O artigo é da autoria de uma psicóloga clínica com ampla experiência no atendimento psicoterapêutico de religiosos católicos. O objetivo do artigo é mostrar em um caso clínico concreto a possibilidade de se aplicar a teoria do self dialógico no atendimento de pessoas com forte motivação religiosa ainda não bem interiorizada. A narrativa da evolução do seminarista Melquior oferece um exemplo concreto e bem brasileiro de como se pode situar a narrativa de vida de um seminarista no desenrolar de uma terapia. O caso complementa e ilustra com muita clareza as noções teóricas e as dicas metodológicas de Hermans e Kempen, indicadas por van Belzen nos demais artigos deste mesmo número da revista REVER.
Palavras-chave: Psicoterapia de clérigos, self dialógico, estudo de caso, teoria e prática.
The article is written by a clinical psychologist with wide experience in psychotherapy of religious Catholics. The aim of the article is to illustrate by means of one concrete clinical case the possibility of applying the theory of the dialogical self in assisting people with strong religious motivations but not well interiorized. The narrative of the evolution of the seminarian Melquior offers a concrete and typically Brazilian example of how one can situate the narrative of the life of a seminarian during the therapy process. The case illustrates clearly the theoretical notions and the methodological indications of Hermans and Kempen indicated by v. Belzen in the three articles of this same issue of the magazine REVER.
Keywords: Psychoterapy for religious, dialogical self, narrative psychology, case study
O presente artigo visa apresentar os primeiros passos de uma pesquisa - em andamento - que pretende associar conhecimentos da Psicologia da Religião aos que estão sendo gerados pela valorização da dimensão cultural da religião, dando origem e destaque a uma nova fase da Psicologia Cultural da Religião. A correta compreensão das ideias aqui desenvolvidas supõe o conhecimento dos conceitos e observações expressos em artigos do Prof. Jacob van Belzen no presente número monográfico da revista REVER e também das minhas próprias reflexões já publicadas referente ao conceito de self dialógico e à contextuação cultural do mesmo, segundo H. J. M. Hermans, Kempen e van Loon (1992) bem como às narrativas do atendimento psicoterapêutico de um seminarista de nome (fictício) de Melquior. A narrativa exemplifica a utilidade clínica que a noção de self dialógico pode ter para a condução dinâmica do processo psicoterapêutico de religiosos.
O itinerário que me conduziu, em quase 30 anos de prática clínica, à valorização da teoria do self dialógico, tem também sua narrativa. Surgiu de uma série de experiências e estudos que fui tendo, em especial nos últimos dez anos, relativos a clientes religiosos em atendimento terapêutico. Baseando-me tanto nesta prática clínica quanto em meu contato direto com seminaristas católicos (estudantes de Teologia) como professora de Psicologia da Religião, pude constatar a utilidade de se buscar uma integração maior entre Psicologia da Religião e Psicologia da Cultura. A exemplo do que se passou com Hermans, Kempen e van Loon (HERMANS et alii 1992), constatei com maior clareza que os conceitos e aproximações destes psicólogos holandeses criam uma base válida para uma visão mais dinâmica, mais contextualizada e mais e mais personalizada da interação que se processa entre terapeuta e cliente (HERMANS 1993) também quando, ao longo do tratamento, afloram problemas relativos à religiosidade e ao sentido existencial da pessoa.
Duas outras ocasiões que muito trouxeram à fundamentação de minhas intuições foram minhas participações, primeiro, desde 2005, no Grupo de Pesquisa Psicoterapia e Religiosidade: peculiaridades do Programa de Ciências da Religião da PUC-SP e, segundo, em atividades regulares que reuniram psicoterapeutas e formadores tanto no Grupo de Reflexão de Formadores e Psicólogos do ITA de São Paulo[1], quanto em cursos de especialização organizados pela OSIB (Organização dos Institutos de Formação do Brasil, ligado à CNBB.[2]. Esclarecedor e decisivo para a reorientação de minhas reflexões foram também meus dois encontros pessoais com o Professor Jacob van Belzen, primeiro no Congresso da Sociedade Internacional de Psicologia da Religião (2007), em Praga e, um ano depois, no simpósio-debate organizado pelo Programa de Ciências da PUC-SP, em 2008, que teve no Prof. van Belzen o seu principal explicitador, contando, ao mesmo tempo, com a participação de importantes psicólogos/as brasileiros da religião. Todas e cada uma dessas oportunidades me serviram de ocasião e estímulo para partilhar meus insights teóricos e práticos com outros pesquisadores/as e colegas terapeutas que também se preocupam com a mesma temática.
