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COSMOCOCA - programa in progress e Cinema: a instauração do artista trágico nietzscheano
Cauê Alves1


Resumo : O presente trabalho discute o pensamento em processo da obra de Hélio Oiticica a partir da relação com seus escritos e com a leitura que realizou de autores da história da filosofia contemporânea, entre eles Friedrich Nietzsche, Henri Bergson e Maurice Merleau-Ponty. Recorrendo aos textos em que o artista cita filósofos, nós investigamos alguns princípios e noções da filosofia, mesmo que dispersos, em seu trabalho. Apropriar-se com liberdade de conceitos filosóficos de acordo com seu interesse, lhe permitiu explorar o impensado, o que excede e transborda o conceito. Não tendo a pretensão de constituir um sistema, Oiticica enunciou um conjunto aberto de referências teóricas com as quais sua obra dialoga. Estas não são definitivas, pois foram sendo revistas e modificadas durante toda sua trajetória.

Abstract: The following paper discusses the thinking in process in Helio Oiticica's work taking in consideration his writings and the readings he did
from Contemporary Philosophy authors like Friedrich Nietzsche, Henri Bergson and Maurice Merleau-Ponty. Altogether with the texts in which the artist quotes these philosophers above mentioned, we attempt to research some philosophical axioms and notions, albeit dispersed, in Helio Oiticica's
work. The free appropriation of philosophical concepts accordingly with his interests, allowed him to explore the unthinkable, which that excedes and
overflows the mere concept.  Disregarding the intention of creating a system, Oiticica enunciated an open group of theoretical references in frank
dialogism with his work. These references are not final, once they were revisioned and modified during all his trajectory.

O fim da utopia


            COSMOCOCA - programa in progress é um projeto de Hélio Oiticica2 , em parceria com o cineasta Neville D' Almeida, desenvolvido em Nova York a partir de 1973. A mistura do português e do inglês como aparece na expressão “ programa in progress” , sua pontuação singular, bem como o uso particular da caixa alta e abreviações, são características de sua escrita do período em Nova York , durante os anos 703 . Sua escrita, elaborada em sincronia com sua experiência de artista, subverte as normas e convenções da língua culta para se afirmar não como estilo, mas como expressão visceral de um pensamento permeado de tensões, dúvidas e contradições. Distante de um discurso neutro, científico e universal, que não se dirige a um leitor determinado, Oiticica, nos anos 70, exige do seu leitor certa maturidade e repertório de referências que sua obra dispensa. Seus textos desse período, como veremos em algumas citações transcritas aqui, fundem notas íntimas, cartas e reflexões sobre sua produção e a de outros artistas. A fragmentação progressiva de sua escrita remete a uma desconfiança em relação à linguagem análoga ao uso de aforismos por Nietzsche.

          O termo “em progresso”, recorrente em sua escrita e que parece substituir o termo duração4 empregado principalmente em seus escritos dos anos de 1950 e 1960, longe de significar um avanço positivo rumo ao futuro, indica uma obra não acabada, um processo que pode ser sempre recomeçado e reinventado. Denominado de “quase-cinema”, COSMOCOCA - programa in progress é uma série de filmes compostos por trilha sonora e projeções de seqüências de slides num ambiente especialmente construído. A imprevisibilidade gerada pela participação do público e pelo desdobramento do programa em diversos “bloco-experiências”, CC1, CC2, CC3..., impede a constituição de uma obra estanque, com procedimentos fechados. Um dos objetivos de Cosmococa é “a unilateralidade do cinema-espetáculo”5 , reafirmando a crítica à passividade do espectador:

  “a hipnotizante submissão do espectador frente à tela de super-definição visual e absoluta sempre me pareceu prolongar-se demais: era sempre a mesma coisa: porque?: e nem os filmes de ABEL GANCE q foram feitos para 2 telas eram respeitados: 1 tela e olhe lá se não está cortado: mas algo tinha que acontecer: a TV: THE BIRDS de HITCHCOCK já TVeiza a montagem seqüencial tão ‘natural' do cinema que nos acostumou: mas tinha que aparecer G-O-D-A-R-D: como MONDRIAN pra PINTURA GODARD fundou o antes e depois dele: como querer ignorar ou conjecturar sobre a ‘arte do cinema' depois q GODARD questiona metaliguisticamente a própria razão de ser do fazer cinema?”. 6

          Opondo-se à submissão do espectador, que muitas vezes passa a ignorar seu corpo e o espaço que ocupa na sala de projeção quando se envolve inteiramente na narrativa do cinema, Oiticica, com Cosmococa , elabora a possibilidade de a relação visual entre o espectador e o filme ser enriquecida pela participação, pela brincadeira e dispersão. Entre as instruções7 para ação de Cosmococa há propostas para que o participador , por exemplo, se deite nas almofadas e utilize lixas de unha disponíveis na entrada, como em CC1; que se sente, recline e principalmente dance, em CC2; que sinta a superfície do chão e brinque com os balões, movendo-se à vontade, em CC3 ou, em CC4, que entre numa piscina.

