Em 2003, a Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES, Minas Gerais), lançou um curso de graduação em Ciências da Religião[1]. REVER conversou com a coordenadora do curso, a professora Ângela Cristina Borges Marques, para saber mais a respeito.[2]
REVER: Quais as razões que levaram a UNIMONTES a lançar um curso de Ciências da Religião?
Ângela Cristina Borges Marques: Na UNIMONTES nós podemos falar de duas versões do curso de Ciências da Religião. A primeira, de caráter modular e emergencial e custeado pelo aluno, foi editada em 2003 nasceu, como consta em seu Projeto Político Pedagógico, “de uma solicitação dos muitos professores que atuam na área, sem uma graduação que possa oferecer uma base teórica compatível com as exigências surgidas no decorrer de sua prática educativa, e ainda em função da escassez de professores habilitados para desenvolver atividades de Ensino, Pesquisa e Extensão nesta área.” A segunda e atual, de caráter regular e gratuito, surge da cobrança dos muitos professores que atuam na área sem formação específica e da exigência de muitos diretores de escolas e pedagogos que desejavam um professor de Ensino Religioso não proselitista e preocupado com questões como ética, diversidade, tolerância religiosa, senso crítico e político. Na medida em que, no Estado de Minas Gerais, o Ensino Religioso se torna obrigatório, aumenta a cobrança em relação à Universidade.
REVER: Quais os objetivos visados com esse curso?
Ângela Cristina Borges Marques: Qualificar professores para ministrarem Ensino Religioso lhes proporcionando uma formação compatível com as necessidades da educação brasileira. Para isso, o curso almeja criar condições para a reflexão sobre a prática educativa e o papel do profissional responsável pela transmissão da cultura religiosa e suas manifestações na sociedade. O que só é possível adquirindo e aperfeiçoando conhecimentos científicos numa perspectiva crítica e mediante um trabalho interdisciplinar, de estímulo à investigação e à pesquisa sobre os efeitos que a possibilidade do sagrado provoca nas mais diversas dimensões humanas. Ciente disso, o especialista com formação em Ciências da Religião se posicionará no espaço escolar não apenas como professor, mas também como investigador desse espaço, principalmente se estiver aberto a perceber e aceitar sua inegável diversidade religiosa.
REVER: Por gentileza, de uma forma sintética, descreva como funciona o curso, sua estrutura curricular, duração, aprovação pelo MEC, etc. e qual o grau de expansão até o momento.
Ângela Cristina Borges Marques: Autorizado pelo MEC, o curso iniciou em 2007 com uma turma de 33 alunos e com duração de três anos e meio. Sua estrutura curricular se divide em: formação humana, na qual se prioriza a Filosofia, formação pedagógica e formação específica. Esta última é multidisciplinar. A partir da História, da Antropologia, da Filosofia, da Sociologia, da Psicologia, da Arte e da Literatura procura-se focalizar as mais variadas manifestações religiosas.
REVER: Qual é o perfil do corpo docente?
Ângela Cristina Borges Marques: Eclético, mas somente um professor/coordenador possui formação em Ciências da Religião.
REVER: Qual é o perfil do corpo discente?
Ângela Cristina Borges Marques: A palavra que o define é heterogêneo, desde a faixa etária até o objetivo pessoal em relação ao curso. No que diz respeito à religião, questão menos preocupante para nós, há uma grande quantidade de católicos e evangélicos e raros espíritas (no sentido mais amplo).
REVER: O curso já dispõe de alguma publicação?
Ângela Cristina Borges Marques: Não. Nossa primeira publicação sairá em 2008.
REVER: Quantos alunos inscritos já se encontram formados?
Ângela Cristina Borges Marques: Esta é a primeira turma de Ciências da Religião numa universidade pública e, portanto laica.
REVER: Por que optaram por Ciências da Religião e não Ciência da Religião?
Ângela Cristina Borges Marques: As duas denominações possuem vantagens e desvantagens. Quando falo em Ciência da Religião, falo que o estudo da religião tem uma base teórica, metodológica e espistemológica comum, o que não é uma realidade no Brasil. Pode até ser na Alemanha, mas não aqui. Penso ser prematuro na UNIMONTES falar em Ciência da Religião, quando ainda nem mesmo temos um corpo docente totalmente voltado para a investigação na área. Acabamos adotando a nomenclatura da primeira edição: Ciências da Religião, apesar de a atual coordenação almejar um corpo docente com formação específica na área e aí quem sabe poderemos falar em Ciência da Religião.
REVER: Olhando as disciplinas, vemos que elas buscam abarcar um quadro muito amplo das religiões, incluindo aí, por exemplo, as Religiões Afro-Indígenas Brasileiras e as Religiões Orientais. Como elas são estudadas, por elas mesmas independentemente da referência cristã ou são estudadas em termos comparativos ou a partir da ótica cristã?