A presente reflexão resulta daí. Supõe, portanto, que o leitor leia ao menos os artigos até aqui citados e que tenha algum conhecimento da temática existencial e religiosa assim como esta emerge em situações de psicoterapia. Melhor ainda se tiver alguma prática no atendimento de pessoas dedicadas inteiramente a projetos de vida centrados no cultivo da espiritualidade e na vivência religiosa pessoal. No presente artigo, terei em mente de maneira especial os estudantes de Teologia que se preparam para o sacerdócio na Igreja Católica em faculdades e casas de formação da cidade de São Paulo. Meu objetivo, aliás, é de que este número monográfico de REVER fomente o acesso e a ampliação da Psicologia Cultural da Religião no Brasil[3] como recurso teórico-prático de grande utilidade no amadurecimento psicoafetivo e espiritual de quem, na fase já adulta de seu desenvolvimento, pondera seriamente sobre suas possibilidades e condições de colocar a vocação religiosa e o cultivo da espiritualidade como um dos ou mesmo o elemento fundante de sua vida.
A conduta terapêutica não visa em si o desenvolvimento espiritual e religioso, por não ser esta a tarefa que lhe compete. Porém, ao desobstruir os canais de diálogos nunca acontecidos ou interrompidos, fomenta a possibilidade de o indivíduo ir além dos fatos cotidianos, transcendendo-os. Retomar e recriar imaginativamente os rituais e orações aprendidas e repetidas de modo não reflexivo na infância, vivenciar experiências religiosas novas, tentando inseri-las em uma cadeia coerente e pessoal, identificar-se com novos personagens religiosos bíblicos ou do passado recente ou remoto, é um exercício que enriquece o diálogo com a multiplicidade de vozes das quais o paciente passa a se dar conta em virtude da progressiva e por vezes turbulenta lucidez que a psicoterapia desperta no sujeito. Quem sonda seus próprios limites de sentir e ser pode ser-com e sentir-com[4] o outro (alteridade) (MASSIH 2000: 145).
Foi o que pude perceber e tento mostrar narrando as vicissitudes vividas por Melquior, um dos seminaristas que atendi ao longo de um ano. Ele revelou uma grande sensibilidade aos ritos da Igreja, à eucaristia, à confissão, à liturgia em si e às orações comunitárias da casa de formação. Realidades do passado lhe serviram de incentivo e motivação para se posicionar e estabelecer laços pessoais com a cultura institucional da congregação religiosa à qual se afiliou. Houve como que uma assimilação entre elementos simbólicos de suas experiências de apego a pessoas de infância - seus pais e avós, na vizinhança e a pequena comunidade religiosa interiorana em que nasceu e viveu até seus 18 anos - e o que agora é para ele significativo como um homem adulto, há 8 anos membro de uma família religiosa que tem um estilo de vida e missão definidos ao longo de mais dois séculos e, atualmente, às voltas com notáveis transformações culturais. Mesmo quando Melquior critica e questiona o modelo educacional e o estilo de vida de seu grupo religioso, ele o faz hoje a partir de dentro. É como se sua imersão na congregação tivesse atravessado algumas camadas de confusão e ambiguidade para chegar a este momento mais reflexivo e já quase adulto. Ao que tudo indica, Melquior foi passando por diálogos interiores com vários sujeitos significativos, vivenciando um processo de amadurecimento e tomada de consciência que o preparou para assumir e representar em primeira pessoa a instituição a que decidiu afiliar-se definitivamente em 2009. A camada mais aderente e profunda de sua narrativa e amadurecimento psicoreligioso tinha suas raízes em experiências havidas no relacionamento com a avó e com a mãe, duas figuras que lhe eram mais próximas.