          Esse comportamento lúdico com balões de ar, almofadas e pufes, ao lado de imagens da moeda americana e do logotipo da Coca-cola , símbolos do paradigma do mercado e da sociedade capitalista, tem algo de perverso e de ambíguo. Convocar o corpo à participação como um desempenho comportamental, ligado ao som de Jimi Hendrix e Roling Stones, e confrontar o participador com essas imagens, ao mesmo tempo em que remete a uma consumação do corpo numa lógica de imagens, apresenta uma vontade de libertação e de desrepressão violenta e agressiva. O aspecto lúdico de Cosmococa , se às vezes parece apostar numa infatilização, embrenha-se também num comportamento um tanto alienado, diferente daquela participação dos anos de 1960 que estava associada à liberdade e uma busca de emancipação do sujeito. Trata-se aqui da transição de uma utopia dos anos 60 para consciência de que ela não se cumpriu e que, se não está esgotada, está se esgotando aos poucos. Cosmococa não chega a ser um programa crítico, pois essa consciência é vivida pelo trabalho como dilaceração e não como projeto deliberado. O discurso do artista, como veremos, não chega a elaborá-la completamente.

          Em sua proposta de participação, Oiticica valoriza o fato de a TV permitir relações mais participativas entre o espectador e a obra, dando outras possibilidades de interação. Em frente ao aparelho de TV, que em ambientes domésticos é comum ficar ligado sem que ninguém preste total atenção em sua programação, o espectador fala, comenta e age com mais espontaneidade que na sala escura. Enquanto a TV era temida por muitos cineastas como uma ameaça ao cinema, Oiticica identifica nela uma montagem diferente, algo mais ágil e alegre, longe da “gratuidade e chatice [que] ficara reduzida a linguagem-cinema quando se tem a TV” 8 . A partir das idéias de Marshall Mcluhan9 , Oiticica compreende que a TV, devido à baixa definição dada pela sua natureza reticulada, composta por um mosaico de pontos de luz e sombra, abre possibilidades maiores de participação se comparada ao cinema. Contra a posição de que haveria uma pobreza informativa na TV, já que sua escala de tons tende para o alto contraste e é menor que a do cinema, valoriza o grau de abstração que a linguagem solicita. Ao telespectador, caberia preencher os intervalos e completar os dados que foram suprimidos pela chamada definição vertical das linhas da TV, enquanto a super definição da película de cinema se apresentaria completa e una.

          Entretanto, essa concepção de participação do espectador que completa as lacunas da imagem nos parece restrita, pois nela toda ação do sujeito já está prevista anteriormente. Há, nesse ponto, uma grande diferença em relação à participação presente no Parangolé do início dos anos 60 em que a redescoberta do corpo era central. Por não ter justamente a dimensão humana e imprevista, a ação de completar lacunas na TV se esgota rapidamente. Não se trata mais daquela busca de uma participação plena e livre, em Cosmococa o corpo do sujeito, imerso no mundo das mercadorias, parece tornar-se estranho a si mesmo. A compreensão do corpo não é mais a de um corpo autônomo e livre, agora se aproxima do corpo da moda e da publicidade. O próprio Parangolé que Oiticica faz nesse período, sobre o qual escreveu em 1972 o texto “Parangolé Síntese”, não apresenta “preocupação com ‘significações corporais', ‘não-condicionamentos sensoriais', etc”. Oiticica compreende que há um dilema, “transformar-se ou ser consumido pelo contemplar: ser performer por iniciativa ou compelido a sê-lo: criar o circo ou ser objeto-espectador”10 . Trata-se agora do corpo performance do rock, que é desrepressão e por isso reativo. Se por um lado ainda há uma busca do todo, pois “falar em cosmicidade não deve implicar em extra-concreto mas em assumir o poder de inventar o NÃO-FRAGMENTADO”11 , por outro há uma certa impossibilidade de reunificação do corpo, que vai se transformando com a imagem da TV.

          É recorrente nos textos de Oiticica o entendimento da participação como atividade oposta à passividade da contemplação. Todavia, para entendermos o sentido dessa dicotomia precisamos, primeiro, compreender o que o artista entende por participação. Em Posição e Programa , escreve que o artista não é mais um “criador para a contemplação”, mas um “motivador para a criação – a criação como tal se completa pela participação dinâmica do ‘espectador', agora considerado participador 12 . Entretanto, compreendemos que atividade não implica em participação, assim como passividade não deve estar sempre associada à contemplação. Diante da fragmentação de um quadro do pintor cubista Georges Braque, por exemplo, seria possível conceber que a tarefa de quem contempla seja a de unificar a figura, estabelecendo uma compreensão entre os múltiplos sentidos que faz uma obra de arte escapar da determinação completa. Poderíamos dizer o mesmo sobre uma obra concretista que nos exige um “olhar criativo”, como dizia Pedrosa. Na atitude contemplativa, pode existir atividade mesmo sem envolver participação. Talvez, diferentemente do que diz Mcluhan, com quem Oiticica concorda e cita, ao completar a cena entre um corte e outro, é possível que o espectador do cinema tradicional também exerça atividade, embora não participe diretamente com seu corpo. Mesmo porque o corpo pressuposto em Cosmococa , não é mais aquele corpo reflexivo que nos falava Merleau-Ponty e que se relacionava com o Parangolé , trata-se agora de um corpo que se limita a responder ao complexo de fatores que compõem o ambiente. .

