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A polêmica sobre a violência em Cidade de Deus e Tropa de Elite

Rafael Araújo*
Priscilla Alves Teixeira Branco**


O cinema nacional vive uma fase de ruptura do silêncio das
imagens fortes, que tanto procuramos evitar.
João Moreira Salles


Resumo : O artigo analisa a repercussão de duas obras fílmicas do cinema nacional, Cidade de Deus (Fernando Meirelles, 2002) e Tropa de Elite (José Padilha, 2007), que abordaram a temática da violência urbana e engajaram a abertura de um debate social mais amplo. A discussão procura estabelecer um parâmetro de análise dos filmes, referenciando as noções de espetáculo e as potencialidades políticas de cada um, que além de servirem como formas de entretenimento, podem contribuir sob diversas óticas, para uma análise do meio social.
Palavras-chave: cinema nacional, violência, representação da violência, espetáculo


Abstract: The article analyzes the repercussion of two national movies, Cidade de Deus (Fernando Meirelles, 2002) and Tropa de Elite (Jose Padilha, 2007), which had approached the thematic of urban violence as well contributed to engage the opening of an ampler social debate. The discussion tries to establish a parameter of analysis, making references to the spectacle definitions and the politics potentialities of each film, that beyond serving as entertainment forms, can contribute under many optics, for an analysis of the social one.
Key words: national cinema, violence, violence representation, spectacle definitions



A representação de problemas sociais no cinema nacional não é prática recente. A temática do sertão, por exemplo, foi filmada em Abril Despedaçado ( Walter Salles, 2001), Guerra de Canudos ( Sérgio Rezende, 1997) e Cabra marcado pra morrer ( Eduardo Coutinho, 1984), mas também em Deus e o Diabo na Terra do Sol (Glaber Rocha, 1964); a contestação à ditadura foi problematizada em O que é isso companheiro? (Bruno Barreto, 1997) e Batismo de Sangue ( Helvécio Ratton, 2007), mas também em Eles não usam Black-tie (Leon Hirszman, 1981); conflitos sociais diversos foram trabalhados em filmes como Carandiru ( Hector Babenco, 2003), Ônibus 174 ( José Padilha, 2002), mas também em Pixote ( Hector Babenco, 1981). A lista se estenderia por outros temas que indicam diferentes conflitos vividos no cotidiano e suas forças políticas. De fato, a trajetória do cinema nacional compreende diferentes filmes sobre os mais diversos aspectos da sociabilidade, o que nos chama a atenção para a importância dessa forma de comunicação, tão impactante e sedutora, no que diz respeito às suas potencialidades políticas. O cinema guardaria em si mesmo, na mesma medida que diverte o espectador, a possibilidade de suscitar debates e chamar a atenção para aspectos da realidade. No presente artigo procuramos avaliar, a partir de dois filmes recentes, Cidade de Deus (2002) e Tropa de Elite (2007), a maneira com que a violência foi abordada e o impacto que causou.

O lançamento do filme de Fernando Meirelles levou mais de três milhões de pessoas às salas de cinema. É preciso dar crédito a esse fenômeno que em geral ficava restrito aos filmes nacionais voltados às crianças e ao cinema estrangeiro. O projeto de Cidade de Deus não agradou os colaboradores, que pensaram duas vezes antes de investirem capital em mais um filme sobre favela, e, embora o filme tenha sido concluído com recursos escassos, a qualidade da filmagem, fotografia e roteiro levaram a equipe a competir no Academy Awards (Oscar) de 2003 e, ainda que não tenha recebido a premiação, sua indicação contribuiu para divulgá-lo e as salas de projeção fossem lotadas.