A figura de seu pai, grosseiro e distante, o marcou negativamente. Em sua infância e adolescência, uma vizinha de sua avó, que exercia o papel de benzedeira local, se mesclou com a de figuras da modesta paróquia que ele, mais que os familiares, frequentava com prazer. A frequência ao catecismo paroquial e o contato com o padre gerou em Melquior algumas tensões pelo fato de a religiosidade católico-popular que bebeu em casa divergir da que lhe era apresentada nas aulas de catecismo. Malgrado esta situação ambígua, Melquior se apegou à ideia de ser, um dia, padre. Só pôde concretizar este desejo aos 18 anos de idade. A entrada no seminário de uma congregação religiosa e, sobretudo, os estudos de Filosofia e de Teologia, fizeram crescer subrepticiamente essas tensões, levando a confusões e ambiguidades que careciam de discernimento seja psicológico, seja religioso. De um lado, a herança psicológica com raízes no diálogo com as figuras familiares de seu primeiro ambiente, tipicamente interiorano; de outro, a visão intelectualizada oferecida pelos estudos superiores e as práticas religiosas muito mais elaboradas cultivadas na casa de formação.
É provável que os anos de estudo e a vivência no ambiente seminarístico – pessoas, costumes, valores, etc. – tenham recalcado as vivências fundantes e carregadas de mistério da infância. Ao longo das conversas terapêuticas, porém, após certo tempo de elaboração e meio de repente, a figura da benzedeira retorna nos sonhos de Melquior e teima em parecer. Ela passa a fazer parte também de suas narrativas, em episódios meio olvidados que voltam à sua memória. Não só ela; também a figura do pai, da mãe, dos irmãos e do padre reaparecem. Personagens bíblicos femininos e cenas narradas nos Evangelhos afloram em contextos pessoais interessantes, associando-se ao cenário de diálogos vivos que Melquior passa a entabular consigo e com sua história de vida. Melquior tem dificuldades em dar voz efetiva a estes personagens aparentemente novos que teimam em retornar. É o caso, para citar exemplos concretos, de personagens como algumas mulheres da Bíblia, do profeta Elias e do homem possesso de quem Jesus expulsa o demônio. Ao negar voz a estes personagens que vinham do mais fundo, Melquior estancava o diálogo, o que tornava rija e defensiva a capacidade de dialogar de seu self dialógico. A benzedeira não ”combinava” com a fala teológica e social da Igreja e a visão intelectualizada que Melquior aprendeu e fez racionalmente sua em seus longos anos de estudos e tirocínio.
Como acentuam Hermans (1993) e, em outro contexto, Ian Barbour (2004: 172), a pessoa só pode ser e se reconhecer como ela é de fato se está em diálogo com os outros com quem convive em uma comunidade de agentes. Ora, dos interlocutores com quem Melquior dialoga fazem parte efetiva personagens de varias comunidades culturais e religiosas. Algumas parecem nascer diretamente dos textos bíblicos que o impressionam e questionam. Esses, ele tem dificuldade em aceitar como interlocutores. Não percebe em um primeiro momento da psicoterapia que, ao negar acesso exatamente a esses personagens, ele está brecando as possibilidades de retomar a construção de sua pessoa em sua integridade.
