O propósito deste artigo é apresentar alguns aspectos relevantes, em perspectiva histórica, da Teoria da Religião. Mostrarei a formação do projeto de uma ciência da religião (no século XIX), mais tarde a constituição de teorias funcionalistas e reducionistas e sua contestação por de Mircea Eliade, bem como algumas considerações atuais sobre essa controvérsia. A preocupação do autor é mostrar o contexto em que as teorias foram formuladas, os projetos intelectuais que as envolveram, os métodos que privilegiaram, e sobretudo, as estratégias que perseguiram, pois só o conhecimento e a reflexão sobre estes temas poderão nos auxiliar a avaliar melhor alguns dos impasses teóricos e metodológicos que permeiam os estudos religiosos. O artigo apresenta e faz um balanço crítico da constituição do projeto de uma ciência da religião e sua estratégia comparativa e histórica, passa pela formação do reducionismo e funcionalismo e pela reação fenomenológica de Eliade. O objetivo é investigar a potencialidade dos conceitos de tradição e "destradicionalização" na superação dessas controvérsias.
Mainly interested in the tension between functionalist and reductionist theories on the one hand and the approach of Mircea Eliade on the other hand, the article reviews the formation of a theory of religion and the historical circumstances under which its respective proponents developed their ideas. The article’ s purpose is to overcome the contradictions between the two theoretical currents by applying the concepts of "tradition" and "de-tradition" to the debate.
Uma das primeiras questões com que aqueles que se interessam pelos estudos sobre religião se deparam é o impasse teórico e metodológico - não resolvido entre nós – e as controvérsias que se desenvolvem em torno do reducionismo[1] praticado por disciplinas científicas que se ocupam da religião: Sociologia, História, Psicologia, Antropologia, etc., e a sua crítica, cujo emblema é a defesa da irredutibilidade do religioso, como postulada pela fenomenologia eliadiana. Tais disputas se desdobram em inúmeras outras questões, desde as características que deveria ter a disciplina (ou disciplinas) cujo objeto é a religião até os referenciais teóricos e metodológicos que deveriam ser seguidos pelos pesquisadores da área.[2] Um ensaio histórico e teórico que informe ao leitor acerca destas questões e o seu surgimento - e apresente alguns dos elementos de seu contexto - é o objetivo deste trabalho, que visa ampliar as referências sobre esses problemas e melhor localizar algumas questões. Na parte final também apresentarei uma proposta defendida em uma obra recente,[3] produzida por um conjunto de especialistas, que procura superar o impasse entre a postura que defende a autonomia do religioso e as teorias reducionistas e funcionalistas, que descreverei a seguir.
Foi no ano de 1870, na Inglaterra, que Friedrich Max Müller, professor em Oxford, filólogo e estudioso do hinduísmo antigo, sugeriu a criação de uma nova disciplina a que chamou de Ciência da Religião.[4] À primeira vista, a proposta parecia patrocinar quase que uma contradição entre termos – de um lado, um conjunto de dogmas estabelecidos pela fé; de outro, um sistema de conhecimento baseado na pesquisa racional, sujeito à revisão e à verificação incessante. Müller, entretanto, acreditava que a criação dessa nova ciência não só se justificava, mas era premente, e que poderia ser muito proveitosa: a multiplicação dos relatos de viagem, do contato direto com culturas diferentes e do esforço missionário fazia afluir para a Inglaterra uma imensa quantidade de informação sobre mitos, rituais e crenças, que alargava de forma exponencial o conhecimento sobre religiões e que precisava ser investigada.
Müller percebia que uma das tarefas mais urgentes da Ciência da Religião era comparar e classificar esses dados disponíveis a fim de descobrir padrões e regularidades que governassem a vida religiosa da humanidade. Esses padrões poderiam ser traduzidos em teorias de amplo alcance que, segundo as esperanças de seu tempo, seriam capazes de iluminar o fenômeno religioso em sua globalidade e totalidade. Parecia também evidente que um programa dessa natureza (e com esta ambição) não poderia ser realizado pela teologia – muito mais preocupada em defender uma religião particular e em esclarecer seus dogmas, centrada em pressupostos paroquiais, incapaz de uma apreciação objetiva de outras religiões e crenças.
É verdade que a proposta de Müller, sob alguns aspectos, não era tão nova assim: a crítica racional da religião, no Ocidente, era um empreendimento tão antigo quanto a filosofia grega, que havia debatido e investigado diversos de seus aspectos., No nascer da Filosofia, o pré-socrático Xenófanes submeteu o politeísmo grego a um ataque radical – apresentando a primeira "teoria" para explicá-lo: "Mas os mortais imaginam que os deuses são engendrados, têm vestimentas, voz e forma semelhantes a eles."[5] A comparação também já havia sido feita por Heródoto (484 – 425 a.C.), que descreveu diversas religiões antigas e as contrastou com os costumes e práticas dos gregos. Mas o que distinguia e caracterizava o projeto de Müller e de outros influentes eruditos de sua época - intelectuais vitorianos como E. B. Tylor (1832 – 1917) e James George Frazer (1854 – 1941) - era a natureza, o tipo de investigação por eles proposta a partir de parâmetros construídos pela ciência moderna. Estava à disposição desses autores um modelo de investigação com comprovado poder e eficiência, construído pelas ciências naturais, que podia ser adaptado, segundo acreditavam, com sucesso para o campo dos estudos sobre religião e, com isso, o revolucionar. Tais estudos podiam abandonar o que os havia caracterizado até então, um mais ou menos elaborado sistema de opiniões baseadas em racionalizações, muito mais derivadas de pressupostos filosóficos ou teológicos que da observação ou coleta objetiva de materiais.
Além da comparação ampla, capaz de produzir uma teoria universal para dar conta do fenômeno religioso no "espaço", uma das tarefas dessa ciência seria a de explicar as origens da religião, identificar as primeiras idéias e práticas religiosas, sua evolução ao longo do tempo até o mundo moderno. Para isso, a Ciência da Religião teria que ser então, uma ciência histórica. O ambicioso programa proposto parecia factível para Müller, Tylor e seus contemporâneos, pois avanço em diversas áreas do conhecimento - entre as quais a Arqueologia, Antropologia, História, Crítica de Textos etc. - podiam ser mobilizados e postos a serviço da nova ciência.
Diversos dos principais nomes envolvidas com a nascente Ciência da Religião (como o próprio Müller, Tylor, Robert Smith e Frazer), embora apresentassem respostas diferentes sobre as origens e a natureza do fenômeno religioso, acreditavam poder produzir, a partir da pesquisa rigorosa histórica e da comparação de materiais, teorias objetivas, independentes das crenças particulares de seus formuladores, que podiam ser verificadas, rejeitadas ou aceitas com base em critérios científicos.
Embora a maioria dos pressupostos, teorias e métodos formulados nesse primeiro movimento tenham sido rejeitados (como mostraremos a seguir), uma parte de seu programa produziu e ainda produz um enorme impacto no campo dos estudos religiosos. O primeiro e mais duradouro legado assumido pelas diversas correntes que trataremos neste artigo é o da a busca da objetividade, metodologias e teorias que reivindicam um estatuto científico e a independência da Teologia como pressupostos básicos de pesquisa.
Apesar da recusa geral dos métodos usados por estes pioneiros, o estudo comparado das religiões, aliado à perspectiva histórica, é uma das perspectivas que sobreviveram com mais força, e é uma das linhas de pesquisa mais importantes no campo. A "comparação em profundidade", em chave histórica e antropológica, foi praticada por autores contemporâneos influentes, como Clifford Geertz e Ninian Smart, e a sua vitalidade pode ser constatada em uma obra coletiva recente, de 2002 – "Religions in the modern world".[6] O problema e o impacto da globalização e sua relação com a religião quase que impõe a adoção de procedimentos teóricos e metodológicos comparativos e históricos, e se firma como uma das principais tendências dos estudos religiosos na atualidade. Apesar do ceticismo quase unânime, a busca de uma teoria que pudesse explicar as origens da religião foi retomada por pensadores contemporâneos importantes e tão diferentes como René Girard[7] e Walter Burkert. Em seu livro "Homo Necans", por exemplo, Burkert produziu uma hipótese sobre a origem do ritual sacrificial, e da religião, a partir da "hunt hypothesis", retomando portanto, a investigação sobre a origem, defendida por seu autor como plenamente científica. Em "A Criação do Sagrado", o autor volta ao tema, e propõe uma teoria geral da religião – que integra os mais diversos elementos do fenômeno – em seus aspectos biológicos, culturais e sociais, levando em conta os resultados das pesquisas nas mais diversas ciências.
