O presente artigo analisa o Budismo de origem étnica em Presidente Prudente (município do oeste do Estado de São Paulo) tendo em vista dados demográficos e históricos. Busca-se avaliar as tendências do Budismo no contexto de uma sociedade de forte imigração japonesa ao longo do tempo e refletir sobre as mudanças da religiosidade nikkei. Na primeira parte, conceitua-se o Budismo étnico utilizando a categoria de ‘etnicidade’. Em seguida, refaz-se a trajetória do Budismo e uma série demográfica histórica de seus adeptos em Presidente Prudente. Finalmente, examina a religiosidade nikkei com base em dados do IBGE do Censo 2000.
Palavras-chave: Budismo étnico; religiosidade nikkei; religiões japonesas no Brasil
This paper analyzes the ethnic Buddhism in Presidente Prudente (western city of São Paulo State, Brazil) regarding historical and demographics data. It examines the trends of Buddhism in the context of Japanese immigration to the West Paulista and the changes of the Nikkey religiosity over the time. The article discusses the category of ethnic Buddhism followed by an overview of the history of Buddhism in the city of Presidente Prudente. . Finally, it examines the Nikkey religiosity based on data from the Brazilian Institute of Geography and Statistics (IBGE).
keywords: Ethnic Buddhism; Nikkey religiosity; japanese religions on Brazil
Os 100 anos da imigração japonesa para o Brasil têm motivado uma série de comemorações, sobretudo nas regiões onde a presença nipônica é bastante forte, como o caso de Presidente Prudente, município que conta atualmente com 17.648 nikkeis em sua mesorregião (IBGE 2001). Embora as primeiras levas de trabalhadores japoneses tenham chegado apenas em 1917 ao oeste, anteciparam-se as festividades do centenário, inseridas em um calendário mais amplo da comunidade nipo-brasileira.
O significado das comemorações pode ser avaliado pelos esforços da colônia e das autoridades municipais em recriar um marco simbólico da inserção japonesa na sociedade brasileira, com a reinauguração (entre outras festividades) da Praça das Cerejeiras,[1] espaço público que transpõe em solo brasileiro jardins e templos japoneses em escala reduzida. Na praça, as árvores típicas do Japão – as cerejeiras – estão harmoniosamente dispostas ao lado das tipicamente brasileiras, como o pau-brasil, pretendendo simbolizar uma integração étnico-cultural em uma sociedade poliétnica.
Entre os novos monumentos instalados para o centenário,[2] dois expressam facetas da religiosidade nipônica: um portal (tori, que simboliza o Xintoísmo, religião tradicional japonesa) e um pagode de cinco torres (dôjunotô), réplica de um marco da arquitetura budista no Japão, convivem no mesmo cenário, afirmando-se como presenças na sociedade brasileira e cujas origens remontam à Terra do Sol Nascente.
Figura 1 - Portal é inaugurado na Praça das Cerejeiras (Presidente Prudente)
em 18 de junho de 2008, em comemoração ao centenário da imigração. Foto: Marcos Sanches
É a presença da religiosidade nikkei em Presidente Prudente – evidenciada de modo monumental nas comemorações do centenário – que se pretende avaliar no presente artigo. Para tanto, recuperaremos os principais marcos da inserção do Budismo étnico em nossa área de estudo, passando depois a avaliar suas tendências apresentadas ao longo do tempo, bem como os traços mais relevantes da religiosidade nikkei na atualidade. Para tanto, utilizaremos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), sobretudo provenientes de censos demográficos.
Como veremos, a realidade evidenciada pelos dados demográficos que dispomos, revela um quadro sobre o Budismo étnico muito menos otimista do que as comemorações da comunidade nipo-brasileira mostram, com uma perda cada vez mais acentuada de praticantes entre os descendentes. Procuremos então descrever o fenômeno, buscando alguns insights interpretativos que permitam orientar novos estudos sobre o dharma em Presidente Prudente.
“Budismo étnico”, “Budismo amarelo” e “Budismo de imigração” são alguns dos termos empregados na literatura especializada para descrever o fenômeno de transplantação do Budismo para o Brasil por via da imigração asiática e seu desenvolvimento nas comunidades de orientais que aqui se instalaram.