Dois teólogos[5] sensíveis à dimensão psicológica da religião - Richard Niebuhr e Alsdair MacIntyre -, valendo-se do psicólogo social George Herbert Mead, afirmam que a identidade religiosa é estabelecida pelas historias que contamos, pelas narrativas de que cada um de nós é o tema. Não só. Analogamente ao que pensam os psicólogos da religião atentos à influência da cultura, também estes teólogos são de opinião que no processo de crescimento religioso as histórias de cada pessoa sempre envolvem a de muitas outras. Trata-se de um processo complexo que pode, em princípio, tanto impedir quanto favorecer o amadurecimento e integração do self vocacional, ou seja, da visão de si que permite a alguém como o seminarista Melquior dizer que o desejo de ser padre nessa congregação bem concreta é dele próprio, embora tenha suas raízes em intercâmbios mais inconscientes que conscientes com personagens com quem dialogou em sua infância.
O contexto religioso surge, desde sua origem, como reparador de feridas. Barbour (2004: 172) relembra que a teologia cristã teve sempre consciência deste fato, uma vez que sublinha que Deus fala a quem crê através de gestos concretos e engajados. Deus, porém, não cicatriza as feridas se não for feita a devida assepsia anterior ao curativo. Preparar o terreno, arar a terra, são metáforas vivas do self múltiplo e móvel. Melquior, ao resistir a rever suas feridas, em especial ao se recusar a refazer sua não-aceitação do pai, perpetuava o monólogo no qual havia um único personagem: ele mesmo, vítima que aspirava ser salva a partir de cima e de fora e não desde baixo e de dentro. Melquior só dialogava com a própria leitura dos fatos que vivera. Isto era, em si, de se esperar, devido à forte frustração que ele vivia. Frustração que se enraizava no gap entre suas expectativas e desejos e a oferta ou base concreta que seu ambiente familiar lhe havia oferecido. Com seus irmãos, não acontecia o que acontecia a ele; estes levavam a vida normal de meninos da roça sem recusas e amarras neuróticas. Já ele, Melquior, buscava segurança espelhando-se em modelos externos como o padre da igreja e a benzedeira, ou em figuras de sua intimidade – a avó, a mãe e o pai –, mas sem se perceber como um self autônomo. Todas essas figuras influenciaram e influenciam seu vínculo com ideal de ser padre, mas só quando esta influência se materializou de maneira consciente em seu comportamento amoroso para com os fiéis, no esmero na Liturgia e na identificação mais adulta com um sacerdote e professor respeitado pela comunidade intelectual da Igreja, é que Melquior começou a lograr ser ele mesmo, harmonizando a polifonia de vozes que o inspiravam em um nível não-pessoal.
O amadurecimento psicológico e espiritual de um seminarista católico difere muito do que se supõe no itinerário de um monge budista, que deve confrontar-se com o Nada. A teologia da vocação presbiteral e sua boa prática de acompanhamento acentuam que a identidade da vocação cristã se confirma é através do relacionamento do jovem com a comunidade e com os irmãos/ãs que encontra nas situações concretas em que vai vivendo. È através dessa teia (nunca sem ela!) que, em última análise, ele estabelece um diálogo de fé, profundamente humanizante, com aquele a quem chamamos de Deus.
Estaremos fazendo Psicologia cultural da Religião no contexto do atendimento psicoterapêutico quando tentamos, juntamente com o cliente, compreender desde dentro sua história de vida, a intrincada trama do surgimento e da elaboração de seu ideal vocacional. Por isso, a ação do psicólogo clínico que atende um seminarista é mais útil ao seu desenvolvimento humano-afetivo e religioso se levar ativamente em conta os contextos de seu itinerário cultural e pessoal de origem, em especial os que podem estar sendo negados ou mal conscientizados. Ajudar o seminarista a tomar consciência de quanto as figuras culturalmente influentes atuam na configuração de suas escolhas religiosas ajuda mais do que insistir em esquemas e diagnósticos influenciados por concepções e leituras de natureza patológica, sejam eles médicos, psicológicos ou teológicos. O mesmo se diga de tentativas de encarar as dificuldades do amadurecimento vocacional como algo apenas ”espiritual”. Ambos os enquadramentos diminuem as chances de o cliente superar o autocentramento de seu self, o que, seguramente, o impedirá psicológica e espiritualmente de ser, quando ordenado presbítero, alguém ”para os outros”, como propõe a Igreja, ao apontar para o modelo de Jesus, o Bom Pastor.
