No presente artigo, gostaria de desenvolver esse argumento em três etapas. Primeiramente, farei uma apresentação esquemática dos pressupostos ou preconceitos sobre o funcionamento da moderna democracia secular europeia, que considero problemáticos. Em seguida, contrastarei tais pressupostos seculares basicamente normativos com a realidade empírica das democracias europeias, no passado e na atualidade. Por último, um exame dos debates contemporâneos na Europa, nos quais a religião voltou a ser uma questão polêmica, revela, em minha perspectiva, que a religião se torna um problema ou é entendida como uma ameaça para a democracia não tanto devido ao caráter não-democrático de certas práticas e/ou crenças religiosas, mas devido a pressupostos secularistas sobre o lugar reservado à religião nas modernas sociedades democráticas seculares.
Palavras-chave: democracia, Europa, religião, secularização
In this article I would like to elaborate this argument in three steps. First, I will offer a schematic presentation of those assumptions or prejudices about the proper functioning of modern secular European democracy which I consider to be problematic. Second, I will contrast these mainly normative secularist assumptions with the empirical reality of European democracies, past and present. Finally, a look at contemporary debates in Europe in which religion has once again become a contentious issue reveals, in my view, that religion becomes problematic or is assumed to be a threat to democracy not so much because of the undemocratic character of particular religious practices and/or beliefs, but rather because of secularist assumptions about the proper place of religion in modern secular democratic societies.
O título do meu artigo já sugere que o problema da religião em relação à democracia pode não ser um problema real intrínseco à própria religião, mas, antes, um problema ligado a pressupostos seculares bastante difundidos sobre religião, democracia e suas relações. Pelo menos na Europa, não há muita evidência hoje de que a religião em si seja problemática para a democracia europeia, mas é o fato de se tomar como pressuposto que a democracia deva ser secular que, em meu ponto de vista, é problemático e é isso que tende a fazer da religião um problema.
A narrativa mais divulgada, e que é oferecida tanto como explicação genealógica quanto como justificativa normativa para o caráter secular da democracia europeia, apresenta a seguinte estrutura temática. Em um passado distante, na Europa Medieval, houve uma fusão – como é típico das sociedades pré-modernas – entre religião e política. Mas essa fusão, sob as novas condições da diversidade religiosa, do sectarismo extremo e do conflito criado pela Reforma Protestante, levou às terríveis, brutais e intermináveis guerras do início da Era Moderna que arruinaram as sociedades europeias. A secularização do Estado foi a resposta adequada a essa experiência catastrófica que aparentemente marcou de forma indelével a memória coletiva das sociedades europeias. O Iluminismo encarregou-se do resto. Os europeus modernos aprenderam a separar religião, política e ciência. E, mais importante, aprenderam a domar as paixões religiosas e a dissipar o fanatismo obscurantista, relegando a religião à proteção da esfera privada e criando uma esfera pública aberta, liberal e secular, onde predominam a liberdade de expressão e a razão pública. São esses os alicerces seculares propícios sobre os quais a democracia cresce e se fortalece. Como mostram as histórias trágicas de violentos conflitos religiosos no mundo todo, o malfadado retorno da religião à esfera pública deverá ser administrado com muito cuidado, caso se não queira minar esses frágeis alicerces.
E assim se configura e se dissemina o relato da moderna separação entre religião e política. Há, é claro, algumas versões mais elaboradas e outras mais simples da história da secularização da Europa, mas todas elas retratam essa separação como a grande conquista da modernidade secular ocidental. A versão estadunidense da história, que combina de forma singular o alto muro que separa Igreja e Estado com uma sociedade religiosa excepcionalmente vibrante, torna a narrativa ocidental um pouco mais complexa. Mas sempre se pode recorrer ao conveniente tropo do excepcionalismo norte-americano para atenuar a dissonância. Além disso, até bem pouco tempo, a história da secularização estava inserida numa narrativa ainda mais ampla dos processos teleológicos gerais da modernização social e do progressivo desenvolvimento humano. O Ocidente simplesmente mostrou o futuro para o resto do mundo. Hoje, há um reconhecimento cada vez maior de que podemos estar entrando em uma era pós-secular global e que, como Mark Lilla indicou na matéria de capa do The New York Times Magazine, em agosto de 2007, a grande separação entre religião e política pode ser uma conquista histórica bastante singular e excepcional, que deve ser valorizada e protegida (LILLA 2007).