Uma faceta apontada nesses primeiros autores como fraqueza – o intelectualismo, ou seja, a compreensão da religião como um empreendimento intelectual e como busca por respostas para questões essenciais sobre a natureza e também a vida pessoal e coletiva, reaparece no trabalho de autores contemporâneos importantes, como o de Geertz, por exemplo.
Os métodos e achados desses autores apresentam inúmeras deficiências: no campo da Antropologia, seus proponentes são pejorativamente chamados de "antropólogos de gabinete".[8] Eles são acusados de nunca ter conhecido uma cultura "primitiva" diretamente e, mesmo assim, formular teorias para explicar não apenas uma religião, mas a totalidade delas, assim como seu desenvolvimento histórico completo. O método que utilizaram para a produção de suas construções é caracterizado como "comparação de superfície",[9] baseada em similaridades superficiais – entre símbolos, mitos, ritos e crenças retirados de seus contextos culturais e históricos que os tornam significativos. Esses autores não hesitam em colocar, lado a lado, um rito de um povo sem escrita e um outro, de uma sociedade complexa, como se expressassem um mesmo fenômeno ou pudessem explicitar algum processo universal qualquer em operação que os unificasse. Essa "comparação de superfície" é ainda pior pois é baseada em "documentos" díspares em seu valor e confiabilidade: relatos de viagem, observações casuais, relatórios oficiais das administrações coloniais e textos de missionários são equiparados e recebidos de forma pouco crítica, considerados como "testemunhos" fiéis dos fenômenos que apresentam.
A partir dessas comparações, as generalizações são "selvagens" - o animismo pressuposto por Tylor, o totemismo encontrado por Robert Smith ou o espírito da vegetação de Frazer, mal detectados em uma cultura particular, são transformados em explicações gerais, universais, para todo um espectro da vida religiosa, apontados em alguns casos como a sua origem. E. E. Evans-Pritchard produziu um curioso argumento para descrever o processo de criação destes autores: o – "If I were a horse"[10] ("Se eu fosse um cavalo"), mostrando que na verdade, eles escreviam imaginando como seria a vida de um "primitivo", como pensariam se vivessem em seu mundo e naquelas condições. Por essa razão, suas principais teorias, embora revestidas com uma enorme erudição, nada mais seriam que palpites, adivinhações sobre o mundo "selvagem", suas crenças e protagonistas. Esses autores também teriam uma compreensão estreita da religião: a viam como um empreendimento intelectual e individual, como um esforço "pessoal" para explicar o mundo. Acreditavam na existência de uma espécie de "filósofo primitivo" que, ao tentar entender os fatos da vida e da natureza (sem que pudesse atinar com os processos científicos subjacentes) apelava para concepções mágicas e depois teológicas. O intelectualismo foi repudiado pela crítica posterior por não explicar diversos outros aspectos como a força e o poder do ritual, os elementos afetivos e emocionais e, também, as evidentes ligações com o mundo social, político e econômico. A postura intelectualista não conseguia explicar a razão pela qual, mesmo depois da criação e difusão da ciência moderna, a religião não desapareceu.
Uma apreciação desse esforço pioneiro de caráter mais filosófico denuncia que seus autores, que partilhavam de uma visão de mundo, foram contaminados pelo "espírito do tempo" que constituiu os fundamentos de suas construções teóricas – a crença em uma linearidade evolutiva na História, portadora do progresso, que promoveu a passagem do mundo irracional dos povos e religiões primitivos para o quase-racional das religiões monoteístas, sobretudo o Cristianismo, que no fim cederia lugar, derrotada pelo brilhante mundo da ciência e das conquistas tecnológicas. Uma certa versão social do darwinismo alocava as religiões "primitivas", assim, em uma espécie de ponto zero, irracional, do começo dos tempos, e a ciência moderna, patrocinada na Europa civilizada, o termo final de um progresso irreversível e irresistível. Com base nesses preconceitos, os autores organizavam o seu material – tudo o quê para eles fosse "magia", "irracional", superstição – era alocado nos primórdios de uma suposta escala evolutiva, e tudo o que fosse mais racional, complexo, "civilizado", em uma fase posterior, como manifestação do progresso histórico, mais um passo na direção da superação da religião. Esse esquema apriorístico era que decidia o lugar que uma determinada religião, crença ou ritual deveria ocupar no quadro geral da História e comparação.
No entanto, se é relativamente fácil identificar e comparar estágios de desenvolvimento tecnológico e dizer que uma sociedade é mais avançada desse ponto de vista, isso não é tão simples, se não de todo impossível, em relação às criações culturais como a religião. Como dizer que uma religião ou ritual é superior aos de outra cultura? Qual o critério que se deve escolher para definir essa superioridade? Os do autor da classificação? O da sociedade que o produziu? A obra de Eliade, como veremos adiante, polemizou em uma de suas frentes contra o trabalho destes autores para confrontar tais pressuposições em um esforço para revalorizar as "religiões primitivas", afastá-las dessas acusações de irracionalidade e, sobretudo, demonstrar que elas eram construções complexas, históricas, "racionais", que não podiam ser enquadradas dentro dos parâmetros impostos pelos cientistas vitorianos.
Em 1843, muitos anos antes da conferência que apresentou o programa para a criação da Ciência da Religião, por Müller, e da publicação das obras mais influentes de Tylor ("Primitive Culture", em 1871) e Frazer ("O Ramo Dourado", em 1883), apareceu um livro que continha uma passagem que se tornou célebre:
A miséria religiosa é ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real. Religião é a visão do homem oprimido, o coração de um mundo sem coração, o espírito de uma situação sem espírito. A religião é o ópio do povo. A abolição da religião como felicidade ilusória é exigência para a felicidade real. A exigência para a desistência da ilusão sobre a sua condição é a exigência para superar a condição que cria a ilusão.[11]
Karl Marx, assim, na "Introdução da Crítica da Filosofia do Direito de Hegel", adotou uma outra estratégia para considerar o problema da religião, completamente diferente das de Tylor, Müller, Smith e Frazer. A religião, ao ser pensada por Marx como o ópio do povo - uma ilusão que obstrui a produção da felicidade real, um consolo ilusório que evita a superação dos fatores reais produtores da infelicidade – é investigada em razão das funções que desempenha na sociedade e não com base em seus conteúdos ou elementos internos. Vemos, também, que Marx postula um conjunto de causas que nada têm a ver com a busca de respostas intelectuais, mas, sim, com "a miséria real" construída através de processos de exclusão econômicos, sociais e políticos, pela luta de classes e seu impacto na sociedade e história.
Nessa estratégia de enfrentamento não faz sentido uma pesquisa centrada no conteúdo das crenças, nas aquisições ou perdas intelectuais ou emocionais produzidas por elas, na reunião de mitologias, rituais, etc., e sua comparação, pois o que realmente importa é entender os processos econômicos produtores da miséria, bem como sua reflexão e expressão na religião e a função que ela exerce no quadro geral da vida coletiva. Os conteúdos desenvolvidos pela religião são, na melhor das hipóteses, ideologia – ou seja, idéias interessadas, representações falsas ou parciais e incompletas da realidade – construída com o propósito de reforçar a dominação e a opressão e impedir a sua superação. A religião e suas instituições sancionam as formas econômicas de exploração, apóiam os governos que as promovem, defendem a divisão desigual de poderes e riquezas, e as apresentam como a ordem natural das coisas, se não a expressão da vontade divina. Promete em um mundo futuro uma vida plena e feliz, que não existe, para impedir que os oprimidos, aqui e agora, mudem as estruturas geradoras de sua miséria. Quando comparamos essa abordagem com a dos autores vitorianos, vemos que Marx concorda no fundo que a religião é irracional, um tipo de superstição, mas essa não é a principal questão – o que precisa ser explicado é porque as pessoas continuam acreditando nela e porque as crenças religiosas continuam existindo apesar de sua falsidade. E sua resposta, como vimos, é que ela está ligada a processos sociais fundamentais, não meras formas individuais de expressão ou respostas pessoais para explicar o mundo e as vicissitudes da vida.
