PEREIRA, Rosalie de Souza (org.)
O Islã Clássico: itinerários de uma cultura. São Paulo: Perspectiva, 2007, 872 p. ISBN 978-85-273-0778-9

por Edmar Avelar de Sena[*] []

Lançado recentemente pela editora Perspectiva, o livro “O Islã Clássico: itinerários de uma cultura” (organizado por Rosalie Helena de Souza Pereira[1]) é uma importante obra a respeito do Islam e da cultura árabe[2]. Trata-se de uma preciosa contribuição para pesquisadores da cultura árabe e do Islã no Brasil, visto ser ainda escasso entre nós – dada a complexidade do tema - o material produzido sobre o mundo muçulmano. A obra é uma coletânea de textos de diversos autores e pesquisadores do mundo árabe-islâmico.

O método escolhido pela organizadora não foi o de seguir uma linha cronológica, mas delimitar em partes temáticas o objeto abordado. Tem-se, assim, seis partes que correspondem a Língua e Poesia, Teologia e Filosofia, Direito e Política, Filosofia e Ciência, Mística e Presença.

Na primeira parte temos dois autores, Josep Puig Montada e Aida Ramezá Hanania, que analisam a língua árabe e sua influência no pensamento e no universo cultural islâmico, sendo que o primeiro autor dá uma visão mais global da língua, além de uma panorâmica da estrutura da lingüística e da escrita sua evolução e história. Compara, ainda, a poesia pré-islâmica e o árabe utilizado no cotidiano, além de fazer referência à forma e à estrutura da linguagem corânica. Numa perspectiva histórica, Aida Ramezá Hanania analisa o legado literário pré-islâmico e sua repercussão na Cultura Árabe, destaca a música e a poesia como formas essenciais da manifestação cultural deste universo: “A uniformidade lingüística dos textos pré-islâmicos é notória, em razão do caráter artificial do idioma poético: linguagem culta, rica no léxico, densa em sinônimos procedentes de diversos dialetos tribais da antiga Arábia[3].

Na segunda parte temática, os autores oferecem um amplo esboço do pensamento teológico e das bases fundamentais da teológica islâmica começando pela apresentação do Corão por Jamil Ibrahim Iskandar. O autor aborda aspectos fundamentais para a compreensão do livro desde o início da religião difundida por Mohammad, passando pela estrutura do texto corânico, o significado dos termos importes e o caráter divino do livro. Ressalta, ainda, a unidade textual e marcos conceituais de seu conteúdo, oferecendo aspectos hermenêuticos dos textos e autores que, ao longo do tempo, se esforçaram para manter o caráter divino do texto.

O segundo autor ao trabalhar o tema é Sinasi Gunduz, que buscou conceituar e ao mesmo tempo situar a problemática da identificação de Ahl al-Kitāb (o “Povo do Livro”) nas Antigas Fontes Islâmicas. Gunduz buscou, nessa expressão, o sentido em que ocorre no texto corânico, assim como a controvérsia que a envolve nas diversas correntes de pensamento da interpretação. Buscou, nos debates de antigos pensadores muçulmanos, o significado e as diversas formas de interpretação do termo.

O terceiro autor ao abordar o tema é Tadeu Mazzola Verza, que analisou a o sentido do Kalām, A Escolástica Islâmica. Em seu artigo, buscou as discussões teológicas do Islã desde os momentos fundantes da religião, principalmente nos primeiros tempos em que o profeta divulgava a religião, até chegar às escolas teológicas mutazilita e a aŝarita.

Por fim, Rafael Ramón Guerrero levanta a biografia e a relevância do pensamento de Al-Gazālī, importante pensador muçulmano do séc. XI. Baseado na autobiografia deste pensador, Guerrero destaca os aspectos importantes da obra e da contribuição filosófica de Al-Gazālī, assim como sua importância no que diz respeito a seu conhecimento da religião, validando o Islã como Verdade e ressaltando a importância da teologia.

A temática que segue trata do Direito e Política. Nesse ponto, o autor Juan Martos Quesada analisa as fontes do Direito Islâmico baseadas nos textos corânicos e nos ditos do , os hadīt e a interpretação dada a estes pelas escolas jurídicas. O autor analisa, ainda, a estrutura jurídica e o processo e todo o corpo de sábios, juízes, que são responsáveis pela manutenção das normas.

