–169; 6 (1988): 171-181,
[2] Ver especialmente Tang Hao, “Shaolin Wudang kao” (1919; reprodução fotográfica, Hong Kong: Qilin tushu, 1968), e seu “Shaolin quanshu mijue kaozheng” (Xangai: Xangai Guoshu xiejin hui, 1941); ver, também de Tang, “Jiu Zhongguo tiyu shi shang fuhui de damo; er: fuhui damo de shiba shou”, em “Zhongguo tiyushi cankao ziliao; di liu ji” (Beijing: Renmin tiyu, 1958), p. 26-33
[3] Ver, entre outros, Lin Bouyan, “Zhongguo tiyu shi; shangce, gudai” (Beijing: Beijing tiyu xueyuan, 1987); “Zhongguo gudai tiyu xi” (Beijing: Beijing tiyu xueyuan, 1990); Cheng Dali, “Zhongguo wushu: lishi yu wenhua” (Chengdu: Sichuan daxue, 1995); e Matsuda Ryuchi, “Zhongguo wushu shilüe” (tradução de “Zuetsu Chugoku bujutsu shi”), (Taipei: Danqing tushu, 1986).
[4] O mosteiro está situado no sopé do pico Shaoshi, do monte Song. Coleções de materiais a respeito incluem: Fu Mei, “Song Shu” (prefácio de 1612) (cópia da Biblioteca Naikaku Bunko); (estes capítulos “Song Shu” são tão relevantes para a história do mosteiro de Shaolin que foram reimpressos sob o título “Songshan Shaolin si ji zhi”, na série de número 2, volumes 23 e 24 de “Zhongguo fo shi zhi hui kan” (Taipei: Mingwen shuju, 1980)); Jing Rizhen, “Shuo Song” (prefácio de 1721) (cópia pela Biblioteca Harvard-Yenching); e “Shaolin si zhi” (prefácio de 1748), editores Jiao Qinchong e Shi Yizan (cópia pela Biblioteca Harvard-Yenching). A melhor obra recente de história é “Shaolin Fanggu”, de Wen Yucheng (Tianjin: Baihua wenyi, 1999); ver também “Shaolin si yu Zhongguo wenhua” (Zhengzhou: Zhongzhou guji, 1993); “Xin bian Shaolin si zhi” (Beijing: Zhongguo lüyou, 1988); “Shaolin si jiliao ji”, editado por Wu Gu e Liu Zhixue (Beijing: Shumu wenxian, 1982); e “Shaolin si ziliao ji xu bian”, editado por Wu Gu e Yao Yuan (Beijing: Shumu wenxian, 1984). Ver também “Shorinji”, em Mochizuki Shinko ed., “Bukkyo daijiten” (Quioto: Sekai seiten kanko kyokai, 1954 – 1971), 3:2806-7.
[5] O moderno povoado está situado a noroeste do mosteiro, a uma distância de cerca de 20 km. De acordo com fontes da Dinastia Tang, a área de domínio de Shaolin estava localizada a noroeste do mosteiro, a uma distância de cerca de 50 li (aprox. 25 km); ver “Shaolin si bei” (728), em Dong Gao comp., “Quan Tang wen” (1814, reprodução fotográfica, Beijing: Shumu wenxian, 1984), 279.18a.
[6] Para um background genérico, ver Howard J. Wechler, “A Fundação da Dinastia T´ang: Kao-tsu”, em “História da China, de Cambridge” (Cambridge: Cambridge University Press, 1979), 3:162–67.
[7] A autenticidade das inscrições mereceria um estudo em separado. Aqui eu apenas observo que é improvável que monges Shaolin do período Tang tenham forjado uma carta de autoria do fundador da Dinastia. É pouco provável, também, que eles tenham fabricado séries inteiras de documentos oficiais de governo (die) dos séculos VII e VIII que conferiam benefícios ao mosteiro. Essas razões levaram scholars como Gu Yanwu (1613 – 1682) e historiadores legais como Niida Noboru (1904 – 1966) a normalmente aceitar a veracidade das estelas da Dinastia Tang existentes em Shaolin; ver Gu Yanwu, “Jinshi wenzi ji”, ed. Siqu quanshu, 2.29b–30a, 3.34b–35b; Du Mu (1459 – 1525), “Jin xie linlang” (edição Ming) (cópia da Biblioteca de Beijing), 12.1a- 8b; Wang Chang (1725 – 1806), “Jinshi cuibian” (edição de 1805), 41.1a–7a , 74.1a–8b, 77.14a–23a; Niida Noboru, “To So horitsu bunsho no kenkyu” (Toho bunka gajuyin, 1937), p. 830–33; e Demiéville, p. 362–63; ver também Meir Shahar, “Evidência de Atividades Marciais em Shaolin no Período Tang” (inédito).
[8] O ensaio está incluído em “Rizhilu ji shi”, de Gu, anotado por Huang Rucheng (1834, reimpressão fotográfica, Xangai: Xangai guji, 1984), 29.21a–22b.
[9] Ver o prefácio de Hou Anguo para “Shaolin gunfa chan zong”; em Cheng Zongyou ver, ainda, “Zhongguo tiyu shi”, de Lin Boyuan, p. 337. Cheng, como seus contemporâneos, algumas vezes se refere à sua área, Xiuning, pelo nome antigo Haiyang, e alude a Huizhou pelos nomes alternativos Xinan e Xindu.