A partir de então o debate sobre a utilização do cinema de ficção para tratar temas nacionais começou a ganhar terreno. Os documentários sempre foram fortes no Brasil, nomes como, Nelson Pereira dos Santos, Eduardo Coutinho, João Moreira Salles, Sérgio Muniz, entre outros, levaram às telas muito antes de Cidade de Deus , o problema da violência e da pobreza nas cidades. A questão, no entanto, é que o filme de Meirelles promoveu o debate de questões sociais em um número expressivo de pessoas. Isso implicou, principalmente, em um acerto mercadológico, mas também a possibilidade de voltar os olhos dos brasileiros para questões importantes de sua realidade. Não tardou para que ocorresse a discussão sobre a superficialidade do debate ou mesmo o romantismo presente na trama, bem como sobre a capacidade dos espectadores associarem os fatos trazidos pelo filme à realidade vivida na favela 1. A periferia foi incitada a discutir sua própria representação nas telas, as cenas de violência excessiva foram questionadas e, principalmente, a adesão do público suscitou muitos debates. De qualquer forma é possível considerar Cidade de Deus como um marco em que a indústria cinematográfica nacional passa a tratar o tema da violência com considerável sucesso, o que viria a incentivar outras produções, tais como o polêmico Tropa de Elite .

O tema da violência é bastante freqüente em filmes hollywoodianos. O clichê vilão/bandido e as artimanhas morais que recheiam suas relações não é novidade para o público brasileiro. É possível, portanto, reconhecer a violência como um tema com o qual o espectador se identifica, o que poderia explicar o sucesso de bilheteria. Ocorre que não é de qualquer violência que estamos falando. Certamente a violência doméstica, de gênero ou mesmo laboral é reconhecida pelo público e não emplacam sucessos de bilheterias. Trata-se portanto, de reconhecer que as duas produções a que nos referimos contaram com vigorosa divulgação, além de significativa qualidade técnica. Chamamos a atenção para o fato de que, nos dois casos, a violência possui um referente e a forma com que a trama fora construída seduzia pela narrativa e pela associação a casos reais.

O roteiro dos filmes foi construído sob um alicerce de filme de ação. As duas produções utilizaram-se de elementos e técnicas em comum, que reforçaram o caráter realístico das cenas e transmitiram ao público maior sensação de veracidade para a história. A cidade do Rio de Janeiro serviu de cenário e foram colhidos depoimentos e histórias reais para montagem do roteiro. As filmagens em estúdios foram evitadas e foram gravadas nas ruas e becos de alguns morros cariocas. Em Cidade de Deus a grande parte do elenco vinha da periferia carioca. Segundo o diretor, isso ajudaria no poder de convencimento do filme. Em Tropa de Elite , a presença de atores conhecidos foi, talvez, uma importante chave para criar identificação entre o espectador e os personagens. Nos dois filmes houve a preocupação de recuperar elementos próprios do cotidiano da periferia, o que foi essencial para enaltecer a verossimilhança das narrativas. Gírias, roupas, trejeitos, bordões, locações, hábitos, costumes, rituais, tudo foi meticulosamente imitado da vida real.

O ambiente escuro e claustrofóbico, a câmera que percorre vielas sujas e sombrias, pessoas agonizantes, disparos de tiros, choros, sangue, mortes, elementos que se repetem sucessivamente e são explorados durante as cenas. Gestos e ações são costurados de forma a chocar ou incomodar o espectador. A ênfase dos diretores no caráter psicológico dos personagens funcionou para a criação de relações dicotômicas trabalhadas nos dois filmes. O antagonismo entre o bem e o mau, o certo e o errado, o justo e o injusto, está enraizado nas personagens e ajudou na reafirmação de alguns estereótipos criados socialmente.

Cidade de Deus reproduziu a idéia de que a bondade e a maldade são características naturais. A sociedade seria capaz de conter a maldade dos homens, mas em situações limites, como as apresentadas pelo filme, não há soberania que seja capaz de evitar sua manifestação. A vida na favela, de acordo com o argumento do filme, não influi no comportamento de quem nasce predestinado a ser bom, mas é capaz de contribuir para tornar pior aquele que já nasceu ruim. Buscapé, o fotógrafo por vocação, consegue sair da favela sem nunca ter empunhado uma arma. O fracasso em se tornar bandido estava determinado desde sua infância. Zé Pequeno, por sua vez, nasceu e morreu bandido. Em uma determinada cena, quando Dadinho (Zé Pequeno quando criança) dispara seu primeiro tiro e mata uma pessoa, solta uma assustosa gargalhada. A essência má do menino já estaria definida. É verdade que o dualismo moçinho versus bandido remete-nos aos filmes hollywoodianos, quando a justiça é realizada através de meios não convencionais, e os papéis tradicionais passam por uma confusão capaz de, às vezes, ridicularizar as regras de convivência. Com isso é possível criar cumplicidade com um modo de agir ilícito e violento.

