O Estatuto da Linguagem e das Formas Simbólicas na Experiência Mística a partir da Noção de Imaginal de Ibn Arabi

Mônica Udler Cromberg[*] []

Resumo

Um dos elementos mais decisivos na literatura e nos estudos sobre a mística para a compreensão da experiência mística em geral é a idéia do Imaginal, introduzida por Ibn Arabi. A confusão corrente entre imaginal e imaginário e a crescente obliteração da idéia de um mundo intermediário que conecta o mundo espiritual ao mundo físico fez com que Deus se tornasse uma abstração. Trata-se do mundo onde os espíritos ganham corpo e onde os corpos se espiritualizam, o domínio da percepção mística, que converte os dados sensíveis em símbolos e que acessa o espiritual através de uma “intenção” (himma) imaginal teofânica. Os conteúdos espirituais, chamados por Ibn Arabi de “significados” (ma’ana), revestem-se de formas sensíveis de “aparição”, considerados como “símbolos” – no sentido de signos (ou noemas) de proveniência divina e de caráter presentativo e não representacional, onde não são indicativos de algo que lhe seja extrínseco. É neste sentido que a linguagem é entendida, se vista enquanto membro do imaginal, o que gera uma série de conseqüências na sua abordagem dentro da literatura, filosofia da linguagem, hermenêutica e da arte em geral. O mundo é visto como palavra e as palavras são mundos fundantes. Ambos são, aqui, fenômenos teofânicos imaginais, que em sua transparência se revelam como formas simbólicas. A perda da capacidade imaginal e a atrofia do órgão responsável por ela, o coração (qalb), levará ao esvaziamento do mundo exterior e interior de toda significação espiritual.

Abstract

One of the most decisive elements in mystical literature and in studies on mystics for the purpose of understanding mystics in general is the idea of Imaginal, introduced by Ibn Arabi. The current confusion between imaginal and imaginary, and the growing obliteration of the idea of an intermediary world that conects the spiritual to the physical world, turned God into an abstraction. That is the world in which spirits acquire body and bodies become spiritualized, the domains of mystical perception, that converts sensitive data into symbols and accesses the spiritual sphere through a theophanic imaginal “intention” (himma, in arabics). Spiritual contents, called “meaning” (ma’ana) by Ibn Arabi, assume sensitive forms of “apparition”, considered as “symbols” – meaning signs (or noema) of divine origin and of a presentative, not a representational character (nature), by which they are not indicative of something external to it. It is in this sense that language is understood, if it’s viewed as a member of imaginal, and that generates a series of consequences to the approaches of the subject in the fields of literature, language philosophy, hermeneutics and in arts. The world is viewed as word, and words are founding worlds. Both here are theophanic imaginal phenomena, which in their transparence reveal themselves as symbolic forms. The lost of imaginal capability and the atrophy of the organ which is responsible for this – the heart – will lead to devoiding both external and internal worlds of all spiritual meaning.

Pode-se afirmar com certeza que um dos elementos mais decisivos da obra de Ibn Arabi[1] para a compreensão da experiência mística no Sufismo é a noção de "Imaginação Criadora" e de "Mundus Imaginalis"[2] – o "Mundo do Imaginal". Uma afirmação mais radical – mas que nos parece tão verdadeira quanto a anterior – seria a de que um dos elementos mais decisivos na literatura mística e nos estudos sobre a mística (dentro daquilo de que se dispõe para a compreensão da experiência mística em geral) é a idéia de Imaginal introduzida por Ibn Arabi. De qualquer forma, seja qual for a importância dessa noção para um campo específico ou generalizado dentro da mística, nosso objeto, aqui, será sua aplicação numa abordagem da linguagem verbal na experiência mística em geral, assim como da linguagem das formas aí – sem deixar de procurar definir em que medida se pode chamá-las de simbólicas.

Tratar do estatuto da linguagem – que, no sentido mais amplo do termo, abarca a própria realidade sensível e vê, nesse contexto, o mundo como linguagem – com base na noção de Imaginal de Ibn Arabi pode restituir a ela uma dignidade espiritual há muito perdida. Pode, também, chamar a atenção para a possibilidade de ela conter um poder anagógico, uma capacidade de “prover acesso” a âmbitos de realidade bem distintos dos que a mentalidade laica, materialista e racionalista está acostumada (melhor dizendo, condicionada) a lidar e a reconhecer. A questão referente a se esses domínios espirituais de fato existem foge à pertinência deste artigo, que tratará apenas das conseqüências de algumas concepções de Ibn Arabi para as abordagens mística e fenomenológica da linguagem e para a abordagem das imagens simbólicas na experiência mística. Henry Corbin[3], o grande filósofo e estudioso responsável pela divulgação da idéia akbari[4] de Imaginalidade no pensamento moderno, diria que o questionamento quanto à “veracidade” e consistência epistemológica dos planos espirituais e das realidades divinas é justamente o resultado da confusão corrente entre imaginal e imaginário, e da crescente obliteração da idéia de um mundo intermediário que conecta o mundo espiritual ao físico. Além disso, as realidades espirituais só poderiam ser apreendidas pelo Imaginal, pela Imaginação Teofânica, cuja sede, como veremos, é o coração. A razão não as pode acessar de forma direta (da mesma forma como a linguagem, tampouco, as pode comunicar de forma direta) e, portanto, jamais poderia, por si, oferecer ou obter qualquer prova de sua validade noética.

