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Cinema e Política


            A Revista Aurora realizou uma entrevista com Sérgio Muniz, autor de Você também pode dar um presunto legal (1971), entre outros, e um dos fundadores da Escola Internacional de Cinema e Televisão de Cuba (EICTV). O cineasta fala da relação existente entre cinema e política; da experiência com outros cineastas da América Latina; das novas perspectivas para o cinema nacional; além de comentar rapidamente seu último documentário, que versa sobre a amizade. As respostas, além de oferecerem interessantes informações históricas, apresentam valiosas reflexões de um reconhecido profissional sobre os rumos do cinema e suas possibilidades.

AURORA - As relações entre o Cinema e a Política podem ser exploradas sob várias perspectivas. Do ponto de vista da produção, da distribuição, das legislações regulamentadoras, dos enunciados das obras fílmicas, do cinema como forma de pensamento político, entre vários outros aspectos. Como você vê as relações entre o Cinema e a Política?

Sérgio Muniz - Acho possível – e mesmo indispensável – a relação Cinema/Política. Não para fazer um Cinema planfetário ou uma Política disfarçada de cultura. O Cinema pode expressar as dúvidas que, no âmbito da sociedade, muitas vezes são esquecidas, disfarçadas, escamoteadas. E pode fazer aflorar perguntas que podem sugerir respostas novas para temas que não imaginávamos existir. Mas o Cinema não substitui a Política, nem propicia grandes mudanças, ou reformas e muito menos revolução. Pode, sim, servir de “radar” indicando mudanças que ocorrem na sociedade ou de sonhar com caminhos que muitas vezes nem sabemos que sonhamos. Mais concretamente, sou de opinião que essa relação Cinema/Política é muito mais forte e orgânica no cinema argentino do que no brasileiro. O “Movimiento de Documentalistas” - que é um coletivo de cineastas - é uma demonstração mais geral dessa relação. Além, é claro, do caso específico do Fernando Ezequiel “Pino” Solanas que é o exemplo preciso dessa união Cinema/Política (ver seus documentários, realizados nos últimos nove anos: MEMORIA DEL SAQUEO, LA DIGNIDAD DE LOS NADIES, ARGENTINA LATENTE e LA PROXIMA ESTACIÓN; além de um outro, que está em finalização, sobre as riquezas naturais e minerais da América Latina). Isso sem contar com sua participação direta na Política, pois foi duas vezes candidato à presidência da Argentina e é candidato à deputado federal nas eleições a serem realizadas em julho naquele país.
Já no Brasil...

AURORA - Você participou da Caravana Farkas que desempenhou um papel importante. Fale um pouco dessa caravana e de seu legado para o cinema brasileiro.

Sérgio Muniz - A experiência conhecida hoje sob esse nome/fantasia de “Caravana Farkas” é o resumo da produção de cerca de 30 documentários realizado entre 1964/1980, mas com peso maior em dois grupos de documentários realizados, numa produção simultânea entre 1964/1965 (quatro documentários) e 1969/1971 (19 documentários). Foi um momento em que, mesmo durante a vigência de um regime ditatorial, pela primeira vez se ingressou – de maneira mais incisiva - na vida cultural dos brasileiros, dando vez e voz a aspectos muitas vezes desconhecidos e ignorados de nossa cultura. É também importante destacar um dado para comparar a “Caravana Farkas” com os dias de hoje: foi uma iniciativa que essencialmente não contou com nenhuma lei de incentivo (Lei Rouanet e Lei do Audiovisual), inexistentes naqueles tempos. Foi, na prática, o exercício do um exemplar mecenato.

AURORA - Como se desenvolveu e qual a importância da relação entre os cineastas brasileiros e os de outros países latino-americanos?