Podemos ver assim, em Marx, a formação de uma estratégia de investigação que teve um enorme impacto nas teorias sobre religião, baseada na pergunta pela sua função – e também, a adoção de uma perspectiva reducionista – ou seja, a identificação de causas e processos que são pensados como os produtores da religião fora dela. Funcionalismo e reducionismo foram duas estratégias teóricas produtivas e fecundas, nos estudos religiosos, que estiveram freqüentemente interligadas. Essas perspectivas foram adotadas não só por Marx mas por inúmeros outros estudiosos, dentre eles Durkheim e Freud. Usando a estratégia reducionista e funcionalista, Durkheim viu a religião como expressão simbólica da sociedade, cuja função é produzir a solidariedade social, sua integração e coesão, para tornar o que é necessário para a vida coletiva, desejado e querido pelos seus membros. Freud, como um subproduto do inconsciente, com a função de reprimir pulsões instintivas anti-sociais.[12] Outro fator comum a tais aproximações funcionalistas é o de que a religião é sempre pensada como uma variável dependente, ela não tem autonomia, e por isto, pode ser melhor explicada pelas ciências particulares que se interessam pelo problema religioso – a Sociologia, Economia, Antropologia, Psicologia, História etc.
Quando comparados com os trabalhos de autores vitorianos com os quais começamos esse artigo, podemos notar que as teorias do tipo reducionista e funcionalista revelam conexões fundamentais da religião com esferas da vida humana, social e cultural que as teorias destes autores não conseguiram captar. Os trabalhos de Marx, Durkheim e Freud, por exemplo, mostraram que a religião é muito mais que um subproduto de equívocos intelectuais, falsas representações de um suposto "filosofo selvagem" primitivo tentando produzir teorias pré-científicas sobre o mundo. Eles viram que a religião tem relação com complexos processos sociais, históricos e psicológicos e, ao acentuar as funções que ela desempenha, favoreceram um entendimento mais apurado de diversos fenômenos religiosos e sua relação com um contexto mais amplo.
A procura de explicações em termos de processos e funções permitiu estabelecer um programa de investigação objetivo, como perguntas muito precisas, que resultaram na formulação de teorias e métodos poderosos, com resultados significativos. Tome-se como exemplo um livro que se tornou clássico, "O Êxtase Religioso", de Ioan Lewis. A obra se propõe a investigar uma série de experiências religiosas que, aparentemente, resistiriam a qualquer abordagem, especialmente as reducionista e funcionalista, pois pretendeu estudar um tipo de experiência extremamente pessoal – o êxtase religioso. Com o instrumental reducionista e funcionalista, Lewis sustentou que toda uma série de experiências vividas em inúmeras religiões, de transe e possessão, estavam diretamente relacionadas a grupos sociais marginalizados, na periferia do mundo social, e eram estratégias de sobrevivência, ascensão, de negociação de maior poder e prestígio através de cultos que ele designou como de possessão periférica. Essas religiões seria portanto, investigadas á luz de processos de marginalização e explicadas em termos de sua função - uma estratégia de superação da exclusão social. William Arnal[13] aponta como característica dessas teorias que os "conteúdos" da religião propriamente dita, sua linguagem, mitos, ritos, textos sagrados, etc – apesar de apresentarem uma dimensão simbólica que comunica uma determinada visão de mundo religioso, retiram sua significação última, verdadeira, dos processos que os criaram. A linguagem religiosa, portanto, não tem nenhuma autonomia, seu conteúdo é arbitrário, historicamente determinado e culturalmente relacionado. O referente dessa linguagem é mundano, não havendo, mesmo em experiências tão singulares - como a dos cultos estudados por Lewis - qualquer espaço para a invocação do transcendente e do sobrenatural.
A estratégia funcionalista e reducionista patrocina, como é evidente, a dissolução completa do objeto religioso nas diversas arenas em que é apreendido: economia, sociedade, cultura, psique etc. E a questão que se coloca então é: embora exista, evidentemente, a influência de tais processos na religião, eles podem ser apontados como a sua causa determinante? A religião não possui nenhuma autonomia em relação a eles? Não há uma dimensão de resistência, não tem ela nenhuma força criativa e autônoma? O estilo de reducionismo praticado por Marx, Freud e Durkheim, também, ao pretender explicar um fenômeno tão diverso, tão múltiplo como a religião, através de causas e processos unilaterais, acaba submetendo sua compreensão a uma simplificação falsificadora, que, se funciona bem para alguns aspectos de religiões particulares, apresentam problemas quando procuram tratar o religioso em sua universalidade. Tome-se como exemplo o problema do milenarismo[14] – um fenômeno importante - a crença no fim dos tempos, na destruição da atual ordem nefasta das coisas e em sua superação através de um advento miraculoso com a instauração de um mundo perfeito, o milênio, livre dos constrangimentos, sofrimentos do mundo real, presente. O milenarismo é freqüentemente explicado com base em concepções centradas em idéias de exclusão e privação social, e entendido como reação, e até mesmo revolução, contra a ordem social vigente. Seria, portanto, um processo relacionado à pobreza e explicável por ela. Um fenômeno passível de ser trabalhado a partir de pressupostos marxistas.
Pois bem, numa das mais importantes áreas de investigação sobre a religião na atualidade, a dos novos movimentos religiosos, as explicações de base econômica são claramente insuficientes. Em um artigo publicado na Rever[15] que trata das novas religiões de OVNIS, cujo epicentro está nos Estados Unidos e Europa – o autor mostra o impacto do milenarismo, em vários desses cultos, que são praticados por pessoas de alto poder aquisitivo, portanto privilegiadas do ponto de vista econômico, social e cultural. Diante dessas evidências, parece não poder haver uma clara e fácil relação entre pobreza, religião e milenarismo que teorias faziam supor. Em sua apreciação do reducionismo de Freud, Pals, no livro "Seven Theories of Religion",[16] além de vários problemas epistemológicos e metodológicos, mostra como suas concepções se relacionam e funcionam dentro de um contexto monoteísta: a criação da idéia de Deus é derivada de um complexo processo causado pelo assassinato fundador do pai, pelos filhos, na aurora da civilização, na horda primitiva, e da repressão das pulsões postas em andamento, a partir do horror e sentimentos de culpa motivados pelo crime cometido.
Pals afirma que esse esquema, em si mesmo pouco crível, e sem apoio em qualquer teoria contemporânea da pré-história, ou da pesquisa antropológica, não funciona muito bem fora das religiões monoteístas. Ele não é aplicável nas religiões "primitivas" conhecidas, por exemplo, para não falar naquelas que se centram em torno de divindades femininas, ou que não são construídas em torno da repressão dos instintos sexuais e que, algumas vezes, os patrocinam e estimulam em cultos e rituais de tipo orgiástico.
No campo das Ciências Sociais, o paradigma funcionalista passou a ser severamente contestado pela superação de idéias que sustentavam que homens e a sociedade podiam ser entendidos e explicados apenas com base em critérios utilitários e pragmáticos, e da concepção que via a sociedade como a soma de suas estruturas, interagindo em sistemas perfeitamente ordenados de funções, uma espécie de organismo ou mecanismo integrado, que seria a base da maioria dessas teorias. Geertz,[17] no ensaio "Ideologia Como Sistema Cultural", ataca essa visão implícita ou explícita das concepções funcionais:
Nenhum arranjo social é ou pode ser inteiramente bem sucedido com os problemas funcionais que inevitavelmente enfrenta. Todos eles estão crivados de antinomias insolúveis: entre a liberdade e a ordem política, a estabilidade e a mudança, a eficiência e a humanidade, a precisão e a flexibilidade, e assim por diante. Há descontinuidade entre as normas nos diferentes setores da sociedade - a economia, a comunidade política, a família, etc. Há discrepâncias entre objetivos dentro dos diferentes setores – entre a ênfase no lucro e na produtividade das firmas de negócios ou entre a ampliação do conhecimento e sua disseminação nas universidades, por exemplo.
