Jornalismo cultural: polêmica ou propaganda?1
Resumo :
Este artigo aborda como a crítica no jornalismo cultural tem se restringido ao espaço das resenhas, fazendo com que os textos tornem-se mais propagandísticos do que jornalísticos. Isso ocorre, em parte, pela necessidade dos jornalistas em agradarem ao circuito das artes, evitando polêmicas para manterem-se não só bem informados como usuários de benesses como convites para festas e viagens.
Abstract:
: This article approaches as the critical view in the cultural journalism has been restricted to the space of the reviews, what means texts become more propagandistic than journalistic. This occurs, in part, for the necessity of the journalists in pleasing the art circuit avoiding controversies to remain not only well informed as using benesses like invitations for parties and trips.
Quando se fala em crítica no jornalismo cultural, sempre se considera apenas o espaço de fato destinado às resenhas, como se todo o resto dos cadernos culturais devessem apenas ser registros das obras ou projetos de artistas ou produtores culturais. Contudo, o bom jornalismo cultural, assim como qualquer bom jornalismo, é o jornalismo crítico e é sobre isso que pretendo me aprofundar nesse texto.
Há uma complacência na cobertura de cultura pelos jornais, como se nesse campo só existissem pessoas de “boa vontade”, o que faz com que as mazelas do mundo sejam alocadas apenas nos cadernos de cidade e política, enquanto a cultura se configura como um espaço de armistício. Segundo essa fórmula, o “lado mal” da sociedade se revela nos cadernos sérios (política, dinheiro ou cotidiano), enquanto o “lado bom” na cultura.
Em parte, creio que isso tem a ver com um desconhecimento geral pelos jornalistas do papel que a arte assumiu, especialmente nos últimos 50 anos, em ser ela também um campo de crítica, de reflexão. Por isso, o que predomina nas coberturas em geral é uma visão da cultura e da arte como entretenimento e diversão, tornado desnecessário qualquer espaço para um jornalismo crítico. A crítica ficaria assim restrita às resenhas, que no fim são sempre a opinião de algum especialista, portanto um texto com caráter pessoal, subjetivo.
Mesmo assim, em alguns veículos, tampouco a crítica pode ser também exercida de forma independente, pois ela não deve assustar o leitor. Há alguns anos, recebi um email de um colega que trabalhava numa publicação brasileira de grande circulação especializada em cultura convidando-me para escrever uma crítica com alguns parâmetros um tanto estranhos:
“Caso você tope, teria então que ser um texto ‘objetivo, direto e didático', para um leitor interessado em artes, mas que não é familiarizado com a arte contemporânea. Enfim, um modelo que você já teve que aplicar outras vezes. Outro pedido, nas palavras deles [dos editores]: ‘que o texto não detone a exposição. Se for o caso, pode apontar fragilidades, mas não destruir'.”
Nesse exemplo, e se trata de uma das poucas publicações especializadas em arte, vê-se como o leitor é tratado de forma ingênua, até mesmo preconceituosa, enquanto o crítico fica impossibilitado de exercer seu juízo crítico de forma independente. Se “com bons sentimentos faz-se má literatura”, como afirmava André Gide, imagine-se jornalismo.
Mas, nesse exemplo observa-se o que o sociólogo francês Pierre Bourdieu denomina “informação ônibus”, ou seja, aquela que agrada a todo mundo, pois, no fim, quanto mais público se quer, menos se deve provocar o choque, a polêmica, portanto, o bom jornalismo.
Creio que isso também tem muito a ver com uma nova geração de jornalistas que percebeu que, quando se agrada a todos, seu trabalho fica muito mais fácil. É uma postura deliberada em realizar uma política de boa vizinhança para não deixar de ter informação e garantir, assim, uma série de privilégios, como convites para viagens, inaugurações, jantares, festas. No circuito das artes, especialmente hoje, que existe uma turismo da arte, jornalistas são convidados para conhecerem museus, instituições e centros culturais nas mais diversas cidades, do interior do país, como em Brumadinho (Minas Gerais), onde está o Centro de Arte Inhotim de Bernardo Paz, às grandes capitais européias.
Jornalistas que de fato exercem um olhar crítico sobre instituições culturais acabam não sendo mais convidados para retornar a tais locais. Por isso, percebo que tem sido comum apenas a valorização do “lado bom”, evitando especulações e polêmicas, ou seja, evitando-se jornalismo.
