Este artigo parte de um estudo etnográfico da devoção popular ao cangaceiro Jararaca em Mossoró, Rio Grande do Norte, morto pela polícia local em 1927. Seu objetivo é destacar os ritos que manifestam e suportam tal devoção, sobretudo em seus aspectos verbais: testemunhos, narrações hagiográficas e fatos históricos tidos como reais - principalmente os fatos que cercaram a morte do cangaceiro e suas proezas no cangaço - que dão margem à reelaboração da identidade social do morto, de modo a aproximar sua vida do modelo do Robin Hood, o bom bandido, e sua morte do modelo do martírio cristão. Assim, ele pode tornar-se um santo funerário.
Palavras-chave: religião, ritual, narrações, cangaço.
The article is based on an ethnographic study of the popular devotion to Jararaca, a cangaceiro in Mossoró, Rio Grande do Norte, murdered by the police in 1927 . My aim is to show the rites that reveal and support such devotion by enphasizing its verbal aspects: testimonies, hagiographic narrations and historical facts - mainly the facts about the cangaceiro’s death and his life as a cangaceiro. Through these ritual speeches his social identity is recreated in conformity to a romantic Robin Hood model while his death become an exemplar of Christian martyrdom. So he turns into a funerary saint.
Keywords: religion, ritual, narration, cangaço.
Em 1927 José Leite de Santanna, conhecido como Jararaca, cangaceiro do famoso bando de Lampião[1], foi alvejado por um tiro e deixado para trás por seus companheiros, que fugiram após mal-sucedida invasão da cidade de Mossoró[2]. Alguns dias depois, ele viria a ser morto de um modo considerado singularmente cruel: teria sido enterrado vivo pela polícia que antes o aprisionara, já ferido à bala no confronto anterior. Ou, pelo menos, é o que até hoje se acredita verdadeiro a respeito desse episódio público, verdadeira saga sempre chamada a ilustrar a bravura dos resistentes que impediram a invasão e saque da cidade pelos então temidos cangaceiros de Lampião.
Setenta e um anos depois desse acontecimento, no dia 2 de novembro de 1998, Dia de Finados[3], seu túmulo aparecia nas manchetes dos jornais locais e da capital do Estado, Natal, anunciado como o mais visitado pela população da cidade e por turistas, alguns oriundos de cidades próximas, outros até de fora da região; alguns movidos por pura curiosidade, outros pela esperança de um milagre motivada por histórias ouvidas de pessoas que já haviam tido contato anterior com tal devoção ou pela própria publicidade promovida pelas matérias nos jornais.
O túmulo de Jararaca passou a receber essas visitas desde que se espalhou a notícia de seu sepultamento naquele local. Já então, em 1927, noticiou-se a versão que até hoje é tida como verdadeira pela maioria das pessoas com quem conversei, adeptos ou não da devoção: a de que ele teria sido enterrado vivo pela polícia, que o teria removido da cela na qual se encontrava preso na cadeia municipal, no meio da madrugada, sob a alegação de levá-lo ao hospital na capital - pois que sofria ainda os efeitos do ferimento à bala – para conduzi-lo, todavia, na verdade, até o cemitério público. Lá, Jararaca teria sido obrigado a cavar uma cova e, em seguida, teria sido empurrado para dentro dela com uma pancada (alguns dizem que teria sido novamente baleado, porém deixado vivo).
O que conferiu, de imediato, credibilidade a essa história foi o depoimento de um dos soldados da polícia que, em entrevista a um jornal local, contou detalhes do assassinato, do qual teria participado. O jornalista condena, na matéria, tal ação, e, nessa posição, é seguido depois por outras figuras ilustres da cidade, principalmente outros jornalistas e historiadores – inclusive, muitos deles, interessados em uma história política do cangaço[4] na região. Estes não se furtaram, em seus escritos posteriores, a qualificar como covarde tal ação, fazendo dessa afirmação, em alguns casos (ALMEIDA, 1981), tanto uma oportunidade de condenação à ação criminosa da polícia do que uma ocasião de exaltação à valentia do cangaceiro.
Nessa linha, visto como vítima do abuso de autoridade por parte de uma polícia que parecia desconhecer limites – e talvez representada como não menos violenta e ameaçadora do que os próprios bandidos que eram os cangaceiros – Jararaca termina por ganhar a simpatia popular. Não são poucos, por outro lado, principalmente entre as camadas letradas, os que duvidam de tal história e a consideram “folclórica” – no sentido pejorativo, de crendice popular, disseminada pelo oportunismo de um policial bravateiro e pela ingenuidade do povo, que gosta de histórias sensacionais...
Verdadeira ou não do ponto de vista factual, essa história tem sido capaz de gerar as mais diversas reações. Enterrado vivo tornou-se uma expressão sempre repetida quando se trata de narrar a história de Jararaca, por sua vez parte de uma saga histórica, a saber, a da invasão de Mossoró pelos cangaceiros de Lampião, segundo os historiadores, e a da resistência dos bravos de Mossoró, segundo a crônica da cidade tal como é contada por suas elites políticas. Nem sempre, aliás, essas duas linhagens narrativas se encontram separadas ou mostram-se distinguíveis uma da outra. Trata-se de uma história que na verdade são várias histórias, todas com seu tanto de romance e de crônica jornalística, suas verdades parciais e fictícias, suas lembranças bem selecionadas, devidamente filtradas pelo interesse e ponto de vista de quem as conta.
Jararaca tornou-se, assim, uma personagem lendária nessa saga. Elevado ao panteão dos mortos especiais[5] de que nos fala Peter Brown (1984), devido aos efeitos sociais, simbólicos e emocionais desencadeados por sua morte pública, representada como disruptiva e trágica, capaz de evocar a memória temas religiosos caros ao universo cristão, como o sacrifício, a via crucis, o sofrimento purificador, para destacar somente alguns dos mais presentes nas falas dos devotos.
Essas representações vêm somar-se àquelas sobre o cangaceiro, esse nômade, ora visto como o cabra impiedoso que afronta o Estado, a propriedade, as famílias, e se alia a um patrono local contra outras lideranças familiares, ora visto como avatar da honra masculina, vingador tradicional ou revoltado contra o latifúndio; ora peão das forças conservadoras, mercenário individualista, desenraizado, ora líder político que apela à força bruta, agindo em nome de uma suposta tomada de consciência da sua situação de oprimido, percebido como ameaça pelos dominantes. Muitas são as caras do cangaço.
Assim, nada há de surpreendente em que muitas sejam as histórias dentro da história de Jararaca e do episódio que fez dele um santo popular ou, pelo menos, alguém que pode ser lembrado e homenageado com oferendas no Dia de Finados, data na qual tipicamente se recorda e homenageia os entes queridos, sejam os da esfera privada - a família é a unidade por excelência dentro da qual tais prestações funerárias são obrigatórias - ou da esfera pública - artistas, esportistas, políticos, pessoas públicas em geral. Hoje, em Mossoró e região, ele é um desses mortos milagrosos ou santos que surgem nos cemitérios brasileiros, sem que para esse surgimento tenha sido necessária qualquer intervenção ou mediação da família do morto ou de qualquer outra instituição, religiosa ou não. Nenhum grupo social organiza a relação entre o morto e seus devotos ou freqüentadores eventuais. Não há um oficiante, um mediador ”autorizado” – individual ou coletivo - que veicule a história verdadeira ou ensine procedimentos rituais adequados ao culto, ou defina seu tempo e lugar. No entanto, assim como surgiu espontaneamente, a devoção prossegue, para além da exibição pública em Finados, nos ritos prestados no dia-a-dia.
A devoção aos mortos milagrosos no cemitério manifesta-se sob a forma ritual como um culto funerário que, acrescido do binômio promessa/milagre, qualifica-se como uma espécie de santificação. Como já foi dito, o Cristianismo, em seus primórdios, contou mesmo com um santo cujo culto era caracteristicamente um culto funerário: o mártir, cujas relíquias eram dotadas de poder miraculoso e que exigia, para seu culto, o deslocamento até o local de seu sepultamento.