Victor Turner, em seu livro "O Processo Ritual", atacando também pressupostos reducionistas e funcionalistas no campo religioso, afirmou:
Eu penso que está se tornando amplamente reconhecido que as crenças e práticas religiosas são algo mais que grotescos reflexos e expressões de relações sociais, políticas e econômicas, ao contrário, elas estão sendo percebidas como chaves decisivas para entender como as pessoas pensam e sentem estas relações, e o mundo natural e social nos quais operam.[18]
Ele mostrou, ainda, que várias dessas crenças possuem dimensões não funcionais, e muitas vezes, atuam contra elas. Turner sustentou que diversos rituais na vida tribal operam retirando o homem e a comunidade de seus papéis estruturais e funcionais. Turner[19] identifica, na mesma obra, uma dialética entre o mundo da estrutura e da função, e da antiestrutura, e afirma que diversos movimentos religiosos – o de Francisco de Assis, e de Caitanya (um místico indiano importante), por exemplo, se caracterizaram por assumir um ethos antifuncional radical, se colocaram contra os parâmetros, valores e interesses do mundo social em que estiveram inseridos.
De um ponto de vista epistemológico, Arnal[20] considera que as teorias funcionalistas naufragaram naquilo que é a primeira exigência de uma teoria – a sua capacidade para definir e delimitar o seu objeto: pois, quando se define a religião em razão da função que ela desempenha, é quase impossível excluir fenômenos que nada têm a ver com religião, mas exercem a mesma função:
"O principal problema com tais definições culturalistas[21] é que se elas fornecem um bom critério para incluir aqueles fenômenos que normalmente e inconscientemente designamos como religiosos, pertencentes à categoria religião, elas geralmente não oferecem nenhuma boa razão para excluir certos fenômenos que normalmente não são considerados como tal."[22]
Arnal assinala que, para Marx e Freud, se a religião pode servir a uma função de mistificação, de consolo ou neurótica, ela não é a única realidade a exercê-la. Assim como a literatura, a Filosofia e até mesmo a televisão podem ter essas mesmas funções, não existe nenhuma razão objetiva para considerá-las como não atendendo aos critérios da definição de religião, mesmo não tendo nenhuma ou muito pouca relação com ela. Importante ressaltar que, apesar destes inúmeros problemas, essas estratégias ainda são importantes, e que diversos autores procuraram, com base nas críticas, refiná-las e reconstruí-las de forma a torná-las mais criteriosas. Walter Burkert, por exemplo, é apontado por Burton Mack[23], em uma avaliação critica de sua obra, sobre a religião grega,[24] como um sofisticado reducionista e funcionalista. Sua marca é a não adoção de um reducionismo ingênuo à uma única causa ou processo, e a rejeição de explicações através de funções simplistas. Burkert mantêm um escrupuloso respeito á complexidade do fenômeno religioso, procura descrevê-lo e entendê-lo em suas múltiplas conexões com suas dimensões históricas, psicológicas, sociológicas, biológicas, antropológicas etc. Burkert também não considera que a religião seja um reflexo passivo destas múltiplas condicionantes, e vê a religião específica que estuda como tendo se cristalizado em uma tradição que adquiriu considerável força e autonomia e se tornou um dos fatores e processos que influenciaram o mundo cultural, social e histórico, de forma que não há apenas uma única "mão de direção" – da cultura para a religião, como diversas dessas teorias pressupunham.
A Fenomenologia da Religião foi e ainda é uma das principais tendências na abordagem dos estudos religiosos, e a trataremos aqui a partir de um dos seus autores mais influentes, Mircea Eliade. A Fenomenologia da Religião teve como um dos vetores de sua constituição a polêmica contra as teorias da religião primitiva, dos vitorianos, e, também a reação aos postulados reducionistas e funcionalistas. Ela desenvolveu uma oposição contra essas correntes teóricas em dois planos fundamentais – de um lado o dos pressupostos filosóficos de suas concepções, e de outro o do campo da crítica de seus construtos teóricos e científicos.
Eliade, nesse aspecto, é herdeiro de predecessores. Burton Mack,[25] por exemplo, aponta que um dos mais influentes autores no campo da fenomenologia – Rudolf Otto, em seu livro seminal "O Sagrado" - tinha como uma de suas preocupações a refutação de idéias e teorias desenvolvidas pela Escola de Cambridge, designação que recebeu a corrente intelectual integrada por alguns dos principais vitorianos que consideramos neste artigo. Contra os vitorianos, Mircea Eliade adotou uma de suas principais divisas - a revalorização das religiões "primitivas" e tradicionais, e a refutação da concepção de que eram portadoras de superstições irracionais, ou pertencentes a um estágio "primitivo", mágico, na aurora da humanidade. Contra o funcionalismo e o reducionismo opôs aquilo que se tornou uma das marcas de seu pensamento, a irredutibilidade do sagrado, a defesa da autonomia e independência do fenômeno religioso.
Essas posturas polêmicas se cristalizaram em um programa de investigação que teve como fundamentos de partida e de chegada as idéias de complexidade, irredutibilidade e universalidade do fenômeno religioso, e na adoção de um método capaz de realizá-lo. A complexidade do fenômeno religioso se destinava a sustentar que qualquer religião, mesmo a dos povos menos sofisticados do ponto de vista material ou tecnológico, possuía um intrincado sistema simbólico, um rico conjunto ritual e mitológico capaz de traduzir uma cosmovisão profunda do mundo, da vida humana e comunitária. Na polêmica contra os vitorianos, Eliade sustentou que o conhecimento antropológico sobre as religiões arcaicas estabeleceu ser impossível encontrar "um ponto zero", uma origem absoluta, e que as religiões das sociedades ditas primitivas sempre se revelaram como inseridas num contexto histórico – de forma a que o esquema evolucionista – do simples ao complexo, da magia ou animismo às idéias de Deus, radicadas na ideologia do progresso, eram falsas.
Contra o reducionismo, Eliade defendeu vigorosamente a idéia da irredutibilidade do sagrado, sustentando a autonomia do religioso em relação a qualquer outra realidade biológica, cultural, psicológica, etc., afirmando que se é verdade que a religião recebe influências de tais esferas, ela conserva sua independência e não pode ser reduzida a elas. Eliade nunca negou que os estudos sobre a religião pudessem se beneficiar da identificação de processos históricos ou sociais com as quais se relacionam; no entanto, ele postulou que ela possui uma dimensão autônoma irredutível, que é aquilo que a diferencia e caracteriza, que a torna religião e que precisa para ser entendida, captada. O argumento eliadiano, construído por analogia com a Arte ou Filosofia, sustenta que é necessário para entender Platão, por exemplo, estudar a sociedade grega, os embates políticos e culturais de sua época; no entanto, a sua filosofia tem autonomia em relação a estes dados primários, e só pode ser de fato compreendida a partir de seus textos, da pesquisa interna dos diálogos, sua cadeia de razões, argumentos - são esses os elementos que a constituem e tornam sua obra uma obra filosófica propriamente dita.
O mesmo se passa com a religião – é útil e mesmo imprescindível à compreensão dos fenômenos econômicos, políticos, psicológicos ou antropológicos que atuam e a influenciam – mas as ciências que os estudam, quando muito, são apenas vestibulares, auxiliares para a compreensão do fenômeno religioso, que só pode ser entendido a partir de sua "linguagem interna", seus mitos, ritos e sistemas de símbolos, autônomos e irredutíveis. O outro postulado fundamental da fenomenologia eliadiana é a universalidade da religião, que pode ser entendida em dois planos – a constatação que jamais foi encontrada uma sociedade sem religião, e também, no sentido de que, em qualquer religião que o pesquisador indague, encontrará formas constantes universais – símbolos que revelam conteúdos também universais. Essa universalidade impõe ao estudioso um método específico, comparativo e histórico, também universal, para dar conta do seu objeto.