          Segundo Oiticica, tanto no cinema como na TV ainda há predominância da imagem e, em Cosmococa , a “IMAGEM não é o supremo condutor ou fim unificante da obra”.13 Aqui as contradições do artista se tornam mais claras: como ele não quer se restringir ao áudio-visual, recorre ao jogo, a dança e a experiência do corpo do sujeito no espaço e no tempo, como havia feito nos anos de 1960. Contra a anulação do corpo que o cinema tradicional impõe, Oiticica recorre à TV, à dispersão e a um suposto ludismo. Mas, a participação corporal, ao invés de se dirigir às imagens do capital e do consumo, projetada nas paredes, se aproxima de uma participação recalcada, às vezes histérica, reduzida a meros sintomas corporais. Parece não haver mais descoberta e reflexão do corpo, não é a toa que as referências do artista a Merleau-Ponty, recorrentes nas décadas anteriores, desaparecem nesse período. Cosmococa se aproxima, assim, de um grito desesperado e auto-destrutivo, ainda que o artista não tenha anunciado isso em seu próprio fazer.

          Em seu texto sobre Cosmococa , Oiticica se refere à Tropicália , 1967, – em que utilizou de um aparelho de TV que ficava sempre ligado, incorporando a programação das emissoras ao ambiente – e lembra que naquela época já havia a intenção de deslocar a imagem, “visual e sensorial: o TODO IMAGEM”, retirando sua supremacia, porém, conforme reavaliação de 1974, “numa espécie de salada multimedia sem muito ‘sentido' ou ‘ponto de vista'”14 . Em Brasil Diarréia , 1970, cujo título sugestivo parece ser uma resposta à Estética da Fome de Glauber Rocha, Oiticica constatava que “as críticas que as idéias de ‘Tropicália' geraram ao culto do ‘bom gosto' (isto é, a descoberta dos elementos criativos nas coisas consideradas cafonas , e que a idéias de bom gosto seria conservadora) foi [sic] transformada em algo reacionário pelos diluidores da mesma: instituiu-se a ‘cafonice' estagnatória, já que instituir a idéia de cafona conduz à glorificação permanente das coisas passadas.”15 Oiticica reivindicava, em 1970, contra os perigos da perda de ambivalência da vanguarda, uma posição permanentemente crítica e universal. Cosmococa , paradoxalmente, é a resposta que ele dará nos anos seguintes.

          Depois de cursar cinema na New York University 16, em 1971, algo raro entre os cineastas experimentais do período, e inclusive ter realizado alguns filmes em Super 8, entre eles o inacabado Agripina é Roma-Manhattan , em 1972, torna-se urgente a necessidade de transformação do cinema tradicional. Tanto Neyrótica17 , também realizado em slide, como Cosmococa , que à maneira do cinema de Abel Gance requer projeções em mais de uma tela, são fundamentais nesse processo. A ruptura com o cinema - já prefigurada na montagem de The Birds de Hitchcock, graças à referência à televisão, como vimos no texto citado acima – foi também identificada no filme Mangue Bangue , de Neville D' Almeida, que realizaria a “necessidade de negação” do cinema. Oiticica se apoia na impossibilidade da continuidade do cinema nos moldes tradicionais, tal como Godard explicitou. Com essas referências, desenvolveu a noção de “quase-cinema”, que borra as fronteiras entre cinema e artes. Com isso, aproxima duas obras centrais em sua trajetória, Mondrian e Godard, menos por características internas a eles do que pela ruptura que representam no desenvolvimento de seu próprio trabalho. Se a referência a Mondrian é forte nos anos 50 e 60 – período que esteve próximo dos artistas associados ao neoconcretismo – a alusão a Godard, na década de 1970, como vimos no fragmento citado há pouco, tem a mesma importância para Cosmococa .

           Entre algumas breves aproximações que podemos traçar entre ambos está o aspecto fragmentário, exacerbado por Oiticica, e a radicalização da contração do tempo que as cenas curtas e interrompidas de Godard indicavam. A “não-narração” das CCs pode ser vista como o desenvolvimento das constelações de imagens sem continuidade que o cineasta europeu já havia construído. Além disso, ambos utilizam citações de repertório sofisticado da filosofia e da literatura justaposto no mesmo patamar em que estão objetos da cultura de massa. O erudito e o vulgar se equivalem e são propositadamente nivelados. Em Godard, no filme Uma mulher casada , o texto de Merleau-Ponty sobre cinema, telas de Renoir, placas de propaganda e revistas femininas bombardeiam o espectador com informações que ultrapassam os elementos que ele domina. Em ambos há uma profunda intimidade entre as referências e as obras. Essa floresta de citações não pressupõe o conhecimento prévio do público e tampouco aparecem de modo didático. Do mesmo modo, em CC2 Onobject , por exemplo, o livro Grapefruit de Yoko Ono, que apresenta instruções para performances, é posto ao lado de uma tradução para o inglês do livro de Heidegger, What is a thing ?18 , como um ícone do pensamento ocidental. Se as filosofias de Bergson, Merleu-Ponty e Nietzsche foram integradas por Oiticica ao seu trabalho com propriedade, contribuindo para a constituição de uma dimensão reflexiva e interrogação constante sobre sua obra, essa referência a Heidegger, presente em CC, tende a se aproximar mais do procedimento de justaposição de imagens, embora no arquivo de Oiticica exista algumas anotações de leitura do filósofo alemão. Em Cosmococa as posições metafísicas e fenomenológicas já ruíram.