O culto funerário remonta à Antigüidade, porém o Dia de Finados, 2 de novembro, foi instituído no final do século X pelo abade Odilon. Segundo Vauchez (1995), em um contexto de crescente preocupação com o destino póstumo dos defuntos e com o destino incerto dos vivos nas proximidades do Ano Mil. A prece litúrgica era, naquele momento, menos uma forma de louvação a Deus do que de pedido de intercessão dirigido àqueles que, santos, isto é, salvos junto a Deus, poderiam ampará-los. Esse papel cabia por excelência aos monges mortos, cujo favorecimento pelo expressivo e inédito aumento no número de missas votivas naquele período seria retribuído, esperava-se, com proteção extra aos vivos piedosos.
O dia 2 de novembro, a despeito de sua instituição religiosa como parte do calendário católico, é para muitos uma prática leiga, uma espécie de culto secular ou profano, de caráter privado, que consiste na homenagem ao finado socialmente próximo, tipicamente um parente. Áries (2003) chega a dizer que nos dias de hoje, na França, é para os anti-religiosos a única ”religião” que teria restado, a única ainda praticada: a visita ao cemitério no Dia de Finados. Nesse dia, a morte, tão camuflada e esquecida no cotidiano, tratada como um assunto indesejável a ser evitado, vai para o primeiro plano, e as imagens dos cemitérios-parque e dos túmulos mais visitados, como os dos mortos milagrosos e os artistas famosos, vão para a primeira página dos jornais e para as reportagens de televisão e rádio.
Assim vejo o culto a Jararaca e a todos os mortos milagrosos: um culto funerário que é também um culto a um santo. De certa forma, parece tratar-se de uma manifestação da piedade popular em tudo semelhante àquela característica da espiritualidade cristã medieval européia (VAUCHEZ 1995; 1981), para a qual a princípio qualquer morto salvo é um intermediário a quem pode ser dirigida uma prece, que é caracteristicamente um pedido de intercessão em seu benefício. Ora, esse é o procedimento ritual face aos santos oficiais tradicionais da Igreja Católica; assim são eles vistos, aliás, desde o seu surgimento. Historicamente, os primeiros santos a serem consagrados como tais foram os mártires (aqueles que sofreram em nome da fé, eminentemente locais), e, mais tarde, os confessores (por excelência, monges de vida virtuosa). No caso destes últimos, a santidade repousava menos na vivência da Paixão que precedera sua morte, como para os mártires, do que no cumprimento exemplar das virtudes cristãs durante sua vida.
Jararaca e os inúmeros mortos milagrosos de que se tem notícia são caracteristicamente mortos-mártires, cuja morte foi precedida de violência representada como incomum, de um sofrimento extremo e, por isso, redentor. No caso dos bandidos, por exemplo, o modelo da vida virtuosa parece estar fora de alcance, embora haja tentativas da parte dos devotos de tingir de bondade suas biografias póstumas[6].
Numa primeira observação, no Dia de Finados, o que distingue o túmulo de um morto milagroso, ou santo do cemitério, do de qualquer outro morto bem visitado é o número incomum de pessoas que se quedam junto a ele, e o vai-e-vem constante o dia inteiro, que pode começar já na véspera. A aproximação das pessoas dá-se de maneira variável conforme sejam já devotas, familiarizadas com a existência da devoção ou apenas passantes que lá estão indo pela primeira vez para visitar um finado próximo. Os devotos chegam de maneira reservada, discreta, geralmente muito calados e focados na intenção de cumprir sua prestação ritual. É inútil tentar abordá-los nesse momento.
Se for grande o número de pessoas agachadas junto às laterais do túmulo, junto à sua cabeceira (onde se encontra o queimador de velas, nos dois casos) ou em toda a sua volta, elas esperam pacientemente, talvez trocando algumas palavras com seus acompanhantes, enquanto observam os que fazem suas prestações. Por outro lado, os que não têm promessa a pagar nem foram “rezar para” Jararaca, nem por isso deixam de parar também para um dedo de prosa. São raros os que apenas passam, sem dizer palavra. O número incomum de pessoas, de velas e outras oferendas chamam a atenção e atraem comentários como “Esse aí é o Jararaca, dizem que faz milagre”, sempre repetidos no local do culto.
Aqueles que aguardavam sua vez de se aproximar da beira do túmulo, logo que podem abaixam-se junto a ele – é o mais típico – e procuram um canto protegido do vento para acender suas velas. Podem permanecer ali algum tempo, abaixados ou já de pé após acenderem as velas, para orar e executar outros ritos – como orar sobre uma vasilha de água, uma cartinha para o santo, um ex-voto (geralmente de madeira) ou uma fotografia de um parente doente. Esses objetos, exceto a água, costumam ser oferecidos ao morto e deixados sobre seu túmulo.
A entrega dessas oferendas típicas do universo do pagamento de promessas e da crença em milagres – isto é, do universo católico tradicional, especialmente no âmbito disso que é chamado Catolicismo popular – é um dos traços distintivos que permitem ao observador perceber que não se trata de um culto funerário comum. O morto privado, que recebe somente a visita de sua própria família e amigos mais chegados, também recebe velas, que é a oferenda religiosa por excelência, carregada de significados, mas não recebe ex-votos, por exemplo.
Em volta do túmulo, a quantidade de pessoas é enorme. Entrar e sair do cemitério durante o Dia de Finados significa andar lentamente, muitas vezes ser empurrada na alameda principal, em meio a uma multidão de pessoas, na qual se misturam os que caminham nos dois sentidos, os que tentam chegar aos túmulos e os que deles partem em direção à saída.
Lá fora, outro tumulto: vendedores se apinham junto às entradas principais, com carrocinhas de milho, cachorro quente, pipoca; mesinhas improvisadas, nas quais vendem velas brancas e fósforos, placas votivas[7]; grandes caixas de isopor com refrigerantes e água mineral etc. A rua em frente ao portão principal dos cemitérios, tanto em Natal como em Mossoró, fica o dia todo interditada ao tráfego de veículos e somente um carro da polícia pode ser visto ali, para cuidar da segurança no local.
Mortos milagrosos são, portanto, mortos públicos, e disso a quantidade e constância das visitas que se sucedem ao longo do dia, e desde as vésperas de Finados, já dão uma pista. O burburinho em torno de seu túmulo aponta para isso: eles são mortos que dizem respeito a todos: aos que lhes se devotam, aos que neles crêem (em seus milagres) sem se comprometer diretamente com algum pedido, aos que lhes prestam culto funerário por piedade cristã, por solidariedade, chamando a si o cuidado do morto, àqueles apenas são curiosos e atraídos pela boa conversa em torno do túmulo e até aos que lhe são antipáticos, hostis. Pois que todos se importam.
Por outro lado, o culto funerário privado de cada família – o culto prestado ao parente ou amigo morto - diz respeito somente a ela. Ninguém se atreveria a interromper e perguntar algo sobre o finado quando aquelas poucas pessoas se aproximam do túmulo, muitas vezes somente duas ou três, quando não uma só, para acender suas velas e rezar. Mesmo os catadores de cera[8], que recolhem os restos das velas queimadas, por vezes de modo meio afoito, não deixam de ter cuidado ao passarem perto de uma família que homenageia seu parente finado. Jamais vi um deles se aproximar ou tocar o túmulo que estivesse naquele momento recebendo a visita dos parentes. Já no túmulo de Jararaca eles mal esperam que a vela de certo devoto acabe de queimar para ir lá raspar do chão o resíduo de cera e mesmo algumas velas pela metade. E isto ao lado de outro devoto que ainda reza junto às suas próprias velas.
A ida ao cemitério – ou melhor, ao túmulo - é central nesse tipo de devoção. Daí ocorrerem oferendas como fotografias do doente em benefício do qual se faz a promessa ou pelo menos um bilhete escrito pelo próprio, pois seria uma forma de estabelecer, por essa mediação material, um contato físico entre o necessitado da ajuda do santo e a tumba, suporte material de todo o valor simbólico e atributos de santidade creditados ao morto. Portanto, além do valor penitencial da peregrinação (BLANC, 1995) até o cemitério, está presente aí também o valor intrínseco e insubstituível do contato físico com o morto milagroso, numa espécie de culto às relíquias que tem suas raízes longe na história da cristandade e sempre teve fortíssimo apelo popular.
