Editorial - REVER número dezembro, ano 7, 2007

Religião Sem Igrejas: Pluralidade no Processo - Da Desregulação Religiosa na Contemporaneidade

Os artigos do presente dossiê fizeram parte do seminário temático “Religiosity and popular religion outside official religion” (“Religiosidade e religião popular fora das instituições religiosas oficiais”) que organizamos juntamente com Eloísa Martins (Universidad Nacional de San Martin/ CONICET, Argentina) para a 29ª SISR - reunião bianual da Sociedade Internacional de Sociologia da Religião, que ocorreu entre 23 e 27 de julho de 2007 em Leipzig, Alemanha.

O objetivo desse seminário temático era discutir práticas e crenças difusas, bem como sistemas crenças e valores não reconhecidos por ou não vinculados a igrejas tradicionais. Muito diversas entre si, as religiosidades e religiões analisadas nessa sessão se assemelhariam apenas por estarem à margem das instituições oficialmente reconhecidas como religiosas

Ao longo da História, as instituições religiosas oficiais sempre tentaram, com grau variável de sucesso, regular todas as práticas e crenças. Tensões internas às igrejas (sacerdote versus fiel ou versus líder carismático), bem como conflitos entre as chamadas “igrejas” e “seitas” foram tema de reflexões importantes nos trabalhos de Weber e Bourdieu. Religiosidades autônomas, que estão à margem das instituições fugindo do controle dessas, sempre existiram. A novidade atual é multiplicação e diversificação dessas experiências. Aliadas ao enfraquecimento das instituições em geral, as crescentes trocas globais intensificaram hibridismos religiosos e experiências religiosas fora das instituições na sociedade contemporânea.

Nossa proposta era traçar paralelos e integrar problemáticas que não têm sido trabalhadas de forma conjunta. Por um lado, procurávamos discutir a chamada “religiosidade popular”, cujo estudo tem sido vinculado ao das tradições pré-modernas e locais, e por outro, crenças e práticas religiosas que se misturam a discursos laicos, científicos e políticos. Esse último tipo de religiosidade, em oposição à popular, se vincula a processos de individualização e secularização característicos da “ultramodernidade” ou modernidade avançada. Além dessas religiosidades, organizações religiosas, que por sua marginalidade em relação às instituições oficiais são por estas acusadas de “seitas”, foram tratadas em nossas discussões.

Similares apenas por sua autonomia em relação às igrejas, essas experiências são muito diversas entre si quanto à origem, público, conteúdo e discursos. Através da análise comparativa entre as distintas trajetórias de crenças e das condições sociais objetivas (institucionais, econômicas, sociais, culturais, políticas), que as engendraram e as sustentam, procuramos identificar tendências contemporâneas de desregulação do religioso. Essa análise comparativa procurava, assim, entender como se dariam diferentes configurações/encadeamentos/recomposições de práticas e crenças num contexto marcado mais por hibridismos e modos identificação mais autônomos do que regulados, no qual as instituições religiosas já não teriam domínio do religioso.

O seminário temático estava dividido em quatro sessões. A primeira se dedicava ao problema da religiosidade popular, com a apresentação de trabalhos de Eloísa Martin (Argentina), Cristián Parker (Chile), Eliane Tânia Freitas (UFRN, Brasil), Hugo José Suárez (México) e Cecília Mariz (UERJ, Brasil).

A religiosidade presente de forma não explícita em discursos supostamente laicos era o tema dos trabalhos da segunda sessão, que previa a participação de Luiz Fernando Dias Duarte (Museu Nacional, UFRJ, Brasil),” Roberta Bivar Carneiro Campos (UFPE, Brasil), Denise Rodrigues (UERJ, Brasil) Cristina Gutierrez (México) e Leila Amaral (UFJF, Brasil).

Por fim, a terceira sessão analisava experiências religiosas transnacionais que se desvinculavam de instituições oficias ora levando o hibridismo característico da Nova Era, ora criando grupos identificados como “seitas” pelas instituições oficiais. Além de Frank Usarski (PUC-SP, Brasil), estava prevista a participação de dois professores da UFJF, Brasil, Fátima Tavares e Wilmar Barbosa, e também de Adriane Luisa Rodolpho (EST, RS, Brasil), Maria de Lourdes Beldi de Alcântara (USP, Brasil) e, ainda, Suzana Bornholdt (UK).

