Apesar de publicado há alguns anos, creio que cabe destaque à obra do historiador francês Claude Langlois, ainda pouco conhecida entre nós e imprescindível para a compreensão do fenômeno que ele denomina feminização do Catolicismo na França. Prefaciado por René Rémond, que assinala que a amplitude do período recortado (século XIX) leva também ao conhecimento da sociedade deste período, o livro de Langlois, repleto de mapas, gráficos e tabelas, conjuga pesquisa quantitativa e qualitativa. Para aqueles que se dedicam a estudar vida religiosa e gênero, as relações Igreja-Estado ou mesmo a expansão destas congregações para outros países, é uma obra fundamental.
Entre suas 776 páginas, o autor busca responder a questão posta à página 13: «Comment, en effet, peut-on tout à la fois s’accorder unanimement sur l’importante féminisation du catholicisme au XIXe siècle et ne point tenter d’en vérifier les manifestations, d’en rechercher les causes, d’en mesurer les effets?»[1]
Entendendo a feminização do Catolicismo como feminização da prática, mas, também, pela entrada maciça de mulheres nos quadros permanentes da vida religiosa, o livro traça um mapa do nascimento e desenvolvimento das congregações com superiora geral, modelo de organização que se tornou hegemônico ao longo do século XIX na França. Essas instituições tinham a possibilidade de se desenvolver em diversos lugares, mas sempre ligadas à superiora geral e a uma sede, chamada Casa Geral ou Casa Mãe, de onde emanavam todas as ordens e decisões sobre os rumos da congregação. Nesse sentido, diferiam das ordens religiosas que, ainda que agrupadas sob uma mesma denominação (como agostinianas, ursulinas, por exemplo), viviam em comunidades independentes, sem qualquer ligação com outras casas, possuindo autonomia de governo entre si. A vida congreganista, como afirma o autor, é um misto de práticas sociais e religiosas: as mulheres que ingressavam em uma congregação podiam se dedicar à vida ativa e, ao mesmo tempo, viver a vida regular - condição já conquistada pelos homens, parcialmente, desde a Idade Média. Após esses esclarecimentos e um capítulo inicial (intitulado Itinéraires), no qual o autor expõe e faz a crítica de suas fontes, a obra divide-se em quatro partes e 15 capítulos.
Na primeira parte, La révolution silencieuse, os capítulos um e dois abordam L’avènement congréganiste e Les voies du succès ao longo do século XIX. É certo que, desde a Revolução Francesa, as bases jurídicas e o suporte material da vida religiosa foram destruídos. Entretanto, a política napoleônica favoreceu o funcionamento das antigas congregações e o nascimento e desenvolvimento de novas, oferecendo auxílio material desde que realizassem trabalho social. As criações de novas congregações e o recrutamento progrediram também durante a Restauração que, de modo geral, manteve as orientações anteriores. Durante a Monarquia de Julho houve pouca intervenção sobre essas instituições, já que não ocupavam a cena política. Além disso, as congregações foram apoiadas para o desenvolvimento do ensino primário, interesse deste governo. Assim, por volta de 1850, elas possuíam cerca de 600 mil membros. O clero feminino, conforme expressão do autor, ultrapassava o de irmãos, padres e regulares juntos. Se, por um lado, houve apoio por parte do governo, por outro, com o clero secular enfraquecido e a quase ausência do número de religiosos e religiosas, a Igreja também abriu espaço para as fundadoras e para as congregações com superiora geral. Foram quase 200 mil mulheres que entraram em congregações entre 1800 e 1880 na França. O sucesso congreganista foi dado pela conjuntura política, mas, também pela estrutura religiosa. Além disso, também se deve levar em conta a feminização da prática e da piedade (dos objetos de devoção) que, por sua vez, também ofereciam espaços de recrutamento para seus quadros: à medida que as congregações cresciam, cada vez mais a educação ficava a seu encargo, o que garantia sua retroalimentação.
A questão do crescimento no número de congregações é abordada na segunda parte, intitulada La création continue. Nos dois primeiros capítulos (La fondation réitérée e Le choix d’um nom), o autor analisa a superfície social das congregações, aquilo que pretendem mostrar de si mesmas. Aí estão incluídas as mutações da memória: Langlois encontrou ao menos vinte casos em que os fundadores não são mais os mesmos. Estas releituras tendiam a colocar uma fundadora onde antes estava um secular ou regular. Além disso, as congregações ofereciam uma variedade de espiritualidades, carismas e trabalhos a serem escolhidos ao gosto dos fiéis. As mulheres que aí ingressavam eram enfermeiras (atendiam doentes a domicílio), eram professoras de orfanatos, fundavam escolas privadas, pensionatos, mas também lecionavam em escolas públicas, cuidavam de idosos, marginais e crianças órfãs. Sua capacidade de adaptação também fazia seu sucesso. Foram 60 anos ininterruptos de criação de novas congregações: entre 1800-1820 foram, em média, 35 criações; entre 1820-1860, pouco mais de 60 ao ano; e, finalmente, entre 1860-1880, a fase de declínio de fundações. Seu vigor era derivado de duas fontes: o poder político e a opinião pública, assunto abordado no capítulo 7 (Les chemins de la politique). Finalmente, em Figures de fondatrices (capítulo 8), o autor destaca que, diferentemente dos fundadores padres, as fundadoras eram leigas e predominaram nas fundações, sobretudo entre 1800 e 1820.