A teoria do self dialógico, ao explorar as situações culturais concretas em que se dá o diálogo do indivíduo consigo próprio e com os demais, considera três perspectivas que merecem especial consideração no caso dos seminaristas: a) considera as circunstâncias, hábitos a padrões específicos da instituição de formação religiosa em que o jovem passa a viver; b) leva em conta que o jovem, ao entrar em um seminário, é envolvido de forma abrangente e inusitada por uma instituição que pretende moldar toda a sua pessoa desde algo culturalmente de fora (as tradições, estilos de vida, valores e objetivos da própria instituição); c) e tem como objetivo pedagógico essencial cuidar que as relações dialógicas dos formandos com os formadores - representantes e mediadores da experiência fundante e do carisma do novo grupo - possam permitir ao jovem uma amadurecimento e assimilação que vem de dentro e que tenha no sujeito suas fonte própria de sentido. É uma trama relacional complexa que pode ser iluminada de muitos pontos de vista, inclusive o psicanalítico (DEL FRARO 2008: 628-631).
O psicoterapeuta, por estar trabalhando desde os pequenos detalhes da vida de seu paciente, pode tender a não prestar atenção no que dizem psicólogos sociais que salientam – até ao exagero - o caráter totalizante da instituição religiosa. O conceito de instituição total, do conhecido Goffman, foi aplicado repetidamente ao caso dos seminários católicos e, por vezes com razão. Sílvio J. Benelli (2006, 2007), autor de uma pesquisa de doutorado sobre o assunto, valendo-se de categorias analíticas de Goffman e das bem mais radicais categorias de Foucault, chega a descrever o seminário católico como uma instituição totalitária e repressiva na qual pouco ou nenhum espaço é dado à liberdade e à subjetividade do jovem.
Sem entrar nesta linha de interpretação - que me parece exagerada, embora possa ser dada -, prefiro ficar com a teoria do self dialógico, assim como a define Belzen. É uma aproximação que, sem negar a possibilidade de ambientes sufocadores da pessoa, mostra que, nas mais das vezes, são preservados espaços nos quais a criatividade do self pode vencer outras forças internas e externas de inércia e retrocesso no ser humano:
O conhecimento do self dialógico mostra que o ser humano vive em múltiplos mundos sociais, habitados por outros tanto reais quanto imaginários, pessoas conhecidas seja do passado, seja das histórias pelas quais se vive. Se a pessoa é religiosa ou ao menos, familiarizada com algum tipo de religião, ele ou ela podem travar relacionamentos com deuses, espíritos, autoridades religiosas e podem conduzir um diálogo com elas e todos podem fazer parte de uma construção narrativa do mundo. (BELZEN 2003:10)
Mesmo pesquisadores que vêm das Neurociências tendem a defender hipóteses que caminham na mesma direção, só que se baseando em abordagens à primeira vista diametralmente opostas às empregadas por psicólogos culturalistas, bem como por cientistas sociais e teólogos. As Neurociências representam um desenvolvimento importante porque trazem à tona uma dimensão relegada a um distante segundo plano em certas considerações sobre uma dimensão indispensável do amadurecimento humano, inclusive a da religiosidade: a corporeidade em toda sua complexidade, o que, sem dúvida, representa séria lacuna. Nesse sentido, eis o que escreve o neurofisiólogo espanhol Francisco Vila, referindo-se a experiências místicas por ele estudadas, experiências que guardam semelhança marcante com as vividas por Melquior, em especial na primeira fase de sua vida:
Muitos autores que escreveram sobre o tema da experiência mística insistem na enorme semelhança entre os fenômenos que se produzem nas diversas culturas, religiões e épocas da humanidade. Mas há diversidade de opiniões e outro grupo de autores não crêem que todas as experiências místicas tenham um mesmo denominador comum. Evidentemente, se partirmos das bases de que todas têm um substrato cerebral, o lógico é assumir denominadores comuns que se baseiam na similaridade das estruturas cerebrais que sustentam esta experiência. Também se deve pensar que a diferente formação cultural dos sujeitos se expressa na forma de vivê-las e na forma como esta experiência é transmitida, contando-se ainda com o fato de que a experiência também pode ser diversa, como é o caso de um budista que entra em contato com o Nada em comparação com um místico cristão, para quem o objetivo final é a união com Cristo. (VILA 2002: 181).