O debate do cinema


           Dentro do universo do cinema, o projeto de filme experimental de CC se insere também no debate brasileiro entre Cinema Novo e Cinema Marginal. Reflexo de uma polêmica da época, essa oposição entre os dois cinemas é menos estética que ideológica. Embora redunde no estabelecimento de categorias limitadas que desprezam as particularidades dos filmes, as CCs, sem dúvida estão mais ligadas ao Cinema Marginal. Oiticica faz questão de marcar sua oposição em relação à seriedade e a espetacularização que o Cinema Novo parecia cada vez mais privilegiar:

  “no BRASIL de experimentalidade quase q ao alcance da mão o pessoal foi ficando cada vez mais ‘sério' e com obsessiva ‘preocupação quanto aos destinos do cinema brasileiro' e à busca de ‘sentidos' e ‘significados' que pudessem justificar outra ambição maior: criar a indústria cinematográfica brasileira: sempre o carro na frente dos bois” . 19

           Entretanto, filmes como Câncer , de Glauber Rocha, filmado em 1968 com a participação de Oiticica e montado apenas em 1972, mostram que as divergências entre Cinema Novo e Cinema Marginal não são tão claras como poderiam parecer. Ambos de algum modo dão continuidade a algumas questões tropicalistas. O que ocorre é que o dito Cinema Marginal radicalizou e levou às últimas conseqüências algumas propostas presentes em Estética da Fome , manifesto redigido em 1965 por Glauber Rocha, que transforma a escassez de recurso em força expressiva. Enquanto cineastas ligados ao Cinema Novo, em fim dos anos 60, sem abandonar o engajamento, se aproximaram de padrões convencionais que agradavam ao grande público, o Cinema Marginal, com bastante ironia, desfaz e esvazia a ordem das narrativas e rompem com o que chamavam de concessão ao público. Segundo Ismail Xavier, “um dado central no biênio 67/68, que terá conseqüências na emergência do Cinema Marginal em 1969, é a recusa de uma visão dualista do Brasil. Esta sublinhava a oposição entre um país rural, matriz da identidade nacional, e um país urbano, lugar de uma descaracterização da cultura por força da invasão dos produtos da mídia internacional.”20 Foi nesse momento que o Tropicalismo realizou as colagens entre o arcaico e o moderno, o nacional e o estrangeiro, que tiveram desdobramentos também no cinema.

          Nesse contexto, é sintomático que a precariedade de um filme realizado em slide, também devido à carência de recursos e a falta de uma indústria cinematográfica brasileira, puderam ser constituintes de um trabalho altamente experimental. Assim como O Bandido da Luz Vermelha , 1968, de Rogério Sganzerla, Cosmococa , sem o mesmo humor, realiza uma colagem de fragmentos descontínuos em que a paródia, o sarcasmo, a violência e o grotesco se fazem presentes. Talvez esse gesto seja uma compreensão de que o subdesenvolvimento é um estado e não uma fase, assim como Paulo Emílio havia formulado, sem que isso se torne conformismo ou conivência. Entretanto, no filme de Sganzerla há uma questão formal importante, uma organização do caos brasileiro que a Cosmococa rejeita ao tangenciar o informe. Em O Bandido da Luz Vermelha ainda há um esforço de compreender a situação brasileira, o que se dissipa completamente nos quase-cinemas de Oiticica.

         As “cenas” de Cosmococa são formadas de fragmentos congelados, ”momentos-frames”, que rompem com o tempo convencional do filme. A edição, feita enquanto são tiradas as fotos, não é seqüencial. Oiticica não pretende encontrar uma montagem definitiva, mas se interessa pelo “jogo de posições”. A quebra do desenvolvimento linear do filme valoriza a trilha sonora, composta por músicas brasileira e rock, e ressalta o caráter casual e aberto do filme.

          Em Cosmococa , reaparece a preocupação com o ambiental , presente nos seus mais significativos trabalhos, desenvolvida desde os anos 60, por isso as fotografias de CC “não são fotos para serem fotos”21 . As proposições se referem a várias personalidades, entre elas, em CC1, a Luis Buñuel. O ato de cortar os olhos, com linhas feitas com cocaína, do retrato do cineasta, que realizou uma obra imersa no mundo fantástico dos sonhos e instintos, remete à cena surrealista de Um Cão Andaluz , de 1928. Em 1973, outro filme de Buñuel, O Discreto Charme da Burguesia , havia recebido o “Oscar”, motivo da publicação de seu retrato na capa do The New York Times Magazine , aproveitado por Oiticica. Entre outras figuras, aparece em CC5, na capa do disco War Heroes , o ídolo da contra-cultura Jimi Hendrix, venerado por Oiticica, já falecido, com um logotipo da Coca-Cola . O ícone do capitalismo americano numa caixa de fósforos sobre a capa do disco, além de provocar um trocadilho entre a marca de refrigerantes e a Cosmococa , pode ser indicativo da derrocada da utopia dos anos de 1960. Em CC3, estampada na capa do livro de Norman Mailer, Marilyn Monroe, outro ícone da cultura pop, consumida pela sua própria imagem, remete ao trabalho de Andy Warhol. Tendo o mundo se convertido em imagem, como nos mostra o trabalho de Warhol, o espaço da vida tornou-se vazio e fragmentado: “a suposta unicidade da IMAGEM [de Marilyn] fragmentava-se ao resistir ao estereótipo q deveria defini-la e limitá-la: todas as tentativas de amarrá-la a uma unicidade constante pareciam frustar-se no final: havia algo que dissolvia essa unicidade”22 .