As peculiaridades do fenômeno religioso – complexo, irredutível e universal - permitem avançar a suspeita, se não a certeza, de que a dimensão religiosa é uma das mais fundamentais da vida humana e social, tão ou mais importante que as culturais, políticas ou econômicas. A fenomenologia propõe assim, uma certa visão do homem que sustenta a existência do "homo religiosus" como mais originário e fundamental, mais importante que seus colegas "homo faber"," economicus" etc.
E o que quer o homo religioso, afinal? A resposta eliadiana, a partir da investigação a mais completa possível do religioso, em chave histórica e fenomenológica, é viver no sagrado em um espaço-tempo experiencial, expressão radical de tudo aquilo que é primeiro, absoluto, importante e tem valor. Um centro que é o real por excelência e o fundamento último do cosmos e da vida. O homem arcaico, difamado pelos primeiros cientistas da religião, tem aqui a primazia – pois o que o caracteriza é sua proximidade com o sagrado.
O sagrado se manifesta em uma multiplicidade de hierofanias que são a infraestrutura a partir das qual as religiões foram construídas. Essas hierofanias são processos de simbolização que produzem a "adesão" de um símbolo a uma "superfície" qualquer – uma pedra, um rio, uma atividade ou acontecimento, e conferem a ela um novo estatuto ontológico e experiencial a sacralizando. As hierofanias, como qualquer manifestação que se dá no espaço e no tempo vividos, sofrem o devir histórico e, assim, se submetem a todas as suas vicissitudes: elas aparecem, sofrem as influências corrosivas da "cultura", são modificadas, transformadas (e às vezes degradadas), morrendo e desaparecendo. A estratégia, portanto, para o estudioso das religiões, decorrente da natureza específica e autônoma de seu objeto, se quiser apreendê-lo, deve atender a algumas exigências: em primeiro lugar, precisa captar as hierofanias através da interpretação de sua significação simbólica, depois, compará-las e catalogá-las para poder se determinar as suas modalidades e tipos fundamentais. O resultante desse método de catalogação e comparação será a construção de grandes tipologias que Eliade denomina de "modalidades do sagrado"[26] – que apresenta como formas de religiosidade que podem aparecer como celestes, aquáticas, lunares, da vegetação, espaciais e temporais, entre outras.
Essa primeira tarefa será assim, uma atividade tipicamente fenomenológica – a busca da identificação em cada fenômeno religioso daquilo que ele tem de fundamental e essencial, a sua estrutura. A segunda tarefa será a do historiador, que investigará na história a criação, a modificação, ou extinção de um determinado símbolo, mito, ou religião, ou idéia religiosa. Além disso, dada a universalidade do fenômeno religioso, a estratégia precisará ser capaz de produzir, no campo da fenomenologia, uma comparação que seja a mais ampla possível e que inclua "exemplos" significativos e classes da vida religiosa da humanidade, e também uma historiografia mundial. A Ciência da Religião, então, terá que perseguir uma estratégia comparativa e classificatória, e também histórica, se quiser ser simétrica e comensurável com seu objeto irredutível, complexo e universal. Na obra de Eliade, esses eixos fundamentais podem ser vistos no "Tratado da História da Religião" – que representa o momento fenomenológico de sua investigação, e na "História das Idéias e Crenças Religiosas", que trata da sua dimensão histórica.
Um dos dados da estratégia eliadiana, que se acentuou segundo os seus críticos nos anos 60, é a compreensão cada vez mais profunda da atividade do cientista da religião como essencialmente uma hermenêutica do símbolo religioso. Assim, Eliade se insere em uma tradição do pensamento filosófico, com origem na Alemanha, que, a partir da distinção entre Ciências da Natureza e Ciências Humanas, entende que se naquelas o trabalho científico é o de descrever as relações quantitativas subjacentes aos fenômenos que pesquisa, no campo da cultura a tarefa seria de captação e interpretação dos sistemas de significação qualitativos que constituiriam a sua peculiaridade. A proposta eliadiana, mantendo-se fiel aos seus pressupostos, teria assim aprofundado sua autopercepção como projeto hermenêutico, que se atualizaria através da integração da pesquisa fenomenológica e histórica. O trabalho do autor perseguiu, assim, uma complexa e ambiciosa estratégia, que apresenta diversos níveis e propõe uma metodologia "plural" – que pode ser entendida como uma atividade sistematizante a partir da utilização de instrumentais classificatórios, históricos e hermenêuticos.
O mérito[27] do projeto fenomenológico, pela complexidade da proposta, por seus diversos níveis e ainda a vasta obra na qual ela foi concretizada, é de difícil avaliação. Além disto, ela desencadeou uma acirrada polêmica que dividiu os estudos religiosos entre eliadianos e seus oponentes. Na apreciação feita em "Seven Theories Of Religion",[28] Pals afirma que o trabalho de Eliade teve um enorme impacto no campo, e que a sua importância em termos concretos pode ser dimensionado pelo fato de que quando ele assumiu o professorado de Estudos Religiosos na Universidade de Chicago, existiam apenas outros dois importantes da mesma natureza nos Estados Unidos, e quando ele se aposentou, mais de trinta haviam sido criados, a metade deles dirigidos por antigos alunos, pessoas que ele ajudara a formar. A insistência de Eliade na autonomia do objeto religioso, sua especificidade, o trabalho incansável para afirmar o estatuto científico dos estudos sobre religião, teve um impacto altamente positivo na transformação da religião em uma área acadêmica de pesquisa.
Diversos pontos da crítica eliadiana merecem destaque: sua polêmica contra os vitorianos, os funcionalismos e reducionismos e contra o positivismo ajudaram a clarificar algumas das principais fraquezas, incongruências e incorreções dessas estratégias – e, sobretudo, mostrou que sob um discurso de objetividade e cientificidade ocultavam-se projetos que, herdeiros que eram de diversas correntes de pensamento derivadas da "modernidade", filhas do Iluminismo, eram programaticamente hostis à religião, e que esse viés contaminava sua apreciação do fenômeno. Um outro aspecto pouco considerado, a meu ver, na obra eliadiana, é a sua antecipação de um modelo sistêmico para a interpretação da religião – a partir de uma de suas divisas - a da complexidade do fenômeno religioso. Para Eliade, a compreensão de um símbolo religioso exige a sua integração e comparação tanto em eixo horizontal, com símbolos que lhes são idênticos ou muito semelhantes, como também em eixo vertical - o símbolo "mãe", aquele do qual ele derivou o seu significado, ou logicamente ou historicamente (o arquétipo). Depois, o símbolo é incluído em uma das modalidades do sagrado (o seu tipo fundamental), e pesquisado em seu desenvolvimento histórico. Dessa forma, a religião aparece como um verdadeiro sistema de produção e integração simbólica, que manifesta (e só por isso pode ser investigada), a partir da interação entre seus diversos componentes - o sagrado.
Outro ponto importante da proposta eliadiana é a sua insistência na interpretação do "texto", da "linguagem" religiosa propriamente dita, e o seu significado específico, o seu conteúdo, como pontos de partida essenciais para a compreensão da religião, que em estudos contemporâneos aparece como a defesa da importância da tradição, pela constatação que a partir de sua formação na religião, é criado um sistema cultural que tem uma relativa autonomia e engendra, ao menos em parte, as suas próprias significações, o que permite questionar os absolutismos das posições que vêem na religião uma mera variável dependente.
Na obra "Sagrado e a História", Eduardo Guimarães identifica duas grandes vertentes críticas em relação á fenomenologia de Eliade, uma empirista, que nega ao seu trabalho caráter científico - ao rejeitar o que seria uma maneira subjetiva e arbitrária de trabalhar os dados -, cujos principais autores são antropólogos e historiadores profissionais, e outra, a partir da filosofia, especialmente do historicismo que se desenvolveu na Itália, que ataca os pressupostos de sua fenomenologia, a sua visão particular do homem e da História, e também a irracionalidade de seu método e a incorreção de suas análises em temas específicos de sua "História das Religiões".