A confusão entre imaginal e imaginário advém do banimento do primeiro conceito – e da prevalência do segundo – no pensamento ocidental, que deixa lugar apenas para Deus e o mundo sensível. Entre eles já não há nada e ambos se tornam incomunicáveis e fechados em si mesmos. A Teologia Negativa, de um lado, que não admite a atribuição de imagens a Deus, confina-O em Sua Transcendência e Incognoscibilidade[5], e a ciência, de outro, passa a conferir o status de “real” somente àquilo que seja empiricamente verificável. Dessa forma, o único apanágio humano que ainda teria acesso ao domínio espiritual seria a fé (no sentido fideísta do termo, onde “fé” é a “fé cega”, que não possui estatuto epistemológico). Já não se dispõe de uma noção de grau intermediário entre, no caso da ciência e do racionalismo, o mundo físico e o devaneio puro e simples, e, no caso da teologia e da religião institucionalizada, entre o mundo físico tido como irreal e ilusório e o Real Divino. A idéia de graus de realidade só será preservada no pensamento ocidental em algumas poucas correntes – filosóficas, psicológicas ou místicas. A Imaginação passou a ser considerada apenas como uma faculdade que “secreta o irreal”, o imaginário, e Deus passou a ser nada mais que sua secreção.

Outro grande estudioso da mística, Gershom Scholem[6], ajuda-nos a compreender por que o mundo intermediário[7] foi banido do âmbito religioso e circunscrito ao místico. Segundo ele, a religião institucional caracteriza-se, em sua preocupação com a pureza do conceito de Deus, por uma visão negativa deste, e empenha-se na exclusão dos elementos míticos, simbólicos e antropomórficos de sua hermenêutica: Deus, que não poderia ser equiparado a forma alguma, não deveria ser representado por imagem ou símbolo algum. Nas palavras de Scholem, “o preço desta pureza do conceito de Deus visada pela Teologia Negativa (...) foi a perda de sua realidade viva e o seu esvaziamento, sendo reduzido a uma abstração meramente formal”. Pois, “quanto mais o receio de macular a sublimidade de Deus com imagens mundanas se torna uma preocupação proeminente, menos é o que se pode dizer de Deus.” (...) “O Deus vivo jamais poderá ser subsumido a um conceito puro. O que faz dele um Deus vivo na mente de um crente é exatamente o que O envolve em alguma parte do mundo humano e o que torna possível ao homem vê-Lo face a face, num grande símbolo religioso”[8]. A supressão, por parte da religião institucionalizada e purista, dos apoios simbólicos fornecidos pelas imagens míticas, seria responsável pela dissolução do acesso à espiritualidade verdadeira. Quem virá a suprir esta lacuna será o impulso subliminar do misticismo, ao qual não basta a consciência da Intangibilidade de Deus. A mística ocupa-se da “experiência” de Deus – de sua visão, audição e gosto (dhauq). Para o místico, a prevalência da Transcendência e Incognoscibilidade de Deus não é nenhuma novidade – inclusive, porque a experimenta. Que ele veja Deus e O ouça, através de formas e sons imaginais, não diminui em nada sua consciência da Irrepresentabilidade divina – ao contrário, a intensifica. Para o místico[9], o mundo sensível é teofânico, é um véu que vela e revela a Presença (e cuja transparência depende do poder imaginal e da concentração[10]himma – do místico). Isso não faz dele um imanentista, um panteísta e, muito menos, um idólatra politeísta. Idolatria seria, aqui, justamente considerar o mundo sensível como algo autônomo, opaco e extrínseco ao Ser divino. Na verdade, a própria religião exotérica incita à representação imaginal de Deus, quando, por exemplo, o Profeta diz: “Ore a Deus como se você O visse; e se você não O vê, saiba que Ele te vê.”[11] Ou quando se lê nas Escrituras[12]: Shiviti Adonai lenegdi tamid (“Coloco o tempo todo Deus a meu lado.”)[13]

Ibn Arabi nunca deixa de enfatizar a “Incomparabilidade de Deus”, que ele contrapõe à Sua “Similaridade”. “Deus é incompreensível a todas as coisas porque está infinitamente além delas e lhes é semelhante porque manifesta suas qualidades através delas.”[14] Para ele, o intelecto (‘aql) prova facilmente a Incomparabilidade de Deus, mas não capta sua Similaridade. A Imaginação, em contrapartida, percebe Sua Similaridade, mas nada sobre Sua Incomparabilidade. O conhecimento perfeito é, para ele, a função de ambos, ver e saber, imaginação e intelecto – os dois olhos de Deus[15]. Como resume Chittick, “a menos que as duas sejam empregadas em conjunto, a verdadeira natureza da Incomparabilidade e da Similaridade de Deus não será captada”. Sozinhas, vistas por si mesmas, elas se distorcem. “A ênfase exclusiva na Incomparabilidade tira Deus do Cosmo, enquanto a ênfase exclusiva na Similaridade obscurece a Unidade do Real e leva ao associacionismo (shirq) e ao politeísmo.”[16] O movimento de integração desses dois elementos se dá, justamente, no Mundo Imaginal da alma. A alma, no seu estatuto de intermediária entre o corpo e o espírito, está incumbida de trazer o espiritual às entidades corpóreas e fazer com que os dois se relacionem. Seu método: emprestar qualidades corpóreas ao espiritual[17] e espiritualizar o sensível, sutilizando-o, reconhecendo-lhe a transparência, o sentido e seu caráter simbólico. A Imaginação teofânica, que seria o órgão do conhecimento espiritual por excelência, percebe todas as formas como revelações, ou aparições, de Deus. Ela, a responsável pela percepção mística (dhauq), é o lugar do reencontro entre o Mundo do Mistério (‘aalam al-ghaib) e o Mundo dos Fenômenos (‘aalam ashahada), e através dela, efetua-se o descenso do Criador e a ascensão da criatura. Ela constitui-se no entremundo que reconhece Deus e o cosmos por coincidentia oppositorum: Hua La-hua, “Ele Não-Ele” – “Todos os mundos são ao mesmo tempo Ele e Não-Ele.”[18]

Em Ibn Arabi, o imaginal e o imaginário são duas atribuições da Imaginação (hayyal) bem distintas, a tal ponto que cada uma recebe uma designação diferente: uma é inerente ao sujeito que imagina e dele é indissociável (hayyal muttassir), e a outra é dissociável (hayyal munfassil) do sujeito e possui auto-subsistência. Na primeira, a puramente mental, por sua vez, distinguem-se as imaginações provocadas conscientemente das espontâneas, que aparecem por si, como os sonhos. Na segunda, a imaginação “possui uma realidade autônoma sui generis no plano do ser, que é o mundo intermediário, o mundo das idéias-imagem, o Mundus Imaginalis[19]. Possui realidade exterior, extra mentis, podendo ser vista ou percebida por outros místicos no mundo exterior. Desta exterioridade num certo plano de existência é que consiste seu “corpo de aparição”. Nem mesmo a imaginação conjunta é, para Ibn Arabi, relegada ao nível de “imaginário”. Ela é para ele algo de mental, de representacional (uahm), enquanto a imaginação dissociável seria uma presentação, isto é, uma forma que veicula, que veste uma presença. Mesmo as “representações” mentais são para Ibn Arabi a fixação individual de uma teofania[20].

