Paraísos artificiais: novos rumos em tempos de crise *
Resumo :
Entre 1992 e 1996, a produtora cinematográfica Paraísos Artificiais realizou diversos filmes de curta-metragem experimentais. Essa iniciativa, vinda de estudantes universitários em plena crise causada pelo fechamento da Embrafilme pelo governo Collor, já demonstra o ineditismo desse grupo diferenciado. Os filmes da produtora foram realizados com os recursos de seus sócios e apesar de terem baixíssimo orçamento tiveram bastante repercussão em festivais nacionais e internacionais, inclusive ganhando importantes prêmios.
Palavras-Chave: cinema experimental, curta-metragem, cinema universitário
Abstract:
Between 1992 and 1996, the cinematographic production company Paraísos Artificiais (Artificial Paradises) had produced several experimental short films. This initiative from college students in the moment of the crisis caused by the closure of Embrafilme in Collor government shows the originality of this special group. The films of the production company were made with the members' resources and, despite the very low budget, they had achieved a lot of repercussion in national and international festivals, winning important prizes.
Keywords: experimental cinema, short films, cinema in university
Contexto do Surgimento
O início dos anos noventa foi um período de grande crise econômica no Brasil e o já frágil cinema brasileiro ficou quase estagnado. O presidente Fernando Collor de Melo, entre outras medidas, rebaixou o MinC (Ministério da Cultura) a Secretaria da Cultura, nomeando como secretário da mesma o jornalista e cineasta Ipojuca Pontes.
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Durante um ano, Ipojuca prestou uma série de serviços com a finalidade de desobrigar o Estado dos negócios do cinema, sob a alegação de que o cinema brasileiro poderia competir em regime das leis do mercado com o produtor estrangeiro. Para tanto, Ipojuca revogou a legislação cinematográfica em vigor (...) e operou tecnicamente e politicamente o fechamento dos órgãos cinematográficos em atividade (Concine, Embrafilme e FCB). (...) Em função desta política estabelecida pelo governo central, muitos projetos de filme foram interrompidos, mesmo com contratos assinados e com outros em andamento, sofrendo sérios problemas de produção. (Gatti, 1999, p. 138) |
É nesse contexto de crise e incertezas que surge a produtora cinematográfica Paraísos Artificiais, (que atua entre 1992 e 1996). Dos cinco sócios que integram a produtora, quatro (Christian Saghaard, Débora Waldman, Marcelo Toledo e Paulo Sacramento) eram alunos do curso de cinema da ECA-USP.
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As escolas são justamente (em especial ECA e UFF neste momento) um dos maiores centros produtores do cinema brasileiro entre 1990-1994, onde a produção nunca chega a parar. (Valente, 2005, p. 45) |
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De uma maneira ou de outra, precisamos sempre pensar nos alunos de cinema como pessoas interessadas em trabalhar futuramente num “cinema brasileiro” – e a partir do momento em que este deixa praticamente de existir, como perspectiva de mercado, parece interessante olhar para o que acontece com as expectativas e sentimentos de relação com o mundo do cinema a partir dos alunos das escolas. (Valente, 2005, p. 45) |
O quinto sócio da Paraísos Artificiais, Paolo Gregori, dá um depoimento interessante sobre sua vivência do período:
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Na época que eu comecei a fazer cinema (...) aqui em São Paulo, o cinema brasileiro praticamente inexistia. (...) Essa geração que é da década de noventa, aqui em São Paulo e no Brasil como um todo, se caracteriza por uma coisa interessante: ela surgiu no ocaso da Embrafilme e atingiu o seu auge no início da “retomada”. Quer dizer, num período de meia década (...) a gente conseguiu se impor, se colocar no cinema brasileiro como uma geração que poderia ser considerada perdida, por assim dizer. (depoimento no evento Novo Cinema de São Paulo, 2006) |
Surgimento e Trajetória da Produtora
Em 1989, ingressam no Curso de Cinema da ECA-USP os alunos Débora Waldman, Marcelo Toledo e Paulo Sacramento. Segundo Marcelo Toledo, a afinidade entre os três já surgiu nos primeiros cinco minutos do trote realizado no campus. Como também lembra Sacramento:
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Eu, o Marcelo e a Débora éramos um grupo mesmo, da mesma classe. Desde que entramos na ECA, a gente passou a andar junto. A gente tinha alguns interesses comuns que normalmente estavam para além do cinema e por conta disso a gente acabou se juntando. (Sacramento, Depoimento 2006) |
Juntos, os três passaram a realizar diversas experiências em vídeo e algumas em Super-8. Também formaram a banda Vicious Dice . Em 1990 os três trabalharam no longa-metragem A Causa Secreta , de Sérgio Bianchi. Christian Saghaard, que havia entrado na ECA na turma de 1990, também trabalhava no filme e, durante a produção, Christian acabou incorporado ao grupo (inclusive tocando com a banda).