Essas duas tendências concordam em alguns pontos fundamentais: afirmam que o método eliadiano é um híbrido de Filosofia e Ciência, portanto incapaz de produzir uma História da Religião que seja científica; sustentam que o postulado da irredutibilidade do sagrado, colocado como fundamento a priori, e não como uma hipótese, não tem valor, não se sujeita aos critérios de verificação ou falsificação, e por isto não pode ser aceito. Consideram que a estratégia eliadiana partiria de pressupostos metafísicos sobre o Homem, a História e o sagrado impostos ao conjunto dos fenômenos religiosos, o que produz um simulacro, um arremedo de ciência. Segundo o antropólogo Edmund Leach,[29] Eliade fala de um ponto de vista místico e suas certezas são impostas aos fatos que analisa. Sua concepção da História é deficiente – ele a trata de uma perspectiva filosófica e não científica, e esses pressupostos é que presidem a seleção, organização e interpretação dos dados. Eliade assume que tudo o que é arcaico é bom, religioso, ontológico, verdadeiro, e o que é histórico é degradado, corrompido etc. Leach aponta que Eliade, aos fazer "História das Religiões", não obedece a seqüências cronológicas e não se interessa por relações de causa e efeito. Divide a História humana em História do homem arcaico ou pré-cristão, e do homem moderno ou cristão, e para esses grupos trabalha com grandes generalizações que não são suportadas pelos fatos conhecidos. Leach mostra que o conhecimento empírico acumulado das culturas "arcaicas" não sustenta a teoria de que o "primitivo" é radicalmente diferente, mais religioso, mais próximo do sagrado, do que o Homem contemporâneo, o que refuta as posições eliadianas.
Parte dos equívocos dessas grandes generalizações surgem através de uma distorção que Eliade impõe ao estudo das simbologias, por acreditar que símbolos particulares de culturas locais possam ter valor universal, e que eles admitem interpretações fora de seu contexto histórico e cultural imediato, que é o que garante ao símbolo o seu sentido correto. Essa crença o leva a impor a simbologia de um grupo específico para outros, e num passo ainda mais inaceitável, para o conjunto das religiões humanas. Do ponto de vista estrutural, Leach identifica em Eliade uma lógica binária para ler o símbolo, baseada em oposições simples - sagrado/profano, presença/ausência, nascimento/morte, real/irreal, ser/não ser, que, se pode funcionar para algumas sociedades arcaicas, não se sustenta em mundos complexos e suas religiões. Eliade, nesse ponto, também repetiria os equívocos dos vitorianos – pois, ao retirar os símbolos e fenômenos religiosos de seus contextos culturais e históricos, produz a falsificação de seus significados, e ao compará-los de forma superficial, amplia ainda mais o grau de mistificação e engano. Eliade ainda usa as fontes antropológicas de forma incorreta para simular evidências daquilo que fala, através de citações, as vezes, de fontes desacreditadas ou superadas. Ele confunde provas factuais com meras citações de textos.
Leach conclui, assim, que o trabalho de Eliade é falso em suas conclusões, e equivocado em sua metodologia: como não há diferença radical entre o tempo arcaico e o moderno, a história produzida por ele é uma má história. Como o "primitivo" não é o homo religiosus, sua Antropologia é uma péssima Antropologia. Suas generalizações são arbitrárias e suas comparações incorretas, o que resulta numa metodologia de todo insustentável. A crítica de outro antropólogo, Robert F. Brow,[30] além de apontar no geral os mesmos problemas que Leach, enfatiza, naquilo que é um dos momentos essenciais do empreendimento eliadiano, a sua Antropologia das sociedades arcaicas, do ponto de vista do método - o uso indevido de fontes antropológicas, o trabalho com dados imprecisos ou contestados por pesquisas posteriores, a não distinção entre fontes primárias ou secundárias. Um dos defeitos mais graves de seu método é que Eliade despreza a linha interpretativa dos autores, o que falsifica de todo o uso das pesquisas, e também, trabalha com dados heterogêneos e dispersos como se tivessem valor idêntico.
O seu método comparativo é inaceitável, pois ele compara materiais e fenômenos de épocas e culturas diferentes sem qualquer ressalva, e como se eles pudessem dizer e significar a mesma coisa, ou traduzir o mesmo fenômeno ou processo. Suas generalizações são incorretas, pois provenientes de indução incorretas, que se caracterizam por generalizar a partir de alguns dados extraídos de poucas sociedades, para os impor a diversas outras culturas. Dados ou fontes que não se encaixam nos modelos eliadianos nunca são mencionados, e não servem para falsificar suas hipóteses.
Esses inúmeros problemas aparecem na verdade, pois o seu método é descendente – do transcendente para o cultural, de forma a que o cultural é arranjado, manipulado, para sustentar as crenças particulares do autor ou, quando muito, defender seus pressupostos filosóficos e teológicos. Como Eliade no fundo e na verdade quer resgatar os valores arcaicos e os transmitir para os modernos, faz uma "ciência" prescritiva e normativa, sem muita preocupação com a objetividade. Brown, a partir das investigações antropológicas sobre as sociedades que Eliade designa como arcaicas, no mesmo sentido apontado por Leach, sustenta que os dados não permitem concluir que o homem arcaico quer abolir o profano, ele não é tão preocupado com mito e origem - como Eliade acredita - e a sua religião, também se prende ao profano, lida com os desafios da vida cotidiana, o que torna falsa a concepção eliadiana dessas religiões particulares.
Em relação ao símbolo, a abordagem de Eliade é reducionista, pois ele só se interessa pelo seu sentido explanatório (pelo qual o símbolo expressa a presença do sagrado), mas não considera o nível etnográfico e exegético que é a explicação e interpretação pelo grupo que o utiliza. Dessa forma, Eliade se julga capaz de afirmar um sentido para o símbolo, mesmo quando não reconhecido pela comunidade, ou desconhecida por ela. De um ponto de vista da história, a historiografia de Eliade é deficiente e incorreta em seus fundamentos e métodos. Seu pior problema é que como ele acredita em um transcendente, absoluto e não histórico, esvazia os fatos históricos para dizer que não têm significação. A partir disso, sustenta a crença de que a história não explica a religião, mantêm a fé no sagrado como fundante e, a partir dela, condena as abordagens históricas empíricas pois não assumem a verdade transcendente do seu objeto.
Eliade tem uma visão redutiva da história, a trabalha como mera crônica de fatos, sem a menor consideração pela identificação de processos sociais, políticos, econômicos e históricos em interação. Desconsidera a historiografia científica por reduzi-la de forma incorreta apenas à História positivista, que não leva em consideração as motivações, aspirações ou finalidades humanas, e por essa razão, a julga incapaz de explicar os significados que são os mais fundamentais para o Homem, expressos pelo fato religioso. Um dos ataques mais incisivos contra a estratégia de Eliade se dirige ao seu recurso ao método interpretativo e intuitivo derivado da Psicologia do Profundo para captar os "símbolos mãe", os arquétipos, parte essencial de sua estratégia. O fenomenólogo, com base em semelhanças superficiais entre os símbolos, identifica os arquétipos transcendentais dos quais eles derivam e retiram a sua significação e validade. Esse recurso interpretativo mergulha o método eliadiano e seus achados no irracionalismo, pois ancora todo o seu empreendimento fenomenológico e tipológico na estrutura arquetípica da psique, que como é captada por intuição e introspecção, não pode ser objeto de falsificação ou verificação, e por isso tanto o método como seus achados não são científicos, e não validam um conhecimento objetivo.
Por fim, o uso que Eliade faz da idéia de sagrado, em torno do qual boa parte, se não a quase a totalidade da teoria é construída, atrai a rejeição de diversos críticos. Essa concepção, se pode ser legítima para algumas religiões, nas quais ela de fato existe, e faz parte do vocabulário, não é e nem pode ser automaticamente transferida para todas as religiões. O historiador R. Braid[31] afirma que o primeiro impasse da epistemologia eliadiana nasce precisamente de sua recusa em definir o sagrado, de dizer de forma positiva e descritiva o que ele é. Ao fugir dessa primeira exigência que uma teoria tem que atender, ela se torna imprecisa, vaga, não delimita qualquer objeto, e se torna assim, não falsificável. A partir dessa recusa de definição, é lógica e cientificamente impossível diferenciar o que é o sagrado autêntico do não autêntico, apontar quais condutas ou fenômenos estão incluídos ou não nessa classe, tipo ou conceito. Essa grave deficiência torna a própria teoria passível dos mais diversos abusos, pois a idéia de sagrado, ao não expressar qualquer conteúdo positivo e não poder ser controlada por ele, se presta a predicar qualquer fenômeno e acaba tornando-se um conceito fácil, capaz de legitimar qualquer discurso sobre religião.