Representação e presentação, eis dois termos que podem esclarecer as duas atribuições distintas da imaginação teofânica. Esta diferenciação é fundamental para que se pondere sobre a adequação do termo “símbolo” para as formas teofânicas imaginais. Se “símbolo” for entendido como representação, isto é, como um signo que se refere a algo exterior a ele, tal como é usado por diversos filósofos, psicólogos e semiólogos, então ele não poderá ser aplicado a nosso objeto, às formas sob as quais “Deus se revela a Seu servo”, e precisaríamos encontrar outro termo para traduzir “mazahir”, termo árabe que Ibn Arabi aplica ao conceito e que provém do verbo “zahara” - manifestar, exteriorizar, expressar. Quando mazahir é traduzido por “símbolo” ou “forma simbólica”, está se entendendo por isto a presentação, isto é, a manifestação de Deus (ou de um “significado” espiritual, como veremos) mediada por uma forma sensível que O revela. A bandeira de um país o representa, mas o rosto de Pedro o presenta. O rosto de Pedro não é algo diferente dele, embora Pedro o transcenda. O rosto não se “refere” a ele – expressa-o, manifesta-o. Um símbolo, nesta perspectiva, é o rosto de uma Presença. Quando, na ascensão do Profeta (mi’raj), ele vê e bebe do conhecimento em forma de leite[21], não se trata de uma alegoria[22], embora esse leite não seja feito de matéria física, nem de uma “simbologia” humana, assim como as asas dos anjos também não são, na perspectiva imaginal, mera alegoria.

Aproveitamos, aqui, para chamar atenção ao fato de que a idéia de forma simbólica teofânica abrange todas as formas de manifestação sensível – não só visual, mas também auditiva (o próprio Corão, ditado pelo Arcanjo Gabriel), olfativa (vide o grande sufi Attar, o perfumista[23]), gustativa (o leite do mi’raj), sensual (vide toda a literatura mística de amor romântico e as imagens de desejo passional), etc. Na verdade, a própria sensação (dhauq) e contemplação da Presença aparentemente sem representação é também imaginal, pois esta presença será sempre con-forme a “capacidade” que o místico tem de Deus. Este lhe aparecerá sempre segundo sua própria forma, sua própria “disposição original” (fitra), sua hecceidade essencial, que é o “atributo divino através do qual ele conhece a Deus e Deus o conhece”. O místico, para Ibn Arabi, nunca conhece a Ipseidade de Deus, Deus tal como Ele próprio se conhece, nem no estado de aniquilação (fana’) extática[24]. “O crente só conhece a Deus através do atributo que ele encarna[25]. Vê-se que, nessa abrangência e sutilização, a própria “qualidade” divina e humana é considerada uma forma imaginal – com pouca densidade sensível, mas com alguma determinação. Na verdade, esta determinação mal pode ser chamada de forma, e poderia se dizer que antecederia a forma imaginal propriamente dita. Segundo M. Chodkiewicz[26], "... em Ibn 'Arabî, o conhecimento iluminante mais perfeito se produz na esfera dos inteligíveis, dos puros espíritos isentos de matéria e de forma. É somente em seguida que ele "toma corpo" no âlam al-hayâl, que ele habita imagens e palavras que possibilitarão transmiti-lo àqueles que não têm acesso a este universo de pura luz."[27]

Martin Buber se refere a este domínio intermediário como uma mistura do humano e do divino e também o chama de “lugar da teofania”[28]. E diz: “Aquele a quem na revelação foi confiada uma missão leva em seus olhos uma imagem de Deus – por mais supra-sensível que seja, ele a leva nos olhos de seu espírito, no poder visual de seu espírito, que não é de modo algum metafórico, mas plenamente real.”

Representações marcam uma ausência, são substitutos, simulacros, referências emblemáticas, resíduos perceptivos. Uma representação – tal como o termo está sendo entendido aqui, para contrapor-se a “forma simbólica” – pode ser no máximo alegórica, metafórica. Se uma forma não instaura uma presença, não poderia, aqui, receber o nome de “símbolo”; se apenas a indica, constitui, então, uma representação. Qualquer coisa pode representar qualquer outra[29]. Analogias são possíveis em um alto grau de arbitrariedade. A adequação da forma que presentará – ou presentificará – o “significado” (ma’ana) espiritual e a relação entre os dois é intrínseca, ou seja, não são dois elementos separados, autônomos e heterogêneos, do mesmo modo como, para a mística de Ibn Arabi, não há separação e relação extrínseca entre servo e Senhor, entre criatura e Criador[30]. Em suma, em Ibn Arabi, um símbolo é sempre de origem divina e não humana[31], e o simbolizado é sempre Deus e Seus conteúdos espirituais. Se um homem cria um símbolo, o faz em estado de fana’, de aniquilação, ou em algum grau[32] de esvaziamento e de inspiração, isto é, o faz em um momento em que sua “vida em Deus” prevalece. De outro modo, não se tratará de uma forma simbólica, mas de uma analogia – ou de um devaneio. O mesmo ocorre com a hermenêutica (tauil) ligada a esta linguagem simbólica. Se ela não for inspirada, não for ela própria teofânica, ela não poderá ser chamada de tauil, de hermenêutica “criativa”, que é uma atividade do coração enquanto órgão de conhecimento[33]. Esta exegese teofânica não pode ser confundida com uma exegese especulativa pura e simples, que não “vê” o que está por trás da forma imaginal – seja de um texto, de uma “imagem” aparicional ou da própria realidade provida pelos dados empíricos –, mas fala dele desde uma perspectiva racional, conceitual ou associativa[34]. A hermenêutica teofânica busca o “significado” (ma’ana) das formas e “preenche” intencionalmente o campo dos dados sensíveis (hiss) com os significados que recebe em seu coração do Mundo do Mistério, o Mundo do(s) Espírito(s).