A expressão “Budismo de imigração” evidencia o veículo da difusão do Budismo no Brasil, a imigração de chineses (no final do século XIX) e japoneses (no início do século XX), tornando possível distinguir um Budismo trazido de fora do Budismo adotado dentro dos países ocidentais por convertidos não-imigrantes.[3]
O termo “Budismo amarelo”, embora trate do mesmo fenômeno, se baseia na descrição da origem étnico-racial dos praticantes, evidenciada a partir da conotação de cor ou raça. Esse tipo de critério é utilizado, por exemplo, nos censos demográficos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) por meio da declaração, pelo próprio indivíduo, de pertencimento a uma religião e na autodeclaração de cor ou raça. Embora existisse nos primeiros anos da imigração uma identidade homóloga entre Budismo e indivíduos de raça ou cor amarela, essa não é a realidade de hoje. Mesmo entre amarelos há práticas de budismos diferenciados, assim como as gerações mais novas de descendentes têm deixado a religião de seus ancestrais.[4] O adjetivo “amarelo” designa, desta forma, apenas uma parte dos praticantes do Budismo, mas não pode ser usado como equivalente a budista.
A denominação “Budismo étnico”, frequentemente adotada na literatura como sinônimo das outras duas noções, possui um caráter epistemológico importante por trazer à baila a associação entre religiosidade e etnicidade de modo problemático e não meramente descritivo.
Podemos dizer que as terminologias anteriormente citadas são descritivas, à medida que qualificam o Budismo a partir da cor ou raça dos seus praticantes ou pela origem dos adeptos. Já a ideia de etnicidade – enfocada em nossa reflexão a partir de Barth – é capaz de abordar os outros dois componentes (raça e origem) como traços característicos e não como elementos definidores, uma vez que a etnicidade resulta da identidade atribuída a si pelo próprio grupo em relação a outras identidades. Etnicidade, portanto, traduz-se em uma ideia de pertencimento e este é relacional a outras identidades, estabelecendo, com estas, fronteiras e interações (BARTH 2000).
Desse modo, não são os traços culturais de um grupo que definem sua etnicidade (BARTH 2000: 90). Estes se constituem apenas em sinais de reconhecimento de identidade e pertencimento – sinais explícitos de inclusão e exclusão, através do qual um ator pode identificar-se e ser identificado como de um grupo e não de outro – e podem ser substituídos por outros sinais diante de novas circunstâncias. A mudança dos sinais não modifica, contudo, os contrastes étnicos entre os grupos, que utilizarão outros sinais para manterem suas identidades.
O Budismo constituiria, dentro dessa perspectiva, um dos “sinais diacríticos” da etnicidade nipônica durante um determinado momento de sua trajetória no Ocidente. A identidade desse grupo teria na religião um indicativo do seu pertencimento étnico, podendo estabelecer a partir dele fronteiras com os outros grupos étnicos na sociedade brasileira.
No entanto, à medida que o imigrante e seus descendentes passaram a se inserir na nova sociedade e estabelecer novas relações, tais fronteiras iriam se modificar com a negociação de novas identidades. O mesmo processar-se-ia, como veremos, no campo da religiosidade. Embora o Budismo continue sendo, em nossa área de estudo, uma religião bastante circunscrita ao grupo nikkei, o inverso não é verdadeiro. Hoje, para ser nikkei não há necessidade de pertencimento ao Budismo, o que já foi bem diferente nas décadas iniciais da imigração.
A inserção do Budismo em Presidente Prudente está intimamente vinculada ao fenômeno da imigração japonesa,[5] o que durante muito tempo caracterizou a religião como atributo exclusivo da etnicidade nipônica.