A fala, no rito, quando narra o milagre, sobretudo sob a forma de testemunho direto, realiza algo mais que apenas comentá-lo ou contá-lo; ela o sustenta, uma vez que alimenta a fé em sua eficácia e assim concorre para sua reprodução social, isto é, para sua continuidade temporal, além de contribuir para sua difusão através de diferentes espaços sociais, que vão bem além das proximidades do cemitério. Ou seja, ela instaura realidades, produz efeitos positivos. Podemos, portanto, afirmar com Edmund Leach (1966) que não faria sentido opor, na consideração do comportamento ritual, ação (rito) e verbo (mito). Afinal, como ensinou Austin (1962), nós fazemos coisas com palavras o tempo todo. Não há fala pública, como toda fala ritual de fato é - ainda que aconteça entre quatro paredes ou no uso de uma fórmula silenciosa - que não faça parte de um cenário público e esteja referida a um contexto simbólico-social mais abrangente. A eficácia da ação ritual não é apenas mágica ou religiosa, mas também social, política, econômica, estética (TAMBIAH, 1996; 1985). As noções de sagrado e os modelos cosmológicos e escatológicos podem ter papéis a cumprir, e efeitos a exercer, bem além da esfera das ações e crenças religiosas.
Podemos distinguir as falas que têm como objeto o passado - como quando alguém pretende narrar eventos históricos (o que realmente aconteceu: a invasão a Mossoró, as aventuras do cangaceiro Jararaca...); histórias tradicionais, cujo conteúdo é repetido e conhecido de todos (contos, lendas, mitos: quando Jararaca jogou a criança para cima e aparou na ponta do seu facão...) ou tecer uma hagiografia para o morto - das falas que contam sobre os milagres póstumos. Estas falam do presente e apresentam-se tipicamente sob a forma de testemunhos diretos ou depoimentos sobre milagres conhecidos por meio de narrações de outrem. Estas últimas, apesar de sua reivindicada factualidade, podem causar um déja vu em quem as escuta, uma vez que é bastante comum que recorram a elementos paradigmáticos de diferentes matrizes religiosas, que se tome de empréstimo sua linguagem simbólica, bem como formas consagradas de narração tradicional. Aliás, este é um aspecto comum aos outros discursos presentes no ritual: a narração biográfica, por exemplo, que conta a vida do bandido ou os acontecimentos que levaram à sua morte, um pedaço da história da cidade e das biografias dos próprios devotos, está recheada de elementos maravilhosos, os quais, por sua vez, tendem à construção hagiográfica consagrada pelo modelo cristão. Esta pode encontrar apoio nos contos tradicionais, embora, por outro lado, em alguns destes seja menos o Jararaca-santo do que o Jararaca-trickster ou diabólico[9] que surjam com mais força. Este fato nos sugere que não seria produtivo para a análise opor relatos factuais a contos maravilhosos, por exemplo. Se tomamos as narrativas sobre milagres, a despeito de quanto possam parecer naturalizadas naquele contexto, elas sempre trazem em si mesmas algo de intrinsecamente maravilhoso. Explorarei mais detidamente cada um desses tipos de narrações adiante.
Por ora, quero lembrar que elas ocorrem em um contexto de interação social pública. Nenhuma acontece sob a forma de um monólogo, mesmo quando parece sê-lo, pois todos supõem inúmeros e diversificados elos de narração anteriores, presentes e posteriores, os ouvintes ali presentes durante o culto, os transmissores da versão ouvida e agora narrada (quando não é testemunho de experiência própria) a outros ouvintes. Mesmo quando se trata de um depoimento somente para a pesquisadora, essa fala supõe e inclui – retoma, reitera, contradiz – aqueles outros elos da cadeia narrativa na qual vem se inserir. O narrador nunca fala somente para seu ouvinte naquele momento, pois sua fala, no momento mesmo da enunciação, é dita com a intenção de que seja repetida. Não é gratuita a repetição de fórmulas, a enunciação insistente de certas verdades-chave, a sabedoria a ser transmitida ou a “lição de moral” da história, depoimento, testemunho.
Quero chamar a atenção para outro aspecto desses ritos: seu papel na produção de uma memória social enquanto rememoração do passado tal como pode ser percebido do ponto de vista dos devotos no presente. Isto é, daqueles que, sendo contemporâneos da existência do santo (morto), recordam[10] a morte do cangaceiro (vivo). Essas recordações vão criando para Jararaca uma biografia singular, dotada de novos dados que ultrapassam aquela até então amplamente – embora desigualmente - conhecida no universo social de sua devoção. Esses dados, por sua vez, alteram sua fisionomia na medida em que, como numa caricatura, exageram deliberadamente certos traços (a honra, a bravura, os dons excepcionais quase sobrenaturais) em detrimento de outros (as ações criminosas como seqüestros, a crueldade), que quase desaparecem.
Como efeitos, novos significados para sua vida e sua morte, e novos papéis sociais, lhes são conferidos. Não se trata mais apenas de um cangaceiro, mas de um bandido que roubava dos ricos para ajudar a pobreza, numa atualização do conhecido modelo do Robin Hood; não mais o facínora que pretendia saquear a cidade, mas o bravo que morreu pela ação covarde e abuso de poder das autoridades do Estado; e, sobretudo, não mais o morto-a-ser-esquecido, desgarrado nômade, morto violentamente longe de sua terra natal e de sua família (que lhe prestaria os cultos póstumos) e, portanto, a princípio fadado ao esquecimento, futura alma penada condenada a eternamente pagar por seus tantos pecados, fonte de perigo para a comunidade local. Assim se explica que seja seu modesto túmulo, dentre tantos mausoléus de famílias ilustres – inclusive o do ex-prefeito Rodolpho Fernandes, que liderou a Resistência à invasão, afinal vitoriosa – o mais visitado pela população local no Dia de Finados.
A construção dessa nova biografia para Jararaca, junto a seu papel de morto que faz milagres, implica a reformulação simultânea da história da cidade, que, desta forma, pode tornar-se inteligível a partir de outras chaves de leitura que não aquelas consagradas pela historiografia local, pelas crônicas jornalísticas ou pelas narrações orais que circulam desde o episódio de 1927, em contínua reelaboração. Nessa nova história, seus devotos de hoje estabelecem para si próprios, no próprio ato de narrá-la, um papel ativo e fundamental.
A ação ritual pode ser vista, desta forma, enquanto ação pública, como suporte para a elaboração de uma memória social local. Feita das lembranças despertadas na experiência do diálogo, da controvérsia, do compartilhamento de estórias entreouvidas ou vivenciadas, e mesmo dos choques entre versões conflitantes dessa mesma história. Assim, essa memória biográfica e histórica, é um artefato artesanal produzido por muitas vozes, sobre o qual ninguém pode exercer completo controle. Uma memória de narrador, não-teleológica, como diz Walter Benjamin (1996: 211): breve, consagrada a “muitos fatos difusos”.
É raro que um visitante do túmulo de Jararaca conte a alguém o motivo da sua visita ali se houver promessa (ou voto)[11] envolvida. É comum que, indagados diretamente sobre o motivo da promessa ou, mais ainda, sobre o quê prometeram, se recusem a responder sob a alegação de uma crença comum a muitos: “dá azar” ou “se falar, não acontece”. “Promessa”, dizem, “não se pode contar até que seja alcançada”. Portanto, a negociação com o santo passa também por um outro tipo de pacto (além da troca em que consiste a própria promessa), o de silêncio.
Apesar disso, gostam de falar sobre as graças alcançadas, uma vez que testemunham sua fé e a autenticidade do culto e do santo (sua eficiência). Seu silêncio a respeito de sua própria negociação atual com o santo não os impede de apresentar comentários espontâneos e eloqüentes aos relatos de outras pessoas ou relatos sobre suas próprias experiências no culto, desde que experiências passadas – promessas já pagas, graças já alcançadas; tampouco os impede de contar sobre a experiência de algum vizinho, colega, parente, amigo de um amigo - que teria feito promessa e alcançado a graça. É muito freqüente, aliás, que atribuam sua presença ali, no culto, à confiança depositada no testemunho ouvido da boca de alguém próximo e merecedor de crédito. Nesses casos, a história do conhecido é contada com detalhes, tanto mais que nela reside o fator que legitima sua presença ali de boa fé, contra toda possível crítica ou suspeita[12].