A questão do descenso dos “significados” para a Imaginação é de extrema relevância na nossa abordagem. Dentro do Islam, “significado”, ma’ana, é uma palavra-chave tanto em teologia dogmática como no sufismo e na teoria literária. Os sufis o identificam à realidade essencial, interior e invisível de algo, em contraposição a sua “forma” (sura), sua realidade exterior aparente[35]. A “forma” é uma entidade existente mutável (uajd, “ente”): a coisa tal como é encontrada no cosmos; o “significado” (ou “sentido”) é a coisa tal como é conhecida por Deus, sendo, assim, uma entidade imutável (taayyun, “hecceidade”), espiritual e supra-sensível. O que os une é o Imaginal, que consiste na combinação dos dois e que só pode ser definido por meio deles. A linha que os separa é bastante tênue e fluida, dada a ambivalência e a abrangência do Imaginal. Os dois possuem uma identidade comum, que faz com que a percepção sensível (hiss) seja impregnada de significado necessariamente, e que os significados só possam ser percebidos através da forma (sura) e, nunca, em si mesmos. A forma não deixa de ser atributo do sensível, ao passo que o significado é dado pelo sujeito – o sujeito interpretante, o agente do tauil. Até aí, nada disso se distingue do que é afirmado pelas modernas teorias do conhecimento. O que aqui caracteriza a visão mística (idealista) de Ibn Arabi é que estes “significados”, no caso do místico, são enviados por Deus. É por isso que os dados sensíveis se convertem para ele em símbolos. A faculdade responsável pela recepção do “significado” enviado e pela projeção deste na realidade sensível é a Imaginação Ativa, cujo órgão é o coração, não enquanto “cone de carne” mas enquanto “fisiologia sutil”. O termo “significado” é aplicado a signos e os dados sensíveis são vistos aqui como tais, tanto quanto as palavras. Na verdade, nas tradições abrahâmicas[36] existe uma equivalência muito grande entre as palavras e as coisas, a ponto de, em hebraico e em árabe, as duas serem expressas por um mesmo termo, por um mesmo radical: DVR, em hebraico, e AMR e SHA’, em árabe. No Cristianismo, “No princípio era o Verbo”.

Na visão que estas tradições têm de linguagem esta antecede à Criação e, em inúmeras imagens místicas, é por ela que o mundo é criado. As palavras seriam, portanto, protótipos das coisas, e cada nome, a essência da coisa que nomeia. Nesse sentido não há diferença entre elas e o tal “significado” concebido por Ibn Arabi. Aplicar esse termo ao mundo dos conteúdos espirituais não é simplesmente alargar sua noção lingüística para um outro domínio, como arremedo de um método epistemológico, uma vez que eles parecem aqui coincidir. Palavras e fenômenos fariam parte de uma mesma esfera ôntica. Fenômenos lingüísticos e fenômenos sensíveis são, todos, frutos do casamento entre substrato material e significação. Isto torna evidente a pertinência da linguagem ao domínio imaginal, já que combina sentidos inteligíveis com sons[37], conferindo sonoridade, ou harmonias audíveis, às formas inteligíveis, e proporcionando harmonias inteligíveis ao som. O espírito está para a forma sensível como o sentido está para a palavra. Ora, se entre forma e espírito existe, como vimos, uma relação de inerência onde o espiritual revelado pela forma não é nada de “referido”, “indicado”, mas sim de “expresso” e “manifesto” por ela no nível lingüístico, é de se esperar que esta relação se repita e o sentido de cada palavra seja manifestado por ela no mesmo modo de presentificação. A palavra não “representará” seu sentido, mas o “apresentará”[38]; será dele seu corpo, e não seu RG. A teoria da arbitrariedade do signo não representa nenhum papel nisto que se está chamando de linguagem, que é algo diferente da “língua corrente”, da linguagem humana comunicativa e utilitária, e é identificado com um nível lingüístico intermediário entre esta e a Palavra de Deus, o Verbo Incriado (que não possui substrato formal).

Se a palavra (signo lingüístico) é o corpo do “sentido”, ela o expressará através de suas características materiais, que deverão ser os traços distintivos dessa idéia. (Lembremos que, aqui, o sentido não é algo de contíguo ao signo, assim como o corpo não é um anexo da alma.) Bem, os traços distintivos da palavra são suas qualidades, mais que gráficas, fonéticas. O som é seu substrato sensível, e sua “imagem” – levando-se em conta a abrangência que este termo tem em Ibn Arabi – é sonora. Isto permitirá a um estudioso do Islã como Titus Burckhardt[39] falar de “ideogramas sonoros” (fonograma) na língua árabe e hebraica, assim como considerar a maior parte de seu léxico como “onomatopéias abstratas”. Cada palavra tem o som daquilo que expressa. Na verdade, a maior parte das revelações imaginais das tradições islâmica e judaica é acústica e não visual: “Não vistes nenhuma imagem, apenas uma voz” . O próprio Corão foi ditado a Mohammed[40].