Dominic Strinati faz uma importante revisão bibliográfica sobre o papel da cultura de massa na sociedade contemporânea. Ao tratar o que Richard Hoggart nomeou como “barbarismo reluzente”, termo usado para identificar a influência da cultura norte-americana na classe trabalhadora e comunidade tradicional inglesa, Strinati releva a importância de se avaliar o impacto da cultura norte-americana, especialmente o cinema hollywoodiano, para a mudança no modo de vida das pessoas que consomem esses produtos. Talvez seja possível avaliar os personagens presentes em Cidade de Deus e Tropa de Elite de acordo com essas idéias. Para Hoggart, é possível tratar a americanização como algo danoso à cultura popular, ainda que seja preciso considerar o fenômeno como algo que não se dissocia das condições sociais e cultura locais. Isso implica olhar para o modo com que os personagens do filme foram construídos como um sintoma do convívio com a cultura norte-americana, mas também como um reflexo de condições sociais mais amplas. Strinati reforça essa concepção recorrendo às idéias de Dick Hebdige sobre a influência da americanização na concepção de mundo dos jovens ingleses. Hebdige diz que não ocorre uma apropriação do modelo americano de forma passiva e irrefletida, mas sim uma construção a partir dos materiais disponíveis da cultura popular. Hebdige aponta que os jovens ingleses

usaram as imagens, os estilos e o vocabulário da cultura popular norte-americana de modo inconfundível e positivo, como forma de resistência, embora não radical, à cultura das classes média e alta, e como uma defesa vigorosa contra sua própria subordinação (STRINATI, 1999, p. 47).

É nesse sentido que podemos encontrar aqui pistas para reconhecer em Cidade de Deus e Tropa de Elite alguns dos elementos presentes no cinema norte-americano, mas atentos para a forma como são resignificados. Personagens como Capitão Nascimento e Mané Galinha são um bom exemplo da forma com que as figuras do mocinho e do bandido são confundidas a partir de suas características. Se por um lado algumas das ações desses dois personagens seriam tradicionalmente atribuídas ao bandido, o contexto em que se inserem, bem pontuado pela narração do filme – que no desenrolar das cenas recobra fatos passados, intenções, sentimentos –, permite que continuem ocupando o lugar do mocinho. O que poderia ser uma releitura da figura do herói, como aquele que comete vilezas como qualquer outro ser humano, acaba sendo uma reprodução de um modelo hollywoodiano, mas contextualizado de forma a gerar identificação no público brasileiro.

Essa discussão em Strinati indica a possibilidade de avaliar como os produtos culturais são construídos a partir de realidades locais e, nesse sentido, o modelo norte-americano de herói guardaria uma significativa correspondência com o contexto narrado pelos filmes brasileiros.

Fig. 1. Imagem de Cidade de Deus . Fonte: www.pontomidia.com.br.

Fig. 2. Imagem de Tropa de Elite . Fonte: www.cinelog.com.br.

Em Cidade de Deus , a natureza de Zé Pequeno serve de parâmetro para medir o grau de maldade e bondade dos demais. As ações cruéis vindas de bandidos bem intencionados são justificadas pelas condições perversas em que vivem. A adversidade da favela é apresentada de tal forma que, caso a caso, os heróis e os vilões vão sendo definidos. O espectador, que acompanha o narrador da história e tem uma visão atemporal dos fatos, sente compaixão de Mané Galinha, personagem que vê a namorada sofrer abuso e parte de sua família ser assassinada pelo bando de Zé Pequeno. Mané Galinha entra para o crime como se não tivesse escolha, sua história é apresentada junto às contingências de tal forma que suas ações são tidas como heróicas pelo público 2. O tema da violência passa a ser considerado dentro de um contexto fabricado, repleto de juízos e moralidade, e o que temos é a reprodução de modelos já conhecidos e aprovados que, somados à estética realista, ganham força entre os espectadores e balizam as discussões sobre o cotidiano.

