SIMMEL, Georg. Religião – ensaios, vol. 1. São Paulo: Olho d´Água, 2010. ISBN 978-85-7642-018-7. 148 p.

por Antônio Flávio Pierucci[*]

1. É inevitável. Mais cedo ou mais tarde uma dúvida começa a tomar corpo na mente do leitor à medida que seus olhos, duplamente deslumbrados com a beleza da escrita e a fulgurância dos estalos teóricos em cascata, vão percorrendo o primeiro volume de ensaios sobre religião de Georg Simmel, que acaba de ser publicado pela Editora Olho d'Água. Como classificar, em que especialidade cognitiva encaixar as considerações sobre religião deixadas por esse luminar da Sociologia clássica alemã? É mesmo Sociologia o que o leitor tem pela frente? Não seria Psicologia, tem certeza? Psicologia Social, quem sabe... Talvez Filosofia, Filosofia da Religião... ou uma fenomenologia a mais?

No meio acadêmico dos cientistas sociais de vários países já se tornou lugar comum aludir à ambiguidade da inserção disciplinar da "Sociologia" de Simmel. Ainda ecoa, e sonoramente, a disjunção entre sua posição de destaque na cena intelectual alemã e a posição marginal por ele ocupada no milieu universitário de seu país. Em 1970, o sociólogo norte-americano Lewis Coser disparou a expressão "outsider" para grifar a comentada posição de Simmel no mundo acadêmico alemão de sua época. Praticamente há consenso entre biógrafos e comentaristas quanto à ambiguidade existente entre sua posição social de sociólogo acadêmico e a de intelectual mundano.

A dificuldade de uma classificação mais nítida da especialidade profissional do autor também atinge partes de sua produção bibliográfica. Não escapam dessa incerteza os escritos que aqui nos interessam de imediato: seus ensaios sobre religião. De todo modo, importa aqui ressaltar que, a exemplo dos outros fundadores da Sociologia europeia, a religião não podia ficar de fora dos seus motivos temáticos. Assim como para todos eles, ela não podia escapar do foco dos interesses de conhecimento do sociólogo Simmel. Só que, por ele, um vitalista em Filosofia, a religião será analisada com o apoio de conceitos que relevam primeiramente do seu modo de conceber a pluralidade com que a vida — o elã vital — assume formas objetivadas, conceitos por conseguinte torneados por sua particularíssima concepção de uma Sociologia Formal.

2. Seja como for, a maioria dos estudiosos de Simmel concorda num ponto: a ideia central dos seus ensaios sobre religião reside na enfática distinção, que ele faz com nitidez e explora com largueza mental, entre religião e religiosidade.

A pretensão teórica de Simmel é a de que a religião (Die Religion, escandida assim mesmo, num altaneiro singular) constitui uma categoria fundadora e formadora da experiência humana; só que ela resulta de uma "função humana subjetiva" que ele chama de "religiosidade", termo corrente do qual ele se apropria de um modo extremamente peculiar para designar uma função caracteristicamente humana que só pode se completar na interioridade mais íntima do indivíduo (p.96).

A religião não cria a religiosidade, é a religiosidade que engendra a religião. Ela antecede a religião e por isso não pode ser chamada de religião. Transcende a religião e a fundamenta, mas nem por isso pode ser reduzida a mera infraestrutura subjetiva da religião objetiva. Religiosidade é aquele fenômeno religioso que habita as profundezas da alma e que ainda não pode ser chamado de religião, aquele fundo profundo que pulsa na alma da pessoa religiosa, um não-lugar insondável onde podemos encontrar a religião enquanto ela "ainda não é religião": "die Religion, bevor sie Religion ist".

3. Ora bem. Se está presente na visada teórica de Simmel essa "pessoa religiosa" assim descrita, das duas uma: (1) ou essa pessoa compartilha com todos os seres humanos uma mesma natureza humana genericamente religiosa, e, assim sendo, todo ser humano enquanto homo sapiens seria também e necessariamente homo religiosus, isto é, religioso por natureza humana genérica; (2) ou aquele indivíduo em especial é alguém que possui essa qualidade de ser um ser que é religioso, de ser um indivíduo que se distingue de outros e com outros se identifica por ter justamente essa capacidade de se sentir ou experimentar a si mesmo como alguém que é religioso por natureza psicológica individual, ao lado e ao largo de tantos alguéns não religiosos, como Simmel, no mesmo texto, afirma existirem.

Não deve ser por acaso que Simmel vive pontuando suas reflexões sobre a religiosidade comparando-a com a aptidão de alguns indivíduos para o erotismo e, mais frequentemente ainda, com a capacidade daqueles que conseguem se sentir artistas e se expressar artisticamente. De suas insistentes comparações entre o mundo da religião e o mundo da arte pode-se concluir tranquilamente que nem todos — para não dizer só uns poucos felizardos — conseguem ser assim, ficar assim e fazer assim. Nos ensaios da coletânea presentemente lançada, há várias passagens em que Simmel admite que não é todo mundo que vai poder mostrar que seu "ser" funciona religiosamente. São apenas os seres humanos "verdadeiramente religiosos" (p.17) que trazem em seu íntimo esse elemento humano mais profundo que é a religiosidade. A religiosidade se constitui no ser fundamental da alma religiosa "assim como o caráter intrínseco de um artista se manifesta na correlação entre o impulso criador e a execução objetiva da obra de arte" (p.12).

