“Intolerância religiosa” é uma expressão muito empregada na atualidade, sobretudo quando se pensa nos grandes conflitos históricos desenrolados em países do Oriente Médio e da Europa Oriental. No entanto, esse é o título da obra organizada por Vagner Gonçalves da Silva, antropólogo que tem se dedicado às religiões afrobrasileiras. Publicado pela EDUSP em 2007, o livro reúne oito artigos elaborados por especialistas das áreas de Antropologia, Sociologia e Direito, empenhados(as) em investigar o impacto que o crescimento das igrejas neopentecostais tem gerado, durante as duas últimas décadas, no campo religioso afrobrasileiro.
O livro resulta das análises em torno dos ataques que grupos religiosos neopentecostais, notadamente da Igreja Universal do Reino de Deus, vêm realizando contra os cultos e adeptos das religiões de origem africana. Alguns casos são divulgados abertamente pelos meios de comunicação, outros apenas constam em documentações jurídicas, variando desde ataques realizados no âmbito das igrejas, em seus cultos televisionados, até agressões físicas e impedimentos para a realização de rituais.
Tais conflitos instigam especialistas a buscarem respostas para esse fenômeno, o qual poderia ser um indício de intolerância religiosa que, em outros contextos, foi o estopim de inúmeras condutas beligerantes.
Até que ponto as atitudes assumidas por alguns grupos neopentecostais sinalizam a prática de intolerância religiosa, ou consistem apenas em atos de fanatismo? Esta é a questão que permeia os artigos sistematizados no livro.
Os autores baseiam-se na ideia da coexistência de dois grupos conflitantes que compartilham muitos elementos convergentes, aproximando-os mais do que distanciando-os. Ambos falam de um mesmo lugar, com uma linguagem semelhante, mas com objetivos distintos.
No primeiro artigo, Ari Pedro Oro, professor de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, analisa a organização da IURD (Igreja Universal do Reino de Deus) e as estratégias utilizadas para sua ampliação. Para tanto, emprega três conceitos: “igreja religiofágica” (que constrói seu repertório simbólico, suas crenças e rituais incorporando e ressignificando elementos de outras religiões), “igreja de exacerbação” (que exacerba sistemas de crenças já existentes, sem inovação) e “igreja macumbeira” (que incorpora termos, rituais e divindades das religiões afro, empregando a mesma linguagem e assentando-se no rito de descarrego). Por fim, dedica-se às formas de reação empregadas pelas religiões afrobrasileiras no Rio Grande do Sul, que, de acordo com o autor, seria o local de maior incidência de adeptos às religiões de origem afro (1,63%).
Em seguida, temos o trabalho de Alejandro Frigero, da Universidade Católica Argentina/Conicet, que ultrapassa as fronteiras brasileiras para compreender os mecanismos da guerra religiosa entre a IURD e as religiões afro na Argentina e no Uruguai.
Para Frigero, a intensidade deste conflito varia de acordo com os níveis de legitimidade e visibilidade social alcançados por ambas as religiões dentro de cada sociedade, bem como grau de organização local dos afro-umbandistas.
No terceiro artigo, Ricardo Mariano, professor do programa de pós-graduação em Ciências Sociais da PUC-RS, analisa as razões que explicariam o combate travado pelas igrejas pentecostais contra as religiões afrobrasileiras, como pano de fundo para pensar importantes conceitos, tais como: tolerância/intolerância, discriminação e liberdade religiosas.
A partir do conjunto de crenças e práticas rituais nas quais se baseiam as igrejas pentecostais, Mariano defende que a demonização consiste no principal argumento utilizado pelas igrejas para estimular os ataques contra as religiões de cunho afro. Associando as entidades e os rituais à feitiçaria e magia negra – ambas, obras demoníacas - todas as ações contra os cultos afrobrasileiros se inserem num contexto de guerra cósmica, onde as forças do bem, protagonizadas por Deus, prevalecerão sobre o mal.
Dessa maneira, o diabo e seus demônios tornam-se o “braço direito” das igrejas que procuram combatê-lo. Na medida em que esse combate se acentua, as igrejas pentecostais, marcadamente a IURD e a Internacional da Graça de Deus, assimilam crenças e práticas de seus adversários, constituindo-se assim um sincretismo deliberado, cujo objetivo é garantir sua expansão. Curiosamente, a eficiência desse processo de demonização se baseia em condições históricas, uma vez que ao longo do tempo as religiões afrobrasileiras têm sofrido este estigma justificador de longos processos de perseguição religiosa.
O quarto artigo, escrito por Emerson Giumbelli, professor do Departamento de Antropologia Cultural e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da URFJ, procura discutir o processo de vitimização assumido pelos grupos afrobrasileiros, questionando-se como, concretamente, estes são atingidos pelos evangélicos. O autor analisa o discurso religioso da IURD pautado na ideia de “batalha espiritual” contra o demônio e destaca o envolvimento político de seus adeptos como uma estratégia para explicar a sua combatividade; assim, procura reconstituir a versão de Cristianismo hegemônico, no qual a IURD se fundamenta.
No quinto capítulo, Ronaldo de Almeida, professor do IFCH da Unicamp e pesquisador do Cebrap, reflete em torno da questão da intolerância religiosa, com o título “Dez anos do chute na Santa: a intolerância com a diferença”. O autor analisa um episódio de forte repercussão nacional envolvendo a IURD e a Igreja Católica. Em 12 de outubro de 1995, quando os católicos comemoravam o dia de Nossa Senhora Aparecida, considerada a padroeira do Brasil, um pastor da IURD chuta a imagem da santa durante um programa religioso transmitido pela Rede Record. Essa cena foi retransmitida pela Rede Globo durante o Jornal Nacional, enfatizando o conflito entre os dois grupos religiosos.