Em Tropa de Elite a narrativa se desenrola também sob um dualismo. O foco está nos policiais corruptos, que merecem morrer junto com os traficantes, e nos policiais truculentos, que cumprem seu papel social. As cenas escuras, ofegantes e sangrentas também fazem parte do filme, mas agora, além de assassinatos, perseguições e mortes, a presença visual da tortura e da humilhação é explorada excessivamente. Em uma das cenas o traficante Baiano prende dois universitários em pneus de caminhão para queimá-los vivos. Essa prática é conhecida como “microondas” e corresponde à pena máxima para quem deixa escapar informações que prejudiquem o tráfico de drogas. Antes de queimá-los, após a súplica dos universitários por suas vidas, Baiano estende a mão em direção à cabeça de uma das vítimas e dispara um tiro. Não há cortes na cena. No menino ainda vivo é derramado um líquido inflamável e, em seguida, um outro traficante acende um fósforo e o joga nos dois corpos. Também não há cortes. Outra cena que podemos citar como exemplo da forma como a violência é abordada pelo filme é a que Capitão Nascimento, protagonista e herói, tortura uma moradora da favela com um saco plástico, fazendo-a sufocar antes mesmo de obter a revelação esperada. Novamente, não há cortes e podemos ver a personagem desfalecer diante da câmera. As ações do Capitão Nascimento não causaram repugnância a todos os espectadores. É isso que se pode concluir diante de tantas imitações caseiras mostradas em vídeos da Internet e debates intensos que se seguiram na Web, mas também nos jornais impressos e televisão.

O que se viu em Tropa de Elite foi a desconcertante afeição de algumas pessoas à figura do personagem central. Sua imagem chegou, inclusive, a ser clamada por celebridades desesperadas pela falta de segurança pública. Novamente é possível identificar a reprodução de um estereótipo compartilhado por significativa parte da sociedade, a partir do qual foi possível ouvir o senso comum de que bandido bom, é bandido morto e policial bom é policial que mata. O fato dos policiais serem truculentos não causou indignação em grande parte da audiência, que acabou por valorizar a postura honesta e incorruptível dos componentes da tropa. Houve uma banalização da violência, justificada em alguns meios pelo discurso de que a não corrupção dos policiais era algo suficiente para legitimar suas ações.

Nos dois filmes existe um jogo entre a violência das imagens , o poder que elas têm de incomodar o espectador, e a imagem da violência , que pode ser desconhecida ou não por aqueles que assistem às cenas. Essa tensão gerada pela imagem e que exerce uma espécie de violência no espectador assemelha-se ao que Norval Baitello Júnior denominou como iconofagia . De acordo com Baitello existe hoje uma inflação de imagens tamanha que estaríamos vivendo um processo de incorporação delas em nosso cotidiano e, por conta disso, ocorreria também a incorporação de nosso cotidiano pelas imagens.

As imagens visuais, as imagens auditivas, as imagens mentais e conceituais, aquelas mesmas imagens que ajudaram a povoar o imaginário da criatividade humana, que ajudaram o homem a construir a sua segunda natureza, sua cultura, entraram em processo de proliferação exacerbada. Quanto mais elas se oferecem como alimento, mais aumenta a avidez por imagens. Quanto mais aumenta a avidez, menos seletiva e menos crítica se tornam a sua recepção e a sua oferta. Quanto menos seletiva e menos crítica sua recepção, tanto menos vínculos e relações, tanto menos fios e elos, tanto menos horizontes e expectativas, tanto menos consideração por tudo que está ao lado, tanto menos ética, tanto menos história (BATEILLO, 2000, p. 3-4).

De fato não é apenas a imagem da violência que seduz e incomoda o espectador, mas o pronto reconhecimento das imagens vividas no cotidiano na tela. A própria vida estaria sendo devorada pela imagem e transformada em uma espécie de bolo alimentar, que novamente nos é ofertado. Há aqui uma violência, que resulta no círculo vicioso a que nos condena o mercado cinematográfico. As imagens são feitas para seduzir e, tais como as sereias da Odisséia, aguardam o mergulho do espectador em busca do prazer e da diversão para revelarem-se como monstros e exercer sua devoração.