A proibição de se representar Deus por imagens, que vigora no Judaísmo e no Islamismo, fez com que as artes caligráficas e literárias fossem privilegiadas, pelo menos neste último. Ou seja, restou aos muçulmanos representar Deus por imagens poéticas, que podem ser ou alegorias (no caso dos poetas não-místicos) ou símbolos (no caso dos “Amigos de Deus” que sejam também poetas). A diferença entre os dois gêneros literários é total, embora passe despercebida em grande parte das vezes. No primeiro a criação é humana, no segundo, divina, tendo em vista que o místico escreve a partir de uma “experiência mística”, e que a imagem que usa lhe teria sido revelada. “Apenas as imagens criadas por Deus mesmo podem ser aplicadas a Ele com propriedade.”[41] (Em matéria de metáforas, Deus é insuperável: a própria Criação é uma grande metáfora que Ele criou para Si[42].) Os profetas e os Amigos de Deus podem fazê-lo porque Deus os ensinou a “criar imagens” (no sentido literário e não idolátrico do termo): eles “passam a conhecer as imagens que Deus criou para Si”[43] (Isto sim é símbolo!). Esta ciência que Deus ensina a Seus Amigos pode generalizar-se para todo o espectro das hierofanias imaginais. É a ciência imaginal, a ciência do coração, da qual a ciência da linguagem (hermenêutica) é apenas uma parte, e cujo papel é também “despertar a percepção imaginal para as manifestações de Deus”.[44]

Antes de enfocarmos a produção literária mística não mais como ciência, mas como arte, cabe colocar que o ato da “significação” mística, traduzido por Corbin como “imaginalização”, pode se dar de diversas formas. Citemos três: 1) A primeira, acima mencionada, realiza a hermenêutica dos dados sensíveis do mundo físico. Um exemplo: certa vez Mohammed[45] viu o Anjo Gabriel quando olhava para um rapaz, famoso por sua beleza. Ao invés de Dahya, via nele o Anjo. Também: quando o Profeta realizou a ascensão aos céus (mi’raj) foi lhe apresentado o conhecimento (‘ilm) na forma de leite. Depois dessa experiência, toda vez que o profeta via leite, via também o Conhecimento. 2) Outra forma de imaginalização é aquela que projeta o significado no exterior, onde ele ganha um “corpo de aparição”. Exemplo: Maria, ao ver o Arcanjo Gabriel[46] aparecer-lhe na forma de um belo homem e anunciar-lhe que conceberia Jesus (Corão, III:42 ss.; XIX:16 ss.). Também: Ibn Arabi viu certa vez o primeiro versículo do Corão na forma de uma mulher, que lhe apareceu enquanto estava doente[47], e, outra vez, a Sophia, que também se imaginalizou a ele na forma de uma linda mulher, enquanto ele circumambulava ao redor da Kaaba[48]. 3) Um terceiro modo de “descenso de significado” é o sonho místico – no sono ou na vigília –, onde não há exteriorização e a experiência é puramente interna. Após ou durante esse tipo de imaginalização o místico pode projetar o que nele foi projetado e realizar uma criação artística ou a produção de um texto. Pode, também, procurar comunicar as experiências de formas menos imaginais e mais conceituais e/ou de forma negativa[49].

No caso da arte, ela pode ser o resultado de uma experiência mística ou o próprio modo imaginalizante e objetivante em que ela se dá. A respeito da excelência desse tipo de arte na iconografia material, diz Henry Corbin: “Ao contemplar uma imagem, um ícone, os outros reconhecem que é de Deus a visão do artista que criou esta imagem – dependendo sempre da criatividade espiritual (himma) investida por este último na sua obra. Possuímos aí um termo de comparação bem exigente para medir a decadência de nossas ‘visões’ e de nossa arte.”[50] No Islã a Beleza é considerada a teofania por excelência, desde que não se reduza ao plano meramente estético e aponte para outra coisa, unindo o sensível ao espiritual. Esta transparência promove qualquer forma simbólica ao estatuto de arte e vice-versa. E toda arte, com seu sentido alargado, exigirá uma hermenêutica não-especulativa, uma exegese teofânica.

As formas literárias e a artística em geral possuem um estatuto muito especial quando criadas a partir de uma espiritualidade genuína. Além disso, a concepção de criação artística é, dentro do Islã, algo de especial também porque a concepção de ato criador divino aí diverge bastante de uma concepção de criação ex nihilo. Deus não cria do nada. Tudo o que é criado já estava em Deus de forma latente e apenas diferenciou-se e concretizou-se, passando a existir não só em potência, mas também em ato: “Deus, onde são criadas todas as coisas” (...). Nada foi criado que já não fosse.

Além disso, na concepção akbari, Deus cria o mundo imaginando-o. Nesse ponto vemos a noção de Imaginal em Ibn Arabi alcançar uma abrangência espantosa e o campo de Mundus Imaginalis estender-se por todo o Cosmo. Todo o mundo é imaginal, pois seria fruto da imaginação de Deus. Levando-se em conta essa vigência cosmogônica da Imaginação Teofânica, tudo o que é criado é criado por Deus, que o faz liberando suas potencialidades e deixando-as existir diferenciadamente, adotando formas cada vez mais definidas. Quando o homem cria, o que está a fazer, na verdade, é trazer para o plano da manifestação algo que já existia a priori, enquanto possibilidade latente (ens increatum). O poder “criativo” do homem consiste na sua capacidade de contemplar um atributo através de uma forma, de imaginalizar uma hecceidade espiritual, um atributo de Deus, um anjo – ou um ângulo (angelus) de Deus – e de “dar forma” a partir do que contempla.

A tradição exegética do Corão e de outros textos místicos, evidentemente, terá como ponto-chave a ciência das palavras. É ela que possibilita o hadith: “O mundo todo está contido no Corão e todo o Corão contido no Capítulo da Abertura do Livro. E todo o Capítulo está contido na primeira frase[51], que está, por sua vez, contida na primeira letra, e esta, no seu próprio pontinho[52].”

O mundo está contido no Corão. Em contrapartida, o universo é referido dentro do Islã como o “grande Corão”. Tudo isso indica a identidade entre mundo e texto sagrado. Este já é o mundo, uma vez que conteria todas as possibilidades do real; é tido como o protótipo ou a síntese da Criação. Se o texto sagrado já é o mundo e o contém, o mundo, por sua vez, é texto sagrado. Cada coisa é uma palavra, que possui toda uma escala de significância e que é única e exclusivamente símbolo, sem que isso diminua em nada sua concretude, individualidade e realidade. A restituição do caráter simbólico do mundo teria como condição o enfoque do mundo como texto sagrado[53].