Embora um tanto imprecisa como reconstrução histórica fatual, essa narrativa básica serve como um dos mitos fundacionais da identidade europeia contemporânea[1]. Deveria ser óbvio que ela é, de fato, um mito histórico. As guerras religiosas do início da Era Moderna, especialmente a Guerra dos Trinta Anos (1618-48), não produziram, pelo menos não de imediato, um Estado secular, mas um Estado confessional. O princípio cuius regio eius religio, criado pela primeira vez na Paz de Augsburgo e reiterado no Tratado de Vestfália, não é um princípio formador do moderno Estado democrático secular, mas antes, do moderno Estado confessional territorial absolutista. Em nenhum lugar da Europa o conflito religioso levou à secularização, mas sim à confessionalização do Estado e à territorialização das religiões e dos povos. Ademais, esse modelo duplo de confessionalização e territorialização já estava bem estabelecido antes das guerras religiosas e mesmo antes da Reforma Protestante. O Estado Católico espanhol sob os reis católicos serve como o primeiro modelo paradigmático de confessionalização do Estado e de territorialização religiosa. A expulsão dos judeus e muçulmanos espanhóis que se recusaram a se converter ao Catolicismo é a consequência lógica de tal dinâmica de formação do Estado. Nesse sentido, a limpeza étnico-religiosa se coloca na própria origem do Estado europeu do início da Modernidade. Dessa perspectiva, as guerras religiosas poderiam ser mais adequadamente denominadas guerras de formação do Estado europeu do princípio da era moderna. Às minorias religiosas apreendidas no território confessional errado não era dada tolerância secular e muito menos liberdade de religião, mas a liberdade de emigrar. A comunidade polaco-lituana, governada por suas aristocracias multiconfessionais católicas, protestante-luteranas e ortodoxas, é a única exceção do início da modernidade que resistiu à dinâmica geral da Europa de confessionalização e ofereceu refúgio às minorias religiosas e às seitas radicais de toda a Europa, muito antes de a América do Norte oferecer um porto seguro.
A secularização do Estado europeu chegaria, se é que se pode falar assim, muito depois, e não necessariamente contribuiria para a democratização, como os regimes seculares do tipo soviético claramente demonstram. Com maior frequência, foram os grupos religiosos e a política religiosa que contribuíram – às vezes paradoxalmente e sem intenção – para a democratização e secularização da política em muitas sociedades europeias (VEER 2008). De fato, democratização e secularização são duas dinâmicas que nem sempre vêm de mãos dadas. Às vezes encontramos democratização sem secularização, e muito frequentemente secularização sem democratização, uma dissociação que no mínimo questiona a premissa de que um Estado secular é uma condição suficiente ou necessária para a democracia. Mas o objetivo de meus comentários críticos não é corrigir o registro histórico, e, menos ainda, oferecer uma reconstrução histórica mais precisa dos complexos desenvolvimentos europeus. Minha meta é, antes, ressaltar como, a despeito de sua imprecisão óbvia, essa narrativa comum da secularização da Europa não só é repetida com frequência pelas elites europeias, mas parece estar profundamente arraigada na memória coletiva dos indivíduos de todas as sociedades desse continente.
É surpreendente observar quão disseminado, por todo território europeu, é o entendimento de que religião significa intolerância e gera conflito. Segundo a pesquisa de opinião pública do Programa Internacional de Pesquisa Social (ISSP) de 1998, a maioria esmagadora dos europeus, mais de dois terços da população de cada país da Europa Ocidental, defende a visão de que religião é sinônimo de intolerância (GREELY 2002:78). Uma vez que as pessoas tendem a não reconhecer expressamente a própria intolerância, pode-se concluir que, ao expressar tal opinião, os europeus estejam pensando na religião dos outros, ou, então, recorrendo a uma lembrança seletiva retrospectiva de seu passado religioso, que eles consideram já terem felizmente superado. É ainda mais impressionante que a maior parte da população dos países da Europa Ocidental, com a exceção significativa da Noruega e da Suécia, partilha a visão de que religião gera conflito. É interessante que os dinamarqueses se diferenciem claramente de seus vizinhos escandinavos luteranos nos dois aspectos. Eles apresentam um índice mais alto do que qualquer outro país europeu – que chega a 86 % – a respeito da ideia de que religião gera conflito e apresentam o segundo índice mais elevado (79%), depois dos suíços (81%), relativamente à crença de que religião é intolerância. Juntamente com a maioria dos outros países ex-comunistas, os poloneses têm um índice muito abaixo da média ocidental europeia em ambas as questões, o que é notável, em vista da percepção disseminada de que o Catolicismo polonês é intolerante e de que a religião na Polônia tem realmente sido fonte de conflito.