Diante da pressão exercida pela opinião pública, o líder da IURD vê-se obrigado a pedir desculpas, mas, também, coloca-se como vítima reivindicando a liberdade religiosa garantida pela constituição. Para o autor, esse momento de tensão é fundamental, na medida em que contrasta com a forma intolerante e agressiva pela qual a própria IURD se relaciona com outros cultos religiosos, principalmente os de origem afrobrasileira.
De acordo com Almeida, a IURD é um produto religioso brasileiro resultado de um processo cultural e social que articulou a estrutura simbólica do pentecostalismo norte-americano com alguns elementos da mistura católico-afro-kardecista, presentes, sobretudo, nas camadas sociais médias e baixas dos centros urbanos. Essa igreja apresenta uma visão proselitista, cuja missão é converter o outro à sua visão de mundo, rituais e comportamento - daí a limitação em admitir a diferença, fazendo da convivência com ela, a oportunidade de exercer a missão evangelizadora. Trata-se de uma igreja sectária e com forte impulso para tornar-se hegemônica.
Por sua intolerância religiosa, a IURD vem respondendo processos judiciais, ao mesmo passo em que utiliza os meios de comunicação para sua legitimação e para desqualificação das demais práticas religiosas. Somado a essa estratégia, encontramos o esforço de se apresentar enquanto instituição com responsabilidade social e política, a fim de torná-la mais poderosa e legítima.
No sexto capítulo, Vagner Gonçalves da Silva, professor do Departamento de Antropologia da USP e organizador do livro, analisa a questão da batalha espiritual travada entre o neopentecostalismo, representado, sobretudo pela IURD, e as religiões afrobrasileiras. O autor parte da premissa do antropólogo Claude Lévi-Strauss de que a diferenciação social seria consequência das semelhanças estruturais. Tal ideia aplicada ao contexto brasileiro revela que, apesar das distâncias apregoadas pelos neopentecostais, há profundas aproximações entre seus cultos, crenças e práticas com os de origem afrobrasileira. Como exemplos, o autor destaca a relação de troca que se encontra presente tanto na teoria da prosperidade quanto nas oferendas aos orixás, bem como a forte relação entre línguas de fogo e a força das palavras, a possibilidade de receber no corpo o Espírito Santo e os orixás entre outros. Sendo assim, a IURD não rompe a credibilidade das crenças, mas inverte seus pólos, tratando-as como falsas, ao mesmo tempo em que atesta sua existência como algo perigoso. Em outras palavras, alimenta-se do que condena.
Para Silva, essa batalha espiritual travada pela IURD contra as religiões afrobrasileiras destoa da imagem construída do Brasil como país da “tolerância” ou da “mistura”. Há um descompasso entre essa guerra e a ideologia do sincretismo e do encontro cultural, tão arraigada na memória nacional.
No sétimo capitulo, Marcelo Natividade e Leandro de Oliveira, ambos doutorandos PPGSA/IFCS/UFRJ, dedicam-se às relações entre religião e homossexualidade. Argumentam que os homossexuais sofrem a intolerância religiosa tanto por parte da Igreja católica quanto das evangélicas e, curiosamente, das religiões afrobrasileiras, sobretudo no tocante à AIDS. Sendo que no último são mais bem aceitos, podendo até mesmo seguir uma carreira espiritual.
No caso das igrejas neopentecostais, o homossexualismo é visto como algo a ser eliminado, por sua relação demoníaca. Dessa forma, os relatos de “ex-homossexuais” configuram-se em estratégias muito empregadas nos programas de televisão. Os autores, ao tratarem de um tema tão polêmico, optam pelo caminho da aceitação, propondo que o ideal não é tolerar, mas sim enxergar a homossexualidade como algo natural.
Finalizando a coletânea, Hélio Silva Jr., especialista na área de Direito, professor da Faculdade de Direito da Universidade Metodista de São Paulo, traz importantes reflexões sobre o sistema jurídico e intolerância religiosa no Brasil. Como aponta o autor, as religiões afrobrasileiras defendem-se dos ataques apenas judicialmente, utilizando a Constituição brasileira que garante sua liberdade de culto. Cita alguns exemplos de causas ganhas na justiça que asseguraram o direito de sacrifícios de animais.
O autor situa o crime de discriminação religiosa como racista, sendo assim, inafiançável, imprescritível e sujeito à pena de reclusão.
Num contexto de expansão neopentecostal e diminuição do número de católicos no país, como têm apontado as pesquisas recentes, o livro “Intolerância Religiosa: impactos do neopentecostalismo no campo religioso afro-brasileiro” traz consideráveis contribuições para se pensar a constituição do campo religioso brasileiro, bem como a questão da liberdade e tolerância religiosas. Se, por um lado, encontram-se as religiões afrobrasileiras - que há mais de um século lutam por definir seus direitos, conquistando espaço e reconhecimento na sociedade, mesmo lutando contra diversas perseguições e séculos de preconceito racial -, de outro temos um grupo que cresce de forma incisiva, alcançando considerável destaque no cenário político. Dessa maneira, disputando espaço e adeptos, esses dois grupos configuram-se em excelentes objetos de estudo para diversos especialistas na área das Ciências da Religião. Com certeza, a presente obra inova nesse sentido, trazendo à tona um tema ainda insuficientemente discutido.