[10] Chen Jiru (1558 – 1639), por exemplo, escreveu o prefácio para a obra “She shi” (1629), de Cheng (cópia da Biblioteca de Beijing).
[11] O instrutor marcial de Huang Baijia, Wang Zhengnan (1617 – 1669), não recebeu educação formal, tendo sobrevivido como trabalhador manual. Ver o epitáfio de Huang Zongxi para Wang, “Wang Zhengnan muzhi ming”, em “Nanlei wending”, de Huang Zongxi (Edição Congshu jicheng, Xangai: Shangwu, 1936), 8.128–30. Ver também a tradução de Douglas Wile na obra “Os Ancestrais do Tai Chi: A Produção de uma Arte Interna” (Nova Iorque: Sweet Chi Press, 1999), p. 55 a 57.
[12] Uma cópia da obra está disponível na Biblioteca de Beijing.
[13] Cópias estão disponíveis em várias bilbiotecas chinesas, incluindo as de Beijing e Xangai. Os títulos dos três outros manuais incluídos são “Juezhang xin fa” (“Ensinamentos Essenciais do Método de Besta”), “Changqian fa xuan” (“Seleções do Método de Lança Longa”) e “Dandao fa xuan” (“Seleções do Método de Facão”). “Shaolin gunfa” está disponível, ainda, em uma edição pirata, intitulada “Shaolin gun jue”, que possui um prefácio forjado atribuído a Yu Dayou (1503 – 1579) (cópia da Biblioteca Naikaku Bunko).
[14] Um manual de lança atribuído a Hongzhuan e intitulado “Menglü tang qiangfa” está incluído no “Shou bi lu”, de Wu Shu (Congshu jicheng edition, Xangai: Shangwu, 1939), p. 113–24.
[15] Cheng Zongyou, “Shaolin Gunfa”, 1b-2b.
[16] Mao Yuanyi, “Wubei zhi”, edição de 1621, reimpressão fotográfica nos volumes 27-36 de “Zhongguo bingshu jicheng” (Beijing: Jiefangjun, 1989) 88.1a.
[17] Mao Yuany, “Wubei zhi”, capítulos 88-90.
[18] Ver a obra “Shaolin gunfa”, de Cheng Zongyou, 2.1a, 3.8b; para as conversões relevantes, ver “Pesos e Medidas Ming”, em “História da China, de Cambridge” (Cambridge: Cambridge Univestity Press, 1988), 7: xxi.
[19] Cheng Zongyou, “Shaolin gunfa”, 3.8a-b.
[20] Cheng Zongyou, “Shaolin gunfa”, 1.5b-6b
[21] Cheng Zongyou, “Shaolin gunfa”, 3.7b-8a.
[22] Tang Shunzhi, Wu bian qianji, edição Wanli, reimpressão fotográfica nos volumes 13-14 de “Zhongguo bingshu jicheng”, 5.39b; sobre Tang Shunzhi, ver o “Dicionário de Biografia Ming 1368 – 1644”, ed. L. Carrington Goodrich (Nova Iorque: Columbia University Press, 1976), 2:1252-56.
[23] Ver, respectivamente, Qi Jiang, “Jixiao xinshu”, anotado por Sheng Dongling (Beijing: Zhonghua shuju, 1996), 14.165; Mao Yuanyi, capítulos 88-90; e He Liangchen, “Zhenji” (edição Congshu jicheng, Zangai: Shangwu, 1939), 2.27; sobre Qi, Mao e He, ver, respectivamente, o “Dicionário de Biografia Ming”, 1:220-24; 2:1053-54; e Lin Boyuan, “Zhongguo tiyu shi”, p. 319-20.
[24] A área do Monte Funiu se situa a aproximadamente 160 km a sudoeste do mosteiro de Shaolin. O fato de os monges de lá terem praticado artes marciais é confirmado por Zheng Ruoceng em “Jiangnan jing lüe” (prefácio de 1568; edição de Siku quanshu), 8b.22b, bem como pelo oficial “Mingshi”, editado por Zhang Tingyu e outros (Beijing:Zhonghua, 1974), 91.2252.
[25] Wu Qiao, “Weilu shihua” (edição Congshu jicheng, Xangai: Shangwu, 1939) .
[26] Ver Wu Shu, p. 109-11, para sua iniciação nas artes marciais. A respeito de Wu Shu, ver também Lin Boyuan “Zhongguo tiyu shi”, p. 339-40; Matsuda, p. 28-30; e “Shou bi lu”, em “Siku da cidian”, ed. Li Xuqin e Lu Wenyu (Changchun: Jilin daxue, 1996), p. 1633.
[27] Wu Shu, prefácio, p. 1.
[28] Wu Shu, p. 113.
[29] Ver o “Dicionário de Biografia Ming”, 2:1616-18.