Não pretendo aqui explicar alguns padrões um tanto peculiares: por que os dinamarqueses, por exemplo, mantêm uma visão negativa da religião, a despeito do fato de combinarem uma das taxas mais baixas de frequência à igreja (apenas 2% frequentam a igreja regularmente), com um dos índices mais altos de filiação à igreja em toda a Europa (apenas 12% declaram não ter filiação religiosa, o que representa um alto nível de afiliação à Igreja Dinamarquesa Luterana, em comparação com os níveis de muitos países de fé católica como Polônia, Portugal e Itália); ou por que os suíços têm visões igualmente negativas, embora manifestem níveis relativamente altos de crença religiosa (73% crêem em Deus, uma porcentagem bem acima da média europeia de 65%), um alto nível de frequência à igreja (64% frequentam com regularidade e apenas 5% nunca vão à igreja, números comparáveis aos níveis de países de fé católica, como Polônia e Irlanda) e altos níveis de filiação confessional (apenas 9% declaram não ter filiação religiosa) (GREELY 2002:70-71).
O que parece óbvio é que essa visão negativa e tão difundida da religião como intolerante e indutora de conflito não pode estar arraigada empiricamente na experiência histórica coletiva das sociedades europeias do século XX ou na experiência pessoal vivida da maioria dos europeus contemporâneos. Ela pode ser plausivelmente explicada, entretanto, como um construto secular que tem a função de diferenciar claramente os europeus seculares modernos de outros religiosos – seja dos religiosos europeus pré-modernos ou de religiosos não-europeus contemporâneos, em particular os muçulmanos. Mais surpreendente é a visão abstrata de religião como fonte de conflito violento, considerando-se a experiência histórica real da maior parte das sociedades europeias do século XX. O breve século europeu, de 1914 a 1989 – na feliz expressão de Eric Hobsbawm –, foi de fato um dos períodos mais violentos, sangrentos e genocidas da história da humanidade. Mas não se pode dizer que os terríveis massacres desse século tenham sido causados por fanatismo religioso e intolerância: nem o assassinato sem sentido de milhões de jovens europeus nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial; nem as incontáveis milhões de vítimas do terror bolchevista e comunista através da revolução, da guerra civil, das campanhas de coletivização, da Grande Fome da Ucrânia, dos repetidos ciclos de terror stalinista e do Gulag; nem mesmo o mais inconcebível horror de todos, o holocausto nazista e a conflagração da Segunda Guerra Mundial, culminando no bombardeio nuclear de Hiroshima e Nagasaki. Todos esses conflitos terríveis foram, antes, produto das modernas ideologias seculares.
Ainda assim, os europeus contemporâneos claramente preferem ignorar de forma seletiva as memórias recentes mais inconvenientes do conflito ideológico secular e resgatar memórias remotas de guerras religiosas do início da era moderna na Europa, a fim de compreender os conflitos religiosos que proliferam hoje pelo mundo e cada vez mais o ameaçam. Ao invés de focalizar os contextos estruturais comuns à formação do Estado moderno, os antagonismos geopolíticos entre nações, o nacionalismo moderno e a mobilização política de identidades étnico-culturais e religiosas (processos centrais na história europeia moderna que se globalizaram por meio da expansão colonial da Europa), os europeus parecem preferir atribuir esses conflitos à religião, isto é, ao fundamentalismo religioso e ao fanatismo e intolerância que são supostamente inerentes à religião pré-moderna, um resquício atávico que os modernos europeus seculares iluministas felizmente deixaram para trás. Pode-se suspeitar que a função de tal memória seletiva da história é salvaguardar a percepção das conquistas progressivas da modernidade secular ocidental, oferecendo uma justificativa de autovalidação para a separação secular entre política e religião, como condição para a política liberal democrática moderna, para a paz mundial e para a proteção da liberdade religiosa pessoal.