Alguns promesseiros não vão ao cemitério com o objetivo inicial de fazer promessa para Jararaca, mas, estando lá em Finados para homenagear um parente defunto, terminam por recorrer ao santo para solucionar algum problema, tendo em vista sua reputação de milagroso/santo da qual podem encontrar testemunhos ali mesmo. Sem qualquer planejamento, podem tornar-se devotos ali, nesse encontro com o calor da devoção dos outros, mobilizados pelos testemunhos de sua fé – possibilidade guardada pelos muros do cemitério. Se atendido, é quase certo que voltará, não apenas para pagar sua promessa ou cumprir seu voto, mas também para contá-la a quem por ali também estiver, compartilhando sua devoção. Assim, pode-se dizer que o sentido da devoção individual se encontra, para o próprio devoto, na relação com a devoção do outro; que, mesmo quando preso à impossibilidade de contar sua promessa, contar a promessa de outro e ratificar sua boa escolha por aquela devoção pela narração da graça alcançada seria o melhor modo de atestar sua realidade. “Se não fosse verdade”, perguntou certa vez uma devota, “o que essas pessoas estariam fazendo aqui? Está todo mundo mentindo?” (M.A.S., entrevista, 01/11/1999, Mossoró-RN)
Outro aspecto que permite relativizar o caráter individual freqüentemente atribuído a esses cultos devido a ausência de institucionalização seria a freqüência com que uma pessoa faz promessa para beneficiar uma outra – que talvez nem acredite ou saiba sobre o culto - ou que pague a promessa no lugar de outra que se encontra temporariamente impossibilitada (por estar enferma, por exemplo). Isso é extremamente comum.
A palavra media a aproximação ao culto, mas também é, durante o culto, parte intrínseca dele: todas as falas, mesmo as dialogadas, parecem seguir um padrão, uma espécie de roteiro, com aquela característica tão própria dos ritos que é a repetição, e o recurso às fórmulas consagradas pelo costume. Já há ali uma pequena tradição, que, no entanto, tem suas origens longe, nas negociações católicas (e sincréticas) populares com os santos, marcadas pela familiaridade e informalidade, enraizadas no Brasil desde o período colonial (MELLO E SOUZA, 1989). O recurso aos santos é sempre uma possibilidade presente, aquela de que facilmente se pensa em lançar mão na hora da aflição. E por que não recorrer ao santo do cemitério, do bairro, da vizinhança – o santo artesanal criado pela própria comunidade?
Pode haver lugar aí para o “ouvir falar” ou “disseram que”, como é comum nesse tipo de tradição oral, mas é inegável o valor superior atribuído aos testemunhos diretos daqueles que viveram uma experiência percebida como milagrosa, atribuída – pelo próprio beneficiado e pelos observadores – inclusive os céticos quanto a milagres – a sua fé.
Assim, é possível perceber o efeito que os testemunhos diretos podem ter sobre o processo de aproximação e adesão (qualquer que seja o grau) ao culto, ou pelo menos sobre uma primeira aproximação, cheia de boa fé, a ele. Ao atestarem a eficiência do santo e legitimarem a aproximação do devoto, eles concorrem para que o culto permaneça, no eixo temporal, que dure e se reproduza (novas adesões) a despeito de tantas desconfianças e recriminações que também o cercam.
Outro objeto desses depoimentos são as narrações sobre a vida dos santos, em termos dos acontecimentos “reais” que lhes teriam ocorrido no passado – sua “vida de bandido”, suas proezas, principalmente aquelas que precederam imediatamente sua morte. Neste caso, é freqüente que seja feita referência aos jornais – quase sempre os contemporâneos, em poucos casos, os jornais da época[13] - como instância legitimadora do relato. “Saiu até na Tribuna, eu li”. Não raro me recomendavam que lesse também para me informar sobre o que realmente acontecera na época de sua morte ou, o que era bem mais freqüente, para encontrar neles muitos outros relatos de milagres alcançados por outros devotos. A verdade é que nessas matérias de jornais contemporâneos fala-se menos dos milagres do que da freqüência ao túmulo de Jararaca no Dia de Finados, sempre maior que em outros túmulos no mesmo cemitério.
Esses relatos, assim como aqueles sobre os milagres, também podem apresentar-se como testemunhos - dos acontecimentos relativos às biografias das personagens em torno das quais o culto se realiza. É com orgulho indisfarçável que muitos dizem: “Meu pai conheceu Jararaca” ou “meu avô viveu nesse tempo aí, ele contava.” A rigor, neste último caso, já não se trata de um testemunho direto, porém, é preciso levar em conta a lógica que lhe dá sentido do ponto de vista de quem a enuncia, pois o indivíduo que fala acentua a continuidade familiar, a qual torna possível que seu pai fale pela sua boca. Se seu pai viu, ele viu.
Como já disse Eric Hobsbawn[14] em dois livros hoje clássicos (1978; 1975), é muito comum que os bandidos que alcancem fama na sua região de atuação, ou mesmo em todo o país, sejam alçados à condição de mitos, a partir de um processo de idealização de sua pessoa, de sua identidade e de seus feitos, logo narrados como proezas que suscitam a admiração popular e são freqüentemente adaptadas em narrativas de cordel, novelas e romances, não só no filão mais comercial, de apelo popular, mas também pela chamada alta literatura.
As histórias que ouvi da boca dos devotos e dos comentadores anônimos nas ruas sobre a invasão de Mossoró pelo bando de Lampião não retratam um Jararaca muito diferente daquele desenhado nos livros de História e crônicas jornalísticas: José Leite de Santana, de uma família de vaqueiros, militar que se alistara no Exército brasileiro aos vinte anos de idade (ALMEIDA, 1981) em Maceió, Alagoas, foi transferido para o Rio de Janeiro (3º Regimento de Infantaria) e teria, segundo Almeida (1981), participado da Revolução Constitucionalista de São Paulo, em 1924. Mais tarde, deixaria o Exército e retornaria ao Nordeste, onde, em 1926, entraria para o cangaço, com um grupo próprio, por meio do qual se tornaria respeitado e conhecido até pelo já prestigiado Lampião, seu aliado a quem prestaria serviços eventuais e com quem também podia contar.
Foi assim que, em 1927, o pequeno bando de Jararaca teria se reunido ao de Lampião para reforçar o time na empreitada difícil que seria atacar uma cidade grande onde, já na época, havia duas agências bancárias e várias igrejas. Este último detalhe é sempre reforçado nas narrativas, pois teria sido o maior motivo de preocupação de Lampião, muito impressionado com tal desenvolvimento urbano. Vale lembrar que a ênfase nesse detalhe faz parte do discurso de valorização da cidade hoje, da cultura local; é um discurso ideológico que acentua o caráter progressista e de vanguarda de Mossoró, muitas vezes num claro contraste com a capital, cuja única vantagem, desse ponto de vista, seriam as belezas naturais, em contraponto com a Mossoró rica em cultura e história.
Jararaca, como personagem individual, confunde-se com o modelo do cangaceiro nordestino, amplamente conhecido na cultura brasileira, dos romances aos filmes, passando pela literatura de cordel. Lá estão a bravura, a crueldade e uma eterna ambivalência que o faz oscilar com freqüência entre ser a encarnação do Mal e o herói dos pobres; a encarnação do demônio e o Robin Hood do sertão; o cabra esperto capaz de enganar até ao diabo, que o cordel tanto gosta de retratar, e o bandido que tem um pacto com o diabo que lhe dotaria de uma crueldade sem igual e habilidades sobre-humanas; o criminoso que “não respeita nem a honra das moças donzelas” e o protetor dos desvalidos, que exerce e exige dos seus cabras o cumprimento de um rígido código de honra, em total acordo com os valores do povo sertanejo e com a moral da época. Figurações do cangaço que são atualizadas de modo pleno nesse caso particular.
Jararaca, como todo cangaceiro, é e não é (mau, honrado, valente, covarde), e, para complicar ainda mais, continua sua carreira de ambivalência mesmo após a morte, pois agora ele é e não é santo também; ele faz e não faz milagres. Portanto, se ajuda ou não ajuda aos mais necessitados, se atua para o Bem ou para o Mal, continua sendo matéria de interminável discussão na qual, ao que parece, ninguém jamais terá a última palavra. Todavia, todos podem ter, a princípio, todas as outras palavras e, com elas, entrar para essa cadeia aberta de narrações sobre o que teria sido a vida do bandido Jararaca, tanto quanto sobre o que é hoje essa sua santidade controversa.
Uma das representações comuns nos depoimentos dos devotos sobre a vida no cangaço é que se trata de uma vida dura, de constantes deslocamentos, ausência e distância da família[15]. Os cangaceiros se metiam pela caatinga adentro, ambiente físico inóspito onde o deslocamento é normalmente muito difícil, e nela se moviam com habilidade incomum, sempre ressaltada. Mas isso não quer dizer que a sobrevivência em tempos de mais intensas perseguições policiais não fosse ela própria uma experiência cruel. Pelo menos, assim é percebida por muitos: frio, fome, solidão, muitos espinhos pelo caminho estreito e cheio de perigos.