A derivação do conceito de sagrado é não histórica, serve à compreensão metafísica do "homo religiosus" como Homem primordial - é a partir desse conceito ontológico e da captação de suas estruturas através do método comparativo que Eliade articula sua leitura da religião e do Homem. Como a realidade do sagrado é fundada metafisicamente através de um método não científico, a fenomenologia, ela não pode ser falsificada, e só é válida para quem já está convencido de sua existência. Portanto, o sagrado só pode ser estabelecido como conceito, ou pela Filosofia ou Teologia, mas nunca pela Ciência. Não reconhecer a validade da ontologia, ou do método de Eliade, implica em não aceitar suas conclusões.
O debate entre os representantes das correntes reducionista/funcionalista e da fenomenológica continua em curso, com pesquisadores defendendo a validade e correção dessas posições, que ainda se mantêm. Outros estudiosos procuraram superar esse confronto, e apresentarei a seguir uma estratégia que vem sendo tentada para vencer o impasse. Essa nova estratégia, a meu ver, leva em consideração que, se de um lado é insustentável a visão que não reconhece nenhuma autonomia no objeto religioso - e assim ignora seu papel como um dos mais fundamentais processos formadores de cultura - de outro, também afirma que não é sustentável uma fenomenologia que se constitua a priori pretenda descrever essências e use os fenômenos religiosos apenas como ilustração de verdades que já se conhece e que não leve em conta devida as dimensões sociais, antropológicas, históricas da religião.
A estratégia de superação dessas divergências, sugerida e praticada na obra "Religions in the Modern World", é a articulação de uma abordagem que leve em consideração dois eixos de investigação: o primeiro, a partir da concepção de tradição religiosa, procura estudar a sua constituição, conservação e transmissão, o seu conteúdo, a "visão de mundo" que ela contêm e o ethos que a caracteriza. O segundo eixo é o da "destradicionalização", que identifica as relações da religião com o contexto político, cultural, econômico etc., e o impacto dessas forças na tradição religiosa estudada e suas rupturas e transformações. A concepção de tradição, entendida de forma provisória como herança cultural que se transmite de geração em geração, permite uma estratégia de investigação empírica, mas que procura descrever e interpretar o sistema simbólico que a particulariza enquanto tal, nos seus múltiplos aspectos e historia. Com essa estratégia pode-se detectar nas tradições religiosas seus "recursos internos" específicos, seus textos sagrados, rituais, mitologias, doutrinas, teologias, instituições, arte etc, que são em determinados níveis irredutíveis a outras tradições, e à cultura mais geral, e assim, possuem uma certa especificidade e autonomia que precisa ser levada em consideração, evitando reducionismos simplistas e grosseiros.
Em "Religion in the Modern World", por exemplo, os diversos especialistas nas religiões particulares identificam quais as fontes da religião que descrevem, quais os agentes e elementos que são considerados como os portadores de autoridade, capazes de estabelecer prescrições hermenêuticas, doutrinais, rituais ou éticas, que são seguidas pelo conjunto da comunidade. Inter-relacionado com as fontes de autoridade, em seguida, apresentam os principais recursos que a tradição religiosa desenvolveu ao longo da história - seus principais textos, suas liturgias, rituais, formas de expressão, etc.
Essa primeira parte da investigação é descrita no "Religion" como tendo uma inspiração fenomenológica, pois procura se ater aos elementos "internos", no "texto", nas articulações e produções da tradição religiosa. Nessa estratégia fica evidente que, ao se estudar o Cristianismo, por exemplo, seu processo de formação, constituição e transmissão de suas doutrinas, a criação de suas correntes teológicas, escolas filosóficas, e mesmo suas instituições, o postulado reducionista pouco ou nada tem a oferecer ou, pelo menos, não poderá ignorar o universo doutrinal, litúrgico, e institucional, entendê-lo em seus próprios termos e história, para só assim relacioná-lo a um contexto mais amplo. Essa estratégia não trabalha com conceitos de sagrado, hierofania, etc, a não ser de forma muito pontual, quando eles integram o vocabulário de uma determinada religião. Ela não parte de conceitos a priori, construídos ontologicamente, e não se presta à procura de essências. Ela é uma história da tradição religiosa. A inspiração fenomenológica é derivada do reconhecimento de que diversas religiões, algumas delas milenares, são portadoras de uma identidade própria, criaram e criam cultura, e assim têm especificidades, uma esfera de autonomia que admite e exige um nível de descrição e interpretação que leve em consideração esses fatos.
Um autor apontado como sendo representante desta concepção é Ninian Smart. Ele trabalha com o conceito de tradição religiosa, e a percebe como uma força cultural portadora de uma "visão de mundo", constituída a partir da inter-relação de diversas dimensões: materiais, teológicas, mitológicas, éticas, institucionais etc. A idéia de tradição, ainda que poderosa, porém, evidentemente não pode ser entendida como a solução de todos os problemas do campo. A concepção de tradição é polêmica, e existem várias formas de encará-la e entendê-la, que sofrem influência do contexto religioso em que é utilizada. Walter Burkert, na religião grega, sustenta a proeminência da tradição como dado fundamental, pois o que a caracterizava e legitimava era a pertinência do ritual ou do mito, àquilo que havia sido recebido e transmitido de geração em geração. Seu conceito de tradição é de um legado cultural que se cristaliza em estruturas cuja desobediência implicava em severas sanções comunitárias, inclusive a coação jurídica exercida pela polis. Catherine Bell, num livro sobre ritual,[32] no entanto, defende que o conceito de tradição deve ser substituído pelo de tradicionalização[33] – que designa o processo pelo qual cada comunidade religiosa ou indivíduo, negocia, transforma, incorpora, modifica a cultura religiosa que recebe – de forma que tradição é sempre uma reescrita, uma reinvenção, a partir de elementos previamente dados. Não tem, portanto, a rigidez, a continuidade, e a solidez estrutural postulada por Burkert.
Ninian Smart, ao considerar diversas religiões mundiais, ressalta que elas, em sua maioria, são constituídas por subtradições, o que também já revela um certo limite no conceito. No Cristianismo, por exemplo, o catolicismo romano, o protestantismo e suas denominações, as diversas igrejas ortodoxas são subsistemas, não redutíveis uns aos outros. Mas esses problemas de concepção e articulação da idéia de tradição não são as únicas questões, e talvez nem mesmo as principais. Em "Religions in the Modern World", o conceito de "destradicionalização", em si mesmo, já mostra os limites do uso do conceito de tradição, e é usado para detectar inúmeros processos, de amplo espectro que têm atingido as religiões e o campo religioso, não só, mas especialmente no mundo contemporâneo.
Os especialistas vêm apontando que a modernização, globalização, pós-modernidade, secularização, com inúmeros dos processos e fenômenos que lhes são associados e correlatos, vêm tendo um enorme impacto nas tradições religiosas. O aumento da autonomia do indivíduo, o aprofundamento da hegemonia do mercado e sua difusão cada vez maior nas mais diversas esferas da vida social – dois dos principais componentes desses processos – ao lado da perda do monopólio religioso de algumas tradições em regiões em que eram dominantes, favoreceram a criação do "mercado de bens religiosos", em que o indivíduo combina livremente e escolhe, através de um processo de bricolagem, as crenças e práticas religiosas que lhe apetecem. "Destradicionalização" é, assim, um dos resultados dessa interação entre sociedade, cultura, mercado e religião.
A detecção desses fenômenos levou os pesquisadores à percepção de que o campo religioso em constituição é maior do que o das tradições religiosas. Fenômenos como a Nova Era e os Novos Movimentos Religiosos, e mesmo a presença cada vez mais importante de crenças e práticas mágicas, mesmo no interior de religiões tradicionais, vêm obrigando os estudiosos a postular uma diferenciação entre os conceitos de religião e religiosidade, reservando o primeiro para as tradições, e religiosidade, ou espiritualidade, para um conjunto de práticas e crenças difusas, que são uma das tendências do comportamento religioso contemporâneo. A concepção de "destradicionalização" parece ser útil aqui, uma das ferramentas de entendimento e investigação destes novos fenômenos que estamos assistindo.