Mas, quão seculares são os países europeus? Quão altos e sólidos são os muros que separam o Estado nacional da igreja nacional, e a religião da política, em toda a Europa? Até que ponto dever-se-ia atribuir o sucesso indiscutível das democracias ocidentais europeias pós-Segunda Guerra ao triunfo da secularização sobre a religião?
A França é o único país da Europa Ocidental que oficialmente e com orgulho é secular, isto é, que define a si e a sua democracia como reguladas por princípios de laïcité. Em contrapartida, há muitos países europeus com democracias há muito consagradas e que mantiveram igrejas oficiais. Dentre eles estão a Inglaterra e a Escócia, no Reino Unido, e todos os países escandinavos luteranos: Dinamarca, Noruega, Islândia, Finlândia e, até o ano 2000, a Suécia. Dentre as novas democracias, a Grécia também manteve como oficial a Igreja Ortodoxa Grega. Isso significa que, à exceção da Igreja Católica, que evitou a oficialização nas transições recentes (pós-1974) para a democracia no Sul da Europa (Portugal e Espanha) e no Leste Europeu (Polônia, Hungria, República Checa, Eslováquia, Croácia), todos os principais ramos do Cristianismo (anglicano, presbiteriano, luterano, ortodoxo) são reconhecidos oficialmente em algum lugar na Europa, aparentemente sem colocar em risco a democracia nesses países. Entretanto, uma vez que há muitos exemplos históricos de países europeus seculares não democráticos – regimes do tipo comunista são os casos mais óbvios – pode-se afirmar com segurança que a separação total entre Igreja e Estado não é uma condição nem necessária nem suficiente para a democracia.
De fato, poder-se-ia avançar a proposição de que, das duas cláusulas da Primeira Emenda dos EUA, é o livre exercício da religião, ao invés do não estabelecimento de uma religião, que parece ser condição necessária para a democracia. Não existe democracia sem liberdade religiosa. Na verdade, o livre exercício se destaca como um princípio normativo democrático em si mesmo. O princípio do não estabelecimento, inversamente, é defensável e necessário apenas como meio para o livre exercício e para a igualdade de direitos. O não estabelecimento torna-se politicamente necessário para a democracia onde quer que uma religião oficial reclame o monopólio sobre o território do Estado, impeça o livre exercício da religião e desrespeite o princípio da igualdade de direitos para todos os cidadãos. Foi esse o caso da Igreja Católica antes de ela oficialmente reconhecer o princípio da liberdade de religião como direito inalienável do indivíduo. Em outras palavras, princípios seculares per se podem ser defensáveis por razões instrumentais, como meios que visam ao livre exercício, mas não como princípios intrinsecamente democráticos e liberais.
Alfred Stepan destacou que as teorias empíricas mais importantes sobre democracia, de Robert Dahl a Juan Linz, não incluem o secularismo ou a separação rígida como uma das exigências institucionais para a democracia, como tendem a fazer as proeminentes teorias normativas liberais, dentre elas as de John Rawls ou Bruce Ackerman. Como alternativa aos princípios ou normas seculares, Stepan propôs o modelo da dupla tolerância, que ele descreve como “os limites mínimos de liberdade de ação que devem de alguma forma ser esboçados para as instituições políticas vis-à-vis as autoridades religiosas, e para os indivíduos e grupos religiosos vis-à-vis as instituições políticas” (STEPAN 2001:213).
As autoridades religiosas devem tolerar a autonomia dos governos democraticamente eleitos, sem exigir o privilégio de prerrogativas constitucionais para autorizar ou vetar políticas públicas. Instituições políticas democráticas, por sua vez, devem tolerar a autonomia de indivíduos e grupos religiosos no tocante não apenas à adoração em âmbito privado e em total liberdade, mas também à expressão pública de seus valores na sociedade civil e ao apoio a organizações e movimentos da sociedade política, sempre que não sejam violadas normas democráticas e sejam seguidas as leis. Dentro dessa estrutura de autonomia mútua, Stepan conclui, “pode haver uma gama extraordinariamente ampla de padrões concretos de relações entre religião e Estado em sistemas políticos que corresponderiam minimamente a nossa definição de democracia” (STEPAN 2001:217).