De minha experiência clínica, enriquecida pelo uso mais sistemático da teoria do self dialógico, fica uma conclusão que gostaria de deixar ao leitor. Ela recobre uma das tarefas mais cruciais para quem atende em psicoterapia pessoas fortemente envolvidas com ideais religiosos. Talvez seja esta a intuição de fundo que me fez escrever este artigo: para compreender as nuances que envolvem o amadurecimento vocacional integral de muitos jovens que sentem o desejo de assumir a vida religiosa como modo próprio de estar no mundo, é preciso antes ”limpar o terreno” para assim poder
(...) detectar se, porque e em que medida um ou vários relacionamentos com significantes religiosos constituem uma parte essencial da construção narrativa do mundo de alguém, o que este lugar é na organização geral de seu self e porque, como e quando tais posições do EU se desenvolverão. (BELZEN 2003: 11)
Ao que parece, o uso da teoria do self dialógico em contextos culturais como o brasileiro - ou melhor, os brasileiros - pode ser de grande utilidade por viabilizar a ampliação do diálogo com as alteridades ocultas em modos desadaptados de funcionamento psícorreligioso. Não perdoar o pai - como fazia Melquior - não é, em si, fruto de uma decisão ou recusa consciente e intencional. Tal recusa não pode ser tratada como falta moral e, menos ainda, como pecado. É antes, uma dificuldade a ser transposta e para a qual pacientes como Melquior não possuem recursos. Os sonhos, as “meditações” ou mesmo as crises que Melquior pôde explorar ao longo do processo terapêutico foram a porta de entrada para este universo desconhecido que o habitava. Ele se deu conta de que fora criado numa realidade precária, caracterizada por três fortes pontos: a) a espiritualidade popular de seu meio-ambiente muito bem representada pela benzedeira que voltou um tanto repentinamente a ser personagem de seus sonhos e recordações; b) a calma carinhosa e meticulosa de sua avó, a figura junto à qual encontrou acolhida em suas aflições e medos infantis e; c) o senso estético relativo aos modos de sua avó ao lidar com os rituais culinários de uma dona de casa que se assemelhavam, na elaboração de Mequior, à liturgia prazerosa que ele passou a cultivar no acompanhamento de comunidades ao seu cuidado.
De outro lado, porém, Melquior foi vítima de: a) uma formação catequética rígida que se baseava no pecado e na recusa assustada do mundo, inclusive o de seus irmãos que levavam vida comum enquanto ele se tornava um menino diferente que encontrava alívio na beatice; b) foi vítima da falta de recursos internos por parte de seu pai, um carente social, que trabalhava arduamente como tratorista para sustentar a família, mas que era um pai e um marido ausente; e c) da insuficiência da mãe, que não conseguia se impor como mulher e esposa ante o marido prepotente e omisso em seus deveres dentro de casa. Melquior percebeu aos poucos, repassando as narrativas antigas e novas de seu dia-a-dia, que seu pai era considerado inepto pela sua própria esposa (mãe de Melquior) e que sua mãe, na medida em que via o filho ter sucesso nos estudos e na preparação ao sacerdócio, transferia para ele, Melquior, a responsabilidade de ser para ela uma garantia de felicidade na vida (dela, mãe).