[30] A obra de Yu, “Jianjing”, circulou como um volume independente antes de 1562, quando Qi Jiguang o reproduziu por completo em seu “Jixiao xinshu”, 12.132-54. Ele também está disponível nos escritos coletados de Yu, que foram publicados em três peças entre 1565 e o início de 1580 sob os títulos “Zhenqi tang ji”, “Zhengqi tang xuji” e “Zhengqi tang yuji”. O “Jianjing” está disponível no “yuji”. Ver a edição combinada das três peças (cópia da Biblioteca Harvard-Yenching. He Liangchen elogia o “Jianjing” em seu “Zhenji”, 2.27.
[31] Eu não estou certo a respeito deste uso nos escritos de Yu. Talvez ele utilize a palavra “espada” para “bastão” porque a primeira já havia aparecido no nome do método de bastão, “Espada Longa de Jingchu” (“Jingchu changjian”), que ele havia estudado. Em todas as partes do texto do “Clássico da Espada” não resta dúvida de que o termo é concernente ao método de luta com bastão (mais do que ao de esgrima), como certamente ficou claro para os contemporâneos de Yu, Qi Jiguang e He Liangchen; ver também Tang Hao, “Shaolin wudang kao”, p. 42; Tang Hao, “Shaolin quanshu mijue kaozheng”, p.67-69; Lin Boyuan, “Zhongguo tiyu shi”, p. 317-18; Lin Boyuan, “Tan Zhongguo wushu zai Mingdai de fazhan bianhua”, em “Zhonghua wushu luncong” (Beijing: Renmin tiyu, 1987), p. 67-68; e Matsuda, p. 7-9, 52-53.
[32] A terminologia Yin/Yang aparece no “Clássico da Espada” de Yu na seguinte fórmula: “Yinyang yao zhuan, liang shou yao zhi” (“Yin e Yang se alternam, as duas mãos devem estar alinhadas.”). Ver “Jianjing” em “Zhengqi tang yuji”, 4.3b.
[33] Yu Dayou, “Shi song Shaolin si seng Zongqing you xu”, em “Zhengqi tang xuji”, 2.7a-8a. Um registro quase idêntico da visita de Yu ao mosteiro pode ser encontrada em seu “Xinjian Shifang Chan yuan bei” (1577), em “Zhengqitang xuji, 3.6a-7b.
[34] Tang Hao localizou apenas uma fórmula compartilhada pelos manuais de Yu e Cheng: “jiu li lüe guo, xin li wei fa (ou sheng)” – (“Golpeie quando a elevação súbita da energia [do seu oponente] estiver acabando, e antes que outra seja gerada”); comparar com: Yu Dayou, “Jiangjin”, em “Zhengqi tang yuji”, 4.23a, e Cheng Zongyou, “Shaolin gunfa”, 3.4a; ver também Tang Hao, “Shaolin quanshu mijue kaozheng”, p. 65-66; e Matsuda, p.53.
[35] O método de Shaolin das “Mãos Ocultas” (“Yinshou”), discutido na obra “Shaolin gunfa”, de Cheng, é também mencionada no “Wu bian qianji”, de Tang Shunzhi (5.39b), que foi compilado cerca de dez anos antes da visita de Yu a Shaolin.
[36] Wu Shu, p. 89
[37] Tang Hao, “Shaolin quanshu mijue kaozheng”, p. 68-9; ver também Matsuda, p. 54.
[38] Sobre estes papeis – religioso, cultural, social e político – ver, entre outros, Yü Chün-fang, “Budismo Ming”, em “A História da China, de Cambridge” (Cambridge: Cambridge University Press, 1998), 8:893-952; Yü Chün-fang, “O Renascimento do Budismo na China: Chu-hung e a Síntese do Ming Tardio” (Nova Iorque: Columbia University Press, 1981); e Thimothy Brook, “Orando pelo Poder: O Budismo e a Formação da Sociedade Gentry na China do Período Tardio Ming”, Séries de Monografias do Instituto Harvard-Yenching, 38 (Cambridge, Massachusetts: Council on Ease Asian Studies, 1993).
[39] Ver Wu Shu, p. 109.
[40] Incluído em Wu Shu, p. 93-109. É tentador especular se Cheng Zhenru pertencia à família de Cheng Zongyou. O lugar de nascimento daquele é indicado como Hayang, antigo nome do condado pelo qual este último algumas vezes se referia como sendo seu lugar de nascimento em Xiuning, Anhui. O “Emei daoren quan ge”, de Tang Shunzhi, indica que já na metade do século XVI alguns monges de Emei praticavam artes marciais; ver seu “Jingchuan xiansheng wenji”, edição Wanli; reimpressão fotográfica, edição SPTK (Xangai: Shangwu, 1922), 2.8b-9a.
[41] Ver a introdução de Cheng ao “Emei qiangfa”, em Wu Shu, p. 93.
[42] Ver, respectivamente, Wu Shu, p. 93; Wu Shu, p. 110; Cheng Zongyou, “Shaolin Gunfa”, 1.2a; e o epitáfio de Sanqi Yougong, escrito em sua stupa funerária e ainda existente na Floresta de Stupas de Shaolin (Talin). A respeito de guerreiros itinerantes de Shaolin, ver também Xie Zhaozhe (1567 – 1624), “Wu zazu” (edição de 1618, reimpressão fotográfica, Taibei: Xinxing, 1971), 5.23a.