          O procedimento de CC, com certo “sarcasmo duchampiano”, é o de “maquiar” as imagens apropriadas. Trata-se de adicionar máscaras à imagem que estaria pretensamente acabada. O gesto, mais como processo do que busca de uma forma definitiva, “fragmenta visualmente ao ‘maquilar' a unidade da imagem-todo”.23 O que interessa é o “rastro-coca” que é feito e refeito, o “jogo-maquilar”. É uma meta-maquiagem, como escreve, “o q se maquila-esconde é o próprio elemento maquilador”24. Baudelaire, citado por Oiticica, num outro sentido também fez um elogio da maquiagem, que deveria ser fiel à sua artificialidade. Quanto mais falsa a imagem maquiada mais próxima ela estaria de uma sociedade também falsa. O que interessa ao poeta é o belo artificial, assim como o “paraíso artificial”, ao qual as drogas poderiam dar acesso. O uso da cocaína em CC, como pigmento e linha para redesenhar as imagens, funcionaria também como estímulo para a participação coletiva, por mais restrita que ela seja nesse momento, ao mesmo tempo em que tem um sentido destrutivo, um sarcasmo, uma perversidade. Paradoxalmente, a droga serviria para a expansão da consciência, possuindo um sentido experimental que Oiticica ainda remete à fenomenologia, embora diríamos que Cosmococa tende a se afastar completamente dessa filosofia.

  “não se trata de fazer da COCA o absoluto místico-deificado q vestiu o LSD: COCAÍNA nem tóxico nem água a própria idéia de alucinagenar para a ‘expansão da consciência' (??? nada poderia ser menos fenomenológico: contrasenso total!) soa phony [...] como pode alguém saber qual o veneno q cada pessoa necessita?: tudo isso não passa de mais uma extensão dos hang-ups judaico-cristãos: ninguém se está querendo salvar!: pelo contrário: como diz ARTAUD let the lost get lost: BAUDELAIRE quando faz odes ao ÓPIO e ao HAXIXE não está receitando remédios: está nos envenenando de experiência: não estava pregando ou promovendo o comércio do ÓPIO-HAXIXE [...] estava INVENTADO MUNDO..... estava propondo um tipo novo e maior: COLETIVO: de participação: de modo também a ampliar sua poesia e esses níveis e desse modo descomprometê-la e soltá-la pra sempre das amarras culturais dos meios literários.” 25

          Para Baudelaire, o ópio e o haxixe são drogas que podem levar ao que chamou de ideal artificial e funcionam como um espelho de aumento para o bem ou para o mal, mas que provisoriamente libertam o homem de sua condição.26 Em “Poema do Haxixe”, primeira parte dos Paraísos Artificiais , o poeta descreve alguns efeitos da embriaguez pela droga e a compara a um grande sonho capaz de promover o homem a Deus. Oiticica já havia, em 1969, na Whitechapel Gallery, feito referência semelhante ao paraíso, denominando essa “manifestação ambiental” de Éden 27 .

          A referência a Baudelaire e ao uso da droga, no discurso de Oiticica, sem redundar numa mera apologia, seria um estímulo para uma experiência mais alargada, mais ampla do que a das pessoas que a ela não recorrem. A alienação do corpo que Cosmococa parece injetar está ausente dos textos de Oiticica. Nesse momento, seus textos estão mais distantes de seus projetos, como se as obras não cumprissem mais as promessas do discurso ou delas mesmas. Tudo se passa como se aos poucos a escrita, na qual parece já não confiar muito, se descolasse da realização do seu Programa . Se os textos de Oiticica apresentam resquícios do romantismo de Baudelaire, se a referência ao poeta e à droga devem ser compreendidas como transformação e rompimento com as limitações de sua época, eles não parecem corresponder completamente ao seu trabalho. Cosmococa , embora inserida no ideário subversivo dos anos de 1970, devido às circunstâncias históricas que escapam a decisões subjetivas, além de nunca ter sido montada enquanto Oiticica esteve vivo, e também por isso, não transformou em realidade o discurso que a constituiu. Isso não significa que Oiticica não estava inteiramente no seu trabalho. O jogo nesse momento é com a vida, a possibilidade ali é de auto-consumação ou a de libertação, que no fundo são a mesma coisa.