Isso é precisamente o que se observa em toda a Europa. Entre os extremos da laïcité francesa e do estabelecimento da Igreja Luterana na Europa nórdica, há todo um leque de padrões diversos de relações Igreja-Estado na educação, na mídia, na saúde, nos serviços sociais e outros, que se configuram como complexos não seculares, tais como a política de pilarização dos Países Baixos, ou o reconhecimento do Estado oficial corporatista das Igrejas católica e protestante na Alemanha (bem como da comunidade judaica em alguns Lander)[3]. Poder-se-ia certamente contestar que as sociedades europeias são de facto secularizadas e, como consequência, o que resta da religião tornou-se tão discreto que tanto a oficialização constitucional como os vários complexos institucionais Igreja-Estado são, a bem da verdade, inócuos, se não completamente irrelevantes. Mas dever-se-ia lembrar que a drástica secularização da maior parte das sociedades da Europa Ocidental deu-se após a consolidação da democracia – não antes – e, portanto, seria incoerente afirmar que a secularização do Estado e da política, bem como a secularização da sociedade, é condição para a democracia.
Na verdade, em algum momento de sua história, a maioria das sociedades europeias continentais manteve partidos confessionais que desempenharam um papel crucial na democratização dessas sociedades. Mesmo os partidos confessionais que no início emergiram como partidos antiliberais, ou pelo menos em termos ideológicos como antidemocráticos – como ocorreu com a maior parte dos partidos católicos no século XIX – acabaram por desempenhar um papel muito importante na democratização de suas sociedades. Esse é o paradoxo da Democracia Cristã, tão bem analisado por Stathis KALYVAS (1996). A mobilização política católica emergiu em quase toda parte como uma reação contra-revolucionária contrária ao liberalismo e a seu ataque anticlerical contra a Igreja Católica. O Catolicismo político, e mesmo o social, foi, de muitas formas, fundamentalista, intransigente e teocrático. Considerando-se a ideologia e a doutrina católicas, não se pode deixar de concluir que Catolicismo e democracia eram diametralmente opostos e irreconciliáveis, conforme o discurso anticatólico protestante não se cansou de enfatizar durante todo o século XIX (CASANOVA 2005). Ainda assim, de alguma forma a dinâmica da disputa eleitoral levou à transformação dos partidos políticos católicos em toda a parte. Esses partidos, por sua vez, ao abraçarem a política democrática, deram uma contribuição fundamental para a consolidação da democracia em seus respectivos países. Com variações significativas, a mesma história se repetiu na Alemanha, Áustria, Holanda, Bélgica e Itália, países nos quais a Democracia Cristã predominou após a Segunda Guerra Mundial.
Quero citar na íntegra a conclusão de Kalyvas, porque ela é profundamente relevante em um momento em que a alegada incompatibilidade entre o Islamismo e a democracia e a suposta natureza antidemocrática dos partidos muçulmanos são, com tanta frequência, publicamente debatidas:
Os partidos Democrata Cristão e Social Democrata... foram inicialmente criados para subverter as democracias liberais; ambos se transformaram em partidos de massa e decidiram participar do processo eleitoral após difíceis e polêmicos debates. Sua decisão teve consequências extraordinárias: os dois partidos integraram massas de eleitores recém-tornados cidadãos aos regimes parlamentares liberais existentes, e ambos perderam sua radicalidade ao longo desse processo, tornando-se parte das próprias instituições que haviam inicialmente rejeitado... a democracia na Europa muitas vezes foi expandida e consolidada por seus inimigos. Essa lição não deve ser ignorada, especialmente por aqueles que estudam os desafios que a transição e consolidação democrática no mundo contemporâneo enfrentam. (KALYAS 1996:12)
Ignora-se também, em grande parte, que o projeto inicial da União Europeia foi um projeto fundamentalmente democrata-cristão, sancionado pelo Vaticano, em um momento de revitalização geral da religião na Europa pós-Segunda Guerra, no contexto geopolítico da Guerra Fria, quando mundo livre e civilização cristã se tornaram sinônimos. De fato, democratas cristãos no governo ou em posições de destaque dos seis países signatários do Tratado de Roma – Alemanha, França, Itália, os países do Benelux – desempenharam um papel central no processo inicial da integração europeia. Mas essa é uma história que os europeus seculares, orgulhosos de haverem superado o passado religioso do qual se sentem livres, aparentemente prefeririam não recordar.