Não queremos entrar na discussão travada pela Escola de Frankfurt sobre as potencialidades de gerar reflexão do cinema e seu aspecto mercadológico e alienante. Mas a presença da violência nesses dois filmes comerciais deve ser vista como um fenômeno especialmente interessante, uma vez que a polêmica estabelecida atingiu um número expressivo de pessoas, o que nos permite arriscar um olhar político para ele. É possível identificar uma crítica sobre o cinema comercial de que as opiniões políticas nele contidas são exploradas com um viés sensacionalista, o que faz com que as imagens da violência e da miséria sejam espetacularizadas.

É preciso avaliar as implicações dessa crítica. Em um filme as imagens são representação do real; passam por um tratamento técnico, as cenas são ensaiadas e coreografadas. Mesmo em um documentário o cineasta faz um recorte, uma leitura do real, quando seleciona as imagens que ficarão enquadradas e as que terão de ser excluídas. Como exemplo desta parcialidade de visão, podemos citar o documentário etnográfico de Edgar Morin, referido por Paulo Menezes em um artigo, que nos alerta para o problema da produção de conhecimento em filmes documentais.

O texto remete-nos a um filme, baseado em pesquisa etnográfica, dirigido pelo antropólogo francês e realizado na aldeia de Plozévet , noroeste da França. As mulheres daquela aldeia realizavam as mais diversas tarefas cotidianas trajando vestimentas e penteados pesados e complexos, mas que faziam parte de suas identidades. Quando o documentário de Morin foi exibido pela primeira vez, o fato do filme ter sido rodado com base em registros etnográficos validou suas imagens e a produção de conhecimento gerada à posteriori de sua exibição. Em nenhum momento o cineasta/pesquisador foi questionado quanto à validade das informações veiculadas tampouco quanto à legitimidade da pesquisa acadêmica. Alguns anos depois, outro cineasta retornou a localidade e entrevistou as mesmas mulheres que apareceram no primeiro vídeo. O resultado foi um pouco conturbador. As mulheres confessaram que foram “obrigadas” a usar as vestimentas, tanto por parte dos maridos, que não desejavam suas esposas expostas de qualquer maneira frente às câmeras, quanto a pedido do pesquisador/cineasta, que não pode esperar por um ritual típico para registrar o uso das roupas. O problema em torno do filme de Morin foi a validade acadêmica atribuída à obra. O filme só foi legitimado como pesquisa por ter se baseado em uma etnografia, até então, tida como uma das formas mais imparciais de registro. A problemática discutida por Menezes diz respeito ao olhar do público para o filme documentário:

por mais que os documentaristas possam argumentar que não existem dúvidas de que um documentário é uma visão determinada sobre determinado assunto, portanto, uma visão sempre parcial, dificilmente o receptor, o público, irá ao cinema com estes mesmos pressupostos (MENEZES, 2002: 91).

Nesse sentido, estes filmes etnográficos ou sociológicos também guardam um aspecto ficcional, pois apresentam diversas maneiras de se construir as realidades do mundo real. No caso de filmes como Cidade de Deus e Tropa de Elite , ainda que não haja um compromisso de difundir a verdade sobre a realidade retratada, há um esforço em construir imagens que possuam propriedades da realidade.

As imagens presentes nos filmes guardam similitude com o real e, ao mesmo tempo, são organizadas, controladas e limitadas. Esse processo implica escolhas de uma equipe que, ao pensar o produto final, mantém em vista uma finalidade que nem sempre fica evidente. De uma forma ou de outra, uma representação da realidade, tal como a que foi feita nos dois filmes em questão, pode apontar para uma questão política e ideológica.