De volta ao Brasil


          O abandono do que Oiticica chamou de “herói romântico”, definido como aquele que possui “um super-ego altamente refinado: que lhe confere individualidade” acontecerá com sua volta ao Rio de Janeiro, após o período de Nova York, com o “memorando não manifesto”28 , o Manifesto Cajú . Nessa ocasião, Oiticica realizou a proposta de participação coletiva no bairro do Caju denominada de Kleemania , primeiro Acontecimento Poético-Urbano 29 , em homenagem ao centenário do nascimento de Paul Klee, em que realizou o Contra-Bólide Devolver a terra à terra , que consiste em colocar em uma forma quadrada uma camada de terra trazida de outro lugar. Ao tirar a forma se tem um quadrado de terra sobre a terra, que remete ao quadrado branco sobre o branco, de Maliévich. Trata-se de uma recodificação dos Bólides30 da década de 1960, tentando mudar o sinal da operação. No “Manifesto”, ocasião que convoca a participação coletiva para tomar posse de áreas abandonadas, Oiticica escreveu:

  “[...] com CITIZEN KANE ORSON WELLES esgotou e tornou impossível depois disso algo como declaração de princípios : CITIZEN KANE (Jedediah q ‘vingativamente' guardou a declaração de princípios de CHARLES FOSTER KANE redigida quando este toma posse do jornal-herança q lhe cai às mãos na maioridade na verdade enuncia-sublima o problema literalmente) na verdade é a meta-linguagem da declaração de princípios: esta ( declaração de princípios ) é a espinha ético-dorsal do herói romântico: é ela q rege o seu super-ego altamente refinado: e que lhe confere individualidade de certo modo democrática : E é ela que erigiu o herói romântico: KANE é o último desses heróis já nos nossos dias e é ele q torna impossível-inútil a repetição desse herói: ORSON WELLES fez dele o meta-herói romântico q se consome numa brasa de impotência romântica: assim como uma nuvem q se desfaz até sumir: daí q cheguei a conclusão de que o herói romântico é o q faz da declaração de princípios um MANIFESTO: o MANIFESTO se alimenta desse estopo: é por isso ineficaz e estúpido hoje - daí o MEMORANDO (um continuum do dia-a-dia): um pré programa - um préprograma que vislumbra o problema do artista trágico partindo de NIETZSCHE e focalizando em uma nova-luz visão ao considerar que este (o artista trágico ) se instaura no nosso século paulatinamente não sendo ele um rival de nada que houve antes (não se trata de remontar à Grécia por exemplo.): A INSTAURAÇÃO DO ARTISTA TRÁGICO COMEÇA COM O DESAPARECIMENTO DO HERÓI ROMÂNTICO!” 31

          Embora o filme de Orson Welles tenha sido realizado 1941, a formulação, por Oiticica desse “desaparecimento do herói romântico” aconteceu em 1979, ano anterior ao da sua morte, justamente a partir de observações sobre Citizen Kane . Para Oiticica, o filme, também fragmentado, abole a possibilidade de um manifesto como declaração de princípios, traço de sustentação do “herói romântico”. Welles, recusando a construção e unidade clássica do cinema, linearmente progressiva, apresenta depoimentos mais ou menos controversos sobre o milionário Charles Foster Kane. Como num quebra-cabeça sem todas as peças, o filme não se completa devido à falta de um fragmento, o significado da palavra “Rosebud”, pronunciada pela personagem em seu leito de morte. Assim, o filme se apresenta aberto, deixando espaço para a atividade do espectador reorganizar sua estrutura fragmentária. Inversamente, o herói que morre no início do filme é fechado e distante do espectador, acessível apenas por depoimentos.

          O herói romântico é a figura da subjetividade burguesa (donde seu laço com o super-ego): dotado de vontade livre, é responsável por suas escolhas e, portanto, por suas vitórias, derrotas, sucessos e desditas. Enquanto o herói épico imagina-se mais forte que o mundo, o herói romântico sabe-se menor que o mundo e seu percurso é dramático. O herói trágico é a inexistência da subjetividade; encarna a contradição insuperável entre sua vontade e a lei do destino, entre seu saber (ilusório) e sua ignorância (real), confundindo sua força com sua fraqueza e esta com aquela. O mundo do herói romântico é o da imanência; o do herói trágico, o da transcendência; o herói romântico está sempre “em casa” no mundo, mesmo quando se isola (pode isolar-se porque tem certeza de que o mundo está ao alcance da mão), mas o herói trágico é um nômade para quem nem ele nem o mundo têm identidade e permanência. O herói romântico pode errar, o herói trágico é um errante. A vida do herói romântico é a busca da reconciliação consigo e com os outros; a do herói trágico, a do dilaceramento de si e do mundo. A continuidade dramática da ação romântica opõe-se a fragmentação do acontecimento trágico sempre inesperado e desde sempre previsto, jogo do acaso e da necessidade.

          Nesse sentido a “instauração do artista trágico” nietzscheano passa a adquirir maior importância em seu trabalho. Embora apenas encontramos citações diretas ao filósofo a partir dos anos 60, Oiticica teria tido contato com a filosofia de Nietzsche desde o início dos anos 5032 . Em texto de 1965, Oiticica afirma que a dança com o Parangolé é improvisação, “ato expressivo direto”, sem a rigidez da coreografia de um balé. O que importa a partir de então é “a dança ‘dionisíaca' que nasce do ritmo interior do coletivo, que se externa como característica de grupos populares”.33 Já em Nova York , relaciona a “música trágica” de Nietzsche com os Rolling Stones e reafirma o caráter dionisíaco e alegre do Parangolé , mas agora sem “remontar à Grécia”.