A solidão é, aliás, um capítulo à parte. Jararaca é visto como um desgarrado social, e isso de várias formas, que ao longo da narrativa de sua vida só se multiplicam e reforçam. Primeiro, deixa o sítio onde mora com a família, pois não quer para si a vida de vaqueiro ou agricultor servil e entra para o Exército. Como soldado, é enviado para outro estado, o longínquo Rio de Janeiro, depois São Paulo e, por fim, Rio Grande do Sul. O que o dotaria para sempre de um título – soldado, militar – e poderia ter-lhe dado uma localização social sólida e um pertencimento a um corpo institucional muito valorizado, o Exército. No entanto, ele logo o abandona e volta à vida civil, agora já há tempos longe da família e habilitado no manejo das armas. Aonde vai um soldado sem Exército? Ele poderia ter sido recrutado para a polícia – como muitos historiadores já afirmaram, a diferença entre ser cangaceiro ou ser polícia era muitas vezes mera questão de oportunidade ou de quem recrutasse primeiro – mas terminou formando seu próprio bando armado e se tornando parte daquilo que ficou conhecido na história brasileira como movimento cangaceiro, ora visto como um movimento social, ora como um tipo de banditismo e nada mais.
Além dos depoimentos pessoais acerca das experiências percebidas como singulares a cada indivíduo – quer narrem a própria experiência ou a de um outro -, que têm como principal tema as promessas e os milagres, e dos testemunhos oferecidos às histórias de Jararaca, encontramos também narrações baseadas em “ouvir dizer”, que não têm uma fonte precisa. São simplesmente coisas que todo mundo sabe ou que “dizem por aí”. São as lendas ou contos, muitos de caráter maravilhoso, de ampla circulação social, que não necessariamente giram em torno de Jararaca, mas de figuras similares que habitariam o mesmo paradigma, originários de uma mesma matriz simbólica. Esse saber oral em circulação nesse ambiente social lhes proporcionaria, aos mortos milagrosos, sobretudo no que se refere às suas vidas, um contexto a partir do qual podem ganhar uma inteligibilidade imediata. Chamarei a essas narrações ‘histórias[16]’: o que “todo mundo sabe” sobre Jararaca, embora nunca tenha sido assunto de jornal nem tenha sido testemunhado por ninguém.
Essas histórias têm quase sempre um sabor fantástico, um quê de implausibilidade, que em nada lhes desacredita ou reduz o prestígio, muito pelo contrário. Aqui estamos no terreno do imaginário, que desconhece fronteiras entre local, regional e nacional (ou mesmo além). Como dizem alguns estudiosos do cordel nordestino (CASCUDO 2001c; CURRAN 2001; PEREIRA DE QUEIROZ 1997), muitas de suas histórias tinham – têm – como inspiração antigas narrações européias que migraram para o Brasil por diversas rotas - como Carlos Magno e Os Doze Pares de França e tantos outros contos europeus cujas origens remontam às tradições orais naquele continente, anteriores a quaisquer registros escritos ou impressos.
Em se tratando do Nordeste brasileiro, pisamos em um terreno tão fértil quanto escorregadio, cheio de portas falsas, tesouros enterrados, velhos casarões mal-assombrados, mortos que não descansam e teimam em aparecer nos ermos das velhas fábricas abandonadas, debaixo daquela árvore centenária ou ali, onde algum infeliz encontrou a funesta morte repentina.
Uma das histórias mais conhecidas sobre Jararaca é a do seu tesouro:
Dona Joaninha e seu marido eram muito pobres. Viviam de “matar bodes” em um bairro bem afastado do centro de Mossoró. Um dia, após a dura lida, dona Joaninha dormia quando recebeu, em um sonho que mudaria para sempre a sua vida, a visita do falecido Jararaca, o famoso cangaceiro há pouco enterrado vivo pela polícia após haver sido feito prisioneiro durante a fracassada tentativa de invasão da cidade pelo bando de Lampião, do qual fazia parte. No sonho, ele lhe contou que estava sofrendo muito nas trevas devido a um tesouro que acumulara e que ficara enterrado após sua morte. E lhe pediu que ela o ajudasse a sair daquela situação triste desenterrando esse tesouro, que então passaria a ser seu. Mostrou-lhe, no sonho, o lugar onde a botija do tesouro estaria enterrada. Tocada pelo sofrimento do pobre, dona Joaninha prometeu-lhe que o atenderia. No entanto, no dia seguinte, embora impressionada com o sonho, dona Joaninha esqueceu completamente o assunto e seguiu para sua lida. Duas semanas depois, eis que sonha novamente e neste novo sonho outra vez Jararaca lhe aparece, ainda mais desesperado, para repetir o pedido. Desta feita, dona Joaninha acredita no que ele lhe diz. “Deve existir mesmo a tal botija cheia de moedas e jóias”, pensa ela, e decide ir então com o marido ao lugar mostrado pelo cangaceiro, para desenterrá-la. É o que fazem, então. Exatamente à meia-noite, o casal desenterra o tesouro no lugar exato indicado por ele. Depois do quê, matam um pinto e amarram em sua perna uma fita encarnada. Isso deve ser feito por toda pessoa que encontra dinheiro enterrado, senão a pessoa morre. (Fonte da qual ouvi pela primeira vez esta história, aqui por mim reportada: J.M.S.S, entrevista, 02/11/1998, Mossoró-RN)
Essa narrativa faz parte da tradição oral em Mossoró e arredores, mas está presente em muitos outros lugares, com pequenas variações nos detalhes. Todos conhecem a história da pessoa que ficou rica e sumiu da cidade logo após haver desenterrado uma famosa botija do tesouro – o que no caso de Jararaca teria ocorrido não muito tempo depois de sua morte. Essa história do “tesouro de Jararaca” não é mais que uma variante de um tema muito conhecido e difundido por todo o Brasil (ou nas narrativas orais mundo afora), especialmente nas áreas rurais e pequenas cidades: o do rico avarento que, ao morrer, não encontra descanso no Além justamente por não haver compartilhado suas riquezas. Trata-se de uma crítica da avareza – embora de moral um tanto duvidosa, já que o novo-rico que encontra o tesouro nem sempre o compartilha com seus concidadãos. Nessa história, o rico avarento retorna da morte, seja como aparição a alguém em vigília, seja como visão onírica, para pedir ajuda para solucionar essa situação de sofrimento póstumo. Vemos, assim, que o sonho da lendária senhora que desenterrou o tesouro de Jararaca não é uma narração aleatória, oriunda de alguma imaginação idiossincrática, mas uma variante de um tema consagrado na cultura popular. Cantado em verso e prosa pela tradição nordestina do cordel, o cangaceiro sempre esteve associado, em suas façanhas, a elementos do universo do conto maravilhoso e dos romances, a começar por seus próprios atributos de bravura, resistência física e habilidade para, como um Macunaíma do sertão, um trickster diabólico, driblar os “macacos” (a polícia) enviados em seu encalço e seus delatores. Pelo menos, essa é uma das imagens fixadas na memória popular.
Não é incomum que Jararaca apareça em sonhos para ajudar, com conselhos, advertências e avisos, a seus devotos – ou mesmo a quem nunca tenha sido devoto antes de tal aparição, a partir da qual tal devoção é disparada. Um caso um tanto incomum é o de dona Teresinha de Jesus, de 46 anos, moradora de Açu, cidade vizinha a Mossoró, a quem ele teria revelado os números da loteria. Em suas palavras:
Eu pedi um teto a ele, que eu não tinha. Morava em casa alugada há muitos anos. E ele foi e me mostrou assim um letreiro de luz: “Tá aqui! Agora, você não diga a ninguém!” Ele atirava assim com o revólver, aí eu via numa pedra os números da loteria. Ele disse “joga, mas fica só contigo. Vá em frente!” Aí naquilo eu acordei e anotei os números. Eu não jogava na loteria, nem sabia nem como é que era, mas já que veio me dar eu vou, né? E joguei e deu! (rindo muito). Deu pra mim comprar um carro, uma casa boa. Faz uns seis anos isso. Ele é bem moreno. Fiquei em choque, porque eu queria falar, mas não podia, só podia escutar. Não podia falar com ele, era só ele me falando. (T.J., entrevista, 02/11/2000, Mossoró-RN).