[43] Ver, respectivamente, Wu Shu, p. 110, e Huang Baijia, “Neijia quanfa”, no “Zhaodai congshu bieji” (edição Daoguang) (cópia da Biblioteca Harvard-Yenching), 24.1b. Ver também a tradução deste último em seu “Ancestrais do Tai-Chi”, p. 58. A casa de Wang era muito pequena para a instrução, por essa razão ele tomou lições no templo Tie Fo, que ficava na vizinhança. Então, neste caso, a prática em um templo não estava relacionada à condição de itinerante.
[44] Cai Jude, por exemplo, faz alusão aos monges de Shaolin como membros do contexto de “rios e lagos”. Ver seu “Wobian shilüe” (prefácio de 1558) (edição Congshu jicheng, Xangai: Shangwu, 1936); Comparar também com o prefácio de Wu Shu, p. 1.
[45] Yun Youke, “Jiangshu congtan” (Beijing: Zhongguo quyi, 1988), p. 191-220.
[46] Ver Chen Pingyuan, “Qiangu wenren xiake meng” (1992, reimpressão, Taipei: Maitian, 1995), p. 187-228.
[47] Ver Joseph Needham e Robin D.S.Yates, “Tecnologia Militar: Mísseis e Cercos”, parte IV do volume 5 de Joseph Needham, “Ciência e Civilização na China” (Cambridge: Cambridge University Press), 5:27-29.
[48] Ray Huang, “1587 – Um Ano Insignificante: A Dinastia Ming em Declínio” (New Haven: Yale University Press, 1981), p. 159.
[49] Ver “Mengshi”, 91.2251-52; ver, também, Charles Hucker, “Governo Ming”, em “História da China, de Cambridge” (Cambridge: Cambridge University Press, 1998), 8:69.
[50] Para um pano-de-fundo geral, ver James Geiss, “O Reino de Chia-ching, 1522-1566”, em “A História da China de Cambridge” (Cambridge: Cambridge University Press, 1988), 7:490-505; e Kwan-wai Co (Su Chün-wei), “Pirataria Japonesa na China Ming durante o século XVI” (East Lansing: Michigang State University, 1975).
[51] O “Seng bing shou jie ji” está no capítulo 8; ver a edição Siku quanshu.
[52] Sobre Zheng, ver o “Dicionário de Biografia Ming”, 1:204-8.
[53] Comparar Zheng Ruoceng, 8b.16b; Cai Jiude, 1.9-10; e o epitáfio de Wan Biao em Jiao Hong (1541–1620), “Guochao xianzheng lu (edição de 1616; reimpressão fotográfica, Taipei: Mingwen, 1991), 107.82b; sobre Wan, ver o “Dicionário de Biografia Ming”, 2:1337-39.
[54] Três registros oficiais [gazeteers] aludem à participação de “tropas monásticas” (“sengbing”) nesta batalha, ainda que nenhum deles explicite de que mosteiro elas seriam oriundas; ver o “Zhejiang tongzhi” (cap.60), de 1561; o “Ningbo fu zhi” (cap. 22), do período Jiajing (1522-1566); e o “Hangzhou fu zhi” (cap. 7), de 1579. As passagens relevantes dos três registros estão reproduzidas em “Mingdai wokou shiliao”, editado por Zheng Liangsheng (Taipei: Wenshizhe, 1987), 5:1831; 5:1976; e 5:2073 respectivamente; comparar, também, com Cai Jiude, 1.9-10. Zheng Ruoceng (8b.17a) alude a uma vitória monástica no Monte Zha, nome pelo qual ele provavelmente está se referindo ao Monte Zhe.
[55] Comparar Zheng Ruoceng, 8b.19a-23a, com Zhang Nai (jinshi 1604), “Wusong jia yi wo bian zhi”, no volume dois de “Shangai zhanggu congshu” (Xangai: Zhonghua shuju, 1936), 2.38b-39b. Para locações no delta do rio Huagpu, ver “Shangai lishi ditu ji”, ed. ger. Zhou Zhenhe (Xangai: Shangai renmin, 1999). Eu imagino que esta “Wengjiagang” seja o atual vilarejo de Wengjia, próximo de Zhelin.
[56] Os quatro monges eram Chetang, Yifeng, Zhenyuan e Liaoxin. Sua stupa há muito tempo já não existe; ver Zhang Shutong, “Sheshan xiao zhi, Ganshan zhi” (1936, reimpressão, Xangai: Shangai xinwen, 1994), p. 30. Eu agradeço a Yang Kun, do Museu Songjiang, por esta referência.
[57] Zheng Ruoceng, 8b.21b.
[58] Zheng Ruoceng, 8b.18a.
[59] A esse respeito, a crônica de Zheng Ruoceng ilustra a dificuldade de separar as narrativas históricas e ficcionais de artes marciais. É interessante observar que outra historieta presente na crônica de Zheng, referente ao monge Guzhou, foi “enfeitada” através de ficção cerca de cinqüenta anos depois de sua publicação; comparar Zheng Ruoceng, 86.16b-17a com Zhu Guozhen, “Yongchuang xiaopin” (Beijing: Zhonghua, 1959), 28.673.
[60] Zheng Ruoceng, 8b.22b.