Tal transposição não se deu, no entanto, de modo homogêneo, podendo ser identificados pelo menos três fases diferenciadas da recepção da religiosidade budista (as duas primeiras no interior da comunidade nikkei e a última com mais repercussões no campo não-nikkei): a fase de culto familiar, a fase do Budismo de missões e a etapa do Budismo globalizado.[6]
A primeira geração (issei) começou a chegar à região de Presidente Prudente a partir de 1917, depois de já iniciada a imigração para o Brasil. As estações da estrada de ferro Sorocabana de Indiana e Álvares Machado eram os pontos de desembarque dos primeiros imigrantes, que vinham com destino às fazendas de café da região.
Apesar de maciço o número de budistas entre os primeiros imigrantes, a institucionalização da religião no Brasil ocorreu em um momento posterior ao da chegada dos isseis, fazendo com que esse momento inicial apresente uma conotação predominantemente familiar. O Budismo nessa fase inicial constitui-se em religião fortemente ligada ao âmbito doméstico, tanto pelas suas formas de prática, quanto por seu caráter identitário, vinculado ao culto à memória dos antepassados.
Mesmo sem templos onde pudessem receber os ensinamentos de sua religião, os budistas viriam a estabelecer formas adaptadas de liturgia em solo brasileiro. Recitação apenas de memória de fragmentos da sūtra, improvisação de altares domésticos (butsudan) com caixotes de madeira, celebração de exéquias e casamentos por bonzos não-profissionais (MAEYAMA 1973b: 433) são algumas das maneiras da recriação da liturgia budista nas primeiras décadas da imigração.
Percebe-se nesse momento que a expectativa dos isseis em voltar ao Japão depois de obtida prosperidade material na nova terra (USARSKI 2002: 13) resulta em uma provisoriedade também da religião praticada em novo território.
A partir da década de 1940, contudo, esse cenário de um Budismo não-institucionalizado começará a ganhar novo desenho com a instalação de organizações oficiais budistas em Presidente Prudente e outras localidades do Brasil, sobretudo no Estado de São Paulo, sinal de que a permanência no novo país se efetivaria por muitos nikkeis.
A primeira instituição budista a se inserir no Brasil foi a Honmon-butsuryû-shû (“Religião fundada pelo próprio Buda”), com um templo em Lins, no ano de 1936. Quatro anos mais tarde, a organização criou em Presidente Prudente sua segunda unidade, o Nissenji.
A instalação do templo – situado na Rua José Bongiovani, próximo à Praça das Cerejeiras – foi uma das ações do sacerdote Genju Ibaragui, que depois se tornou arcebispo da instituição, com o nome Nissui Ibaragui. Ibaragui, que imigrou com fins de expandir a religião, estava entre os primeiros japoneses que desembarcaram no porto de Santos, em 1908.
A eclosão da 2ª Guerra Mundial, entretanto, viria impor um freio à expansão do Budismo por via do Nissenji, embora as atividades do templo tenham sido mantidas durante o período de guerra. A partir da unidade prudentina, a Honmon expandiu o Budismo para Assai, Londrina e Maringá, no Paraná (NAKAMAKI 2002: 95).
A nova fase, do Budismo de missões, será intensificada na década de 1950. Após o término da 2ª Guerra Mundial (1941-1945), as organizações japonesas adotarão uma postura de intenso proselitismo, deslocando missionários para o Brasil, em direção aos japoneses e descendentes que permaneciam.
Em um período muito próximo, dois templos budistas do ramo Jôdo Sinshû (Verdadeira Terra Pura), mas de escolas diferentes (Otani e Nishi) foram criados em Presidente Prudente. No ano de 1952 foi fundado, por 14 imigrantes, o templo da linha Nishi, o Honpa Hongwanji. Quatro anos mais tarde, em 1956, instalou-se o templo da linha Otani, o Nambei Honganji.
Os três templos tradicionais – Nisenji, Honpa e Nambei – mantêm ainda hoje entre os seus praticantes uma maioria de nikkeis. A composição étnica é evidente nos locais, embora contem com alguns simpatizantes entre não-descendentes. No entanto, o acesso destes ainda fica limitado pela barreira linguística, uma vez que os cultos são celebrados em japonês e os sūtras recitadas na língua original. O perfil predominantemente étnico do Budismo sofrerá uma modificação, entretanto, a partir dos anos 1960, com a difusão em escala mundial de religiões neobudistas ou de Budismo leigo. Estas começaram a chegar em Presidente Prudente em 1968, com a implantação da Sôka Gakkai.