Paolo Gregori não era aluno do curso da ECA e já estava formado pela FAAP há alguns anos. Ao contrário de Marcelo, Débora e Paulo, durante a faculdade Gregori não encontrou nenhum grupo com que tivesse grandes afinidades. Depois de formado, continuou estudando cinema em cursos livres (alguns até no exterior) e exercendo cargos técnicos em algumas produções. Nesse período, chegou a realizar alguns vídeos como Filmes Abrem a Cabeça , mas não contava com apoio para produzir seus filmes.
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Me deu um click assim de que eu tinha que fazer um cinema realmente especial (...) O problema é que eu não conhecia as pessoas certas para fazer esse tipo de filme. (Gregori, Depoimento 2006) |
Paolo Gregori conheceu Marcelo Toledo e Paulo Sacramento em uma oficina de cinema ministrada pelo cineasta Denoy de Oliveira. Como a oficina tinha vinte e dois candidatos e apenas vinte vagas, Denoy sugeriu que todos fizessem o curso por uma semana e depois apresentassem um roteiro, para que ele conhecesse melhor os candidatos. Ironicamente, os únicos alunos eliminados do curso foram Paulo Sacramento e Marcelo Toledo. Paolo Gregori saiu com os dois e, numa mesa de bar, descobriu que tinham muitas afinidades e interesses em comum. Sobre o episódio, Marcelo Toledo avalia:
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Ele tava assim, meio aquele cara errante no cinema. Fazia vídeos caseiros, VHS com os amigos. Aí conheceu a gente, teve uma identificação pelos mesmos motivos que tinha com o Paulo e com a Débora, de gostos, de tudo e aí ele se integrou. Ele meio caiu como uma luva pra gente. (Toledo, Depoimento 2007) |
Gregori também concorda com a conveniência do encontro:
Foi uma coincidência. Eu precisava deles e eles meio que talvez precisassem de mim também. Porque eles gostaram da idéia e tal (do filme Atrás das Grades ). O Paulo que me falou, vou produzir esse filme de qualquer jeito, vamos fazer. (Gregori, Depoimento 2006)
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Destes desejos e afinidades resulta uma empresa que dura aproximadamente três anos e produz em torno de 13 filmes, ritmo um tanto impressionante, e que interessa acima de tudo por lidar com “autores” (como Gregori ou Sacramento), e ao mesmo tempo configurar-se como um coletivo de afinidades. (Valente, 2005, p. 97) |
Era um momento em que se produzia pouco, mas discutia-se e assistia-se a muitos filmes. Em 1991, juntamente com Arthur Autran e Vitor Ângelo, Paulo Sacramento editou a revista de crítica cinematográfica Paupéria, que, em seu primeiro e único número publicado, surgiu como uma espécie de catálogo para a Mostra de Cinema Marginal que estava ajudando a organizar na ECA. Além de um editorial escrito por Sacramento e de alguns artigos, a revista também apresentava uma entrevista realizada com o cineasta e crítico Jairo Ferreira.