[61] Ver o epitáfio de Zhufang Cangong, que foi escrito em sua stupa funerária, monumento que ainda existe na “Floresta de Stupas” de Shaolin. Comparar, também, com a inscrição da estela de 1581 “Dengfeng xian tie”, que também sobreviveu e que foi parcialmente transcrita em Wen Yucheng, p. 293-94 (o “Mingshi” – 205.5416 – não alude à participação monástica na campanha contra Shi Shangzhao). Monges de Shaolin podem ter contribuído para as primeiras ofensivas governamentais contra bandidos em Henan. De acordo com o “Dengfeng xian tie”, guerreiros de Shaolin participaram da campanha de 1510 contra Wang Tang; ver Wen Yucheng, p. 293-94.
[62] Ver “Mingshi”, 292.7489-90. O líder muçulmano Ma Shouying era um dos aliados mais próximos de Li Zicheng (cerca de 1605 – 1645); ver Morris Rossabi, “O Muçulmano es Revoltas na Ásia Central”, na edição de Jonatan D. Spence e John E. Wills, “Do Ming a Ch’ing: Conquista, Território e Continuidade na China do Século XVII” (New Haven: Yale University Press, 1979), p. 170, 189.
[63] Cheng Dali, p. 106; ver, também, “Zhongguo gudai tiyu shi”, p. 379.
[64] Wang Shixing, “Yu Zhi” (edição Congshu jicheng, Xangai: Shangwu, 1936). Wang também alude às artes marciais de Shaolin em seu “Song you ji”, incluído em sua obra “Wuyue you cao” (edição de 1593) (cópia da Biblioteca Nacional Central, Taipei), 1.2b-3a. A respeito de Wang, ver o “Dicionário de Biografia Ming”, 2:1405-1406.
[65] Wang Shixing, “Yuzhi”, p. 8.
[66] Wang Shixing, “Yuzhi”, p. 6.
[67] Wang Shixing, “Yuzhi”, p. 9.
[68] B.J. teer Haar, “Os Ensinamentos do Lótus Branco na História Religiosa Chinesa” (Leiden: E. J. Brill, 1992), especialmente p. 13-14, 196-246, 289-90.
[69] Para uma apresentação de tais práticas, ver Heinrich Dumoulin, “Zen-Budismo: Uma História”, trad. por James W. Heisig e Paul Knitter (Nova Iorque: Macmillan, 1988), 1:163-70.
[70] Wang Shixing, “Yuzhi”, p. 6.
[71] As suspeitas a respeito das tendências sediciosas dos monges guerreiros adentraram pelo período Qing, quando se tornaram mais pronunciadas; ver “Zhongguo gudai tiyu shi”, p. 379, e Lin Boyuan, “Zhongguo tiyu shi”, p. 380.
[72] A respeito da origem do Tai-Chi-Chuan em Chenjiagou, ver Tang Hao e Gu Liuxin, “Taijiquan yanjiu” (1964, reimpressão, Beijing: Renmin tiyu, 1992), p. 3. e Douglas Wile, “Lost T’ai-Chi Classics”, xv-xvi. Os manuais de Chang Naizhou são traduzidos e analisados em “Ancestrais do Tai-Chi: A Produção de uma Arte Marcial Interna” (Nova Iorque: Sweet Ch’i Press, 1999), p. 71-188.
[73] A respeito da conexão de Henan com os estilos Baguaquan, Xingyiquan e Baijiquan, ver Lin Boyuan, “Zhongguo tiyu shi”, p. 371-73.
[74] Ver Joseph W. Esherick, “As Origens da Rebelião dos Boxers” (Berkeley: Editora da Universidade da Califórnia, 1987), esp. p. 60-61, 65-67; Susan Naquin, “A Rebelião de Shantung: A Insurreição Wang Lun de 1774” (New Haven: Editora da Universidade de Yale, 1981), p. 37-38 e 43; e Susan Naquin, “Rebelião Milenarista na China: A Revolta dos Oitro Trigramas de 1813” (New Haven: Ed. da Universidade de Yale, 1976), p. 30-31.
[75] Douglas Wile, “Clássicos Perdidos de Tai Ch’i”, p. 5-9.
[76] “Zuixing shi” (Xangai: Shangai guji, 1992), 12.100-108; a respeito do “Zuixing shi”, ver Patrick Hanan, “A História Vernacular Chinesa” (Cambridge: Editora da Universidade de Harvard, 1981), p. 163-64.
[77] Sobre os anos iniciais de Zhu Yuanzhang no mosteiro, ver Wu Han, “Zhu Yuanzhang zhuan” (Xangai: Sheghuo dushu xinzhi sanlian, 1949), p. 11-16, e Frederick W. Mote, “A Ascensão da Dinastia Ming, 1330–1367, em “A História da China de Cambridge” (Cambridge: Editora da Universidade de Cambridge, 1988), 7:44-45; o “Zuixing shi” se refere a Zhu Yuanzhang em 12.101-2.
[78] Zheng Ruoceng, 8b.18b.
[79] Tang faz menção às técnicas de mãos livres (quan) no poema “Emei daoren quan ge”, no “Jingchuan xiansheng wenji”, 2.8b.
[80] Cheng Zongyou, “Shaolin gunfa”, 3.7b.