Com liturgia toda em português, a Sôka Gakkai possui hoje mais adeptos entre os não-descendentes do que entre descendentes de asiáticos, embora a entidade tenha sido difundida em Presidente Prudente através de uma família nikkei, Simabukuro.
Outra organização representante desta terceira fase a que nos referimos, de “Budismo globalizado”, é a Sociedade Religiosa Reiyukai Brasil. Atuando em Presidente Prudente desde 1º de março de 1984, sua estrutura de organização é leiga e compreende mais adeptos entre os não-descendentes do que entre nikkeis propriamente, diferentemente das religiões tradicionais.
O breve resumo ora traçado sobre a inserção do Budismo em Presidente Prudente revela a predominância, do componente étnico, seja em sua adoção, seja em sua manutenção. No entanto, como veremos agora, essa tendência vem sofrendo transformações ao longo do tempo, fruto da presença prolongada dos imigrantes no Brasil e de transformações de sua identidade.
Ao desembarcar nas estradas de ferro da região de Presidente Prudente, os japoneses eram “virtualmente budistas”. Isto por dois motivos: primeiro, porque o Budismo confunde-se com a niponicidade dos imigrantes (MAEYAMA 1973a: 248), ou seja, era uma religião definidora de seu pertencimento étnico; em segundo, pelo fato de que os imigrantes eram procedentes de regiões no Japão onde predominava o Amida-Budismo (USARSKI 2002: 16).
Figura 2 - Correlação entre número de nikkeis e os praticantes do Budismo
de cor amarela em Presidente Prudente. Fonte: IBGE
Infelizmente, as contagens feitas quando da chegada dos imigrantes não levam em consideração a particularidade de sua religião, sendo definidos como “acatólicos”, por oposição à religião predominante do Brasil. Só iremos ter uma noção mais clara do Budismo amarelo em 1940, quando o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) realizou um censo demográfico contabilizando brasileiros e residentes, entre outros quesitos, acerca de sua religião.
Devido a isto, temos um hiato de cerca de 20 anos entre a chegada das primeiras levas de imigrantes em Presidente Prudente e a realização do censo, resultando em lacunas nas informações sobre a religiosidade nikkei.
A forte presença amarela em Presidente Prudente – 7.840 pessoas, segundo o IBGE (1954) –, associada ao caráter étnico da religiosidade nipônica, fazia do Budismo a segunda religião em expressão numérica no município, com 3.670 adeptos registrados no ano de 1940. O número ultrapassava o de protestantes (2.309) e espíritas (977), para citar apenas os grupos religiosos com mais adeptos naquele período, afora o Catolicismo romano, que listava 66.811 fiéis.
Dos imigrantes recenseados, apenas 26 declararam confessar o Xintoísmo, embora esta fosse a religião oficial japonesa no período Meiji (1868-1946), o que pode ser entendido pela importância do Amidismo na socialização primária dos nikkeis aqui instalados. O fato de o Budismo se identificar com o culto dos antepassados também reforça a sua manutenção como religião familiar dos asiáticos inseridos na região (USARSKI 2002: 15).
Muito embora seja significativa a presença budista naquele contexto como segunda religião em adeptos, os dados de 1940 revelam um processo de perda de referencial étnico do Budismo entre os amarelos. Dos 7.840 nikkeis em Presidente Prudente, 47% eram budistas, enquanto os outros 53% se declararam de outras denominações. Vinte anos depois de sua instalação na região, não era possível mais correlacionar integralmente o grupo étnico-racial amarelo à religiosidade budista. Ou seja, ser amarelo não significava mais ser budista, como ocorria no momento da chegada ao Brasil.