Tanto a visualização dos filmes do chamado Cinema Marginal quanto a entrevista com Jairo são de grande importância para alguns parâmetros de estética e produção que serão adotados pelo grupo durante a existência da produtora, como usar os poucos recursos financeiros como desafio para uma nova linguagem (um dos lemas do Cinema Marginal é “quando a gente não pode fazer nada, a gente avacalha”), valorização do experimentalismo e utilização/subversão dos gêneros cinematográficos.
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Achei aquilo tudo muito próximo. Tipo “faça você mesmo“. A gente tinha uma banda... então era a mesma coisa. Assim, punk rock, cinema marginal, era tipo, pega, vá lá e faça. Eu acho que pra Paraísos foi meio isso, as pessoas iam, se juntavam e era aquilo que tinha a ver com nossa maneira de fazer os filmes também. (Sacramento, Depoimento 2006) |
As teorias de Jairo presentes em seu livro Cinema de Invenção também parecem ter repercutido nos integrantes da produtora. A Mostra do Cinema Marginal , que incluiu diversos dos filmes analisados por Jairo em seu livro, foi fundamental para apontar um modo mais instigante e viável de fazer cinema. A influência do cinema marginal nos integrantes da produtora é um ponto decisivo e convergente
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Tem o boom do curta de tendência cinemão e o boom do curta de tendência experimental. No experimental, a tendência é muito menor. O formato curta é mais propício para experimentação, mas a maioria que começa quer fazer cinemão. E é a tendência errada, é um equívoco. (Jairo Ferreira, entrevista Paupéria, 1991) |
Entre 1991 e 1992, o grupo teve uma produção intensa. Era o ano em que a turma de Paulo, Marcelo e Débora faria seus exercícios curriculares em 16 mm (de dez exercícios filmados, apenas três seriam finalizados). Débora filmou seu projeto, Silêncio , Marcelo fez Post-Mortem e Paulo realizou Ave. Dos três curtas, apenas Ave foi finalizado. O filme, de produção extremamente simples, é dedicado a Jairo Ferreira e tem como sinopse a frase de Aleister Crowley “faze o que tu queres, há de ser tudo da lei”.
Christian tinha acabado de sair da produção de A Causa Secreta e também estava decidido a filmar. Como ainda faltava um ano para sua turma realizar os exercícios curriculares, juntou as economias adquiridas quando era violinista (atividade que exercia desde a infância e na qual quase se profissionalizou antes de se decidir por cinema) e produziu seu primeiro filme, O Palco , em 35 mm.
Nesse período, todos trabalharam nos filmes uns dos outros e, para montar os filmes a tempo, utilizaram um procedimento até então pouco usual na ECA: aproveitar as moviolas no período noturno. Esse recurso fez com que o grupo trabalhasse junto por quase vinte e quatro horas por dia (especialmente depois que descobriram que poderiam receber entregas de pizza dentro da ECA).
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Era uma espécie de evento. A gente ocupava as duas moviolas e conversava, um via o filme do outro. (Saghaard, Depoimento 2007) |
Nesse período, Gregori também estava fazendo o seu Atrás das Grades , curta-metragem cuja sinopse é: O homem nasce livre, mas por todos os lados está atrás das grades. Paolo posteriormente dirigiu Que fim levou a Mocinha da Sauna Mista e Mariga . Nos dois filmes, Paolo lidou criativamente com a falta de recursos. Mariga foi editado na própria câmera, incorporando véus de luz como parte da linguagem do filme, que “reconstitui” a emboscada ao guerrilheiro Carlos Marighella.