Embora não haja evidências significativas de qualquer espécie de revitalização religiosa na Europa, a religião voltou a ser uma questão de interesse público. Talvez seja prematuro falar em Europa pós-secular, mas certamente é possível perceber uma mudança no espírito do tempo (zeitgeist) europeu. Quando, há mais de uma década, desenvolvi a tese da desprivatização da religião como uma nova tendência global, no início ela não encontrou muita ressonância na Europa. A privatização da religião era simplesmente tida como um pressuposto inquestionável tanto em termos de fato empírico como de norma para as modernas sociedades europeias. O conceito de religião pública na sociedade moderna era ainda muito dissonante e a revitalização religiosa em outras partes podia ser explicada de forma simples, ou melhor, de forma simplista, como a ascensão do fundamentalismo em sociedades ainda não modernas. Mas, recentemente, houve uma mudança perceptível na atitude e atenção por toda a Europa. Com bastante frequência, ficamos sabendo de uma nova grande conferência sobre religião, ou da criação de um centro de pesquisa ou de um projeto de pesquisa financiados para explorar temas como religião e política, religião e violência ou diálogos inter-religiosos.
Os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 e a repercussão do discurso do choque de civilizações certamente foram um fator importante para atrair a atenção da Europa para as questões religiosas. Mas seria um grande erro atribuir essa recente atenção unicamente, ou mesmo principalmente, à ascensão do fundamentalismo islâmico e às ameaças e desafios que ele representa para o Ocidente, em particular para a Europa. As transformações internas nesse continente contribuem para um interesse público renovado na religião. Os processos gerais de globalização, o crescimento global da migração transnacional e o processo de integração europeia estão apresentando desafios cruciais não apenas para o modelo europeu de Estado de bem-estar, mas também para os diferentes tipos de agrupamentos religiosos seculares e configurações Igreja-Estado que os vários países europeus desenvolveram na Europa pós-Segunda Guerra.
O processo de integração europeia, a expansão da União europeia (UE) em direção ao leste e o projeto de uma constituição da UE lançaram questões fundamentais sobre as identidades nacionais e europeias e o papel da cristandade em ambas as identidades. O que constitui a Europa? Onde e como deveriam ser demarcados os limites territoriais externos e as fronteiras culturais internas? Os temas mais controversos, mas menos abertamente enfrentados e, portanto, os que provocam mais ansiedade, são a potencial integração da Turquia e a potencial integração dos imigrantes não-europeus, que na maior parte dos países europeus são majoritariamente muçulmanos. Mas a expansão da UE em direção ao leste, especialmente a incorporação de uma Polônia católica convicta, e as discussões sobre alguma forma de afirmação ou reconhecimento da herança cristã no preâmbulo da nova constituição europeia também acrescentaram provocações religiosas inesperadas aos debates sobre a europeização.
Enquanto a ameaça de uma cruzada católica polonesa para a recristianizar a Europa incita pouco receio entre os europeus seculares confiantes em sua capacidade de compreender Polônia católica em seus próprios termos, a perspectiva de a Turquia integrar a UE gera muito mais ansiedade entre os europeus, tanto cristãos como não-cristãos – um sentimento difícil de verbalizar, pelo menos publicamente. O paradoxo e a perplexidade para os modernos europeus seculares (que abandonaram sua tradicional identidade histórica cristã em um processo rápido e drástico de secularização que coincidiu com o próprio sucesso da integração europeia e que, portanto, identificam a modernidade europeia com a secularização) é que eles observam com certa apreensão o processo inverso na Turquia. Quanto mais moderna, ou pelo menos democrática, a política turca se torna, mais a sociedade se torna publicamente muçulmana e menos secular.
Em sua determinação para integrar a UE, a Turquia reivindica de forma inflexível seu direito de tornar-se e de ser, econômica e politicamente, um país europeu, enquanto ao mesmo tempo molda seu próprio modelo de modernidade cultural muçulmana. É esse apelo de ser simultaneamente moderno e europeu e culturalmente muçulmano que confunde a identidade civilizacional europeia, secular e cristã. Ele contradiz tanto a definição de Europa cristã quanto a definição de Europa secular. O apelo da Turquia para tornar-se membro da União provoca desconforto precisamente porque força os europeus a refletirem e confrontarem abertamente a crise de sua própria identidade civilizacional, em um momento em que a UE já enfrenta uma série de complexas crises de ordem econômica, geopolítica e de legitimação.