Assim, vemos que dona Terezinha também “desenterrou” um tesouro, indicado agora por um Jararaca já não prisioneiro de um sofrimento atroz no Além, mas um Jararaca protetor que vem socorrer os que sofrem neste mundo. Quando a encontrei junto ao túmulo, dona Terezinha acendia suas velas e rezava, renovando, assim, como faz todos os anos, o voto que mantém com Jararaca desde então.
Como bem registrou mestre Câmara Cascudo (2001), Natal, apesar de seus ares de capital litorânea, nunca deixou de ser habitada por fantasmas. Longe disso: lá estão os velhos casarões cheios de história e memórias de gerações, com seus vultos e ruídos de correntes e vidro se quebrando, que os vizinhos e os incautos que passam nas imediações tarde da noite juram ouvir. Lá estão as ruínas abandonadas, os locais ermos, as árvores centenárias. Em cada um desses locais, os rastros das assombrações que por ali passaram e talvez ainda passem mesmo hoje em dia.
Aqui encontramos um tema muito comum no universo religioso do Catolicismo popular: o das almas e toda a série de concepções relacionadas a elas. Uma alma precisa encontrar o ”caminho” para o Além e isso nem sempre é fácil, principalmente nos casos de morte repentina ou violenta (crime, suicídio, acidente). Essa é uma idéia antiga e difundida por todo o Brasil (e outros países). Nesse processo, as aparições do morto durante a vigília ou o sono, como assombração ou em sonho, podem indicar uma tentativa de conseguir a ajuda dos vivos para realizar isso que é representado comumente como uma “passagem” (também na tradição espírita), uma transição ou, como já o dissemos, uma viagem. Já dizia o poeta Mário Quintana: “Não é de uma vez que se morre” (“Pequeno Poema Didático”, 1994: 51) ou, dito de outro modo, deixar este mundo não é visto como fato que instaura, de imediato, outra realidade, positiva: não se está necessariamente em outro lugar quando não se está aqui; não se está necessariamente morto quando não se está mais vivo. É possível estar em lugar nenhum, nem morto nem vivo, e esta parece ser em toda parte uma idéia muito assustadora.
Outra história amplamente conhecida no universo do culto é a das flores de Jararaca, que, arrancadas do túmulo, permaneceriam em casa em pleno viço durante um período bem maior do que seria o seu período de duração normal. Houve também quem dissesse que o mesmo ocorre com as flores deixadas por devotos, logo levadas por outro devoto para sua casa, como objeto consagrado, relíquia do túmulo milagroso[17]. Conta-se ainda que as plantas que crescem sobre o túmulo ou ao seu redor são milagrosas. Delas, dizem, pode-se fazer chá para, depois de coado, passar sobre a parte do corpo que estiver doente. Alguns me disseram haver bebido esse chá.
Um dado interessante a se notar aí é que esses dons levados pelo devoto para serem ofertados ao morto santo, uma vez consagrados pelo efeito cumulativo das rezas e outras prestações rituais coletivas, e pelo próprio contato com o local sagrado que é o túmulo, passam a ter um valor sui generis, como objetos dotados de sacralidade. Se o devoto se dá, a si próprio e à sua fé, ao santo, quando dá o objeto, a permanência sobre o túmulo reforça ainda mais esse valor e faz com que ele tenda a voltar a circular: a água ofertada por um devoto – água benta após ter sido colocada sobre o túmulo por algum tempo - pode ser levada para casa por outro, bem como as flores, ou mesmo os testemunhos. Quantas dessas histórias narradas na primeira pessoa não terão sido, na verdade, ao menos inicialmente, histórias vividas (e doadas) por outros?
Estou chamando de narrações hagiográficas[18] àquelas que se aproximam, por sua forma e seus temas, do modelo da hagiografia cristã[19]. Essa aproximação implica a tentativa de resgatar o morto de seu passado duvidoso e conferir-lhe, ainda em vida, propriedades excepcionais – profecia, comunicação com seres da natureza ou até estados de invisibilidade mágicos – e a ênfase sobre o valor positivo do sofrimento em sua vida, especialmente em seus derradeiros momentos, tanto como elemento purificador como – sobretudo – como chave para sua conversão póstuma. Pois que, se agora atende aos pedidos dos necessitados, é que de fato está favorecido junto a Deus; e, para que isso seja possível, a partir desse ponto de vista, é mister supor seu arrependimento sincero antes da morte.
No entanto, como todas as outras formas de narrativas sobre esse tipo de devoção e sobre esse tipo de santo a hagiografia de Jararaca também persiste em uma forma algo indeterminada, embora seus conteúdos se mostrem bastante repetitivos desde sua morte, a considerar os discursos contemporâneos a ela, aqueles registrados nos jornais de então e os de hoje, sobretudo os daqueles que se apresentam como devotos. O mesmo pode ser dito para as narrações biográficas, que o apresentam como soldado, nômade, aventureiro, viajante, revoltado contra o latifúndio e protetor dos pobres. E que, vez ou outra, deslizam para o tom lendário e regozijam-se na repetição do bordão “jogou a criança para o alto e aparou na ponta do facão!”, isto dito com um tom que bem pode ser considerado equivalente àquela famosa piscadela marota de que falou Geertz (1978).
O passado que condena também é, em parte, o passado que salva: a vida de bandido, com seu sofrimento inerente – o bandido sofre e o bandido faz sofrer – é a véspera da morte violenta, vista como conseqüência quase inevitável que se segue a ela e como avatar para seu arrependimento, condição para a santificação póstuma. O sofrimento intenso é um fator positivamente valorizado para a construção desse tipo de narrativa, ancorada no modelo hagiográfico.
De diversas formas, o sofrimento tem-se constituído num fator que atesta a fortaleza moral da pessoa em uma perspectiva cristã e, se vivido de forma resignada em nome da fé em Deus, é tomado como atestado de santificação da pessoa. Por isso, as experiências de sofrimento físico, psicológico e moral, vividas durante a vida e, principalmente, nos acontecimentos que precedem imediatamente a morte costumam ter um lugar de destaque nos relatos biográficos das vidas dos santos.
Consideremos as várias figurações do sofrimento na biografia de Jararaca, tal como construída por seus devotos: solidão, rejeição social, marginalidade, enfim, tudo o que faz do bandido uma representação do desgarrado, alguém que não tem um pertencimento social bem definido a uma parentela ou rede social que lhe dê um suporte estável e contínuo, material e emocional. Ele pode estar referido a uma rede social, mas muito fluida, percebida como instável e incerta, sustentada na base de trocas a serem, de cada vez, negociadas, naquele âmbito que Marshall Sahlins certa vez chamou de reciprocidade equilibrada[20], que ele distingue, em uma elaboração da clássica discussão sobre a dádiva de Marcel Mauss, da reciprocidade generalizada e da reciprocidade negativa. O que faltaria a Jararaca é justamente o pertencimento a qualquer grupo social (tipicamente a parentela ou, mais estritamente, uma família) no qual vigorasse a reciprocidade generalizada, ou seja, a dádiva gratuita que não requer retribuição imediata. Ter uma família, por exemplo, seria garantia de ter um abrigo ou um prato de comida a qualquer momento em que necessitasse, sem ter que negociar um ”pagamento” em troca. Não é à toa que Jararaca teria sido, segundo se acredita, enterrado vivo, posto que, doente na cadeia – resultado do ferimento à bala durante o combate que se seguiu à invasão da cidade de Mossoró por seu bando – não tinha quem lhe prestasse assistência e acompanhasse de perto os procedimentos das autoridades públicas. Ficou, portanto, à mercê daquilo que é visto hoje por muitos, devotos e não devotos, como abuso de poder das autoridades da política e da polícia. Não tinha na cidade que o sepultou sequer um amigo, um aliado, alguém a quem seguramente pudesse recorrer nesse momento extremo de derrota e desamparo.