[81] Zheng Ruoceng, 8b.16b. Guzhou pode ter sido treinado em outro mosteiro que não, necessariamente, o de Shaolin.
[82] Ver Cheng Zongyou, “Shaolin Gunfa”, 1.1b; Fu Mei, 9.30b-31a; “Shunzhi Dengfeng xian zhi”, editado por Zhang Chaorui e Jiao Fuheng (prefácio de 1652) (cópia da Biblioteca de Beijing); e “Henan fu zhi”, editado por Zhu Mingkui e He Bairu (1661) (cópia da Biblioteca de Xangai). A lenda de Jinnaluo foi elaborada mais à frente em fontes do século XVIII como Jing Rizhen, “Shuo Song”, 8.2b, 21.26a-27a, e “Shaolin shi zhi”, 1.12a-b. Ver também “Kangxi Dengfeng xian zhi”, editado por Jing Rizhen e Zhang Shenggao, revisto por Shi Yizan e Jiao Ruheng (1696; edição revista em 1745) (cópia Bilioteca de Beijing), 8,8a.
[83] O termo hufa é normalmente aplicado aos quatro Lokapalas, que trabalham como protetores do mundo (cada um protegendo uma das quatro partes do espaço) e da fé budista.
[84] A inscrição permanece até hoje no mosteiro de Shaolin. Ela foi parcialmente transcrita no “Shaolin quanshu mijue kaozheng”, de Tang Hao (p. 54); para uma biografia de seu autor, ver Fu Mei, 9.32b-33b.
[85] Sobre a rebelião dos Turbantes Vermelhos, ver Mote, “O Nascimento da Dinastia Ming”, p. 38-40, 42-43, e Ter Haar, “Ensinamentos do Lótus Branco”, p. 115-23. O líder político do movimento foi Liu Futong e o líder religioso, Han Shantong, que declarou a chegada iminente do Buda Maitreya. Logo após a captura e execução de Han, seu filho Han Liner foi instalado como Liu como imperador de uma nova Dinastia Song.
[86] Tang Hao, “Shaolin quanshu mijue kaozheng”, p. 55-62.
[87] As inscrições, intituladas “Chong zhuang fo xiang bei” (“Estela Comemorativa da (Re)Cobertura [com ouro] das imagens de Buda”) e “Chong xiu fatang bei ming” (“Inscrição Comemorativa da Renovação do Salão do Dharma”) foram sumarizadas no “Shaolin shin zhi”, 3.9a-b e 3.10b-11a respectivamente. O primeiro informa que 1371 foi a data da renovação. Os dois epitáfios, para os monges Jungong e Xugong, foram inscritos em suas stupas funerárias; as passagens relevantes foram transcritas no “Shaolin quanshu mijue kaozheng”, p. 55-58, onde Tang Hao as analisa em conjunto com as inscrições da estela.
[88] Tang Hao, “Shaolin quanshu mijue kaozheng”, p. 56-61.
[89] Por esta razão ele é identificado com Vajrapani (Jingangshen); ver “naraenkongo”, em “Zengaku daijiten” (Taishukan Shoten, 1978), p. 967.
[90] Muitas vezes o vajra é apresentado como um cetro curto, simetricamente ornamentado nas duas extremidades; ver “kongosyo”, em Mochizuki Shinko, 2:1333-35. O vajra de Naluoyan, como representado na estela de Shaolin, era uma empunhadura. Ele se assemelha, portanto, a uma espada curta (exceto pelo fato de não possuir bordas afiadas); ver a ilustração em “Jinnaluo wang kao”, de Ade, Chanlu 12 (1999):52.
[91] Eu examinei esta estela durante uma visita ao mosteiro de Shaolin em 2000.
[92] Ver “kinnara”, em Mochizuki Shinko, 1:543-44; ver também “kinnara” em Nakamura Hajime ed., “Bukkyogo daijiten” (Tóquio: Tokyuo shoseki, 1981), p.250-51.
[93] Além dos Kimnaras, as oito categorias incluíam Devas (Tian), Nagas (Long), Yaksas (Yecha), Gandharvas (Gantapo), Asuras (Axiuluo), Garudas (Jialouluo) e Mahoragas (Mohouluojia). Ver “Miaofa lianhua jing”, tradução de Kumarajiva (344-413), no “Taisho shinshu daizokyo” (Taisho issaikyo kankokai, 1924-1932) [daqui por diante, T.], 262, 9:12a; ver também a tradução de Leon Hurvitz da “Escritura da Flor de Lótus do Dharma Perfeito” (Nova Iorque: Editora da Universidade de Columbia, 1976), p. 56.
[94] Ver “Miaofa lianhua jing”, T. 262, 9:2a, e Hurvitz, p. 2-3.
[95] É o caso da estela mencionada acima.
[96] Vheng Zongyou, “Shaolin gunfa”, 1.1b.
[97] Guanyin é mostrado sobre uma nuvem na altura da cabeça de Jinnaluo em uma estátua de 1980 localizada no renovado “Salão de Jinnaluo” (Jinnaluo dian) do mosteiro de Shaolin. Eu examinei esta estátua durante uma viagem ao mosteiro em outubro de 2000.