Outro elemento merece reparo no processo vivido por Melquior, o da culpa que o perseguia, sem que disto se desse inteira conta. Culpa acionada pelo inconsciente da mãe, na medida em que esta exigia dele e de seus irmãos assumir a valorização de um pai que não fazia por merecer. Mais de uma vez Melquior narrou como sua mãe cobrava deles comportamentos externos de apreço pelo pai, como abraçá-lo no Dia dos Pais e pedir a benção à noite. Culpa reforçada pela catequese que falava de um Deus Pai bondoso, que, de forma alguma, Melquior sentia como tal. E, por último, mas igualmente importante, culpa vivida em primeira pessoa pela “ogeriza” que tinha pelo pai. Eram pesos de diversa natureza que ele carregava e o levavam a ver-se como alguém errado e pecador, um anjo torto a caminhar pela vida. Na medida em que foi crescendo, ampliando seus estudos e se tornando independente do ambiente rural em que nasceu, ele se vestiu com uma falsa capa de indiferença e até de cinismo (”não gosto de meu pai e não quero mudar isto”) que não dava conta de mantê-lo em equilíbrio. Ao contrário, o tornava triste e atormentado por mais tempo, com raros momentos daquela soltura que ele obtém quando estuda o que gosta, cozinha as receitas aprendidas de sua avó ou prepara uma liturgia.
As vivências e o processo de amadurecimento de Melquior não precisam ser dissecados por hipóteses e conceitos abstratos, tidos como científicos, e sim ser multifocados em sua complexa trama histórico-evolutiva[6]. Tampouco a instituição religiosa à qual se afiliou, agora de modo mais consciente, pode esperar ou exigir dele uma elaboração precoce de seus conflitos. Ele não era capaz de perdoar seu pai e precisava mudar seu prisma de visão do mundo, de si próprio e do que transcende a ambos. E, mais, de fazê-lo na perspectiva da espiritualidade cristã que é uma forma muito própria de se compreender como alguém chamado a exercer um papel pessoal no mundo e na história. As questões que Melquior precisava se pôr eram de outra ordem: precisava se perguntar o que havia de fato para ser perdoado (e não só em seu pai!); como sentir ele próprio a experiência do dar e receber o perdão genuíno; como aprender a ter compaixão verdadeira por um pai que sempre o frustrou; interiorizado o sentimento de culpa, uma realidade psicológica, como distingui-lo da visão e do senso pessoal do pecado, uma dimensão só compreensível à luz da fé em um Deus-Pai; se não sentia claramente a fisgada da consciência, como acionar a busca da reparação; estaria ele perdendo a fé e a vocação antes tão forte?; ou, ainda, é possível perdê-la?
Rubio - não nos esqueçamos, um neurocientista (!) - baseando-se no historiador Delumeau e referindo-se a uma situação cultural bem diversa da nossa hoje, afirma algo que ajuda a entender o drama de Melquior:
No coração desta visão pessimista (da fase histórica medieval estudada por Delumeau) está a firme convicção de que o ser humano é grandemente pecaminoso. De fato, na antropologia cristã e na vida do cristão, o pecado passou a ocupar o centro da preocupação, tornando-se uma realidade cultural central. (RUBIO 2009:191)
Mario Aletti, psicanalista e psicólogo da religião da Universidade Católica de Milão, seguindo uma pista indicada por Antoine Vergote, padre e psicanalista belga, afirma que a fé religiosa é um posicionamento de confiança que necessariamente se exprime no interior de um sistema cultural definido. Assim,“o homem não inventa as palavras com que diz Deus: ele as recebe”. (ALETTI 2004: 41)
É tarefa clínica crucial para os que atendem pessoas dedicadas à vida religiosa compreender as relações entre as imagens parentais em geral e as experiências concretas de quem crê com as imagens do Deus-Pai culturalmente transmitidas pelo tipo de religiosidade cristã que recebeu. Este diálogo é necessário, posto que as palavras nem sempre são claras o suficiente para fazer a ponte entre o que é recebido culturalmente e o que o indivíduo deve recriar (ou imaginativamente construir) para ser uma pessoa de fé.