A morte do bandido consiste tipicamente em uma morte representada como trágica, violenta e precoce[21]. Providencial para a construção de um perfil de santidade, ela será um momento fundamental nas narrativas de tipo hagiográfico, mesmo após a ascensão do modelo de santidade moderno (e contemporâneo) baseado fundamentalmente na confirmação de uma vida cristã, virtuosa, após longa e cuidadosa investigação pelo Vaticano – e não mais, como outrora, na tragicidade da morte e martírio que a precedeu. Notamos que nas santificações populares como a que focalizamos aqui o modelo do santo mártir ainda é o que prevalece, segundo uma cadeia causal que associa sofrimento extremo na vida e na morte a arrependimento e purificação. Como disseram muitos devotos, quando confrontados por outras pessoas presentes no cemitério, que lhes recordavam todos os malfeitos dos bandidos em vida, pouco importa o que fizeram em vida, seus crimes ou más ações, o que importa é que se arrependeram. Ou seja, pouco importa sua virtude (ou ausência de). Importa, do ponto de vista da construção hagiográfica, seu sofrimento em vida, seu arrependimento, morte trágica e milagres póstumos, atestados pelos testemunhos de tantos.
Daí ser possível, sim, a despeito de todos os erros (pecados) da vida pregressa, arrepender-se e salvar-se. Daí ser possível a conversão e salvação mesmo do pior criminoso. Como ouvi de uma senhora em outro culto a um santo de cemitério em tantos aspectos semelhante a Jararaca[22], que parou brevemente ao lado do túmulo, sem acender velas ou rezar, em um Dia de Finados, e conversava com seu acompanhante: Pecado é tudo igual. Errou, errou. Quem não tem pecado?
Na elaboração de uma história de vida para os bandidos que ateste sua possível santidade, ou confira maior credibilidade à idéia de que eles podem fazer milagres, é menos o milagre em si o que importa do que a adequação buscada ao modelo já consagrado de narrativa hagiográfica. Não é à toa que a ênfase das narrativas biográficas de Jararaca seja deslocada da vida para a morte e que esta seja assimilada ao martírio cristão, enquanto a vida passa a ser lida naquela chave romântica do banditismo social. O cangaceiro passa a ser, assim, um Robin Hood brasileiro e sua morte torna-se, então, símbolo da injustiça social e da desordem do mundo dos vivos no passado em que viveu e no presente no qual vivem seus devotos hoje.
Posto que o típico da hagiografia seja explorar a continuidade entre uma vida virtuosa, conforme ao modelo cristão – o que não é, absolutamente, o caso deles - e uma santificação póstuma, sendo que não é raro que se procure mostrar a realização de milagres ainda em vida[23]. Assim, ao lado do discurso que esvazia de importância a virtude e reforça a paixão-morte, há um outro, que investe na continuidade entre a vida do bandido, virtuoso à sua maneira, segundo uma lógica e uma moral outras (“roubava dos ricos para ajudar a pobreza”), e a tragédia de sua morte: essa variante estaria mais em conformidade com a hagiografia cristã tradicional.
Mas há ainda outra maneira de acentuar a continuidade: pela ênfase nos elementos incomuns, extraordinários, até sobrenaturais que estariam presentes em sua vida, inclusive nas circunstâncias de sua morte. Assim, é acentuada sua afinidade com o universo do encantamento, do mágico e do fora do comum (o que sua existência póstuma, como já vimos, viria a continuar), ainda durante sua vida. E essa ênfase fornece um contexto que facilita a passagem para esse status póstumo especial. Chega a fazer com que pareça óbvio e inevitável. Eles são, já em vida, enquanto bandidos que alcançaram uma reputação, seres extraordinários a quem dificilmente poderia caber um destino póstumo comum. Isso é perfeitamente coerente com aquela continuidade entre a vida e a morte marcada nas hagiografias dos santos e com a concepção da relação com os mortos como uma relação social que continua a relação em vigor entre vivos.
Esse caráter excepcional estaria ligado não apenas à condição de marginalidade social derivada de sua atuação no mundo do crime e de sua baixa condição econômica e relativo isolamento social, mas também aos atributos individuais que lhes foram assinalados então e a posteriori. Assim, o bandido que sabia se virar na inóspita caatinga com uma habilidade e resistência que só podiam ser devidas a algum pacto com o diabo hoje revela em sonho os números da loteria.
Todo bairro, toda cidadezinha, tem seu santo doméstico, pau pra toda obra, cuja existência pode ser – e mais freqüentemente é – totalmente autônoma em relação às hierarquias religiosas institucionais. Quanto menos interesse a elas, tanto mais parece interessar aos seus devotos, que o adotam, zelam por ele no cotidiano e não cansam de elaborar sua história - que não deixa de ser a sua própria e a de seu lugar. E isso em dois sentidos: metaforicamente, posto que se fale de um lugar social marginal, externo às grandes narrações oficiais do universo letrado (elas próprias heterogêneas e por vezes conflitantes); e literalmente, no sentido de que a história biográfica – a de Jararaca, a do policial que o teria assassinado ou a de cada devoto - é inseparável da história da cidade.
Esses cultos abrem para a população local a possibilidade de lidar com situações de conflitos sociais abertos e manifestar, através do ritual, um entendimento divergente daquele consagrado, também publicamente, pelos veículos utilizados pelas camadas letradas (livros e jornais, principalmente). Ou pelo menos de entrar nessa “conversa” em andamento a partir de um lugar um tanto inusitado – e sempre questionado – porém legítimo na medida em que se trata de uma prática funerária reconhecida (o Dia de Finados) e dotada de certa gramaticalidade religiosa (devoção aos santos).
Se, para a história oficial da cidade, os policiais que mataram Jararaca, após a vitória da Resistência, são heróis, a população anônima responde com a canonização póstuma do cangaceiro e o transforma em intercessor dos pobres junto a Deus: um Robin Hood que, na morte, só poderia continuar a exercer esse papel de proteção e mediação.
Nesse movimento, o bandido nômade e desgarrado é salvo de um potencial destino póstumo desastroso, contrapartida escatológica do esquecimento aqui na terra por parte dos seus entes queridos. Sem família na terra onde foi sepultado, após ser vitimado por uma morte súbita e violenta, ele, todavia, é adotado por alguns segmentos da sociedade local e transformado, de fonte de ameaça místico-religiosa – posto que toda morte desse tipo seja representada como fonte de perigo - em importante recurso simbólico de proteção e salvação. Ou seja, torna-se um santo popular, humilde na sua localização dentro do vasto panteão de santos e entidades espirituais que o nordestino – e o brasileiro – tem à mão, porém nem por isso menos central em seu cotidiano.
Vimos a variedade de narrativas que investem sobre essa personagem. Há todo o legendário sobre sua vida, que circula nas conversas e nos cordéis, mas também nos livros de história; há todo o repertório de histórias maravilhosas e contos fantásticos que se pautam em paradigmas consagrados pela tradição oral, mas também nos heterogêneos conjuntos de crenças mágico-religiosas que estão presentes na cultura brasileira, e que falam dos poderes póstumos de Jararaca. Estes, por sua vez, como vimos, estão em continuidade com suas características excepcionais em vida, acentuadas nas narrativas sobre sua vida, principalmente naquelas que tendem a se pautar pelo modelo hagiográfico. Isto é, nas que são construídas hoje tendo em vista sua canonização póstuma no cemitério.
Assim, estão todas elas entrelaçadas compondo um mesmo tecido, de trama ao mesmo tempo simples e complexa. Por um lado, vemos aí vários temas familiares, caros ao imaginário da cultura religiosa brasileira e à cultura popular de um modo geral; por outro lado, vemos a tentativa de dar conta de acontecimentos e personagens singulares, suas ações e reações, em um movimento que, como talvez dissesse Sahlins (1990), transforma acontecimentos em eventos, isto é, aquilo que poderia se perder em um oceano de ”fatos” sem maior importância em verdadeiras dobradiças que estabelecem passagens e transformações significativas, marcos simbólicos que modificam a paisagem e alteram as pessoas nela situadas. Não sem que deixe margem para muitas ambivalências, pois que, neste caso como em tantos, esta é constitutiva, não um resíduo. Assim, Jararaca pode ser bandido e santo, pode ser monstro e herói. Tudo depende de qual história se conta – e de com quais outras histórias se está disposto a conversar.
Nos ritos de devoção no cemitério todas essas narrativas estão presentes, competindo, colaborando, compondo uma colcha de retalhos que é, na verdade, o próprio ritual – e o próprio santo. Santo artesanal, portanto, resultado de um investimento coletivo anônimo, não-planejado, não-institucionalizado, mas ainda e sempre social.
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Recebido: 31/08/2007
Aceite final: 15/12/2007
[*] Eliane Tânia Freitasé professora do Departamento de Antropologia da UFRN.