          O completo abandono do “herói romântico” passa, portanto, pela experiência do cinema. Cosmococa , que traz a tona novamente o problema da imagem, é importante nessa transformação. O progressivo fim do artista inventor e criador é intensificado com a instauração do artista trágico nietzscheano.

  “Artistas não são homens de grande paixão, não importa o que queiram dizer a nós e a si mesmos. E isto por duas razões: não tem sentimento algum de vergonha diante de si mesmos (auto observam-se enquanto vivem ; espionam-se, são excessivamente inquisitivos) e tão pouco diante da grande paixão (exploram-na enquanto artistas). Por outro lado, também, o seu vampiro, o seu talento, não admite para eles como regra este desperdício de energia chamado paixão. Se alguém tem talento é também vítima dele: vive vampirizado pelo próprio talento.” 34

           Este trecho marca posição contra o mito do artista como gênio incompreendido, talento solitário que vive intensamente suas paixões e a transforma em obra. O artista trágico está no meio do mundo e seu talento não é um dom benéfico, mas uma força que o esgota e o exaure, mas a qual ele sempre diz “sim”. A superação do que chamou de herói romântico se dá também com a participação do espectador, o que permite a qualquer um, mesmo quem não tenha talento, se integrar na realização de algo que lhe agrade. A participação está ligada à dissolução da noção de autor como subjetividade romântica. Ao artista, ao invés de criar obras que exprimiriam um sujeito, cabe propor ações que qualquer um pode realizar e cujo desdobramento não depende de alguém. Se a intenção de Oiticica é, no início dos anos 60, neutralizar a oposição entre homem e natureza, e entre apolíneo e dionisíaco, na década seguinte irá se transformar. Recorrendo a Nietzsche, ele se vale dessa oposição para criticar a metafísica e abandoná-la como racionalismo dos fracos.

           As menções a Nietzsche, que surgiram desde os anos 60, tornam-se mais presentes em sua produção do final dos anos 70. O combate à metafísica, como ilusão de um pensamento racional e abstrato, vem se opor ao pensamento do homem teórico que descarta a sabedoria instintiva, a verdadeira natureza da realidade segundo Nietzsche. No Manifesto Cajú , a referência ao artista trágico nietzscheano surge acompanhada de citação de Deleuze em Nietzsche e a Filosofia35. Oiticica relaciona o fim da representação, presente em sua obra desde 1960 - como desenvolvemos em texto anterior – com a participação e a instauração do artista trágico: “q ao contrário do q se pensa não é a ‘remontagem do artista apolíneo-dionisíaco grego' mas algo q não existia antes em plenitude e só agora começa emergir na sua inteireza e totalidade”. 36

           Segundo Oiticica, foi seu amigo, o poeta Silviano Santiago, que lhe “chamou atenção para q os filósofos franceses novos teriam abordado-restaurado Nietzsche para o momento”.37 De fato, no início dos anos 70, Deleuze apresentou o texto “Pensamento Nômade”38 , no encontro Nietzsche hoje? realizado em Paris, em que indagou sobre o significado de ser um jovem nietzscheano em 1972. Oiticica, no Manifesto Cajú , comenta que na metade da década de 70 descobriu que o “artista trágico nietzscheano não existiria mas q estava em processo de instauramento”. Em texto manuscrito de 1975, já havia feito menção ao trágico como algo novo com a ressalva de que não se deve nunca ficar preso a tal condição ou definição39. Sabendo, como Deleuze, que o trágico é positividade pura e múltipla, que está longe do ressentimento e do niilismo, Oiticica transcreveu no Manifesto Cajú algumas frases que lhe interessavam:

  “O artista trágico não é um pessimista, ele diz sim a tudo o que é problemático e terrível, ele é dionisíaco”. 40

“A mensagem feliz é o pensamento trágico: porque o trágico não está nas recriminações do ressentimento, nos conflitos da má consciência, nem nas contradições de uma vontade que se sente culpada e responsável. O trágico não está também na luta contra o ressentimento, a má consciência ou o niilismo. Nunca foi possível compreender, segundo Nietzsche, o que era o trágico: trágico = alegre. A grande equação posta de outro modo: querer = criar. Não se compreendeu que o trágico era positividade pura e múltipla, alegria dinâmica. Trágica é a afirmação: porque afirma o acaso e do acaso, a necessidade: porque afirma o devir e, do devir, o ser: porque afirma o múltiplo e, do múltiplo, o uno. Trágico é o lance de dados. Todo o resto é niilismo, pathos dialético e cristão, caricatura do trágico, comédia da má consciência”. 41

           Subjetivo, dramático, culpado e ressentido, o herói romântico é a figura nietzscheana do cristão. Nômade ou múltiplo afirmativo, criador e alegre, o herói trágico é a figura nietzscheana da nobreza anti-cristã. Contra a racionalização da culpa e a racionalidade do pensamento, Nietzsche propõe a atitude agonística que não rejeita o múltiplo pelo uno, o contraditório pelo idêntico, o fragmentado pelo contínuo, mas o faz estar sempre juntos, em combate criador. Possivelmente, a referência a Nietzsche é esclarecedora de vários aspectos de CC: por exemplo, ir da imagem do olho cortado de Cão Andaluz à inocência de brincar com balões, ir da identidade da Coca-Cola à multiplicidade de Marilyn Monroe, ir de Jimi à placidez das águas de uma piscina, não seriam exatamente ações do nomadismo afirmativo nietzscheano?