Nesse sentido, o que eu posso testemunhar é que na “Folha de S. Paulo”, onde trabalho há quase dez anos, nunca tive algum tipo de pressão em falar bem de alguma instituição e, sinceramente, sou até mesmo estimulado à crítica. O que percebo, contudo, é que não é a instituição jornal que evita polêmica, mas os próprios jornalistas. Conseguindo ser unânimes, escrevendo de forma positiva sobre todo mundo, deixam o jornalismo de lado, tornando-se semipublicitários mal pagos. Contudo, não se pode esquecer que “jornalismo cultural” é composto por duas palavras e, por jornalismo se espera sempre um olhar crítico, independente do campo ao qual ele está associado.
E se quero tratar dessa questão é porque acredito que o circuito artístico não gosta da crítica fora da própria crítica. Como exemplo recente disso, quero citar os curadores da 28ª Bienal de São Paulo, que, no relatório final do evento, avaliaram a cobertura jornalística da seguinte forma:
“Vale observar a diferença de abordagem entre a imprensa brasileira e a estrangeira. Enquanto a primeira, com significativas e gratificantes exceções, faz alarde de impressões generalizadas e questões localizadas, sem ver, tentar analisar, ou entender o todo do projeto, independente de suas qualidades e problemas, a segunda, recebe a 28ª Bienal como uma demonstração de energia e vitalidade da tradicional Bienal de São Paulo, por seu investimento num projeto de risco, provocador, abrindo um debate radical em lugar de continuar na sua confortável posição de uma instituição consolidada. Na imprensa internacional a 28BSP representa uma proposta de resgate das exposições dê arte contemporânea como um espaço de reflexão e experimentação, uma espécie de laboratório para as práticas artísticas e o pensamento na atualidade. Ela é percebida como um esforço de recuperar para a exposição um papel de ponta no debate e difusão da arte contemporânea, e para isso pôs em movimento um grupo qualificado de artistas, curadores, críticos e acadêmicos que ativaram o espaço e a memória da própria instituição que o realiza, assim como problematizaram o modelo e o sistema das bienais no circuito internacional”.
Esta Bienal, apelidada de Bienal do Vazio, foi extremamente questionada por todo o circuito artístico nacional, justamente por querer abordar o contexto da Bienal, presidida por um empresário desacreditado e sem legitimidade, o que dificilmente poderia ser percebido pela imprensa estrangeira. Sem compreender o contexto, a imprensa estrangeira, na maioria dos casos, limitou-se a uma visão superficial, da visita ao evento por dois ou três dias. Ora, não é de se desconfiar que visões tão rápidas sejam mais bem avaliadas que aquelas que, diariamente, estão envolvidas com a cobertura da Bienal?
O fato é que, por mais bem intencionados que os curadores Ivo Mesquita e Ana Paula Cohen estivessem, eles desconsideraram a cobertura crítica, pois acreditaram que a boa vontade deles, e disso não duvido, fosse suficiente. Mas, e talvez aí esteja um grave engano, toda a cobertura da Folha não foi por desmerecer o trabalho da curadoria, mas exercer jornalismo. Se, por exemplo, a prisão da pichadora teve tanta atenção por parte da mídia, é que isso é um fato jornalístico. Se funcionários e artistas não são pagos, isso também é um fato jornalístico. A Fundação Bienal de São Paulo é uma instituição pública e muitos dos escândalos que a envolveram só são conhecidos porque o jornalismo foi de fato exercido.
Existe uma forte tendência a se personalizar as relações, quando se trata da cobertura jornalística. Ora, se as pessoas exercem atividade de caráter público, elas precisam estar conscientes que podem ter um acompanhamento público de sua ação e que não necessariamente ele deva ser publicitário.
A questão da publicidade, aliás, é um elemento importante dentro do panorama que estou buscando apresentar. Isso significa que muito do que se lê em cadernos culturais é uma cópia ou uma versão disfarçada de releases enviados pelas assessorias de imprensa, que cumprem muito bem o seu papel de divulgadoras das exposições, apesar muitas vezes exagerando nos tons dessas mostras. Contudo, é isso que se espera de uma pessoa paga para tal função. A questão é quando os jornalistas acreditam em tudo o que o assessor escreve.
Recentemente, por exemplo, recebi de uma assessoria de imprensa um release no qual a exposição “Arte na França 1860-1960: O Realismo”, que ficaria em cartaz no Museu de Arte de São Paulo, entre 16 de maio a 28 de junho, seria “a mais importante do ano da França no Brasil”. Ora, fica até um tanto ridículo essa valorização excessiva, já que é de se desconfiar que o assessor de imprensa da exposição a apresente com tal superlativo.