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Aí a gente resolveu fazer os filmes, numa época que quase ninguém fazia. Os filmes que tinha eram aqueles filmes caretas do Cinema Cultural Paulistano... quer dizer... e a gente querendo fazer coisas poéticas, experimentais, undergrounds. (Gregori, Depoimento 2006) |
A partir de então, o grupo passa a produzir diversos filmes com esse caráter híbrido de usar a infra-estrutura da ECA (moviolas, câmeras, sala de produção) para realizar filmes extra-curriculares ou que fugissem às limitações dos filmes curriculares (de duração, locação, etc). Essa relativa independência de produção em relação à Universidade é comentada por Marcelo Toledo como a saída encontrada para fazer filmes que considerassem mais interessantes esteticamente.
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A gente viu que lá não ia rolar nada assim muito legal pra gente, que lá ia ser só um apoio. Então a tendência era sair fora. (Toledo, Depoimento 2007) |
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Pra gente foi uma coisa natural e não era uma coisa que acontecia muito na ECA antes da Paraísos. A gente começou a fazer um monte de projetos extra-curriculares, mandava e pedia aprovação (...) O fato é que a gente filmava bastante. Chegou uma época em que a gente fazia três, quatro filmes por ano. Um trabalhava no filme do outro, não pagava nada, nem comida. (Sacramento, Depoimento 2006) |
Em 1994, é a vez da turma de Christian filmar seus exercícios curriculares e ele dirige Meressias, em que mistura horror e ironia ao narrar a história de uma gangue de messias que crucificam mendigos alcoólatras. No ano seguinte, Christian dirige (em parceria com Carlos Botosso) o curta Sinhá Demência e outras histórias, filme experimental no qual, além de manter a associação horror e humor, adentra em um universo mais lisérgico e junkie. Referências também presentes no perturbador Vampiro , de Marcelo Toledo, curta no qual vemos o gênero “filme de casal” (muito comum nas produções do período) ser totalmente subvertido, numa relação sado-masoquista alucinatória.
Em 1995, Paulo Sacramento produz Juvenília. O filme era seu projeto de conclusão de curso e, num resumo empobrecedor, retrata um grupo de jovens classe média esquartejando um cachorro e sendo observado por outro cachorro. O curta foi feito com animação sobre fotos em preto e branco e conta apenas com uma trilha sonora, sem qualquer espécie de diálogo ou narração. O resultado é surpreendente e impactante.
As produções do grupo, mesmo que contassem com algum tipo de apoio como o recebido da ECA, eram financiadas pelos próprios integrantes da produtora e não davam nenhum tipo de retorno financeiro direto. A única exceção é Noite Final Menos Cinco Minutos , de Débora Waldman. Noite Final era o roteiro de conclusão de curso de Débora, mas ela abriu mão de realizar o filme pela ECA quando o roteiro foi selecionado pelo Prêmio Estímulo, o que possibilitou mais recursos para a produção. O curta é um road movie punk que acompanha uma mulher atraída pelo chamado da morte.
Num momento em que a escassa produção nacional tentava se adequar a uma produção mais “bem acabada”, estética e tematicamente mais convencional, a forma barata e ágil que os sócios da Paraísos encontraram fez com que fossem considerados diletantes ou amadores por defensores de um cinema mais “profissional”. A maioria dos filmes da produtora teve repercussão muito melhor nos festivais internacionais (que privilegiavam originalidade e criatividade) do que nos festivais nacionais.
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Cinema para eles era ter um praticável, um monte de lanche, uma Kombi pra levar as pessoas. Era isso cinema, uma planilha... isso era cinema, tudo o que a gente não tinha, então eles achavam que a gente não fazia cinema. (Gregori, Depoimento, 2006) |
Na ECA, os integrantes da Paraísos foram se especializando em determinadas funções. Marcelo e Christian acabaram virando fotógrafos (Marcelo inclusive aprendeu a revelar filmes em casa), Paulo montador e Débora diretora de arte (Débora cursou dois anos de artes plásticas antes de entrar em cinema). A experiência adquirida facilitou os filmes seguintes.