[98] Para uma visão geral: Meir Shahar, “Crazy Ji: Chinese Religion and Popular Literature”, Série de Monografias da Biblioteca Harvard-Yenching, n. 48 (Cambrige, Ma.: Harvard University Asia Center, 1998), p. 30-45.
[99] Ver Philip Yampolski, trad., “O Sutra Essencial do Sexto Patriarca” (Nova Iorque: Editora da Universidade de Columbia, 1967), p. 128, 131-32.
[100] Acerca da localização do “Forte Imperial”, ver Shaolin si zhi”, 1.1b-2a; o nome “Monte Song” se refere, neste caso, ao pico de mesmo nome, e não a todo o complexo do Monte Song (do qual o Shaoshi é outro pico).
[101] Fu Mei, 9.30b.
[102] Sobre a evolução do ciclo “Jornada para o Oeste”, ver Glen Dudbridge, “O Hsi-yu chi: Um Estudo Sobre oas Antecedentes da Novela Chinesa do Século XVI” (Cambridge: Editora da Universidade de Cambridge, 1970), e seu “O Macaco Hsi-yu chi e os Frutos dos Últimos Dez Anos”, “Hanxue yanjiu” 6.1 (junho de 1988): 463-86; sobre as origens de Sun Wukong ver, também, Meir Shahar, “Os Macacos Discípulos Lingyin si e as Origens de Sun Wukong”, no Jornal de Estudos Asiáticos de Harvard, 52.1 (junho de 1992): 193-224; sobre o culto religioso de Sun Wukong, ver Sawada Mizuho, “Songoku shin”, 1979; reimpressão em seu “Chugoku no minkan shinko” (Kosakusha, 1982), p. 86-102; ver, também, Allan J. A. Elliot, “Cultos de Médiuns Espíritas Chineses em Cingapura” (1955, reimpressão, Taipei: Southern Materials Center, 1981), p. 74-76, 80-109, 170-171.
[103] Anthony Yu, tradução de “A Jornada Para o Oeste” (Chicago: Editora da Universidade de Chicago, 1980), 1:108; a obra original é “Xiyou ji”, de Wu Chengen (Beijing: Zuojia chubanshe, 1954), 3.32-33. Eu suspeito de que as traduções do termo chinês “bang” para o inglês como “porrete” (“club”) ou “bordão” (“cudgel”) são insatisfatórias, já que se referem mais a um instrumento curto e pesado. A descrição da arma de Sun Wukong na novela – não menos que sua representação gráfica em ilustrações Ming – não deixa dúvidas de que se tratava de uma vara longa, semelhante ao bastão de Shaolin. Por esta razão eu mudei o “bordão” de Yu para “bastão”.
De forma mais geral, um exame das fontes Ming mostra que os termos “bang” e “gun” se referem à mesma arma. Em seu “Wubei xhi” (104.1a), por exemplo, Mao Yuanyi explica que “bang e gun são a mesma coisa” (bang yu gun yi ye). Na própria novela do século XVI o “Ruyi jingu bang” de Sun Wukong é, algumas vezes, referido como “gun”; ver Wu Chengen, 27.310-11.
[104] Ver “Da Tang Sanzang fashi qu jing shihsua” (Beijing: Wenxue guji, 1955), p. 27,87. Nesta narrativa do período Song do Sul o personagem Sun Wukong realiza uma mágica que difere ligeiramente da que ele mesmo, e também Jinnaluo, realizam nas versões dos mitos apresentadas no Ming tardio. Ao invés de se transformar em um gigante, o macaco transforma seu bastão em um gigante que, armado com um bastão, luta por ele. Sobre a datação de “Da Tang Sanzang fashi qu jing shihsua” (que sobreviveu em duas versões ligeiramente diferentes entre si), ver Dudbridge, “The Hsi-yu chi”, p. 25-29.
[105] Ver, respectivamente, “Shuihu quanzhuan (1954; reimpressão, Taipei: Wannianqing shudian, 1979), 4.69-70, traduzido por Sidney Shapiro, “Os Fora-da-Lei de Março”, autoria atribuída a Shi Nai’an e Luo Guanzhong (Beijing: Edições em Línguas Estrangeiras, 1995), 1:75-76, e Wang Shifu, “Xixiang ji”, anotado por Wang Jisi (Beijing: Zhonghua shuju, 1959), 2.60-61, traduzido por Stephen H. West e Wilt L. Idema, “A Lua e a Cítara: a História da Ala Esquerda”, por Wang Shifu (Berkeley: Editora da Universidade da Califórnia, 1991), p. 233-34.
[106] O nome de Lu Zhishen figura em uma lista de temas populares entre contadores de histórias do período Song do Sul. Indicando que em um período tão recuado o personagem já era imaginado como portador de um bastão, as histórias sobre Li Zhishen são classificadas na categoria de narrativas “ganbang” (“bastão”); ver Luo Ye, “Xinbian Zuiweng tanlu” (Xnagai: Gudian wenxue, 1957), p.4. (Lu é citado na história por seu apelido, “Monge Tatuado” [Hua Heshang]). A peça de Wang Shifu deriva do “zhugongdiao” de Dong Jieyuan (“Mestre Dong”) (fl. 1190-1208), que também apresenta um monge armado de bastão, chamado Facong; ver Dong Jieyuan, “Dong Jieyuan Xixiang”, comentário à margem por Tang Xianzu (edição Ming: reprodução fotográfica, Taiwan: Shangwu, 1970), 2.62-82, traduzido por Chen Li-li, “Romance da Câmara Oeste do Mestre Tung” (Nova Iorque: Editora da Universidade de Columbia, 1994), p. 46-61.
