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O Tratado de Comércio entre o Brasil e os EUA1
Anita Simis*


Resumo : Este artigo é resultado de uma pesquisa sobre o cinema brasileiro e o Tratado de Comércio com os Estados Unidos, firmado em 1935. No meio cinematográfico, ele ficou conhecido, e é sempre mencionado em congressos, como um exemplo de favorecimento por parte do governo brasileiro em relação à importação de filmes norte-americanos. Na verdade, como procuro provar, tal instrumento nem trouxe vantagens para a nossa exportação de café, nem beneficiou os filmes norte-americanos.

Abstract: This article is the result about the brazilian cinema and the United StatesTrade Agreement with Brazil, signed in 1935. Among the cinematographic circle it is most known, and frequently mencioned in congresses, like an american film favored exemple. Actually, like I want to prove, such instrument  brought no advantages to our coffee exportation, neather benefit american films.


Um dos pontos mais obscuros acerca das questões cinematográficas é a relação entre as taxas alfandegárias incidentes nos filmes virgens e nos impressos, estabelecidas pelo Tratado de Comércio entre o Brasil e os EUA, firmado em 1935.

Sabe-se que um dos instrumentos utilizados pelo Estado para aumentar a auto-suficiência brasileira é, de um lado, a concessão de privilégios tarifários e cambiais a bens de produção, de forma a atender às necessidades industriais, tais como matérias-primas, combustíveis, equipamentos e maquinária, e, de outro, a taxação com pesados impostos aduaneiros relativos àquelas manufaturas para as quais já há similar nacional. Aplicando-se esta política de incentivo e proteção à indústria cinematográfica nacional, teríamos, por um lado, a concessão de privilégios tarifários e cambiais sobre os equipamentos e materiais destinados à instalação de estúdios e laboratórios, especialmente em relação ao fornecimento da matéria-prima indispensável à produção -o filme virgem. Por outro lado, haveria pesados impostos aduaneiros sobre os filmes impressos importados.

Há anos os Estados Unidos são nossos principais concorrentes no mercado cinematográfico. Deste modo, importa verificar em que medida o governo brasileiro fez ou não concessões tarifárias àquele país, por meio do Tratado já mencionado.

O Tratado de Comércio com os Estados Unidos é mais conhecido no meio cinematográfico como aquele que favoreceu a importação de filmes norte-americanos em troca de vantagens para a nossa exportação de café. Provavelmente, a difusão deste juízo sobre o Tratado tenha ocorrido nos anos 50, pois foi durante o Primeiro Congresso Nacional do Cinema (1952), alguns anos após a suspensão do Tratado Comercial entre o Brasil e os EUA2, que a delegação de São Paulo fez uma proposta "no sentido de que o Governo nacional denunciasse a todo e qualquer tratado que dá prioridade a um país em detrimento a outro". De acordo com esta delegação, tal fato teria ocorrido com "o Convênio do Café firmado pelo Brasil com os Estados Unidos da América, em 1935, que (deu) isenção de taxa a toda mercadoria importada daquele país e vice-versa"3. Ou seja, se, de um lado, o Brasil, ao exportar matérias-primas e produtos agrícolas, principalmente café, obteria vantagens com as isenções das taxas aduaneiras norte-americanas, de outro, a isenção para a importação de filmes norte-americanos, associada à fragilidade de nossa produção, deveria ser considerada prejudicial para o cinema nacional. É provável, portanto, que, a partir desta denúncia, tenha sido divulgada a versão de que o Brasil barganhou benefícios tarifários para a exportação do café em troca da isenção de taxas sobre os filmes norte-americanos.

Entretanto, mesmo consultando-se as mais diversas fontes em busca de informações sobre o "Convênio", verifica-se que, aparentemente, deve ter havido um engano, pois em 1935 a negociação com os EUA em torno da comercialização de diversos produtos, inclusive café e filmes, resultou em um Tratado de Comércio, promulgado sob o Decreto 542, e não em um Convênio.

Outro equívoco diz respeito ao favorecimento concernente a produtos norte-americanos (isto é, à barganha em torno da tarifa do café), pois o Tratado estabeleceu, por um lado, a isenção das taxas para vários produtos brasileiros e, por outro, a taxação dos produtos norte-americanos , a qual, embora sendo a mais baixa possível, ainda assim, no que diz respeito aos filmes impressos e virgens, não os isentava : os filmes norte-americanos apenas pagavam taxas inferiores às dos filmes de outras nacionalidades (cerca de 20% a menos).