Dando seqüência à temática e enfocando mais os aspectos políticos, o autor Massimo Campanini se detém sobre os primeiros tempos do Islã após a morte do Profeta, principalmente pelo direcionamento dado à comunidade islâmica pelos primeiros califas e a divisão partidária que se deu entre sunitas e xiita a partir da pessoa do Imam.

A quarta temática da obra volta, agora de maneira mais vigorosa, à Filosofia e dá um enfoque sobre a Ciência no mundo árabe. É de novo Rafael Ramón Guerrero quem destacará a figura de Al-Fārābī, importante filósofo do séc. IX, e sua filosofia em busca da felicidade baseada na ética e no pensamento aristotélico.

Nessa parte, ganha destaque o artigo de Rosalie Helena de Souza Pereira, organizadora da obra, sobre a concepção da profecia em Avicena (Ibn Sīnā), no qual desenvolve, a partir da concepção de profecia deste pensador muçulmano, o longo percurso da filosofia de Avicena, demonstrando sua importância e contribuição no universo cultural islâmico a partir de seu conhecimento da filosofia grega. Em seguida, a autora apresenta outro artigo relacionado a Avicena, agora sobre sua arte médica e a relação com a teoria Hipocrática dos Humores, que cruza medicina e filosofia.

Joquín Lomba Fuentes apresenta Avempace (Ibn Bājjah), primeiro comentador de Aristóteles no Ocidente, sua concepção filosófica e sua contribuição como músico e poeta, além e seu caráter como cientista em diversas áreas do conhecimento como a física a botânica e a lógica e, principalmente, na retomada das concepções filosóficas de Aristóteles.

Ainda seguindo a linha dos grandes pensadores muçulmanos, Josep Puig Montada apresenta Averróis (Ibn Rušd). Este pensador do séc. XII cria seu sistema filosófico já no contexto do alcance mulçumano Península Ibérica e, também imbuído da filosofia aristotélica, apresenta o modelo de demonstração cientifica através da lógica e constrói, segundo Montada, uma visão completa e científica do universo.

A penúltima parte da obra trata da dimensão Mística do Islã, pouco conhecida entre nós mas já com grande número de trabalhos e pesquisas que demonstram o interesse crescente no tema. Assim, o primeiro autor, Edrisi Fernandes, apresenta Šihāb al-Dīn Suhrawardī (Al-Maqtūl). Diferentemente dos outros filósofos muçulmanos, a obra deste pensador se destaca por sua dimensão mística e por sua compreensão do mundo através de sua cosmologia e outros temas filosóficos tratados por ele. Na seqüência, o próprio Edrisi Fernandes aborda outro filósofo pós-aviceniano – Mullā Sadrā, situado num período de grande atividade cultural e espiritual da cultura islâmica.

O artigo de Beatriz Machado, intitulado Mulheres de Luz, nasceu sob a inspiração de um livro do mesmo nome, que trata das mulheres e a mística islâmica. O artigo também faz referência a um artigo de Vitória Peres de Oliveira[4] publicado no livro organizado por Marco Lucchesi[5] “Caminhos do Islã”. As mulheres, nesse artigo, são vistas não somente no Islã, mas no Sufismo[6]. Seu papel e presença na religião, destaca Maria, como são vistos no Islã e no Corão.

Já Pablo Benito Arias, filólogo e especialista em estudos árabes da Universidade de Sevilha, que em sua estada no Brasil ofereceu cursos sobre a mística islâmica na Universidade Federal de Juiz de Fora (MG), apresenta dois artigos. No primeiro, “Invocai-me e vos Responderei” A resposta Divina no Sufismo, trata da figura divina do respondente a partir de Ibn Arabī e outros autores sufis. No segundo artigo, apresenta a A Arca da Criação: O Motivo do Markab no Sufismo (ou a Arca da ascensão em Ibn Arabī), com o objetivo de demonstrar a comparação entre o merkab corânico e a merkaba judaica, além de apresentar os diagramas de Ibn Arabī

A última parte temática da obra trata da Presença. Nachman Falbel desenvolve, em seu artigo O Kalām, a influência no pensamento de Saadia ben Joseph al-Fayyūmī a partir do convívio das civilizações nas quais o Islã conviveu em sua fase expansionista.