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Eu acho que a gente foi aprendendo a filmar muito rápido, resolver as coisas da decupagem. Pensar bastante antes também, mas saber resolver as coisas na hora de filmar, improvisar, errar pouco. (Saghaard, Depoimento 2007) |
Alguns alunos foram se agregando ao grupo e colaborando em diversos filmes. Entre esses colaboradores, é importante lembrar de Murillo Mathias, Carlos Botosso (que co-dirigiu Sinhá Demência ao lado de Christian), Evelize Cerveny, Jorge Guedes e Renata Druck, além dos atores David Liebeskind, Luciana Canton e Eduardo Guimarães.
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E mal ou bem, tinha essa coisa de quem queria fazer mesmo, tinha um grupo que fazia. E sempre uma crítica da ECA era que você chegava lá e se falava muito, mas se fazia pouco. E de repente tinha um grupo que fazia direto e se você ficasse perto das pessoas, ia ter ação. (Sacramento, Depoimento 2006) |
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Era muito divertido de fazer. Eu acho que era muito diferente do tipo de produção que acontecia dentro da Universidade e algumas pessoas se aproximaram. (Saghaard, Depoimento 2007) |
Dos colaboradores da Paraísos, destaca-se Murillo Mathias. Murillo entrou na ECA em 1994, e se impressionou com algumas das produções do grupo.
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Ai teve a famosa sessão que eu digo que mudou a minha vida, que foi quando passou A Mocinha, Meressias e Juvenília , no MIS, durante o Festival de Curtas. E achei muito bacana, achei todos os filmes muito bons. Achei que ali havia grandes filmes, completamente diferentes. (Mathias, Depoimento 2007) |
Murillo colaborou em diversas produções da Paraísos, como Vampiro , Sinhá Demência e Mariga , além de co-dirigir O Feijão e o Sonho com Paolo Gregori. Seus filmes Vira-Lata e As Agruras de um Homem Sandwich (co-direção de Fernando Coimbra), feitos na época, também contam com a participação de vários integrantes da Paraísos e freqüentemente são relacionados como sendo da produtora.
De todos os filmes da produtora, chama a atenção tanto os pontos em comum e um universo próximo entre os integrantes do grupo quanto a forma extremamente pessoal e diferenciada que desenvolvem. Entre os pontos comuns, merecem destaque o horror, o escapismo, a ironia e o estranhamento. O horror está presente em Noite Final, Mariga, Ave, Juvenília, Meressias, Sinhá Demência e Vampiro . O escapismo pode ser encontrado em Noite Final, Sinhá Demência, O Palco, Ave e Vampiro . E todos os filmes têm elementos de ironia e estranhamento.
A presença do horror e um certo desconforto com o mundo é avaliada por Gregori como algo “que sempre existiu e vai existir depois da revolução industrial”, assim como indicador de um contexto.
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Eu acho que, se a gente analisar a produção, principalmente da produtora que eu trabalhei que é a Paraísos Artificiais, a gente realmente tava revoltado com tudo. (...) Fazer filmes naquela época ... era um suicídio. Nós éramos um bando de suicidas. E acho que os filmes retratavam um pouco desse desespero (...) eram filmes feitos quase no limiar de tudo. (...) Eu falava que a gente fazia filmes de samurai. Porque samurai acordava num dia e não sabia se ele iria viver o próximo. Então eram filmes feitos muito nessa febre, num momento samurai. A gente não sabia quando ia fazer o próximo filme, se a gente ia viver, se a gente ia fazer alguma coisa. Então era tudo nessa base. O Noite Final Menos Cinco Minutos era exatamente isso, o título já fala isso. (Paolo Gregori, Depoimento durante o evento Novo Cinema de São Paulo, 2006) |
A ausência completa de diálogo também é um ponto em comum entre os filmes. Mesmo que os filmes tenham sons ou falas, os personagens não chegam a dialogar (o porteiro ou o mendigo que falam em Vampiro não obtém resposta, nos filmes de Gregori temos vozes em off, assim como em Sinhá Demência , O Feijão e o Sonho e Noite Final )
A falta de verba sendo usada como desafio criador também é um ponto que unifica os filmes (tendo como casos extremos Mariga e Juvenília ).