O referido processo de desenraizamento étnico do Budismo (GONÇALVES 2002: 115) se deu também em outras colônias nipo-brasileiras no Estado de São Paulo, muito embora as perdas tenham sido mais dramáticas em Presidente Prudente do que em Tupã, Marília e Lins. A este respeito, Usarski observa que o abandono do Budismo por estes nikkeis correlaciona-se à redução do percentual de descendentes que falavam japonês no ambiente doméstico (84,2%) e pelo baixo percentual de imigrantes que naquele momento tinham dificuldades em falar o português fluentemente (32,4%), uma vez que a linguagem é importante veículo de “expressão, preservação e transmissão” da cultura (USARSKI 2008: 51).
Na década seguinte, o Budismo continuará, em escala nacional, perdendo adeptos. Por um lado, o nacionalismo getulista e a intensificação do controle sobre os imigrantes no período da 2ª Guerra Mundial, e, por outro, uma maior assimilação do nikkei na sociedade brasileira e a transformação de sua identidade, são fatores decisivos para este quadro de perda do referencial étnico do Budismo. O resultado foi a adoção pelos asiáticos de primeira e, principalmente, de segunda geração (nisseis) da religião predominante na sociedade brasileira (USARSKI 2004: 311).
Em 1950, o número de budistas entre os nikkeis se manterá estável em Presidente Prudente, embora a curva decrescente deflagrada nas décadas anteriores não tivesse mais, a partir daí, uma possibilidade de reversão. Dos 5.834 nikkeis recenseados naquele ano no município, 2.833 (equivalente a 49%) continuavam budistas.
A redução numérica que pode ser observada na figura 2 – tanto no número absoluto de asiáticos quanto no de budistas, tomando como referencial o censo de 1940 – tem uma explicação político-administrativa: três importantes núcleos de imigrantes japoneses, os então distritos de Álvares Machado, Alfredo Marcondes e Pirapozinho, se desmembraram do município de Presidente Prudente em 1944 e 1948 (SEADE 2008), e passaram a figurar de maneira autônoma no Censo de 1950.
Foi nesse contexto de perda de fiéis budistas entre os próprios descendentes que chegaram as missões do Budismo japonês em Presidente Prudente, com a instalação de três templos entre 1940-1956. Mas, também foi nesse momento que se intensificou o proselitismo das igrejas cristãs em busca da conversão dos nikkeis. Dois exemplos podem ser dados desta ação missionária cristã, um proveniente do Protestantismo e outro do Catolicismo, em direção à comunidade nipo-brasileira.
No ano de 1938, imigrantes instalaram em Presidente Prudente um núcleo da denominação evangélica Holiness Kiyokai, com o propósito de evangelizar os nikkeis. A entidade já existia no Brasil desde 1925 – fundada por missionários japoneses – e 15 anos depois espalhava seus templos por diversas regiões de intensa imigração japonesa.[7]
Um fator para o sucesso da Holiness em sua implantação foi a utilização do idioma japonês nos cultos e liturgias, possibilitando assim levar a mensagem cristã para um número maior de imigrantes, sobretudo aqueles que ainda não tinham o português como língua fluente.
O mesmo se deu com a fundação do Círculo Católico Estrela da Manhã, organização católica focada na evangelização de nikkeis, sobretudo jovens. O Círculo foi criado em Presidente Prudente no ano de 1953, trinta anos depois de ter se estabelecido em Álvares Machado o monsenhor Domingos Nakamura, sacerdote japonês enviado ao Oeste de São Paulo pelo Vaticano, a pedido do bispo de Botucatu, Dom Lúcio Antunes Filho, para o trabalho missionário com as centenas de imigrantes japoneses na região.[8]
Embora houvesse uma estratégia do Catolicismo em expandir sua mensagem para os isseis e nisseis a partir de um trabalho missionário,[9] não se pode ignorar a participação dos próprios membros da comunidade nikkei na assimilação do Cristianismo. O Círculo Católico Estrela da Manhã, por exemplo, foi criado por um grupo leigo de católicos, entre os quais estavam os pioneiros da imigração japonesa na região de Presidente Prudente, Dr. Pedro Onishi, professora Sofia Dobashi e Thomaz Makiyama.[10]
Os dois exemplos sugerem que o abandono, no período estudado, por muitos nikkeis do Budismo de seus dos ancestrais esteja ligado tanto ao proselitismo das igrejas cristãs e ao apelo de uma sociedade de maioria cristã, quanto às transformações dentro do próprio grupo étnico amarelo, que passava então a construir uma nova identidade na sociedade receptora. Nesta identidade em produção, o Budismo não será mais o elemento definidor da niponicidade.