Dizer que a imagem da violência em Cidade de Deus e Tropa de Elite foi espetacularizada implica reconhecer que não se trata apenas das imagens em si, com o realismo com que foram produzidas, mas reconhecer que foram imagens pensadas que suscitaram discussões em diferentes grupos sociais. “O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediatizada por imagens” (DEBORD, 1997: 13 ). Ocorre que as discussões foram estabelecidas a partir da abstração do real, tendência de um mundo que cada vez mais se torna abstração. Por um lado, os indivíduos contentam-se com a representação do mundo como a matéria-prima das discussões; por outro lado, a indústria cinematográfica reconhece essa afinidade e aceitação dos indivíduos e o lidar com a abstração do real coroa-se como regra, o que implica um processo de afastamento do mundo vivido. De fato, esse processo de inversão do real que descreve Guy Debord em A sociedade do espetáculo (1967) é produzido em função de determinada sociabilidade que se subordina ao mundo da mercadoria. O espetáculo, na mesma medida em que é abstração do real, é ele próprio realidade e insere-se no cotidiano vivido. De forma que, ao tratar a representação da violência em filmes assistidos por um expressivo número de pessoas, o que temos é o produto de uma relação ampla que se estabelece entre a indústria cinematográfica e uma série de implicações desenvolvidas em uma sociedade que se organiza em torno de simulacros.

As cenas de violência, inseridas em um enredo factível, são realizadas com tal riqueza de detalhes que confundem o espectador. Reconhecemos os objetos e situações retratados na grande tela que, em determinado momento, podem fazer parte da nossa realidade objetiva, contudo, não são reais. Podemos, inclusive, ampliar essa discussão questionando se de fato esse reconhecimento das situações é vivida pela maioria das pessoas ou se a identificação imediata que se estabelece já não é pautada por outras representações realizadas por outros meios e que são absorvidas por nosso imaginário. De fato, a maioria das pessoas que assistiram às cenas dos filmes e que julgaram serem a pura realidade, jamais estiveram em um morro carioca ou presenciaram a ação de traficantes e policiais.

Poderíamos fazer uma analogia com a obra de René Magritte que, ao escrever em sua tela “ Ceci n'est pas une pipe ”, nos chama a atenção para o fato de que aquela imagem pintada, cujas propriedades se aproximam das de um cachimbo real, de fato é apenas a representação de um cachimbo. O cachimbo de Magritte não é um cachimbo real, mas não por isso sua imagem deixa de ser verdadeira, pois ao reconhecermos a pintura do cachimbo, atribuímos a ela um significado e reconhecemos a existência do um objeto semelhante encontrado em nosso cotidiano. O público do cinema reconhece que as imagens de violência dos filmes também podem estar presentes no dia-a-dia, tão violentas quanto aparecem na tela ou, quem sabe, ainda mais terríveis. (Podemos dizer então que, a despeito de serem representações do real, as imagens de violência trazidas pelos filmes podem guardar verossimilhança com a violência das ruas e, ainda que guardados pela segurança das salas de projeções, colocam os indivíduos em contato com esses fatos da vida real.)

Se reconhecemos que a violência do cinema pode acontecer tal qual a violência da vida real, por que afinal esses filmes receberam o rótulo de sensacionalistas? Por que os filmes foram acusados de glamorizar a violência? Talvez, para responder a esses questionamentos, tenhamos que atentar para a reação do público. A semelhança entre imagem e vida real fez com que os filmes ganhassem status de obras documentais e não ficcionais. Mesmo com efeitos especiais e técnicas cinematográficas a violência nos filmes foi convincente a ponto de causar incômodo e consternação nos policiais do Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro, que foram a público se explicar e tentar desfazer a imagem de torturadores cruéis e sanguinários. Podemos dizer que se as imagens realistas dissessem respeito a outro aspecto do cotidiano, como as jornadas de trabalho nas metrópoles, talvez sequer passasse pela cabeça das pessoas atribuírem ao filme o status de documentário.

Segundo Esther Hambúrguer a utilização do tema da violência e da pobreza são propositais. Os produtores não estão preocupados em realizar debate ou denunciar problemas sociais, mas sim garantir espaço na mídia e, conseqüentemente, lucro (HAMBURGER, 2007: 124). A televisão (mais especificamente a Rede Globo) patrocinou aproximadamente a metade dos filmes distribuídos pela Motion Picture Association no ano de 2007. (GIANASSI, 2008: 57). Alguns exemplos são Cidade dos Homens (Fernando Meirelles, 2002), Não por acaso ( Philippe Barcinski, 2007) , Caixa Dois (Bruno Barreto, 2007) e O cavaleiro Didi e a princesa Lili (Marcus Figueiredo, 2006) . A entrada da televisão na disputa pelo controle da veiculação das imagens teria sido prejudicial para o cinema no sentido de diminuir a diversidade de produções em prol de projetos populares e de fácil aceitação. Um exemplo é o documentário  do rapper MV Bill, Falcão, meninos do tráfico (2006), que foi transmitido com exclusividade pelo programa dominical Fantástico. No mercado midiático é possível mapear e quantificar os temas que rendem mais audiência. A violência é um dos assuntos que preenche boa parte dos noticiários, com isso, podemos compreender melhor a identificação das pessoas com o enredo de Cidade de Deus e Tropa de Elite e o fato de terem se sentido motivadas a manter calorosas discussões em torno de um tema sobre o qual parecem já ter opiniões formadas.