Este era, justamente, o intuito do Tratado, ou seja, ao "ampliar o princípio de igualdade constante das notas trocadas em 18 de outubro de 1923, pela concessão de vantagens mútuas e recíprocas para o desenvolvimento do comércio entre os dois países", os produtos brasileiros e norte-americanos pagariam "as tarifas mais baixas que seja possível cobrar"4. Assim, conforme o Decreto 24.343, de 5/6/1934, temos os seguintes direitos gerais e direitos mínimos para diversas mercadorias, inclusive os filmes impressos e virgens, distinção esta que explica a taxação estipulada pelo Tratado de Comércio entre o Brasil e os EUA:

Classe 30 o    
1601 Filmes Cinematográficos:    
Impressos:    
(...)    
  Unidades Direitos
    gerais /mínimos
De mais de 16 milímetros de largura . kg. P.L 70$140 56$990
Virgens kg. P.L 7$010 5$700
Com o Tratado5 temos:
   
Tabela I    
1601 Filmes Cinematográficos    
    Unidade Taxas
    convencionadas
impressos de mais de 16mm de largura kg P.L. 56$990
virgens kg P.L. 5$700

Estabeleceu-se, deste modo, o tratamento de nação-mais-favorecida, que, no caso do item filmes (virgens ou impressos), traduziu-se no pagamento dos direitos mínimos de importação previstos e estipulados pelo Decreto 24.343, de 1934. Segundo Macedo Soares, "o objetivo indispensável (...) era a garantia de que o café e outros produtos habitualmente incluídos na relação de mercadorias não-tributáveis permanecessem. (...) Mais de 97% das exportações brasileiras para os Estados Unidos não pagavam direitos alfandegários. Quanto aos produtos norte-americanos, para os quais Washington solicitava tarifas mais baixas no Brasil, seu preço de venda neste país, Aranha descobriu, era mais alto que o dos competidores , e por isso, as concessões por parte do Brasil não trariam nenhuma vantagem especial para os industriais norte-americanos"6.

Mas a questão que se coloca pode ser assim formulada: o Tratado favoreceu ou prejudicou o cinema nacional?

Considerando que um dos instrumentos utilizados pelo Estado para aumentar ou incentivar a produção nacional é taxar com pesados impostos aduaneiros as manufaturas para as quais já existe um similar nacional , primeiramente é preciso verificar se naquela época havia uma produção significativa de filmes nacionais e se as taxas impostas aos filmes impressos norte-americanos eram altas.

Em termos de produtoras existentes no período que antecede ao Tratado, poderíamos citar a Cinédia e a Brasil Vita, que já haviam realizado filmes de expressão, como Lábios sem Beijos, Ganga Bruta, Onde a Terra Acaba, Favela de meus Amores e outros, muito embora não tivessem maior importância econômica, uma vez que a produção era insuficiente até para o atendimento do mercado nacional. Lembramos que, em 1935, foram censurados apenas 486 filmes nacionais, enquanto que os norte-americanos totalizaram 1.349.

Em relação à taxa alfandegária, comparando-se as taxas impostas aos filmes impressos norte-americanos com as incidentes sobre outras mercadorias, verificamos que das 106 taxas especificadas, a taxa do filme impresso é superada apenas pela dos cimentos e das diversas modalidades de balanças, sendo, portanto, uma das mais altas. Mas, não obstante à reduzida produção cinematográfica e à alta taxação dos filmes impressos, o Tratado também favoreceu o cinema nacional, estipulando uma das taxas mais baixas para a importação do filme virgem. Do total das 106 taxas constantes no Tratado, 62 são inferiores à do filme virgem, devendo-se considerar que estas incidem, em geral, sobre a unidade kilo/peso legal de produtos muito mais pesados, como geladeiras e carros.

Estes estímulos não foram casuais. Apesar da oposição por parte de industriais, particularmente os paulistas, da crítica feita pela Confederação Industrial do Brasil quanto às "reduções nas taxas alfandegárias de vários artigos correntemente produzidos entre nós" e a despeito ainda da proposta de que "essas diminuições (recaíssem) exclusivamente em tarifas de produtos cuja importação (necessitássemos) e que não (fossem) fabricados no Brasil " (citando-se nominalmente, entre outros artigos, os "filmes cinematográficos")7, foram mantidas as altas taxas sobre os filmes impressos norte-americanos. Segundo Stanley Hilton, foram concedidas "apenas trinta e três reduções tarifárias", isto é, assegurou-se "uma redução média de cerca de 23% sobre automóveis, rádios, pneumáticos e artigos correlatos", mas não sobre os filmes impressos norte-americanos8.

Assim, no que diz respeito ao Tratado em si, pode-se concluir que houve um incentivo deliberado por parte do Governo visando ao desenvolvimento da produção nacional. No entanto, esta conclusão poderia levar à outra questão: em que medida este incentivo repercutiu no incremento da produção cinematográfica nacional? Mas, para respondê-la, antes seria necessário, ao menos, uma pesquisa sobre a política cambial do período9.