Uma pista deixada por Barth pode nos ajudar a entender o relatado abandono do Budismo por muitos nikkeis naquele momento. Segundo o autor, em algumas situações, os atores sociais podem achar vantajoso “mudar os rótulos aos quais estão associados a fim de evitar os custos do fracasso” (BARTH 2000: 92). O mesmo poderia ter se passado entre os nikkeis no pós-guerra: a derrota do Japão pode ter sido associado por muitos ao fracasso do Budismo como religião. Isto parece evidente quanto à trajetória do arcebispo Ibaragui, que não acreditava na derrota dos japoneses para os aliados. Influenciado pelo nacionalismo de Nitiren, Ibaragui trazia consigo a “convicção” de que “um país budista jamais perderia uma guerra para um país cristão” (NAKAMAKI 2002: 94). Não há dúvida de que a derrota estava repleta de significados simbólicos e entre eles estava em jogo manter a crença na vitória do Japão ou reconhecer a derrota, com impactos decisivos para a identidade do grupo.
Os dados demográficos dos períodos seguintes atestam o desenraizamento étnico do Budismo, indicando cada vez mais a diminuição da correlação entre pertencimento étnico ao grupo amarelo e religiosidade japonesa. Os censos de 1950 e 1991 mostram a continuidade dessa tendência, com o Budismo sendo adotado como religião por menos da metade dos amarelos em Presidente Prudente.
Dois grandes pontos de inflexão se evidenciam nessa trajetória: o primeiro, descrito um pouco mais acima, quando ocorreu o abandono do Budismo por cerca de 50% dos nikkeis identificado na passagem para a década de 1940; o segundo grande influxo dessa curva é mais recente e aparece no Censo de 2000, quando apenas 13% dos amarelos se declararam budistas (768 pessoas de um total de 5.777).
Com o intuito de sondar o significado dessa última transformação, de contornos bastante acentuados, iremos observar agora os dados do Censo 2000, que fornece as informações quantitativas mais confiáveis de que dispomos sobre a religiosidade nikkei no presente momento. Mais do que respostas, talvez tenhamos pistas e questões, mas estas precisam ser formuladas para uma melhor compreensão do afastamento cada vez maior do Budismo pelos nikkeis.
Com o Budismo incluindo apenas 13% dos descendentes de japoneses, uma questão natural que decorre desta constatação é: houve uma completa assimilação do grupo nikkei pelo Cristianismo, religião predominante na sociedade receptora dos primeiros imigrantes? Ou ainda: quais as religiões ou denominações que se colocam como alternativa, capazes de atrair os nikkeis e de proporcionar uma experiência religiosa sem a conotação estritamente étnica dos antepassados?
Um primeiro dado a ser observado nesta direção é que das 5.777 pessoas declaradas ao Censo 2000 como amarelas, o equivalente a 5% informou não possuir qualquer religião, como mostra a figura 3. O indicador é expressivo, se considerarmos o número dos nikkeis que seguem outras religiões não determinadas (14 pessoas) ou mesmo o número dos que praticam o Espiritismo (52, correspondendo a 1%). Seria interessante poder investigar melhor este grupo, mas teríamos que esperar um novo censo, ou buscar uma sondagem qualitativa, para saber se essa tendência se mantém ou se tais indivíduos se encontram em uma fase de mudança para outras religiões ou práticas. Uma sugestão, no entanto, é que a perda do papel identificador étnico do Budismo pode ter deixar uma espécie de “vácuo” religioso entre os indivíduos de ascendência asiática.