Outro exemplo recente foi a exposição no Museu de Arte Moderna de São Paulo denominada “Olhar e Fingir: Fotografias da Coleção Auer”, em cartaz entre 23 de abril e 28 de junho. Segundo o release da assessoria de imprensa, esta seria a exposição que inauguraria o calendário do ano francês no país, ignorando uma outra exposição na Pinacoteca do Estado, “Fernand Léger: relações brasileiras e amizades brasileiras”, aberta quase vinte dias antes.
Até mesmo um repórter da “Folha de S. Paulo”, jornal que já havia noticiado a exposição da Pinacoteca, acreditou no texto do release, corroborando a assessoria de imprensa. Pior, contudo, foi que nenhuma das matérias sobre a mostra no MAM abordou um fato importante, mas constrangedor para o museu: a coleção do casal de colecionadores suíços Michel e Michele Auer, foi incluída no ano da França no Brasil, pois havia sido cedida para a cidade de Montpellier, na França, num museu que seria construído especialmente para esse fim. Entretanto, por uma alta taxação de impostos, o casal decidiu não mais ceder a coleção ao país, trazendo embaraço à festividade brasileira, que não despertou interesse dos jornalistas que cobriram a abertura da mostra, exemplo de jornalismo preguiçoso e benevolente. Informalmente, consultei até a assessoria de imprensa do museu para tentar entender porque omitiram a mostra da Pinacoteca e contaram que foi para agradar a presidente da instituição.
Esse comportamento parcimonioso, e um tanto autodefensivo, é verdade, leva a um jornalismo duvidoso, obviamente. Outro exemplo pode ser observado na revista “Bravo!” do mês de maio. Nela, um jornalista aponta que a obra do artista Hélio Oiticica (1939 – 1980) nunca teve tamanha repercussão como agora, usando como exemplo a construção da obra “Magic Square”, em Inhotim, na coleção de Bernardo Paz, considerando a iniciativa a “renascença Hélio Oiticica”. Sem dúvida é significativa a instalação dessa obra no espaço do colecionador mineiro, mas essa mesma obra já foi construída, há dez anos, no Museu do Açude, no Rio de Janeiro, que faz parte das Coleções Castro Maya, aquele que teve algumas obras roubadas há poucos anos.
O repórter conta de Inhotim, como se apenas agora projetos de Oiticica estariam sendo postos em prática, apontando desconhecimento dessa outra versão, que existe num lugar público. Provavelmente, essa primeira versão de “Magic Square” não deveria constar das informações contidas no release de Inhotim, caso tenha sido essa a fonte do jornalismo.
Outra possibilidade, sempre recorrente também no jornalismo cultural, é o uso do “gancho”, ou seja, de um fato recente que sirva para atualizar algum assunto que mereça ser retomado. A instalação em Inhotim poderia mesmo ser um gancho, mas outro fato mais marcante, a recente exposição de seis Penetráveis do artista no Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica, no Rio, inaugurada no início do ano, mas fechada pelo Projeto Hélio Oiticica, por falta de pagamento da Prefeitura do Rio, foi citada apenas no fim do texto, evitando-se a polêmica como eixo do artigo, que de fato é a informação mais contundente do texto.
Ao invés da polêmica, propaganda. Essa, afinal, tem sido a tônica do jornalismo cultural. O ceticismo, marca do bom jornalismo por criar certo distanciamento e dúvida, foi trocado pelo engajamento, fazendo com que repórteres considerem-se colaboradores do circuito artístico, caracterizando-os mais como porta-vozes do que como jornalistas de fato.
Notas
1 Este texto é uma versão ampliada do que foi apresentado no 1º Congresso de Jornalismo Cultural, no dia 07/05/2009, em mesa sobre Artes Plásticas intitulada “Arte e crítica”, da qual participaram os artistas Ana Maria Tavares, Paulo Pasta e o designer Rico Lins
* Doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, onde é professor nos cursos de Jornalismo e Comunicação das Artes do Corpo (graduação) e Jornalismo Cultural e Arte: Crítica e Curadoria (pós-graduação lato sensu). Atua como crítico de artes plásticas e repórter da "Folha de S. Paulo", além de ser colaborador da revista inglesa "Frieze" e autor de “Pina Bausch” (Cosac Naify, 2005), entre outros.
Bibliografia
BOURDIEU, Pierre (1997). Sobre a Televisão. São Paulo: Jorge Zahar Editor.
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