Na terceira parte, L’irrésistible croissance, o autor demonstra, no capítulo 9 (L’invasion congréganiste), que um dos motores do crescimento destas instituições era o tudo ensinar. Em 1861, o ensino se firmou como setor de atividades dominante: 65% das religiosas e congreganistas se dedicavam a ele na medida em que a educação da mulher ganhava os debates ao longo do século XIX. Essas congregações se desenvolveram graças à demanda por maîtresses de pensionat e professoras de escolas de meninas. Até 1860, as congregações femininas tiraram o máximo de vantagens da demanda de pessoal para o ensino. Depois, consolidaram seu empreendimento e sua preeminência. Na medida em que crescia a demanda para a saúde, deslocaram-se para as criações de novas congregações neste setor. No capítulo seguinte, La fortune congréganiste, o autor analisa de onde provinham as fontes de renda congreganista. A causa do enriquecimento era religiosa (a multiplicação das congregações e sua conseqüente conventualização) e também econômica (se inscrevendo em um quadro de desenvolvimento da livre empresa, caritativa e religiosa). O crescimento das liberalidades (dons e legados) por parte do governo para as congregações autorizadas se efetuou durante o XIX na mesma medida que aqueles concedidos às fábricas e à Assistência Pública. O enriquecimento das fábricas e congregações foi, portanto, o mesmo. Dentre as congregações mais ricas estavam aquelas que se dedicavam ao ensino e possuíam pensionatos. No capítulo 11 (La France congréganiste) o autor mapeia a distribuição do movimento congreganista no país e sua internacionalização, primeiramente em direção a países com fronteiras com a França e, em seguida em direção ao Novo Mundo. Após 1860, o movimento missionário se acelerou especialmente para aquelas já consolidadas no país. Houve, também nesse período, a constituição de congregações multinacionais, largamente internacionalizadas. Finalmente, o capítulo 12 (Conquête des campagnes ou suprématie urbaine?) apresenta o quadro da divisão de tarefas no campo e na cidade: até 1861, a distribuição das congregações era igual nos dois espaços. Mas, na medida em que as necessidades sociais cresciam nas cidades, as congregações diversificavam sua atuação e desenvolviam setores que, mais tarde, se laicizavam: cuidavam de doentes a domicílio, recolhiam e assistiam prostitutas e presidiárias. Com o avanço da laicização, passaram a assumir trabalhos de particulares e não mais do Estado, especialmente no final do século XIX.
Na quarta parte, intitulada L’enracinement congréganiste, o primeiro capítulo discute La dinamique du recrutement: até 1860 o recrutamento sustentava-se em 5% ao ano; entre 1860 a 1880, o crescimento se estabilizou em seu máximo. Nos capítulos 14 e 15, intitulados respectivamente La mobilité congréganiste e Démocratisation du recrutement, Langlois expõe os três tipos de recrutamento: auto-recrutamento (recrutamento local, feito principalmente em pequenas congregações com algumas sucursais em torno da casa-mãe ou também em congregações diocesanas); heterorecrutamento (recrutamento em outras regiões graças a propaganda dos bispos); e, finalmente, a transferência regulada de pessoal sobre um território que controlavam, o que acontecia, sobretudo, em congregações maiores regionais ou pluriregionais. A mobilidade de pessoal teve seu ápice entre 1860 e 1880 e seguiu até 1900, quando as congregações acentuam sua abertura para o exterior. Elas cobriam largamente as classes sociais, mas a democratização do recrutamento vinha da parte cada vez maior de membros oriundos da zona rural. Era a polivalência de atividades de algumas dentre essas congregações que as obrigava a procurar sujeitos em diferentes classes sociais. Portanto, eram as atividades a que se dedicavam que fazia a abertura à democratização do recrutamento.
Em suas conclusões, o autor retoma suas análises e vai além, ao se interrogar a respeito do lugar dado às mulheres na sociedade francesa e pelos meios de ação do qual dispunha o Catolicismo para agir sobre esta sociedade: vias de emancipação para a mulher, sim, mas dentro de um quadro restrito de acordos entre Igreja e Estado para o controle social. Ao término da leitura de Le catholicisme au féminin, fica a sensação de que o autor conseguiu, de maneira abrangente e com minuciosa análise, aquilo a que se propôs em suas páginas iniciais:
Nous avons pensé que ces bonnes soeurs méritaient d’être regardées autrement qu’avec ce mélange de familiarité bonhomme et d’admiration béate que l’on trouve dans toute une littérature qui leur est consacrée. Elles damandaient seulement d’être prises au sérieux, d’être jugées pour ce qu’elles sont. [14][2]
[*] Pós-doutoranda em Educação – USP.
[1] “Como, com efeito, pode-se concordar unanimemente sobre a importante feminização do Catolicismo no século XIX e não tentar verificar suas manifestações, procurar suas causas e medir seus efeitos?”
[2] “Nós pensamos que estas irmãs mereciam ser olhadas de outra forma que não com essa mistura de familiaridade afável e admiração beata que se encontra em toda uma literatura que lhes é consagrada. Elas pediam somente para serem levadas a sério e serem julgadas por aquilo que são.”