No extremo oposto, em termos quantitativos, o Catolicismo é a religião que mais possui adeptos entre os nikkeis, correspondente a 68% do grupo. São, em números absolutos, 3.906 fiéis. Como já discutimos, o sucesso do Catolicismo no grupo nipobrasileiro pode ser explicado sob diversos ângulos: resposta ao proselitismo realizado pela Igreja Católica ao longo dos anos; como resultado da inserção dos nikkeis em uma sociedade predominantemente católica e ainda como resultado de uma nova identidade, com fronteiras religiosas menos impermeáveis ao grupo étnico receptor.
Figura 3 - Estratificação religiosa dentro do grupo amarelo em 2000. Fonte: IBGE
Ainda no campo do Cristianismo, chama a atenção a parcela de nikkeis evangélicos, que corresponde a 6% do total, com 429 pessoas. Neste grupo é possível perceber claramente dois estratos, um formado por nikkeis convertidos às igrejas protestantes de missão (o menor número, com 68 adeptos) e outro, mais expressivo numericamente, de pentecostais (264 declarações). As igrejas evangélicas de missão com fiéis entre nikkeis são a Presbiteriana (56) e a Adventista (12). Entre as pentecostais, a que mais possui adeptos nikkeis é a Assembleia de Deus (90), seguida pela Igreja Universal do Reino de Deus (19).
O Budismo, a despeito de sua perda quantitativa de fiéis, é a segunda religião mais importante entre os nikkeis de Presidente Prudente. Uma tarefa a se fazer ainda é a de investigar quais as repercussões do Budismo no campo das práticas e devoção pessoal destes nikkeis. Isto porque, como sugere Usarski (2004: 309), há muitos budistas por nascimento que assim se declaram por considerar importante manterem a religião transmitida pelos ascendentes, sem necessariamente significar que praticam tal religião. Seria preciso um olhar mais atento sobre esse grupo.
Extrapolando o grupo étnico amarelo, mas ainda dentro do campo do Budismo, percebe-se no Censo 2000 que 66 pessoas sem ascendência asiática se declararam como budistas. Quantitativamente o número ainda é pequeno, mas mostra que as fronteiras culturais e linguísticas vêm sendo transpostas por não-nikkeis em direção ao Budismo. Também se exigirá aqui o estudo destes convertidos de “terceira geração” ao Budismo, buscando traçar um quadro preciso sobre quem são, qual a ênfase de suas práticas e particularidades de sua religiosidade, tendo em vista a adoção de uma religião oriunda de outra cultura bastante diferente da ocidental.
Por fim, outra direção apontada pelos dados do IBGE é a da “migração” dos nikkeis para as novas religiões japonesas. A amostra de Presidente Prudente revela que estas religiões, que vêm sendo introduzidas no Brasil desde os anos 1960, na esteira do Budismo globalizado, atraíram 5% dos nikkeis de Presidente Prudente.
Dos 330 nikkeis que declararam serem adeptos das novas religiões japonesas no município, 153 pertenciam à Sekai Kyusei Kyo (Igreja Messiânica Mundial). As restantes 177 são catalogadas sob a rubrica genérica de “outras”, abrangendo aqui a Seicho- No-Ie e outras, cuja inserção em Presidente Prudente ainda precisa ser melhor investigada.
É interessante observar que, diferentemente do verificado com o Budismo tradicional, as novas religiões japonesas têm atraído mais fiéis entre os não-descendentes do que nikkeis em Presidente Prudente. Em 2000, o total de praticantes das novas religiões orientais no município era de 1.262 pessoas. Isto pode ser explicado tanto em termos das estratégias adotadas por essas organizações, como sugerido por Peter Clarke, abertas a pessoas de todas as religiões, como pela mensagem messiânica que veiculam, disseminando uma mensagem de salvação aqui mesmo na terra (CLARKE 2002, 2008).
Em outra ocasião (GONÇALVES 2002), pudemos visitar o Budismo em Presidente Prudente numa tentativa de sistematizar os primeiros dados sobre a religiosidade no município, dada a relevância da inserção nipônica na sociedade e cultura regionais. Naquele momento, baseados em dados demográficos de 1991 e em entrevistas com dirigentes de templos, observamos que os religiosos enfrentariam dilemas, sobretudo nas linhas mais tradicionais, em abrir-se a novos adeptos ou a manter-se enraizados etnicamente.