[107] Eu examinei as duas imagens durante minha visita ao mosteiro em outubro de 2000.
[108] A mais antiga referência direta ao Salão de Jinnaluo data do século XVIII, mas é possível que ele tenha sindo construído antes; ver Jing Rizhen, “Shuo Song”, 8.2b, 21.27a, “Shaolin si zhi”, 1.6a , e “Kangxi Dengfeng xian zhi”, 8.1b.
[109] Ver “Shaolin si zhi”, 1.6a.
[110] Ver Shahar, “Crazy Ji”, p. 197.
[111] Sobre as vicissitudes do Salão de Jinnaluo no século XX, ver “Xin bian Shaolin si zhi”, p. 23.
[112] Ver Fu Mei, 9.31a; comparar, também, com Jing Rizhen, “Shuo Song”, 21.26b.
[113] Sobre a evolução da lenda de Guangong e Zhiyi, ver Huang Huajie, “Guangong de renge yu shenge” (Taipei: Shangwu yinshu guan, 1967), p. 106-116. A lenda se reflete na novela do período Ming “Sanguo yanyi”, onde o nome do monge, Zhiyi, é substituído por outro, Pujing; ver “Sanguo yanyi”, cuja autoria é atribuída a Luo Guanzhong (Beijing: Renmin wenxue, 1972), 77.617-18, e Moss Roberts, tradução, “Três Reinos: Uma Novela Histórica”, atribuída a Luo Guanzhong (Berkeley: Editora da Universidade da Califórnia, 1991), p. 585-86.
[114] Em alguns mosteiros Guangong compartilha o ofício de “espírito guardião” com outras divindades; ver J. Prip-Moeler, “Mosteiros Budistas Chineses: Seu Plano e Função como Base para a Vida Monástica Budista” (1937; reimpressão, Hong Kong: Editora da Universidade de Hong Kong, 1967), p. 200, 224.
[115] Sobre a datação do Salão dos Mil Budas e de suas pinturas murais, ver “Shaolin si qian fo dian bihua” (Zhengzhou: Henan meishu, 1986), p. 19, 104.
[116] Comparar as imagens de arhat em “Luohan hua” (Taipei: Guoli gugong bowuyuan, 1990) e Richard K. Kent, “Representações dos Guardiães da Lei: Pinturas de Luohan na China”, em “Últimos Dias da Lei: Imagens do Budismo Chinês 850-1850”, editado por Marsha Weidner (Kansas: Spencer Museu de Arte, 1994), p. 183-213.
[117] Ver Cheng Zongyou, “Shaolin Gunfa”, 1.4b.
[118] Takuan formulou sua idéia em vários ensaios, o mais famoso dos quais é “Fudochi shinmyoroku”; ver Takuan Soho, “A Mente Livre: Escritos do Mestre Zen para o Mestre da Espada”, tradução de William Scott Wilson (Tóquio: Kodansha Internacional, 1986); ver também Daisetz T. Suzuki, “Zen e a Cultura Japonesa”, Bolingen Series LXIV (Nova Iorque: Pantheon Books, 1959), e Eugen Herrigel, “O Zen na Arte do Arco-e-Flecha”, trad. R. F. C. Hull (Nova Iorque: Vintage Books, 1971). G. Cameron Hurst sugere que scholars como Herrigel e Suzuki superestimaram o impacto do Zen-Budismo sobre as artes marciais japonesas. Ele observa que a utilização da terminologia budista por especialistas em arte marcial não implica, necessariamente, que sua prática seja espiritualmente motivada; ver seu “Artes Marciais Armadas do Japão: Esgrima e Arco-e-Flecha” (New Haven: Editora da Universidade de Yale, 1998), p. 127, 192-93.
[119] Tang Hao já demonstrou que o termo chinês utilizado em artes marciais “roushu” foi emprestado do japonês “jiu-jitsu”. Ele também mostrou que o livro de Nitobe Inazo “Bushidô: A Alma do Japão” (primeira publicação em inglês em 1899, a seguir traduzido em japonês, chinês e muitos outros idiomas) exerceu siginificativa influência sobre o manual de artes marciais “Shaolin quanshu mijue”; ver Tang Hao, “Shaolin quanshu mijue kaozheng”, p. 15-32.
[120] O xizhang aparece em escrituras budistas como o “Dedao ticheng xizhang jing”, T. 785, 17:724-25. É, também, freqüentemente mencionado na poesia medieval, onde, por metonímia, algumas vezes representa seu portador clerical; ver, por exemplo, Bai Juyi, “Tianzhu si song Jian Shangren gui Lu shan”, em “Quan Tang shi” (Beijing: Zhonghua, 1960), 446.5006. Ver, também, John Kieschnick, “O Impacto do Budismo na Cultura Marcial Chinesa” (a publicar), e “shakujo”, em Mochizuki, 3:2152-53.