           Segundo Deleuze, com Nietzsche é possível combater o pensamento que aniquila a diferença, dissipada pelas filosofias da representação e Oiticica, que desde o início de seu trabalho ergueu-se contra a arte como representação, certamente, encontrou em Nietzsche trilhas para seu próprio caminho. Pois Nietzsche mostra que diferença não quer dizer contradição, o “sim” trágico, ao afirmar a pluralidade, é uma renuncia ao “não” da dialética, pensamento do escravo, dos fracos e ressentidos. A alegria trágica de Dioniso vem romper com a dor e o sofrimento dos fracos. Assim, segundo Deleuze, é trágica a afirmação, pois “afirma o múltiplo e, do múltiplo, o uno”, sem que haja oposição entre multiplicidade e unidade. A diferença, por natureza é assimétrica, ao contrário da simetria da oposição. Criar é fazer uma síntese do disperso, mas nessa síntese não se perde a diferença, a tensão de forças presentes, ao contrário, é quando a diferença é levada à máxima potência.

           Deleuze inaugura, assim, uma nova maneira de interpretar a filosofia de Nietzsche com o pluralismo de forças. Segundo o filósofo, força, que é intensidade e atividade, é inseparável de vontade de potência. A vontade de potência, como um querer interno, também é ativa, é a aplicação da potência, de maneira que não é possível separar potência da vontade de potência. Inseparável também é a afirmação da experiência artística, cujo princípio é o prazer ou o estado de embriaguez. Com a embriaguez, tem-se um aumento de força que desperta a paixão, o canto e a dança. Surge assim um movimento e uma necessidade de comunicar e de escapar de si mesmo. Sob esta perspectiva, CC penetra no universo nietzscheano porque seu núcleo é a embriagues universal – coca – cosmos – que leva à música, à dança e ao jogo. A embriaguez dionisíaca é um estado em que se destrói o individual. Mais do que uma união entre homem e natureza, o movimento dionisíaco quebra o princípio de individuação, fazendo os homens se ligar uns aos outros abolindo o que é subjetivo. Esse aniquilamento do indivíduo é alegre, está ligado à música, à experiência corporal e leva à identificação com a coletividade. É essa a participação buscada nos últimos anos por Oiticica.

           Se a individuação, como afirma Nietzsche, é o primeiro fundamento do mal, cabe à arte a “alegre esperança de que o exílio da individuação possa ser rompido”42 , e que seja restaurada a unidade. Oiticica reencontra essa unidade com a instauração do artista trágico. Em texto de 1979 afirma: “descobri q o q faço é MÚSICA e q MÚSICA não é ‘uma das artes', mas a síntese da descoberta do corpo”43 . Música e mito trágico nascem do dionisíaco e estão relacionados diretamente ao rock: “síntese planetário-fenomenal dessa descoberta”. Segundo Oiticica: “JIMI HENDRIX [Bob] DYLAN e os [Rolling] STONES são mais importantes para a compreensão plástica da criação do q qualquer pintor depois de [Jackson] POLLOCK!”44.

           Suprimir a música seria extinguir a essência do trágico, por isso, no percurso de Oiticica a valorização da música e do dionisíaco atinge o clímax no Parangolé , se desdobra na montagem não narrativa de Cosmococa , para ser ampliada em manifestações coletivas. A última delas organizada por Oiticica foi o Acontecimento poético-urbano Esquenta pro Carnaval , realizado em fevereiro de 1980. Evento dionisíaco por natureza, permite com a música e uma intensa alegria e prazer que o sujeito se transporte para fora de si e do mundo sensível. A imagem, como arte estática e com privilégio da visão, torna-se hierarquicamente inferior na medida em que vai sendo engolida pelo êxtase e pelo poder libertador da música e da atividade do corpo. A festa dionisíaca, em que não falta dança, canto, embriaguez e música, apresenta isso. Oiticica, assim como Nietzsche, pensa e vive a arte enquanto movimento, o que alarga e amplia seus limites.

           Mostrando como o cinema, entre duas afirmações – Orson Welles e Godard –, negou-se a si próprio, a experiência de Oiticica não se propõe, portanto, como um “não” dialético que irá gerar uma síntese positiva de uma suposta contradição da linguagem do cinema. Oiticica afirma a diferença e perverte a ordem, gerando um estado de revolução permanente. A essência do trágico é uma experiência afirmativa e está ligada ao gozo tanto na preguiça, como em Éden e Ninhos , como na dança com o Parangolé . Sob essa perspectiva, podemos dizer que o pensamento em processo da obra de Hélio Oiticica é nietzscheano num sentido à primeira vista invisível: Cosmococa aparece como ruptura e, no entanto, realiza uma continuidade. Poderia haver melhor exemplo do sentido filosófico da diferença?

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