Então, diante da afirmação de que as imagens exageradas de matança e pobreza no cinema fazem do filme um espetáculo, é preciso identificar um problema anterior aos filmes. Por que, afinal, a imagem da violência incomoda tanto? Vemos nos jornais o aumento dos índices de violência, mas onde estão as imagens da violência? Em entrevista 3, João Moreira Salles, diretor de Notícias de uma Guerra Particular (1999), fez esta simples mas inquietante pergunta. Os meios de comunicação de massa substituíram as imagens da violência por gráficos, tabelas e simulações através de desenhos e animações. As pessoas não têm acesso às imagens reais dos assassinatos e mortes que são anunciados pelos jornais todos os dias, o que vêem são as estatísticas, os comentários inflamados de apresentadores e jornalistas, depoimentos de testemunhas e autoridades.  Segundo João Moreira Salles, o Brasil passa por um problema, o do “silêncio visual”. A imagem da violência fica restrita a jornais populares, com isso perde seu potencial crítico e se torna notícia sensacionalista 4.  Algumas cidades do Brasil, notadamente Rio de Janeiro e São Paulo, possuem índices de morte iguais ou maiores aos de cidades em estado de guerra civil declarado, no entanto, os cidadãos são preservados das imagens dessa violência real e lidam com o assunto a partir do senso comum fabricado nas ruas e nos meios de comunicação.

Seria possível pensar que filmes como Cidade de Deus e Tropa de Elite preenchem uma lacuna deixada pelos principais telejornais do país? Encontramos alguns problemas nessa formulação. Primeiro, é preciso ponderar que o cinema comercial não tem por função divulgar a realidade e, portanto, não tem nenhum comprometimento nesse sentido. Ainda que aceitemos a possibilidade de encontrar nos dois filmes a virtude de ter colocado a discussão em debate entre os espectadores, autoridades e moradores das favelas que serviram de locação, essa discussão esteve pautada em histórias ficcionais o que mantém o debate deslocado e próximo à abstração. Segundo, considerar o cinema sobre violência com uma função jornalística implica uma inversão de papéis que, se considerada com seriedade, poderia atenuar nossas expectativas sobre a função dos meios de comunicação de massa. Ainda que concordemos com João Moreira Salles sobre a ausência de imagens de violência nos meios de comunicação de massa, não esperamos que os telejornais divulguem imagens do cotidiano de traficantes e policiais e, nem tampouco que divulguem seus métodos de ação, conflitos e disputas por poder. Talvez o que se espera da mídia é um debate consciencioso em torno da violência, recuperando informações e oferecendo o maior número de enquadramentos possíveis sobre um mesmo fato, a fim de que os cidadãos tenham em mãos os dados para uma discussão menos superficial e possam construir sua opinião.

Talvez a crítica feita aos filmes, no que diz respeito à abordagem do tema, seja pela forma emotiva com que a violência foi apresentada e o que se esperava era uma discussão menos passional e mais racional. Reivindicar isso de um filme comercial, no entanto, é ignorar seus preceitos e atribuir-lhe funções que não lhe cabem. O fato dos filmes serem de ficção e apresentarem cenas de violência excessiva só fez crescer o debate entre as pessoas nas ruas e nos meios de comunicação de massa, que muitas vezes deram prosseguimento às discussões por encontrarem nesse fenômeno uma pauta a ser realizada. As questões não são novas. O incômodo pode ter sido causado pela presença não usual das imagens fortes, seguidas pela informação de que a história contada dizia respeito a uma realidade concreta, ainda vivida no presente. Isso foi suficiente para que alguns associassem o filme a um documentário.