É sobretudo nas recorrentes comparações entre a religião e a arte, entre o homem religioso e o artista, que o texto de Simmel nos autoriza a pelo menos tentar libertar sua "teoria da religiosidade" da armadilha metafísica do homo religiosus em que muitas vezes se enreda, acabando presa numa espécie de fenomenologia que não se resolve a contento, nem numa sociologia da religião, nem mesmo numa psicologia social da religião.

Na condição de sociólogo da religião que sou por profissão, compartilho da modéstia científica antigeneralista própria da Sociologia Científica da Religião no que tange à diversidade da qualificação religiosa das pessoas. Talvez por isso eu tenha me desafiado a encontrar nesses ensaios de Simmel alguns estalos dele, que me ajudassem na tarefa que me propus de "sociologizar um pouco mais" essas suas considerações fenomenológicas sobre "A" religião. Creio ter-me deparado com tais estalos toda vez que ele equipara o indivíduo religioso ao indivíduo que é artista: aí, por fugazes instantes, vejo que no texto de Simmel passa a valer, denso de empiria, o argumento sociológico não-generalizador (melhor dizendo, “des-generalizador”), mesmo sem aquele entusiasmo retórico que o grande autor derrama nas passagens em que enaltece, em vez da diversidade da qualificação religiosa das pessoas, a universalidade da religiosidade humana.

Com Simmel também dá para pensar que a religiosidade não é uma propriedade humana genérica e democraticamente distribuída pela totalidade dos seres humanos, tal como a racionalidade ou a risibilidade. Do mesmo modo que o ouvido musical, para quem o tem, do mesmo modo que (em outro exemplo tirado do próprio Simmel, p.16) o doce balanço do andar de uma garota cheia de graça saca seu charme de uma fonte sua ainda mais intimamente pessoal e individual, a religiosidade é uma qualidade específica de alguns, não de todos. É uma qualidade particular que individualiza uma alma particular. Religiosidade é dom especial ou, como se costuma dizer em jargão weberiano popularizado, "um carisma da pessoa". Max Weber, amigo de Simmel, costumava dizer de si mesmo que não tinha ouvido musical para religião: "Ich bin zwar religiös absolut unmusikalisch" ("eu sou absolutamente sem ouvido musical para religião"). Quem disse isso sabia do que estava falando.

Para a Sociologia da Religião não-generalista, além da diversidade religiosa, que implica necessariamente levar em conta a diversidade das vias de salvação, cuja diferenciação as subdivide basicamente em ascese (via ativa) e mística (via passiva), uma das experiências fundamentais de toda religiosidade é, repito, a diversidade da qualificação religiosa das pessoas. Assim como nem toda pessoa possui o carisma para provocar em si um estado de transe ou êxtase religioso, nem toda pessoa tem o carisma para manter contínua e constantemente na vida cotidiana aquele habitus moral especificamente religioso que garante a certeza duradoura da graça salvífica. Com isso fica dito que certos estados religiosos são acessíveis apenas a uma aristocracia de pessoas religiosamente qualificadas. Daí o fato sociológico de que toda religião historicamente objetivada, isto é, toda comunidade religiosamente constituída, é sempre um grupo humano estratificado em camadas de status religiosos distintos, que se dispõem sociologicamente numa escala de graus superiores e inferiores.

É Simmel quem diz isso, deixando aflorar uma faceta de sociólogo que também nele é sensível às diferenças entre os seres humanos. Sem recorrer a uma classificação sistemática, ao longo de seus ensaios sobre religião ele não deixa de se referir a uma escala de indivíduos dotados de valor religioso diferenciado — uma escala descendente que vai dos indivíduos "verdadeiramente religiosos" (p.17; 19), também referidos por ele como pessoas "especificamente religiosas" (p.16) para as quais a religião "é a própria vida", passa pela "religiosidade da pessoa média" (p.19), camada essa estatisticamente extensa na qual Simmel situa as "pessoas com religiosidade fraca" (p.16), as quais compõem "a grande maioria dos crentes" - "a massa" (p.19) -, até chegar aos que estão colocados no ponto mais baixo da escala, os de "religiosidade nula" (p.16). Notar bem: religiosidade nula. Vale a pena registrar que na tradução inglesa Simmel aparece classificando esses últimos assim: "people who are not at all religious" (p.15). Pessoas que não são religiosas de jeito nenhum.


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Notas

[*] Professor Titular do Departamento de Sociologia da USP