Alguns desses apresentadores não puderam ir a Leipzig. Mas a sessão contou com outros dos listados acima. Por motivos diversos, como compromisso já firmado com outra publicação e incompatibilidade de agenda pessoal, muitos não puderam participar do presente dossiê. No entanto, conseguimos que ao menos um dos trabalhos de cada uma das três sessões constasse no presente dossiê.

Os quatro artigos do dossiê apresentem tipos distintos de questionamento por parte dos indivíduos do poder de uma igreja hegemônica de definir o que é verdade, ou seja, de validar crenças. Indivíduos podem simplesmente rejeitar identidade religiosa e se dizer sem religião, apesar de eventualmente ter crenças religiosas (ver o artigo de Denise Rodrigues); podem, também, participar de cultos devocionais não aceitos pela instituição, mas sem romper com ela (como mostra Eliane Tânia Freitas); ou, ainda, podem aderir a grupos religiosos alternativos acusados de “seitas” pelas instituições oficiais (ver Suzana Bornholdt e Adriane Rodolpho). As “seitas” parecem incomodar mais as instituições oficiais por se tornarem, por seu lado, novas instituições que as confrontam. Analisando como crenças e práticas religiosas se realizam fora do espaço institucional, mas sempre em tensão com este (Estado, igreja, mídia, etc.), as autoras discutem como estas são disputadas, contestadas, re-elaboradas e estabilizadas.

O primeiro artigo a abrir o dossiê é o de Eliane Tânia Freitas. Através da análise dos ritos, em especial de narrativas, a autora nos oferece uma imersão etnográfica no universo da devoção popular, no caso a devoção religiosa a um cangaceiro, Jararaca, morto em 1927, em Mossoró, supostamente por ação da polícia local. Por meio dos testemunhos, narrações hagiográficas, fabulações acerca de fatos históricos tidos como reais, Eliane analisa como se dá a reelaboração da identidade social do morto e do culto a sua pessoa.

O artigo seguinte, de Denise dos Santos Rodrigues, trata de um segmento da população brasileira que tem mais crescido ao lado dos pentecostais, sendo considerado pelos pesquisadores como um possível vetor desestabilizador do campo religioso brasileiro. Os dados de Denise revelam que os chamados “sem religião” se apresentam internamente diversificados, possuindo características e cosmovisões distintas, que se expressariam não apenas como secularização das mentalidades, mas também por uma nova concepção, mais autônoma, de religiosidade.

Em “A questão das seitas na França: vitalidade religiosa de uma mitologia científica?”, Adriane Rodolfo redireciona o debate para uma análise crítica do discurso oficial sobre o que estão na margem. A partir de questionamentos sobre como são utilizadas as categorias “seitas” e “religião” na França, a autora reflete sobre coabitação de grupos religiosos com a “tradição republicana e laica”, que problematiza e questiona a noção do religioso e de seu lugar na sociedade. O lugar que as seitas ocupam neste campo discursivo é do inimigo que é necessário combater. Salienta na sua análise a existência de uma crença generalizada da “seita” como sendo sempre o “outro” que ameaça.

O artigo de Suzana Ramos Coutinho Bornholdt fecha o dossiê com a discussão sobre as atividades missionárias e recrutamento da BSGI (Soka Gakkai International) na atualidade, grupo transnacional acusado de “seita” por sua proposta religiosa alternativa. Através do modo como o grupo atua no Rio Grande do Sul, analisa como este negocia espaço e legitimidade com outros grupos religiosos brasileiros e como a BSGI utiliza uma ideologia ligada à idéia de paz, cultura e educação para promover suas próprias causas.

Através do conjunto de artigos aqui reunidos, acreditamos estar contribuindo para o debate de maior evidência na sociologia da religião nos dias atuais, qual seja, como se dá a recomposição da crença e das novas formas de identificação religiosa em face da desregulação do religioso.


Cecília Loreto Mariz[*]

Roberta Bivar Carneiro Campos[**])

Notas

[*] Cecília Loreto Mariz é professora adjunta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

[**] Roberta Bivar Carneiro Campos é professora adjunta II da Universidade Federal de Pernambuco.