Num texto sagrado, todas as partes contêm o todo e são, ao mesmo tempo e por isso, infinitas. Sua infinitude – e o modo dessa infinitude – relaciona-se à sua constituição fluida e abstrata. Os elementos do texto sagrado – e incluímos aqui os elementos do mundo – serão apenas como lamparinas, cujo formato, cor e tamanho diferirão entre si, mas cuja luz permanecerá a mesma e una realidade. A luz não tem forma e é, ela, a essência do texto sagrado. Sem lamparinas lingüísticas – elementos formais – ela não se manifestaria, mas a chama parece estar parada e fixa, enquanto se consome sem cessar.

Ver o mundo como texto pressuporá que ele tenha um emissor e um receptor. E, sem dúvida, ver o mundo como texto sagrado irá, então, pressupor um emissor divino e um receptor humano – o que colocaria o real necessariamente no status de mito. No entanto, poder-se-á também considerar um emissor humano e um receptor divino a partir do momento em que o homem se utiliza da realidade e de sua atuação no mundo e no tempo para estabelecer contato com o sagrado – o que, forçosamente, faria das ações humanas ritos. A realidade como texto restitui à linguagem-mundo sua função fática - isto é, torna a colocar o homem na posição de receptor e emissor de mensagens - cujo objetivo último será o contato entre ele e Deus. O mundo lhe diz respeito e fala a ele, assim como se deixa nomear e modelar segundo sua percepção e vontade[54].

O mundo é, nessa perspectiva, um universo de signos que são dirigidos ao homem, mensagens que lhe são endereçadas. Mas qual a natureza dessa mensagem? O que lhe está sendo dito? A mensagem, no caso dos textos sagrados e do mundo visto como texto sagrado, é o Interlocutor mesmo. Por isso falamos, aqui, de uma função fática: o que importa é estabelecer contato. O homem, então, através da “linguagem”, vê-se de súbito perante Deus; vê-se, por meio de palavras-coisas e coisas-palavras, interlocutor de um Tu eterno[55].

Sendo assim, o Texto – o texto sagrado e o mundo enquanto texto sagrado – estará comunicando, em última instância: Presença, Presença, Presença... Ibn Arabi nos oferece, dentro da Ciência das Letras (‘ilmu-l-hurúf), um apoio simbólico de valor para auxiliar na compreensão dessa visão de mundo. O “sheikh maior” (Sheikh-ul-Akbar) do sufismo e do misticismo islâmico possui, dentro de sua monumental obra, um tratado sobre a Ciência das Letras. A partir desse tratado vemos que, nela, não só as palavras são tratadas como entidades, como também as letras isoladamente, que são “os elementos materiais das palavras como a água, a terra, o fogo e o ar para a constituição de nosso corpo”[56]. As letras são consideradas, aí, princípios cosmogônicos, e o campo simbólico de cada uma parece ser bem determinado e delimitado. Segundo essa Ciência das Letras, a primeira coisa criada por Deus são as letras, sendo elas mesmas formadoras das realidades do Universo manifestado e do nosso mundo[57]. Essas “letras transcendentes” são as essências eternas ou idéias divinas. A primeira de todas é o álif, e em seguida é criado o ba – a segunda letra do alifato. Essas duas letras são a origem de todas as 28 letras do alifato – o alfabeto árabe –, como afirma Ibn Arabi: “Saiba que há na origem de todas essas letras e escrituras dois traços e nada mais. Todas as letras são formadas entre elas duas e a partir delas, até suas últimas derivações, da mesma forma que toda a humanidade passa a existir a partir de dois seres: Adão e Eva”[58].

No caso de Adão, o protótipo primordial dos homens, o molde foi criado por sua vez “à imagem e semelhança de Deus”[59]. Se ele foi criado segundo a imagem de Deus (Gênesis I:26), isto significa que Deus tem uma imagem – criada por Ele, é claro, para este propósito, para que se velasse e, assim, se revelasse para o homem. Esta “Forma de Deus” justifica o tão desconcertante hadith da Visão, onde o Profeta vê Deus com a forma de um jovem: “Vi meu Senhor sob a forma da beleza maior, como um jovenzinho de abundante cabeleira, assentado sobre o Trono da Graça; Ele usava uma veste verde; sobre os cabelos uma mitra de ouro; a seus pés, sandálias douradas.”[60] Por outro lado consta do próprio Corão a frase que Deus diz a Moisés: “Tu não me verás”. Não se pode nunca esquecer que aquilo que uma pessoa atinge em sua experiência mística não é, e não pode ser, a essência indiferenciada de Deus. Ibn Arabi recusava tal pretensão de certos místicos e não acreditava na Unio Mystica absoluta, pois Deus sempre transcenderia[61].

Como bem aponta Corbin, a “Forma de Deus” vista pelo Profeta assemelha-se bastante à imagem do Cristo adolescente, Christus Juvenis, com a qual o Cristianismo dos primeiros séculos representava o Cristo. Esta “Forma de Deus” como Christus Juvenis foi, depois, substituída pela outra (adulta, viril e sangrenta) e ele “se fez carne”. Houve então, segundo Corbin, a passagem de uma Cristologia teofânica para uma Cristologia encarnacionista, que viria junto com uma transformação completa no modo perceptivo do Ocidente, no qual o mundo deixaria de viver no homem e o homem é que passaria a viver no mundo. Essa queda no tempo cronológico, no espaço físico (estes sim) idealizados e no mundo objetivado, destituído de sentido, terminaria por esvaziar toda nossa interioridade e por levar-nos a um estado de pobreza espiritual bem distante e distinto daquele pregado pelo Cristo e pelos profetas.

