Gênese e Razão do Bandido da Luz Vermelha
Resumo : Este artigo analisa como um personagem marginal da sociedade, conhecido como “o bandido da luz vermelha”, transformou-se em um símbolo na arte da cinematografia, bem como suas implicações éticas e políticas.
Palavras-chave: filme brasileiro; arte; transgressão.
Abstract: This article examines how a marginal character of society, known as "o bandido da luz vermelha", becomes a sign in the art of cinematography, as well as its political and ethical implications.
Key words: brazilian movie; art; transgression.
O que é um bandido? Alguém que faz de seu desajuste uma norma, que zomba da lei e quer instaurar como lei seu próprio desejo? Para todo efeito, o bandido só é bandido se triunfa, se na soberania de seu ato converte o instante do crime em acerto, em desempenho, coincidindo com o ponto mais alto da sorte, onde não há mais limite e nenhuma racionalidade se sustenta. Tudo então conspira a favor e ele pode ratificar sua espécie, sua marca.
A vontade de potência que em geral estimula o transgressor se revela nesse caso uma força exclusiva destruindo valores, eliminando a fronteira que o separa dos outros, expropriados de seus pertences, quando não de si mesmos.
A transgressão, como se sabe, não se importa com a lei, mas jamais a perde de vista. Caso contrário seu mecanismo não funciona. É preciso sentir que em algum lugar do real um corpo simbólico se ergue pedindo profanação. Sem violência, sem transgressão, não há crime, e nenhuma dessas figuras possui qualquer sentido muito além do inócuo.
O bandido, afinal, não deixa de ser a consciência do lobo numa moral de rebanho. Quer devorar todas as rezes porque não quer se tornar uma delas. Não pretende se render ao regime obtuso da mera subordinação. A moral para ele é um logro, um sistema de exclusão. Não podendo legitimar seu ato, ele se realiza no conflito com a sociedade, onde, quem sabe, poderá chegar a herói. Às vezes estas figuras se cruzam, se mesclam, pois ambos, o bandido e o herói são companheiros de excesso num horizonte de extremos. Não se dirá o mesmo da prostituta e da santa?
Em O bandido da luz vermelha , de Rogério Sganzerla, não há propriamente o bandido, mas sua paródia. No filme o bandido zomba de si mesmo e efetua seu estilo. Dificilmente um bandido “genuíno” se expressaria assim. Este em geral se situa fora da dimensão estética, mas sem dúvida em alguma margem.
O valor do bandido de Sganzerla está naquilo que ele realmente é: uma imagem . Como livrar o bandido da imagem que dele fazemos? A solução de Sganzerla é reinventar o bandido produzindo outra imagem para ele. Esta imagem é híbrida: sedutor, histrião, herói...
Reino das imagens, o cinema faz delas seu signo, seu movimento, seu tempo. É assim que esta arte mantém uma relação permanente com o Aberto e com o que nos é sensível. Por isso tais imagens nos fascinam. Fluidas, as imagens também são suportes de relações.
Em O bandido da luz vermelha a bricolagem dos gêneros (western, chanchada, ficção científica, policial, documentário radiofônico) produz imagens degeneradas. O suporte ficcional desvirtua todo efeito de realidade e toda ilusão denuncia em si mesma seu mecanismo ilusório (veja-se o disco voador em forma de um pires que explode). Quanto ao bandido, que atira para todos os lados, é certo, corre o risco de tornar-se vítima de si mesmo. Então, por trás de sua máscara, divisaríamos mais que um tolo, provavelmente um louco. E um louco já não pertence mais a este mundo. Deste modo, o bandido de Sganzerla, a despeito de todo esteticismo de sua figura, deve ser visto na integridade de sua margem, vale dizer, onde ele se excede conduzindo-se nas formas do degenerado ou no extremo do risível, neste viés que, segundo Bergson, se paga o mal com o mal. Haverá outra saída?
A favor deste cinema como arte crítica talvez se possa dizer que, no mínimo, vai à raiz do problema, ou seja, questiona o modo como decodificamos nossas relações de dominação e de desejo, e apostamos na ética como uma tábua de salvação para o mundo, sem levar em conta seus buracos e remendos. Quanto à política, é certo que vai a reboque, valendo-se da empreitada para melhor revelar sua impostura.
Num viés nietzscheano a crítica mais certeira talvez defenda que o transbordamento dos valores produz no limite novas alternativas para as trocas humanas em benefício da vida. O “bandido da luz vermelha” então já seria outra coisa, um devir que se afirma em pura negação usurpando seu próprio signo para nos devolver ao grau zero da sociedade e da política. Não seria ele o inspirador de um novo tipo de homem a ser refeito com a própria lama em que há séculos invariavelmente se suja? Mas ele é apresentado por Sganzerla como um “boçal ineficaz”. Acredita que, não podendo fazer nada, “a gente avacalha”, isto é, se vinga da opacidade do mundo e da necessidade absoluta pela força cega da hybris: a violência desmedida dos gestos. Será esta a única maneira de se ter tudo? “Ter tudo”, aqui, significa perder tudo em seguida, imediata e irremediavelmente, dilapidando todas as coisas num movimento acelerado de dádiva inconsciente pelo princípio do gasto, da gastança, já que segundo esta lógica tudo é sacrificado ainda mais rápido do que quando adquirido. Ou existe algum bandido que conserva, que não faz do excesso e do dispêndio generalizado o centro de gravidade da vida? Não é deste modo que ele identifica na soma de seus atos uma relação com o gozo e com a morte?
O bandido da luz vermelha é esse momento em que a arte de contestação no Brasil (O Cinema novo é outro caminho deste processo) faz de sua linha de resistência uma dobra incômoda, zombeteira, no tecido dos poderes instituídos. 68 é o ano emblemático em que os gestos contestatórios ganham no mundo grande visibilidade. No contexto brasileiro desta época, o cinema de Rogério Sganzerla apresenta nesta obra seu tom mais radical sabendo dela extrair efeitos corrosivos.
Notas
* Professor de Filosofia da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, escritor e tradutor. Publicou Angelolatria e O reino da pele , ambos pela Iluminuras.
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