Ângela Cristina Borges Marques: O cuidado em incluir tais religiões na estrutura curricular emergiu da necessidade em conhecer o local, isto é, o regional, (Religiões Afro-Indígenas) sem se despreocupar com uma realidade antes tão distante e que, em função da globalização, está cada vez mais próxima (Religiões Orientais). Gostaria de falar especificamente da necessidade de compreender o local, uma vez que sua compreensão nos leva ao entendimento do ethos regional. O norte de Minas Gerais, em seu processo de povoamento, recebeu influências consideráveis dos índios e dos negros. Religiões como a Umbanda, que em sua cosmologia possui tais influências, tem presença forte na região, portanto, suas raízes não poderiam ser desconsideradas. A compreensão do universo religioso leva a compreensão de identidades. A proposta é estudá-las independentemente, distanciá-las ao máximo da referencia cristã. No entanto, um obstáculo viabiliza a comparação: a cultura cristã enraizada na psique tanto de alunos quanto de professores. Cabe ao professor distanciar-se e é perceptível que quando sua formação é específica, isto é, em Ciências da Religião, tal distanciamento naturalmente acontece.
REVER: Considerando o estatuto de independência buscada pelas ciências modernas face às tradições teológicas, como é abordada no curso a relação com a teologia?
Ângela Cristina Borges Marques: Todo o processo de implantação do curso, sua concepção, elaboração do projeto, escolha das disciplinas e ementas e o primeiro contato com os alunos procurou-se deixar evidente que o curso não é de Teologia e que não se submete a esta, qualquer que seja. Nos meios de comunicação, por ocasião da divulgação da graduação, preocupamos em fazer esta distinção. E é claro, recebemos críticas e houve resistências. Ainda é difícil para o professor que tem uma visão ingênua de religião e é confessional, – e muitos não se reconhecem desta forma - aceitar que existem pessoas que não congregam da “verdade” que ele professa. Em seu discurso, palavras como amor, tolerância, diferença, respeito e diversidade estão presentes, no entanto, na sua prática pedagógica encontramos a intolerância e conseqüentemente a ausência de uma sensibilidade propriamente humanista, ainda que para ele isso não esteja claro. Esse tipo de professor possui uma carga teológica ao mesmo tempo forte e superficial. No curso, atentamos a todo o momento para a não utilização da Teologia no ensino e para a necessidade de se empreender reflexões sobre a própria prática pedagógica. Teoricamente, o curso lembra que a Educação Religiosa ideal não se reduz a uma catequese, as escolas dominicais nas igrejas e os encontros para estudos, debates e diálogos nas várias manifestações religiosas já fazem isso. Já as Ciências da Religião, é uma ferramenta relevante, ao proporcionar uma visão ampla de religião ao mesmo tempo em que estimula o futuro professor a empreender uma análise crítica do todo da sociedade.
REVER: Uma dimensão importante da Ciência da Religião é a sua dimensão critica face às instituições religiosas. Como essa relação tem sido vivenciada?
Ângela Cristina Borges Marques: Em meio a um conflito produtivo. Separar religião, enquanto instituição, de religiosidade e espiritualidade não é uma tarefa fácil. Olhar para sua instituição e, conseqüentemente, para si mesmo, é um exercício doloroso, principalmente no reconhecimento das falhas. Procuramos, através de um aporte teórico rico e diversificado, que passa pelo campo da filosofia, história, política, psicologia e sociologia, mostrar que as instituições religiosas erraram e erram, e que, nem sempre exercem a espiritualidade que defendem. Mais relevante e essencial que suas doutrinas e decisões é a pessoa humana.
REVER: Desde o seu inicio, a introdução da(s) Ciência(s) da Religião no âmbito universitário foi marcada pelo conflito com as ciências, tanto do ponto de vista epistemológico quanto do político. Como essa relação tem sido vivenciada na UNIMONTES?
Ângela Cristina Borges Marques: Na UNIMONTES, até o momento, a coexistência com as outras ciências tem sido tranqüila. Nota-se, simultaneamente, receptividade e dúvidas em relação ao curso, atitudes normais diante de algo sedutor - a religião - e desconhecido – seu estudo científico.
REVER: O campo para Ciência(s) da Religião é promissor no Brasil?
Ângela Cristina Borges Marques: Certamente. Cada vez mais, o interesse pelas religiões aumenta na medida em que se reconhece sua função e peso social. A religião alivia dores, conforta, aliena, aproxima e distancia pessoas.... de forma positiva ou negativa, é uma realidade humana que não pode ser negada e nem encarada com ingenuidade. Deve ser pensada de forma rigorosa e sistemática, a sociedade pede por isso. Sua abordagem científica, portanto, é necessária e as Ciências da Religião é o caminho tanto para a elaboração de um pensar sistemático quanto para a formação de um professor crítico e ético.
[*] Moacir Nunes de Oliveira é professor do Departamento de Teologia e Ciências da Religião da PUC-SP e doutorando em Ciências da Religião pela mesma universidade
[1] Para mais detalhes sobre o curso, veja http://www.unimontes.br
[2] A professora Ângela Cristina Borges Marques possui graduação em Filosofia pela Universidade Estadual de Montes Claros (1991). Atualmente é professora de ensino superior da Universidade Estadual de Montes Claros e Coordenadora Didádica do Curso Ciências da Religião. Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em Filosofia da Religião, atuando principalmente nos seguintes temas: Ética, Sistemas Simbólicos, Identidade, Cultura, Religiões Afro.