Olhando retrospectivamente aqueles dados à luz das informações do Censo de 2000, as perspectivas do Budismo étnico continuam dramaticamente mais acentuadas, haja vista a grande inflexão na religiosidade nikkei vivenciada na passagem para o século XXI.
Os dados aqui trazidos sugerem a realização de novas pesquisas, tanto no âmbito do Budismo, como na seara das novas religiões japonesas, sendo necessário uma aproximação mais qualitativa para podermos dar conta das inúmeras questões que deixaremos em aberto aqui. Como toda pesquisa, o estudo do Budismo no Brasil, ainda é, como se diz em inglês, work in progress.[11] Novas incursões ainda serão necessárias para melhor compreender as transformações no campo da religiosidade nikkei e de sua adoção no Brasil.
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“RELAÇÃO de pioneiros japoneses em Presidente Prudente”, 21/07/1968. Correio da Sorocabana, Presidente Prudente, nº 1.874, caderno especial.
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USARSKI, F. 2002 “O Budismo no Brasil: um resumo sistemático”, in USARSKI, F. O Budismo no Brasil. São Paulo, Lorosae, 2002, p. 107-124.
___________. 2004 “O dharma verde-amarelo mal-sucedido: um esboço da acanhada situação do Budismo”. Estudos Avançados, São Paulo, 18, 52: 303-320.
___________. 2008 “The Last Missionary to Leave the Temple Should Turn Of the Light”: Sociological Remarks on the Decline of Japanese “Immigrant” Buddhism in Brazil. Japanese Journal of Religious Studies, Nagoya, 35, 1, 2008: 39–59.
Recebido: 13/10/2008
Aceite final: 07/12/2008
[*] Doutor em História e Sociedade pela Unesp/Assis e pesquisador do Ceral (Centro de Estudos de Religiões Alternativas no Brasil).
[1] Inauguração da Praça das Cerejeiras..., 2008.
[2] Monumentos orientais vão homenagear..., 2007.
[3] Em sua tipologia, Usarski (2002) diferencia o Budismo de imigração daquele de conversão. Prebish (1999 apud SHOJI, 2002) também contrapõe o Budismo dos imigrantes à religiosidade dos convertidos ao Budismo em países caucasianos.
[4] Para uma caracterização do Budismo no Brasil a partir dos dados empíricos mais recentes do IBGE, veja-se a análise de Usarski (2004), que problematiza as categorias atualmente empregadas para o estudo do Budismo “verde-amarelo”.
[5] Exceto quando indicado em contrário, a reconstrução da trajetória do Budismo em Presidente Prudente segue nosso trabalho anterior (GONÇALVES 2002).
[6] Considerando-se a tipologia adotada por Usarski (2002, p. 12), as duas primeiras fases incluem-se no “Budismo de imigração” e a última no chamado “Budismo de conversão de segunda geração”.
[7] A Holiness (Santidade, em inglês) fundou seu templo em Londrina (PR), por exemplo, também em 1938, cf. Holiness Londrina..., 2008.
[8] A comunidade nipobrasileira de Álvares Machado busca, desde 2002, obter do Vaticano a beatificação do Monsenhor Nakamura, cf. Correia, 2008.
[9] Na década de 1960, para citar um exemplo da ação sistemática da Igreja em direção aos descendentes de japoneses, foi criada a Panib (Pastoral Nipo-Brasileira), com objetivo de ampliar ainda mais a conversão de descendentes japoneses e unificar a evangelização na comunidade. No Interior de São Paulo, a pastoral é coordenada em Tupã.
[10] Cf. Relação de Pioneiros... 1968.
[11] Concordo aqui com Usarski, 2004, para quem o estudo do Budismo brasileiro deve ser uma “tarefa contínua”. Aproveito a ocasião final para registrar que estas notas nasceram de uma inquietação surgida em uma conversa com o teólogo Luiz Antonio Sobreiro Cabreira, a quem sou grato pela interlocução e amizade. A responsabilidade pelas opiniões, entretanto, é minha.