[1] Cangaceiro é o termo que designa o membro de certo tipo de bando armado que realizava saques, seqüestros, ataques a propriedades rurais no Nordeste do Brasil. Alguns foram vistos como aliados de poderosos chefes de parentelas extensas, geralmente envolvidas em disputas agrárias e políticas com outros chefes de família, ou em vinganças de sangue (vendetas). No entanto, o cangaceiro, no sentido empregado aqui (conforme PEREIRA DE QUEIROZ, 1997), não era um cabra a serviço do interesse privado de um fazendeiro, numa relação direta de subordinação patrão-empregado. O que caracteriza o cangaço é a existência de bandos independentes, com liderança própria, que podiam aliar-se a este ou outro chefe político, mas que contavam com hierarquia própria e agiam conforme sua própria agenda. Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, foi o líder do mais importante e mais conhecido desses bandos. Os bandos independentes surgiram no final do século XIX e duraram até 1940, tendo ficado àquela região do Nordeste conhecida como caatinga, caracterizada pela vegetação baixa, geralmente de cactáceas, e pelo clima extremamente seco.
[2] Mossoró fica localizada no oeste do estado do Rio Grande do Norte, situada entre o litoral semi-árido (o litoral salineiro) e o sertão da Chapada do Apodi, que é cortada pelo rio Apodi-Mossoró. Segundo dados de 2006, a cidade teria 229.787 habitantes, mais de 90% deles na área urbana e o restante na zona rural, sendo o segundo município mais populoso do Estado.
[3] Feriado nacional no qual são prestadas homenagens aos mortos da família nos cemitérios, com a oferenda típica de flores, velas e preces.
[4] A cidade conta com um Museu do Cangaço, no qual Jararaca destaca-se em fotos, recortes de jornal e outros documentos sobre sua passagem pela cidade, ao lado da grande figura do cangaço que foi José Virgulino da Silva, o Lampião.
[5] Peter Brown usa tal expressão para referir-se à condição de mediadores atribuída aos mortos por cuja salvação os vivos oravam e que, por sua vez, estando salvos, perto de Deus, podiam por eles interceder e protegê-los. Visão esta ancorada na doutrina que então se estabelecia da comunhão dos mortos, ou melhor, da solidariedade entre vivos e mortos, pois que ambos tinham como horizonte a mesma comunidade de salvos que transcendia a condição provisória da vida terrena. Foi nesse contexto que surgiu e consolidou-se o culto às almas dos mortos, o Dia de Todos os Santos (leia-se: qualquer cristão na comunidade de salvação) e, mais tarde, o Dia de Finados.
[6] Como já foi dito, há um esforço para aproximá-los do tipo conhecido na literatura sociológica e histórica como “bandido social” (HOBSBAWN 1975, passim), o revoltado que “rouba dos pobres para dar ao povo”.
[7] Com texto já pronto, como “Saudades eternas da sua esposa e filhos” ou para ser gravado, ao gosto do freguês, no local.
[8] Pessoas, geralmente do bairro, a maioria mulheres e crianças e uns poucos homens desempregados, que fazem da coleta de cera – restos de vela – um bico para ganhar algum dinheiro, por meio da revenda desses resíduos às fábricas de velas da cidade.
[9] “Diabólico” aqui remeteria menos para maligno do que para trapaceiro ou dotado de algum poder sobre-humano alcançado por vias tortas, isto é, não moralmente aprovadas. A figura do “pacto com o diabo” para vencer confrontos com os inimigos ou alcançar riqueza e poder é comum nas narrativas orais e cordéis. Ver Menezes, 1985. Proezas como a sobrevivência na caatinga sem comida e sem água, atribuídas aos cangaceiros, são muitas vezes atribuídas a seu caráter diabólico ou a algum pacto desse tipo.
[10] Nem sempre se trata de recordação propriamente dita, no sentido de uma vivência individual e subjetiva. Pode tratar-se de repetição de uma recordação atribuída a outro (pais, avós, vizinhos mais velhos; depoimentos lidos em jornais ou rádio).
[11] Promessa é um compromisso assumido com o santo (a oferta de algo, por exemplo, rezas, velas, pintura do túmulo...) em troca de algum benefício (proteção, cura, solução para um problema...). Compromisso este que se encerra assim que o pagamento da promessa é realizado. O voto, ao contrário, tende a tornar-se um compromisso sem prazo, renovado a cada ano, no Dia de Finados, aniversário de morte ou de acordo com o acordo particular entre o devoto e o santo. Trata-se, é claro, de uma distinção nativa.
[12] O culto é objeto de controvérsias dentro e fora do cemitério, na ocasião pública que é o Dia de Finados e no dia-a-dia, quando frequentemente sofre acusações, estendidas a seus devotos, de tratar-se de superstição ou, pior, catimbó – que, no local, é um termo pejorativo para designar qualquer prática religiosa afro-brasileira ou identificada como tal; alternativa a termos como macumba e feitiçaria.
[13] No caso de Jararaca é mais freqüente a referência aos jornais da época de sua vida/morte, já que eles estão disponíveis no Museu do Cangaço e este é local de pesquisa escolar e visitas turísticas na cidade. Algumas matérias de jornais, com fotos, ficam expostas nas paredes de uma das salas do Museu e mesmo no seu hall de entrada.
[14] Rebeldes Primitivos: Estudos sobre Formas Arcaicas de Movimentos Sociais nos Séculos XIX e XX, Rio de Janeiro, Zahar, 1978 [1959] e Bandidos, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1975 [1969].
[15] Pelo menos parcial, pois havia células familiares nos bandos cangaceiros, como grupos de irmãos e casais.
[16] Prefiro ‘história’ a ‘conto’, posto que nunca ouvi ninguém dizer “isso aí é conto desse povo” como ouvi tantas vezes “isso aí é história desse povo, é invenção”, para referir-se a qualquer narração de sabor lendário ou conotação maravilhosa. São ‘histórias’...
[17] Tanto o chá como a duração excepcional das flores do túmulo ocorrem também em outras devoções em cemitérios, a partir da mesma lógica que consagra, com base no princípio da contigüidade, qualquer objeto que permaneça algum tempo junto ao túmulo sagrado ou sob efeito da oração dita pelo(s) devoto(s). Ver BLANC 1995.
[18] Uso o termo hagiografia com certa liberdade, pois não se trata realmente de narrativas escritas, mas antes transmitidas oralmente.
[19] É típico da hagiografia é explorar a continuidade entre uma vida virtuosa, conforme ao modelo cristão e a santificação póstuma, sendo que não é raro que se procure mostrar a realização de milagres ainda em vida. Outro aspecto sempre enfatizado são as circunstâncias que cercaram a morte, geralmente envolvendo alguma espécie de provação em nome da afirmação da fé. O sofrimento ocupa aí um lugar simbólico central, extremamente positivo, isto é, cheio de implicações simbólicas e efeitos sobre a identidade social (e particularmente religiosa) do candidato a santo. E, consistente com isso, no caso em estudo, a vida de bandido é representada como uma vida de muito sofrimento – sofrimento do qual são ora vítimas ora agentes, sofrido e infligido a outros -, principalmente pelos devotos mais comprometidos com a devoção – isto é, que a praticam há anos ou que são particularmente assíduos no recurso a ela.
[20] A troca entre pares, que demanda sempre um retorno imediato, sob pena de se desfazer e transformar-se em seu oposto, a predação, a inimizade, a guerra. SAHLINS 1972 e MAUSS 1974.
[21] Esses traços caracterizam a curta trajetória da vida dos bandidos contemporâneos, apontados nos estudos sobre violência urbana. ZALUAR 1985, ALVITO, 2001.
[22] No culto a João Baracho no cemitério do Bom Pastor, em Natal, que analisei em minha tese de doutorado (FREITAS 2006, 2007).
[23] O que Schneider (2001) mostra ocorrer no caso do menino paulista Antoninho da Rocha Marmo, retratado em sua biografia, escrita por um padre, como modelo de virtude cristã, e dotado de dons espirituais incomuns atestados por seus parentes e conhecidos ainda durante sua breve vida. O menino morreu de tuberculose aos doze anos de idade após uma vida cercada de prodígios atribuídos a sua fé, ou assim elaborados por seu biógrafo, familiares e devotos após sua morte. Vários outros santos do cemitério são mostrados da mesma forma: foram em vida videntes, profetas, taumaturgos, magos.