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O reflexo da produção você vê na própria qualidade dos filmes. (...) Com os parcos recursos que a gente tinha, a gente tentava fazer o melhor filme possível, dentro dessa possibilidade. Então eram filmes muito, muito baratos (Paolo Gregori, Depoimento, 2006) |
Dentro desses pontos em comum, vale ressaltar que os diretores têm formas muito diferenciadas de produzir e desenvolver seus filmes. Cada diretor desenvolveu uma forma diferente de realização, alguns com filmes mais decupados e lineares, outros com filmes mais soltos. E mesmo que a maioria dos sócios participassem da maioria dos filmes e a presença e influência mútua seja perceptível, a individualidade dos integrantes também se manteve preservada.
Isso talvez se deva ao fato de os projetos serem desenvolvidos de forma mais isolada e independente, tendo o apoio dos outros integrantes, mas não dependendo de sua aprovação.
Débora Waldman chama a atenção para a forma de trabalho na Paraísos:
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É que a Paraísos na verdade não era um grupo que falava vamos fazer um filme e a gente ia junto e fazia. Era meio que cada um fazia os seus e aí tinha uma colaboração (...) Não tinha essa coisa de produtora, “então vamos nos reunir e discutir os projetos”. Não, era cada um por si e chamava quem tava perto. Era meio livre assim, cada um fazia o seu. (Débora Waldman, Depoimento 2007) |
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E daí era isso, a gente ia fazendo, era esse grupo de cinco, todo mundo trabalhava mais ou menos junto, embora não obrigatoriamente todos nos filmes dos outros. (Sacramento, Depoimento 2006) |
O grupo, oficialmente, produziu 11 filmes de curta-metragem nas bitolas 16 mm e 35 mm. Apesar do pouco reconhecimento e circulação em festivais nacionais, receberam bastante destaque nos festivais internacionais, inclusive ganhando importantes prêmios.
Depois de tantos anos e filmes, o grupo foi se desgastando e seus integrantes foram seguindo caminhos mais definidos, que às vezes se apresentavam incompatíveis com os demais.
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Todo mundo queria continuar fazendo filmes, mas aquele núcleo já tinha meio implodido, não tava dando muito certo mais. Cada vez menos um trabalhava no filme do outro. (Sacramento, Depoimento 2006) |
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O começo foi meio até natural, né. Em seis meses tava todo mundo querendo filmar junto... e o término tinha que ser assim. Não dava pra... meio igual a casamento, eu acho. (Marcelo Toledo, Depoimento 2007) |
A comparação do fim da produtora com o fim de um casamento foi uma metáfora bastante usada nos depoimentos dos outros integrantes da Paraísos, o que mostra a força e intensidade dos relacionamentos (profissionais e pessoais) estabelecidos entre o grupo. A produtora se manteve ainda por um tempo e seu último filme foi O Feijão e o Sonho , considerado por seu próprio diretor, Paolo Gregori (co-direção de Murillo Mathias) como filho bastardo da Paraísos. Em 1996, a produtora cinematográfica Paraísos Artificiais se desfez oficialmente, mas seus integrantes continuam atuantes no meio cinematográfico atual e ainda colaboram, eventualmente, nos filmes uns dos outros.
Desdobramentos
Com o fim da produtora, seus integrantes foram seguindo caminhos distintos. Débora e Paulo continuaram sócios e abriram a produtora Olhos de Cão (na verdade, apenas mudaram o nome de Paraísos Artificiais para Olhos de Cão, mas a empresa é a mesma, mesmo CNPJ, etc) e Débora se desligou da produtora no início de 2007. Christian abriu a produtora Clarividência e Marcelo e Paolo abriram a Artefício.