Finalmente, cabe assinalar que este Tratado teve seus efeitos suspensos apenas em 1948, com a criação do GATT (vide Circular 24, de 1948, do Ministério da Fazenda) e durante este período, dois Decretos-Lei a ele se relacionaram. O primeiro data de 1940, e beneficiou as mercadorias norte-americanas arroladas no Tratado, isentando-as da cobrança de duas taxas. Todavia, este favorecimento ocorreu apenas em detrimento dos produtos similares importados de outros países, pois a medida veio beneficiar indistintamente os filmes virgens e impressos de procedência norte-americana por cerca de oito anos (vide Decreto-Lei 2.878/40). O segundo, que data de 1943, trata especificamente da taxação incidente sobre os filmes norte-americanos. Ao estabelecer que a taxação seria feita com base no peso real, o que anteriormente fazia-se com base no peso legal, o Decreto-Lei diminuiu o montante cobrado para a importação dos filmes (vide Decreto-Lei 5.825/43). De qualquer forma, os dois Decretos não alteraram a relação das taxas aduaneiras de 10 para 1 cobradas, respectivamente, dos filmes impressos e virgens.

Notas

1Este texto consta como anexo de minha tese de doutorado e um resumo sobre este assunto foi, originalmente, publicado no Cine Imaginário, Rio de Janeiro, ano II, no 19, junho de 1987, p. 19, sob o título "Um Tratado pouco Conhecido". Posteriormente ficou em uma página da Internet que hoje já não existe.

*Bacharel em Ciências Sociais pela USP (1979) e tem doutorado em Ciência Política também pela USP (1993). Atualmente é Professora Assistente Doutora da Graduação e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) – Campus de Araraquara.

2Cf. Circular 24, de 12/8/1948 ,do Ministério da Fazenda. Posteriormente, esta Circular foi regulamentada sob o Decreto 26.242, de 26 de janeiro de 1949, e tornada pública a sua denúncia, pelo Decreto nº 43.317, de 10/3/1958.

3Cf. "Congresso Nacional de Cinema Brasileiro", Jornal do Brasil , 26-9-1952, p. 11. As denúncias foram feitas novamente durante o II Congresso Nacional (1953) por José Carlos Burle. Cf. Fundamentos , n o 34, ano VI, jan/1954, p.39.

4Decreto 542, de 24/12/1935, Coleção das Leis do Brasil , 1935, vol.III, p.290. Veja o comentário feito a respeito das notas no artigo "Brasil-Estados Unidos", O Estado de São Paulo , 19/10/1923, p.2.

5Decreto 542 - 24/12/1935. Observe-se que o Decreto mantém a relação de 10 para 1 da taxação incidente nos filmes impressos e virgens estipulada pelo Decreto 24.343/34.

6HILTON, Stanley E, O Brasil e as Grandes Potências, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1977, p.129 (grifos meus).

7É provável inclusive que, em virtude desta oposição, a regulamentação do Tratado tenha sido retardada em sete meses à sua regulamentação em Decreto. A crítica e a sugestão feitas pela Confederação Industrial estão em CARONE, Edgar, "O Tratado de Comércio com os Estados Unidos (1935)", O Pensamento Industrial no Brasil (1880-1945) , Rio de Janeiro/São Paulo, 1977, p.264 (grifos do texto).

8Hilton, S.E., op.cit . , respectivamente, p.136 e 130.

9Consultar sobre o assunto COHN, Gabriel, "Problemas da Industrialização no século XX", in Mota, Carlos Guilherme (org.), Brasil em Perspectiva , São Paulo, Difel, 1984, p.283-316. Neste artigo, Gabriel Cohn verifica que, apesar dos representantes da indústria concentrarem suas reivindicações nas medidas protecionistas ao nível tarifário, a mola da industrialização foi o mecanismo cambial que, por sua vez, era parte da política econômica voltada para sustentação do setor exportador.

Bibliografia


"Brasil-Estados Unidos", O Estado de São Paulo , 19/10/1923, p.2.

CARONE, Edgar. O Pensamento Industrial no Brasil (1880-1945) , Rio de Janeiro/São Paulo, 1977.

Circular 24, de 12/8/1948 ,do Ministério da Fazenda

COHN, Gabriel, "Problemas da Industrialização no século XX", in MOTA, Carlos Guilherme (org.), Brasil em Perspectiva , São Paulo, Difel, 1984, p.283-316.

"Congresso Nacional de Cinema Brasileiro", Jornal do Brasil , 26-9-1952, p. 11.

Decreto 24.343/34.

Decreto 26.242, de 26 de janeiro de 1949.

Decreto 542 - 24/12/1935.

Decreto 542, de 24/12/1935, Coleção das Leis do Brasil , 1935, vol.III, p.290.

Decreto no 43.317, de 10/3/1958.

Fundamentos , no 34, ano VI, jan/1954, p.39.

HILTON, Stanley E. O Brasil e as Grandes Potências, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1977.


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