Cecília Cintra Cavaleiro de Macedo apresenta Salomão Ibn Gabirol (Avicebron), pensador cuja obra chegou em parte até nossa época. Na seqüência temática, Victor Paleeejà de Bustinza aborda a influência de Ibn Arabī e do Islã em Raimundo Lúlio, segundo Miguel Asín Palácios: “História e Crítica de uma Polêmica”. Aqui, orientalismo e medievalismo europeu e hispânico se encontram fomentando o debate entre Islã e Cristandade.

Por fim, Helmi Nasr dá sua contribuição a respeito da influência da literatura islâmica na obra de Dante Alighieri (“Dante Alighieri– A Escatologia Islâmica na Divina Comédia”). Analisa, ainda, o “Livro da Escada”, e nele detecta aspectos da escatologia islâmica.

“O Islã clássico: itinerários de uma cultura” é uma obra que chega a bom tempo, em um momento em que cresce o interesse sobre o Islã e a cultura árabe nas universidades brasileiras. Pesquisadores de diferentes áreas ampliam sua abordagem e buscam conhecer mundo mulçumano e sua cultura. Trazer para o público uma visão mais crítica e menos estereotipada do Islã é, a meu ver, uma das grandes contribuições que esta obra pode oferecer, uma vez que, entre nós, o islã começa a marcar sua presença no cenário religioso.

Uma obra que apresenta uma série de tópicos de suma importância para se conhecer melhor o mundo muçulmano. Coerente e bem organizada, a contribuição dos diversos autores dá ao leitor uma perspectiva ampla das diversas temáticas que envolvem o conhecimento de uma cultura.

O sentido da organização seguiu uma lógica temática capaz de alcançar seu objeto de forma imparcial e, ao mesmo tempo, oferece uma variedade de subtemas que perpassam os principais aspectos do Islã como religião e da cultura árabe de forma mais geral. Seguindo uma linha temática, todos os artigos formam um conjunto coerente de textos que fornece ao leitor e aos pesquisadores uma gama de elementos que necessitavam esclarecimento e profundidade. Basta ressaltar, aqui, a reunião de autores que vêm se dedicando ao estudo de elementos desta cultura, a saber, língua, religião e política.

Os artigos abordaram de forma crítica e imparcial os aspectos importantes da cultura árabe, além dos marcos históricos e lingüísticos que formam o universo cultural árabe-islâmico.

Uma interessante fonte de pesquisa para os buscadores deste assunto, além de uma envolvente forma de abordagem de diversos campos. Desta forma, a obra é uma contribuição para o público brasileiro, que por diversos motivos tinham até então apenas a visão da mídia sobre o mundo muçulmano, agora podem desfrutar de uma leitura mais profunda e atualizada sobre os diversos pontos desta cultura. Além disto, o leitor pode privilegiar uma ou mais partes da obra de acordo com seu interesse.

Uma abordagem dinâmica e interdisciplinar só poderá levar ao leitor ao conhecimento mais profundo de uma cultura que vai de sua cosmovisão à sua organização social e política, de sua estrutura lingüística aos sistemas filosóficos que marcaram época e foram responsáveis por toda uma forma conceber, ciência e arte, filosofia e teologia, política e direito.

Notas

[*] Edmar Avelar de Sena é graduado em filosofia pela PUC-MG, mestre em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora e doutorando em Ciências da Religião pela PUC-SP.

[1] Mestre em História da Filosofia pela USP e Doutora pela UNICAMP.

[2] PEREIRA, Rosalie de Souza (org.) 2007 O Islã Clássico: itinerários de uma cultura. São Paulo: Perspectiva.

[3] HANANIA, Ainda Ramezá. In: PEREIRA, Op. cit. p.75.

[4] Saudosa professora do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora. Foi pesquisadora de diversas comunidades muçulmanas no Brasil e no exterior, trabalhou a dimensão da mística no Islã e deixou resultados importantes de seu trabalho sobre o mundo muçulmano.

[5] LUCCHESI, Marco (org.). Caminhos do Islã. Rio de Janeiro Record, 2002.

[6] Corrente mística do Islã.