Todos os membros da Paraísos ainda atuam no mercado cinematográfico e continuam produzindo filmes, todos com linhas bem parecidas com as desenvolvidas na produtora.
Em 1998, Débora dirigiu o curta Kyrie, ou o Início do Caos , com montagem de Paulo Sacramento, já pela Olhos de Cão. Nesse filme, Débora inicia a parceria com o marido Vincent Roven, com quem passou a trabalhar em filmes posteriores (praticamente dirigidos e produzidos em conjunto), como a animação A Lagartixa e o Gafanhoto e o curta Logologo . O casal também está finalizando os curtas O Outro (título provisório) e Tentáculos .
Atualmente, Paolo Gregori e Marcelo Toledo estão co-dirigindo o longa metragem Corpo Presente , repetindo a parceria dos curtas A Bela e os Pássaros e Beatriz . Marcelo também dirigiu o vídeo A Corrente . Já Gregori dirigiu os bem humorados e metalingüísticos Troppiabas , O Bebê de Eisenstein e PG/ JLG. Além de continuar realizando filmes, Gregori também se consolidou como professor de cinema, em cursos livres e nas universidades FAAP e Anhembi Morumbi.
Christian Saghaard filmou o impactante longa O Fim da Picada e os curtas Demônios e Isabel e o Cachorro Flautista . Também atua como fotógrafo e professor em oficinas e cursos livres de cinema.
Paulo Sacramento se consolidou como produtor e montador de diversos filmes, sendo que o mais recente é A Encarnação do Demônio , longa metragem de José Mojica Marins, em que Paulo atua como produtor e montador. Também produziu e dirigiu seu primeiro longa, o documentário O Prisioneiro da Grade de Ferro, Auto-Retratos.
O surgimento de uma produtora com as características da Paraísos Artificiais parece ter sido facilitado pelo contexto histórico-cultural, pois a crise gerada pelo fechamento da Embrafilme e a quase estagnação da produção cinematográfica fez com que o cinema fosse mais estudado, revisado e discutido dentro das escolas, assim como a ausência produção em grande escala deixou um “respiro” para produções que não estivessem dentro dos padrões estéticos e orçamentários de filmes comerciais.
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Talvez nisso o contexto fosse bom. Como não tinha mesmo muita perspectiva de ganhar dinheiro com isso, não tinha essa preocupação de ser profissional. (Débora Waldman, depoimento 2007) |
Um dos grandes estímulos mencionados pelos integrantes da produtora foi a visualização de filmes do chamado Cinema Marginal e a aproximação com as teorias do crítico e cineasta Jairo Ferreira, elaboradas em seu livro Cinema de Invenção.
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De repente tinha esse caminho, que era um caminho viável, barato e de invenção... essa coisa de invenção era muito boa, porque você vai inventar uma coisa, não precisa nem ser culto (...) você pode ser o Candeias, você pode ser um caminhoneiro ou um aluno recém-egresso do vestibular, qualquer coisa você pode ser, sem ter aquele conhecimento, senão a gente ficaria intimidado. (Sacramento, Depoimento 2006) |
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Virou essa produtora de inspiração baudelairiana. O Jairo tinha até um livro que depois ele mostrou pra gente. Ele disse: olha, vocês são dessa estirpe, vocês tão nessa linha. Esquece tudo isso, vocês são continuadores desse tipo de cinema (Gregori, Depoimento 2006) |
As limitações à experimentação e pesquisa apresentadas pela Universidade ou mesmo pelo “mercado”, talvez fossem suficientes para que os integrantes da produtora não se encorajassem a realizar suas produções da forma que fizeram, sendo “abafados” ou mesmo se isolando, caso eles não tivessem se juntado como grupo e contado com o apoio mútuo e a vontade de desenvolver o projeto estético com o qual tinham afinidade, fundando a produtora Paraísos Artificiais
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Era mais o encontro. O encontro e talvez essa coisa de lutar contra, porque a gente sempre tava se posicionando em função das coisas que eram difíceis de fazer na ECA. (Débora Waldman, Depoimento, 2007) |
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A gente tinha claro uma coisa, todos nós. A gente queria transformar ferro em ouro. Esse era o objetivo principal... a gente queria ser mais que ferreiro. (Gregori, Depoimento 2006) |
O encontro, as afinidades e o apoio foram decisivos para que jovens realizadores em sua maioria estudantes, se sentissem seguros para enfrentar as dificuldades, e as transformassem em desafios criativos. Assim, os integrantes da Paraísos puderam desenvolver seus estilos e trabalhar as temáticas e formas que consideravam interessantes e instigantes, mesmo que elas fossem tão diferentes das encontradas nas produções de então (e também nas produções atuais).