O espectro de milhões de cidadãos turcos já na Europa, mas não da Europa, muitos dos quais imigrantes de segunda geração divididos entre seu país de origem e as sociedades receptoras europeias, incapazes de, ou relutantes em, adaptar-se totalmente a elas, apenas torna o problema mais visível. A questão da integração da Turquia à UE está inevitavelmente atrelada, implícita ou explicitamente, ao fracasso da integração dos imigrantes muçulmanos. A forma como a Europa irá resolver ambas as questões determinará não somente sua identidade civilizacional, mas seu papel na ordem global emergente.
O que torna o problema da imigração particularmente espinhoso na Europa, e inescapavelmente entrelaçado com a questão turca, é o fato de que na Europa as palavras imigração e Islamismo têm sido quase sinônimas, até bem pouco tempo, pelo menos. Isso implica uma sobreposição de diferentes dimensões de alteridade que intensifica questões ligadas a limites, acomodação e incorporação. O imigrante, o outro religioso, o outro racial, o outro socioeconomicamente desfavorecido, todos tendem a coincidir. Além disso, todas essas dimensões de alteridade estão agora sobrepostas com o Islamismo, de tal forma que o Islã tornou-se o irredutível e absoluto outro. O nativismo xenofóbico contra os imigrantes, a defesa conservadora da cultura e civilização cristãs, os preconceitos seculares antirreligiosos, as críticas das feministas liberais ao fundamentalismo patriarcal muçulmano, o medo das redes terroristas islâmicas – tudo está sendo fundido indiscriminadamente em um discurso antiislã uniforme que praticamente inviabiliza o tipo de acomodação mútua entre os grupos de imigrantes e as sociedades receptoras, acomodação tão necessária para o sucesso da incorporação desses imigrantes[4].
Finalmente, os debates sobre a nova constituição europeia revelam também que a religião tornou-se uma questão pública que gera controvérsia em toda a Europa. Sob o ponto de vista puramente positivista-legal, as constituições modernas não requerem referências transcendentais. Mas, na medida em que os principais motivos e propósitos de elaborar uma nova constituição europeia pareciam ser de ordem política extraconstitucional (isto é, contribuir para a integração social da Europa, fortalecer uma identidade europeia comum e remediar o déficit na legitimidade democrática), tal debate era inevitável para enfrentar temas como valores e identidades comuns do continente.
Quem somos? De onde viemos? O que constitui nossa herança moral e espiritual e as fronteiras de nossas identidades coletivas? Em que medida essas fronteiras deveriam ser flexíveis internamente e abertas externamente? Lidar com tais questões por meio de um debate democrático público envolvendo toda a Europa seria, sob quaisquer circunstancias, uma tarefa extremamente complexa, que implicaria enfrentar e por em diálogo muitos aspectos problemáticos e contraditórios da herança europeia em suas dimensões intranacionais, intereuropeias e global-coloniais. Porém, essa tarefa complexa torna-se ainda mais difícil em função dos preconceitos seculares que impedem não apenas uma avaliação crítica, honesta e reflexiva da herança judaico-cristã, como também qualquer referência oficial pública a essa herança – com base na alegação de que qualquer menção à religião poderia causar cisões e ser contraproducente – seria exclusivista, ao ignorar as contribuições do Islamismo para a civilização europeia, ou simplesmente violaria os modernos postulados seculares.
Não estou procurando sugerir que a constituição europeia deveria fazer referência a alguma realidade transcendental ou à herança cristã. Mas certamente deveríamos ser honestos e reconhecer que uma reconstrução genealógica da ideia ou do imaginário social europeu que faça referência à Antiguidade greco-romana e ao Iluminismo, e não faça menção à memória do papel da Cristandade medieval na própria constituição da Europa como civilização, demonstra claramente ou ignorância histórica ou um caso grave de amnésia. A incapacidade de reconhecer o Cristianismo como um dos componentes constitutivos da identidade cultural e política da Europa pode também significar que os europeus estão perdendo a oportunidade histórica de acrescentar uma terceira importante reconciliação àquelas já conquistadas entre protestantes e católicos e entre os diversos belicosos Estados-nação europeus, pondo fim às antigas disputas sobre Iluminismo, religião e secularismo. A ameaça percebida às identidades seculares e a reação desproporcional e tendenciosa de excluir qualquer menção pública ao Cristianismo ocultam interesses seculares, que alegam que somente a neutralidade secular pode garantir a liberdade individual e o pluralismo cultural. As controvérsias provocadas pela possível incorporação de alguma referência religiosa ao texto constitucional pareceriam indicar que os pressupostos seculares fazem da religião um problema e, portanto, excluem a possibilidade de lidar com a questão religiosa de forma lógica e pragmática. Para assegurar igual acesso à esfera pública e comunicação legítima entre todos seus cidadãos – cristãos, muçulmanos e judeus, ateus, agnósticos e crentes – a União Europeia precisaria tornar-se não só pós-cristã, mas também pós-secular.