A polêmica gerada nos parece ter sido positiva. O simples fato das pessoas discutirem o tema foi um ponto fora da curva e rendeu uma atenção das pessoas a um tema que em geral pouco se debate. As estatísticas sobre a violência são recebidas pela população com uma espécie de indignação mansa, como se o assunto não lhe dissesse respeito. O fato de alguns terem colocado em cheque a produção dos filmes e questionado a interpretação da equipe como sendo tendenciosa, superficial ou mesmo irresponsável, aos nossos olhos, também é positivo. Em Cidade de Deus , Fernando Meirelles teve o auxílio de profissionais oriundos da favela para que nenhum detalhe escapasse a realidade, ainda assim alguns dos moradores não ficaram satisfeitos com o resultado. As imagens, ao serem trabalhadas, reorganizadas, e dotadas de texto ficcional, adquirem um distanciamento do real e isso é próprio do cinema. Um filme, quando não é explicitamente uma realidade inventada, é uma leitura do real, que propicia outras leituras dos espectadores. Essas leituras, é claro, poderão ser influenciadas pela narração do filme, pelos personagens e atores, pelo enquadramentos das situações apresentadas; mas sobretudo, as interpretações do filme serão fruto de uma combinação com a memória e as experiências vividas pelo espectador.

As imagens fortes de tortura e morte seqüestraram os olhos dos espectadores, fato que fica mais instigante em um país como o Brasil, em que a notícia sobre violência, ainda que seja sem imagens, é bastante comum. A maioria das interpretações foi fruto da indignação e permaneceu na superfície da questão. Mas a expressiva quantidade de pessoas que tomaram parte na polêmica contribuiu para que o fenômeno se transformasse em objeto sociológico. Cidade de Deus e, posteriormente, Tropa de Elite estabeleceram uma separação entre aqueles que acham que o realismo das imagens de violência no cinema contribui para reafirmar o espetáculo e aqueles que acreditam que o cinema comercial também pode, por meio do entretenimento e da polêmica, incitar o debate social. No caso desses primeiros, podemos enxergar nos filmes a presença da política na ideologia e no modo de produção de mercadorias culturais que mantém os cidadãos afastados do mundo vivido, lidando com simulacros. Para os demais, que vêem no cinema comercial uma rara oportunidade de inflamar debates na população, identificamos um elemento político na maneira como a opinião é formada e no fato de tantas pessoas serem mobilizadas em torno de uma questão social. Nas duas situações é curioso reconhecer no cinema comercial um objeto de análise legítimo, em torno do qual giram questões políticas, o que obriga os Cientistas Sociais a considerá-lo como algo mais que simples entretenimento.

Notas

* Professor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo e do Departamento de Política da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

* * Cientista Social formada pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo.

1 Como exemplo emblemático podemos citar a opinião do rapper MV Bill, morador de Cidade de Deus, divulgada publicamente e que condenava o filme como um estereótipo. Posteriormente, MV Bill e Celso Athayde fizeram o documentário Falcão – meninos do tráfico que, ao ser transmitido pela Rede Globo durante o programa Fantástico , em 2006, também causou grandes discussões.

2 Aqui mais uma vez podemos reparar na predominância de clichês. Quando Buscapé se refere à briga entre Mané Galinha e Zé Pequeno, comenta: “a parada agora é entre o bonitão do bem e o feioso do mal”.

3 Entrevista concedida aos organizadores do festival “É Tudo Verdade”, Maria Mourão e Amir Labaki e publicada na coletânea “O Cinema do Real” em 2005.

4 Alguns desses jornais são pautados praticamente por casos de violência, inclusive com reportagens ao vivo. Ainda assim, raramente as imagens de violência são expostas. Cria-se um clima de suspense mostrando viaturas em perseguição, câmeras em movimento, imagens escuras e, finalmente, a ênfase é dada pelos comentários avaliativos e pouco elaborados do apresentador. Mesmo nesses programas, cuja audiência não se aproxima dos principais telejornais, as imagens não são tão explícitas.

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