Quando perguntados sobre a importância da experiência na produtora para o desenvolvimento de suas carreiras, os ex-sócios são unânimes em considerar que o encontro e os trabalhos desenvolvidos foram fundamentais e determinantes para que eles se sentissem encorajados a seguir em frente
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Foi um apoio... se não tivesse a Paraísos, acho que eu estaria bem isolada lá na ECA. Foi um grupo e foi um apoio para achar que era aquilo mesmo (...) Acho que cada um isolado teria mais dificuldade de seguir um caminho (...) Não sei se a gente teria feito igual se não tivesse junto, acho que não teria talvez feito, se animado a fazer (...) O que eu lembro é que foi muito bom essa época, muito divertido. É difícil juntar uma turma e fazer coisas fora do normal (...) Foi uma sorte a gente ter se encontrado. (Débora Waldman, Depoimento 2007) |
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A gente pôde filmar, né, que é o principal. Acho que se não fosse esse apoio mútuo... a gente vê um pouco pela vida do Gregori, que não teve essa sorte na época em que ele era aluno de uma faculdade e aí ele ficou fazendo vídeos em casa. Talvez eu fosse fazer vídeos também, não sei. Foi nossa escola. (Toledo, Depoimento 2007) |
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Eu acho que não tinha como aprender a fazer cinema de um jeito melhor. Trocar aquelas idéias, trabalhar nos filmes uns dos outros. De ter essas influências em comum e também as que não eram comuns um levar pro outro. Foi fundamental, não sei como seria não ter isso. (Saghaard, Depoimento 2007) |
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Eu aprendi tudo ali. Se hoje tem a Olhos de Cão, produzindo os longas que tem, é porque a gente... é num processo muito parecido com o da Paraísos. Ter um CNPJ, poder se inscrever em concursos, meter as caras e fazer filmes muito mais baratos que todo mundo... a filosofia de produção é bem parecida. (Sacramento, Depoimento 2006) |
Assim, o período, curto mas intenso, de duração da Paraísos Artificiais foi um tempo de aprendizado e desenvolvimento de realizadores ousados e criativos, atuantes até hoje no meio cinematográfico. No grupo de cinco sócios que compuseram a Paraísos, os cinco continuam realizando filmes importantes, numa linha muito próxima com a que começaram a desenvolver dentro da produtora. É importante ressaltar que os filmes da Paraísos Artificiais privilegiam o cinema como arte essencialmente visual (e o som, quando usado, é de maneira não realista e criativa), trabalhando imagens densas, significativas e inusitadas, com força raras vezes encontradas no cinema, especialmente universitário.
Notas
* Esse artigo é baseado em pesquisa desenvolvida em 2006-2007, sob orientação do Prof. Dr. André Piero Gatti, na Universidade Anhembi Morumbi.
* * Graduada em Cinema pela Universidade Anhembi Morumbi. Atua como continuísta e assistente de direção em diversos filmes. Em 2008 dirigiu seu primeiro curta com o título provisório “O farol” que está em processo de finalização.
Bibliografia
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