Para concluir este trabalho, gostaria de ressaltar que, como afirma Pals "Seven Theories of Religion", o valor de uma teoria não pode ser medido apenas em termos de sua capacidade de descrever ou interpretar um determinado fenômeno, com base na questão de sua adequação ou pertinência à realidade que pretende desvendar. Várias das teorias propostas sobre a religião, de que tratamos neste artigo, traduziram insigths, perspectivas que, se não tinham a universalidade e suficiência que seus autores pensaram, foram capazes de chamar a atenção para aspectos importantes da religião, suscitaram o debate, produziram críticas e refutações, e permitiram que elas fossem rearticuladas e reescritas em novas bases, refinadas e melhoradas, e serviram de inspiração para a produção de novas teorias e formas de compreensão.
Os vitorianos tiveram o mérito de fundar a disciplina Ciência da Religião e propor a sua separação da Teologia, a investigação histórica, o método comparativo, a defesa de um empreendimento de caráter científico, que, como vimos, foram e são preocupações duradouras e que permanecem no campo, ainda que em bases diferentes. Sua ênfase nos aspectos intelectuais da religião, embora combatidos por diversas correntes e percebidos como não exclusivos, vêm sendo revalorizados e reconsiderados à luz de evidências antropológicas. Diversas teorias reducionistas e funcionalistas chamaram a atenção para as relações da religião com aspectos sociais, políticos, econômicos, culturais e psicológicos, alargando, assim, o campo de percepção, multiplicando os ângulos de visão, as perspectivas dos estudiosos, sobretudo revelando a complexidade dos fenômenos religiosos e suas ligações com esses contextos.
A reação fenomenológica, sua insistência na irredutibilidade do Sagrado, na universalidade da religião, e sua complexidade, a crítica contra os reducionismos e funcionalismos, muitas vezes extremamente simplificadores, e a luta pela autonomia do objeto e da ciência que o estuda teve, também, um enorme impacto nos estudos religiosos. A influência do trabalho e da obra de Mircea Eliade ajudou a consolidar o campo, e difundir a Ciência das Religiões, o que em si não é pouco importante. A superação e talvez integração em uma teoria de uma abordagem que leve em conta os embates teóricos e metodológicos anteriores, as forças e deficiências apontadas nas diversas perspectivas que foram perseguidas pelas correntes que apresentamos, é a sugestão de uma nova estratégia que se articula em torno da concepção de tradição religiosa, e depois, de "destradicionalização". A idéia de tradição incorpora idéias de autonomia e identidade, aceitando a exigência de uma descrição e interpretação que reconheça as especificidades de cada religião investigada. Essa estratégia, ao afirmar uma relativa autonomia do objeto, permite postular uma ciência também autônoma capaz de descrevê-lo. Uma das direções que essa estratégia poderia aprofundar é a idéia de sistema como conjunto de propriedades em que o todo não pode ser reduzido às suas partes, e das quais emergem características próprias, específicas. O conceito de "destradicionalização" reconhece a importância do impacto do contexto mais amplo, de outros sistemas sociais como o político, o econômico e cultural, no campo religioso, e procura mostrar a "fricção" entre eles, contribuindo para a compreensão de fenômenos contemporâneos de amplo espectro como os da globalização, secularização, modernização em suas relações com a religião.
Estas são, evidentemente, apenas algumas anotações, sujeitas a um aprofundamento, e uma investigação mais cuidadosa, e sua produtividade precisa ser testada no campo, nas religiões e fenômenos religiosos que constituem o nosso objeto de investigação.
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[*] Paulo Gonçalves da Silva é mestre em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
[1] É preciso considerar que nem todas as correntes destas ciências são reducionistas. Em "Seven Theories of Religion", um dos livros de referência para este artigo, os trabalhos dos antropólogos E. Evans.Pritichard e Clifford Geertz são apresentados como reações aos postulados reducionistas e funcionalistas. Cf. p. 198-232 e 233-267.
[2] Uma das questões é o nome que deve designar a disciplina. Os que sustentam a autonomia do objeto religioso tendem a postular uma ciência autônoma para pesquisá-la: a Ciência da Religião. Os que acreditam que o fenômeno é uma variável dependente da Psicologia, Sociologia, Política etc., tendem a sugerir Ciências da Religião, pois o seu objeto deve ser pesquisado por uma destas ciências particulares.
[3] Linda WOODHEAD, Paul FLETCHER, (edts). Religions in the modern world.
[4] Cf. Daniel L. PALS, Seven Theories of Religion, p. 3-15.
[5] Cf. Gerd BORHEIM (ed.), Os filósofos pré-socráticos. Frag. 14.
[6] Linda WOODHEAD, Paul FLETCHER (eds.).
[7] Cf., "A violência e o sagrado".
[8] Um interessante contra-ataque recente, em relação à condenação da "antropologia de gabinete", vem a partir do reconhecimento que diversos novos movimentos religiosos - a religião dos ovnis - por exemplo, tem como principal forma de expressão – a Internet – e assim precisa ser pesquisada - "através do escritório", ou seja, sem possibilidade de "imersão" real, direta, concreta, naquele "território" que é virtual.
[9] Há diferenças entre esses autores. Robert Smith teve contato direto com culturas na península arábica. Tylor abusa muito menos deste tipo de comparação que Frazer, e seu trabalho vem sendo revalorizado de forma mais positiva por antropólogos influentes da atualidade.
[10] Cf. Daniel L. PALS, Seven theories of religion, p. 225.
[11] MARX, Critique of Hegel’s Philosophy of Right, apud Neibuhr, Marx and Engels on Religion, p.42, apud Daniel L. PALS, Seven Theories of Religion p.141.
[12] William E.ARNAL, Guide to the study of religion, verbete Definition, p. 25.
[13] Cf. William E.ARNAL, Guide to the study of religion, verbete Definition, p. 26-7.
[14] Cf. Encyclopedia of social and cultural anthropology, millennial movements, millenarianism p. 371-73.
[15] Andreas GRÜNSCHLOSS, "Quando entramos na nave espacial do meu pai - Esperanças cargoisticas e cosmologias milenaristas nos novos movimentos religiosos de UFOS". PUC-SP, REVER: 2002, pp.19-44, http://www.pucsp.br/rever/rv3_2002/p_andrea.pdf.
[16] Cf., Daniel L. PALS, Seven theories of religion, p. 77 -83.
[17] Clifford GEERTZ, A interpretação das culturas, pg. 114.
[18] Victor TURNER, The ritual process, p.6.
[19] Cf., Paulo Gonçalves Silva Filho, O ritual e a transgressão: Aspectos da religião e do culto de Dionísio na Grécia. p. 118-131.Dissertação de mestrado.
[20] Cf. William E. ARNAL, Guide to the study of religion p. 28.
[21] O autor usa o termo culturalista como sinônimo de funcionalista.
[22] Ibid., p.28.
[23] Cf, Burton MACK, Violent origins, p.1-4.
[24] Especialmente a História da religião grega na época arcaica e clássica.
[25] Cf, Burton MACK ,Violent origins, p.1-4.
[26] O tratado da história das religiões é o trabalho de Eliade em que ele produz a catalogação, comparação dos fenômenos religiosos segundo estes tipos fundamentais.
[27] Ver o Sagrado e a História, uma tese de Doutorado que apresenta uma das mais completas investigações da obra eliadiana, em seus pressupostos filosóficos, e que faz uma vigorosa defesa do caráter científico de seu empreendimento.
[28] Cf. p. 158-192.
[29] Cf. Sermons by a man on a ladder, The New York Review of Books 7 (October 20,1966) 28-31 apud O sagrado e a história, p.35-38.
[30] Cf. André EDUARDO GUIMARÃES, O sagrado e a história, p.38-42.
[31] Cf. Eduardo GUIMARÂES, O sagrado e a história, p. 50-56.
[32] Catherine BELL, Ritual perspectives and dimensions, 351 p.
[33] Cf. ibid., 145-150.