Ao se penetrar no misticismo de Ibn Arabi e de muitos outros “Amigos de Deus”, somos atingidos pelo estarrecimento perante a noção do quão devastado está nosso universo espiritual e do quão encerrados estamos nas prisões constituídas pelo mundo físico objetivado e pelo mundo psíquico auto-referente. Enclausurados na literalização da realidade sensível e na das nossas fantasias, tentemos ao menos, uma metáfora[62]: “Talvez estes sufis, santos e tzadikim estejam, neste momento, consternados – ou rindo-se a valer – perante nosso esforço insano em remexer e fuçar o cenário, os adereços, o pano de fundo e a cortina, loucos para chegar aos camarins, e sem que nos ocorra que tudo estava ali para que uma peça fosse desempenhada. Procuramos pelos atores e não desconfiamos de que somos nós mesmos; nós, fugindo de nossos personagens. Improvisamos mal em cima de um enredo desconhecido. Enredo a que chamamos “ficção” e cujo Autor... ‘Autor?! Autor do quê, se não houve espetáculo?!’ ”

Bibliografia

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Notas

[*] Lingüista, (especialista em línguas semíticas) e mestre em Estudos Judaicos pela USP.

[1] Ibn Arabi, nascido na Espanha muçulmana, em Murcia, Andalusia, em 1164, é considerado uma das mais importantes autoridades sufis que jamais existiram. Cf. Idries Shah, The Sufis, Penguin, London, 1971.

[2] Mundus Imaginalis: ‘aalam al-mithal

[3] Henry Corbin, L’Imagination Créatice dans le Soufisme d’Ibn Arabi, Paris, Flammarion, 1976.

[4] Akbari – termo utilizado pelos estudiosos para designar o que é relativo ao Sheikh al-Akbar (Ibn Arabi).

[5] Referimo-nos à Teologia Negativa e não à Mística Negativa (às vezes também chamada de “Teologia Negativa”), que, apesar de “negativa”, é também simbólica. Sua negatividade é, antes, uma técnica de purificação do imaginal de todas as impurezas associativas condicionadas para que ele esteja apto para a experiência (ou “aparição”) direta e revelada.

[6] Gershom Scholem, A Cabala e seu Simbolismo, Ed. Perspectiva, São Paulo, 1978.

[7] Na Cabala Judaica, este mundo intermediário corresponde ao Olam há-Yetzirá, o Mundo das Formas, que liga o Olam ha-Briá, o Mundo da Concepção das almas e espíritos, ao Olam há Assiá, o Mundo da Ação.

[8] Gershom Scholem, A Cabala e seu Simbolismo, op. cit.

[9] Talvez não seja de todo vão deixar claro que a classe dos “místicos” a que nos referimos neste artigo não inclui os acendedores de incenso e os “esotéricos” de plantão.

[10] Sobre himma ver Henry Corbin, L’Imagination Créatice dans le Soufisme d’Ibn Arabi, Paris, Flammarion, 1976.

[11] Hadith (tradição oral) do Profeta.

[12] Salmos 16:8.

[13] Martin Buber reforça: “Aquele a quem na revelação, foi confiada uma missão, leva em seus olhos uma imagem de Deus – por mais supra-sensível que seja, ele a leva nos olhos de seu espírito, e esta força visual de seu espírito não é de modo algum metafórico, mas plenamente real”. (in Eu e Tu, Martin Buber, Ed. Moraes, S. Paulo, 1978)

[14] William Chittick, Imaginal Worlds, State University of New York Press, Albany, 1994.

[15] “Através do exercício da faculdade da imaginação ativa, conectamo-nos com o Mundus Imaginalis, uma faculdade e um mundo que enraíza e contrafaceiam o inteligir e a inteligibilidade na constituição de um mundo intermediário entre a sensibilidade corpórea e a intelectividade espiritual.” Ricardo Rizek, “Prefácio”, (p.13-56), p.30, in Pitágoras e o Tema do Número, Mário Ferreira dos Santos, ed. Ibrasa, São Paulo, 2000.

[16] Segundo Beatriz Machado, “Para ateus, crentes e teólogos, conhecer Deus é absurdo, seja porque Ele não existe ou porque é tão superior que pretender conhecê-lo não passa de abominável arrogância ou lamentável ingenuidade. Em contrapartida, cínicos, charlatães, megalômanos, obsessivos ou psicóticos poderão, de boa vontade, relatar seus contatos íntimos com o Todo-poderoso.” Beatriz Machado, Sentidos do Caleidoscópio, uma leitura da Mística a partir de Ibn ‘Arabi, dissertação de mestrado em Filosofia sob orientação de Marilena Chauí, FFLCH, USP, 2000, p.11, no prelo pela Ed. Humanitas.

[17] As asas dos anjos não seriam assim “figura de linguagem”.

[18] Fotuhat al-Makiya, Ibn Arabi, II, cit. in cap. 379, ed. do Cairo.

[19] Ibn arabi, idem, cap. 311.

[20] Corbin, op. cit., p.170

[21] Ibn arabi, op. cit., cap. 58.7

[22] Entendemos “alegoria” e “metáfora” aqui como contraposição à “símbolo”, embora para diversos autores, incluindo Aristóteles, metáfora seja sinônimo de símbolo. Para Aristóteles a alegoria é nada mais que uma “metáfora continuada” Cf. Aristóteles: Retórica, Livro III, 1405a, 3 -15. (Madrid: Editorial Gredos, 1999 p.490, 2º ed.) e Poética, cap. 21, 1457b, 16 – 18 (Poética de Aristóteles, edição trilíngüe de Valentiín García Yebra. Madrid: Editorial Gredos, 1974). Ver também: HANSEN, João Adolfo. Alegoria. Construção e Interpretação da metáfora. São Paulo: Atual Editora, 1986; e LAUSBERG, Heinrich. Elementos de retórica literária. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,1993.

[23] Fariddud-Din ATTAR, Muslim Saints and Mystics, Routledge & Kegan Paul, London, 1979

[24] Este ponto não deixa de ser controverso dentro do sufismo.

[25] “Na experiência mística, na Unio, o que se une é o ser humano e o ‘pólo celeste’ de seu ser – que poderia ser chamado de ‘o Anjo de sua pessoa’, sua essência eterna, a Forma através da qual ele conhece Deus e através da qual Deus se conhece a Si através dele.” – H. Corbin, op. cit., p. 210.