Até mesmo a palavra fé passa por evidentes limites culturais e linguísticos, como refere Aletti (2004: 40), exemplificando que na língua holandesa há uma única palavra para fé e crença: Geloof. Em nossa cultura, a palavra fé tem uma tonalidade sagrada e, por vezes, impede a pessoa de reavaliar certas crenças aprendidas que mais obstruem o diálogo com o Outro do que tornam possível o que é imprescindível na fé: dialogar pessoalmente com Deus. Aletti assegura algo absolutamente fundamental, que também eu estou querendo mostrar neste artigo:
“Não existe um resultado natural e uma reversão garantida das experiências parentais para a paternidade de Deus, da matriz relacional (decorrente das interlocuções do self dialógico com as pessoas-chave que encontrou) para o posicionamento da fé de quem crê”. (ALETTI 2004:34)
Não basta ter fé para amadurecer na vocação; o que é preciso é poder dialogar com as crenças advindas do mundo relacional e cultural no qual o vocacionado esteve desde sempre embebido, para então poder dialogar com este interlocutor misterioso a quem chamamos de Deus. Encontro notável coincidência entre as teses destes psicanalistas e a leitura que um teólogo como Rubio desenvolve em um livro de útil leitura para psicólogos e terapeutas (RUBIO 2008).
A teoria do self dialógico é ferramenta útil para abrir o diálogo com esta multiplicidade de vozes que habita o seminarista contemporâneo colocado ante uma tarefa de múltiplas facetas: ser feliz e sincero, aderir a uma instituição que o escolhe e é escolhida por ele, corresponder ao que dele se espera sem deixar de corresponder ao que espera de si mesmo, como um self mutante e transitivo na ação e no tempo.
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[*] Doutoranda em Ciências da Religião – PUC/SP
[1] O ITA – Instituto Terapêutico Acolher reúne desde o ano 1999 um grupo de psicoterapeutas de São Paulo – religiosos/as e leigos/as que dão atendimento clínico regular a padres, religiosos/as e seminaristas da Igreja Católica. Com base nos mais de 700 atendimentos já realizados, o ITA organiza, desde 2004, quatro encontros semestrais, aos sábados, entre psicólogos e formadores para supervisão de casos clínicos concretos e, simultaneamente, para aprofundamento teórico para facilitação de uma colaboração mais lúcida entre formadores/as e psicólogos/as, guardadas as especificidades de cada intervenção.
[2] Este Grupo de Pesquisa, credenciado pelo CNPq, é coordenado pelo Prof.Dr.Edênio Valle, da PUC-SP. Tem como objetivo aprofundar as especificidades da dimensão religiosa de pessoas ligadas à Vida Religiosa assim como essa se dá no seio da Igreja Católica, uma instituição que tem características e exigências próprias em geral não levadas em conta por psicoterapeutas que a desconhecem.
[3] Trata-se do projeto de trabalho para minha tese de doutorado em Ciências da Religião na PUC-SP.
[4] O sentir-com (“mitfühlen”) é descrito por Sandor Ferenczi, psicanalista contemporâneo de Freud, como um poder de penetrar profundamente nas sensações dos outros e um desejo compulsivo de ajudar que acaba fazendo com que os pacientes percam o medo de amadurecer. Fazemos isto no acompanhamento autêntico ao paciente e o mesmo aprende a ter compaixão pela função espelho. Cuidar do outro como quem bem cuida de si mesmo é espiritualidade própria da subjetividade contemporânea.
[5] Estes autores são defensores da Teologia Narrativa adotada também pelo teólogo brasileiro J. B. Libânio (1996), para quem as histórias pessoais de uma pessoa se inscrevem no contexto da comunidade na qual ela constrói seu eu narrativo.
[6] Em recente comentário, esbocei as primeiras ideias sobre a necessidade da interlocução entre as Ciências Humanas entre si e com a Teologia e ainda, a importância da visão cultural na abordagem psicológica do jovem de hoje na atual condição de nivelamento axiológico da cultura pós-moderna. Cf. Massih 2008.