Gostaria de concluir simplesmente reiterando que, segundo meu entendimento, a religião não é um problema ou pelo menos não constitui uma ameaça séria à democracia europeia. Mas o retorno da religião à esfera pública europeia como questão polêmica é, de fato, um desafio para o secularismo e para as identidades seculares desse continente. Esperemos que as democracias europeias encontrem uma maneira de lidar de forma inteligente e pragmática com esse novo e inesperado desafio.
CASANOVA, José. 2005. Catholic and Muslim politics in comparative perspective, Taiwan Journal of] Democracy, vol 1:2, December, pp.89-108.
GREELY, Andrew M. 2002. Religion in Europe at the End of the Second Millennium. New Brunswick, NJ: Transaction Books.
KALYVAS, Stathis N. 1996. The Rise of Christian Democracy in Europe, Ithaca, NY: Cornell University Press.
LILLA, Mark. 2007. The Great Separation: the Politics of God, New York Times Magazine, August 19th, pp. 28-34, 50, 54-55.
MADELEY, John. 2009. Unequally yoked: the antinomies of Church-State separation in Europe and the USA. European political science, 8 (3), pp.273-288.
STEPAN, Alfred. 2001. The World's Religious Systems and Democracy: Crafting the 'Twin Tolerations. In STEPAN, Alfred: Arguing Comparative Politics. Oxford and New York: Oxford University Press, pp.213-255.
VEER, Peter van der Veer. 2008. The Religious Origins of Democracy. In MOTZKIN, Gabriel; FISCHER, Yochi (eds.): Religion and Democracy in Contemporary Europe. London: Alliance Publishing Trust, pp.75-81.
[*] Título original: The problem of religion and the anxieties of European secular Democracy. In: MOTZKIN, Gabrie; FISHER, Yochi (eds.): Religion and democracy in contemporary Europe, London: Alliance Publishing Trust, London, pp.63-74. Tradução: Leila Cristina de Melo Darin
[**] Professor de Sociologia e coordenador do Berkley Center's Program on Globalization, Religion and the Secular, Universidade de Georgetown, EUA.
[1] No fórum do Festival de Salzburgo de 2007, sobre as “Trilhas e armadilhas do diálogo inter-religioso”, cujo objetivo era explorar maneiras práticas de promover a paz e o diálogo inter-religioso no Oriente Médio, a história genealógica básica da democracia secular foi relatada repetidamente com evidente intenção didática pelos organizadores, Liz Mohn, vice-presidente do Bertelsmann Stiftung, Helga Rabi-Stadler, diretora do Festival de Salzburgo, e por Joschka Fischer, ex-ministro para Assuntos Estrangeiros do governo alemão.
[2] Na seção que segue, baseio-me em grande parte na análise de Alfred Stepan da tolerância mútua e democracia, em particular na seção “Separation of church and state? Secularism? Some empirical caveats” (STEPAN 2008:218-225).
[3] John Madeley desenvolveu uma mensuração em três níveis das relações entre Estado e Igreja que ele denomina de TAO da administração e da regulação europeia das relações Estado-igreja referindo-se a Tesouro (T: para relações financeiras e de propriedade), Autoridade (A: para o exercício dos poderes de mando do Estado) e Organização (O: para a intervenção efetiva dos órgãos do Estado nos assuntos religiosos). Segundo sua mensuração, todos os países europeus pontuaram positivamente em pelo menos uma das três escalas; a maior parte dos países pontuou positivamente em duas delas; e mais de um terço (16 de 45 países) pontuaram positivamente nas três. MADELEY, John T. S. “Unequality yoked: the antinomies of church-state separation in Europe and the USA”, artigo apresentado no encontro anual de 2007 da Associação Americana de Ciência Política, Chicago.
[4] Observe as semelhanças com o discurso anticatólico do século XIX.