[26] Michel Chodkiewicz é um dos maiores especialistas de Ibn Arabi da atualidade, da École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris.

[27] M. Chodkiewicz, Un Océan sans Rivage: Ibn Arabi, Le Livre et la Loi, Seuil, Paris, 1992, p.110, 111.

[28] Eu e Tu, Martin Buber, Ed. Moraes, S. Paulo, 1978, pp.135, 136.

[29] “A pós-modernidade é como um monte de dedos que apontam: apontam-se uns aos outros.”- Definição de pós-modernidade ouvida em palestra do prof. Rosenberg, da Universidade de Jerusalém.

[30] Nunca é demais apontar que isto está bem longe da concepção místico-psicologista de um Ser divino engolfado pela psique, cuja existência não transcende a da Alma.

[31] Sob esta perspectiva, o título da obra “O Homem e seus Símbolos” parece uma contradição em termos.

[32] Na verdade, no sufismo, o estado de fana’ (aniquilação) é sempre relativo. É fana para um plano mas baqa para outro.

[33] Cabe lembrar que, no sufismo, o órgão do amor não é o coração (qalb) mas o espírito (ruh). Ao coração cabe a faculdade cognitiva.

[34] “O Deus referido pelos que não são ‘testemunhas oculares’ é um ‘ausente’.” Henry Corbin, op. cit., p. 171.

[35] Para os que vêem semelhança entre as doutrinas de Ibn Arabi de Platão, cabe apontar que Ibn Arabi é chamado de Ibn Flatun – filho de Platão.

[36] O termo “abrahâmicas” está escrito com “h” por uma questão de procedimento: procuramos sempre manter o radical semítico das palavras importadas para o português. Este caso seria mais merecedor ainda de tal cuidado, uma vez que este “h” mereceu um episódio especial na Torá e na vida de Avraham (Abraão). Cf. Genesis, XVII: 5.

[37] Ibn Arabi, Fotuhat, op. cit.. cap. 372.

[38] Em alemão, esta distinção seria feita com os termos Repräsentation e Vorstellung.

[39] Titus BURCKHARDT, “The Impact of the Arabic Language on the Visual Arts of Islam”, in Islamic Themes.

[40] Corão XCVI:1 ss. (abstraindo-se o fato de que o Profeta era analfabeto.)

[41] Chittick, op. cit., cap.5.

[42] Apenas no caso de Deus metáfora e símbolo são o mesmo, segundo nossa terminologia. Na realidade, o termo “metáfora”, aqui, está sendo usado em sentido metafórico.

[43] Chittick, op. cit., cap. 5 .

[44] Chittick, op. cit., p.77.

[45] “Mohammed’’ é Maomé. Ver nota 30.

[46] Ibn Arabi, Sagesse des les Prophetes, op. cit., p.123.

[47] Corbin, op. cit., p.38.

[48] Idem, pp. 252-254.

[49] Não que não seja possível um texto místico em linguagem apofática negativa que use mesmo assim a linguagem imagética e/ou simbólica, como, por exemplo, Rumi, quando diz que sua pluma se rompeu ao escrever sobre o amor. Cf. Jallal ud-Din Rumi, Masnavi, trad. Cromberg, Ed. Dervish, Rio de Janeiro,1991.

[50] Corbin, op. cit., p.173.

[51] A primeira frase do Corão é aquela que o muçulmano utiliza para iniciar qualquer obra: Bismi-llâh-ir-Rahmân-ir-Rahím, “Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso”.

[52] Esse pontinho é um dos traços constitutivos (o traço pertinente) da letra ba, a primeira letra do Corão (mas a segunda letra do alfabeto árabe, sendo a primeira a letra alif). Esta letra possui um pontinho sob si, que, tradicionalmente, se diz ser a ponta inferior da letra alif, conforme se verá mais adiante.

[53] Ibn Arabi considera o mundo como que simbolizado por um livro. Cf. Futuhat al-Mekkyia. E como consta na obra de René Guénon, Simbolos Fundamentales de la Ciencia Sagrada, Buenos Aires, Editorial Universitaria, 1976, p. 10: “A criação é obra do verbo; é também, por isso mesmo, sua manifestação, sua afirmação exterior; e por isso o mundo é como uma linguagem divina para aqueles que sabem compreendê-la.”

[54] O mundo, como qualquer outro texto sagrado, precisa ser interpretado, e isso se dará segundo o ponto de vista e o grau de entendimento daquele que o interpreta. O conteúdo do “texto”, por mais intrínseco a ele, dependerá do destinatário, como se a mensagem se desse para ele, dentro dele, através do “texto”.

[55] Tomando emprestada a expressão de Buber em sua filosofia dialógica. Cf. Martin Buber, Eu e Tu, Editora Moraes, São Paulo, s.d., 3ª parte.

[56] Ibn Arabi, “La Science des Lettres”, in Fotuhat al-Mekkyia (As Revelações de Meca). Lembremos que, para os gregos, a palavra “elemento” e a palavra “letra” são o mesmo termo: “estoikéia”. (Cf. Teeteto, Platão.)

[57] Papel semelhante cumprem as letras na doutrina cosmogônica do “Livro da Formação” (Sefer há-Yetzirah) da cabala judaica. Cf. Carlos Suarès, Le Sepher Yetsira, Editions du Mont-Blanc, Genève,1968.

[58] Ibn Arabi, op. cit.

[59] Genesis, I:26.

[60] Henry Corbin, op. cit., p.209.

[61] Para ele, Unio Mystica coincide com Unio Symphatetica. Ver Corbin, op. cit., pp. 98-110.

[62] Cromberg, Monica U., “A Dessignificação da Realidade e a Objetivação do Cadáver Interno”, ensaio inédito que faz parte da coletânea Tradições Abraâmicas e Ocidentalização, org. por Sérgio Rizek, Ed. Attar, São Paulo, no prelo.