Sérgio Muniz - Historicamente um momento que estabeleceu definitivamente as intensas relações entre cineastas brasileiros e latino-americanos (da geração dos anos 60 e 70) foi a realização do Festival de Viña del Mar/Chile (1967). Ali, pela primeira vez, cineastas da América Latina se encontravam em continente latino-americano. Esse foi um dado geográfico de enorme simbologia, pois passamos a mutuamente nos reconhecer, a verificar que havia – apesar da até então inexistência de contatos – uma “Ponte Clandestina”, que aliás é o tÍtulo do importante livro do crítico José Carlos Avellar. Essa “ponte” desvendou o enorme parentesco de cinematografias que mutuamente se desconheciam, enunciando uma fantástica unidade na diversidade. Criando uma afinidade que, após algumas décadas, deu como resultado, a utópica (e por isso mesmo indispensável) EICTV – Escuela Internacional de Cine y TV, localizada em San Antonio de los Baños, na provincia Habana/Cuba, concepção excepcional do cineasta argentino Fernando Birri, o “zigoto” gerador – inicialmente – da Escola de Cinema de Santa Fé/Argentina (anos 50) e – finalmente – na mencionada EICTV (anos 80).

AURORA - Comente a experiência da Escola de Cinema de Cuba, as dificuldades do projeto e seus frutos.

Sérgio Muniz - Para início de conversa, certamente o aparecimento da EICTV só foi possível graças a coincidência do encontro em Roma/Itália no início dos anos 80, de alguns jovens latino-americanos que então cursavam o Centro Sperimentale de Cinema: Fernando Birri (argentino), Gabriel Garcia Marquez (colombiano), Tomás Gutierrez Alea e Julio Garcias Espinosa (cubanos) que, ao longo das décadas seguintes, se tornariam importantes figuras do cinema latino-americano, sem contar com o prêmio Nobel que receberia o “Gabo”. Cabe destacar, inicialmente, que foi somente graças à generosa solidariedade do Estado Cubano que a EICTV pode se concretizar. É bom assinalar que a EICTV é mantida pela FNCL – Fundación del Nuevo Cine Latinoamericano, que é uma fundação de direito privado que tem sede em Cuba, mas não pertence ao Estado Cubano. Isso cria já uma primeira peculiaride da EICTV: não tem que responder nem ao Ministério da Educação e nem ao Ministério da Cultura de Cuba, sendo sua autonomia um caso exemplar que merece ser levado em conta. Outro dado importante: não é uma escola cubana na qual podem entrar alguns estrangeiros. É uma escola realmente internacional, diferente de outras grandes escolas, como a FEMIS na França, o Centro de Roma e muitas outras mais da Europa. E o dia-a-dia do curso regular também é único. Cada aluno/a, mesmo que em sua escolha de formação (indicada quando faz o exame de seleção da EICTV) seja de uma determinada especialidade, tem que, obrigatoriamente, desempenhar todas as funções básicas de uma equipe de cinema ou vídeo: roteiro, edição, produção, fotografia, som e direção. E o aluno/a, no período de formação não recebe “notas”, mas é indispensável ter cumprido com as exigências de “multi-oficio” ou “rodizio” em sua formação, inclusive tendo que dirigir um exercício pessoal filmado ou gravado. Também esse aluno/a não utiliza o tradicional rascunho de notas; ele tem, logo nas primeiras semanas do curso regular, um mínimo de equipamento eletrônico para que possa ir praticando, testando e respondendo ao que lhe é ensinado. Aponto outra característica: na medida do possível, os professores não são professores profissionais que ficam a vida toda ensinando sempre o mesmo, mas sim profissionais ativos em suas respectivas especialidades que se disponham a passar um tempo na EICTV. Lembro o caso de um professor de fotografia que pensando em ficar um ano na EICTV acabou ficando três (hoje é um dos grandes diretores de fotografia residentes no Brasil, Cesar Charlone). Cito alguns dos princípios observados no texto da “Acta de Nacimiento” redigido por Fernando Birri e lido na inaguração da EICTV: ensinar aprendendo; não temer errar (não por apologia ao erro, mas por não temer o erro, único momento na formação de um/uma profissional em que isso é possível); o indissolúvel entrelaçamento entre Curso Regular/Oficinas/Seminários de Altos Estudos, o que faz – por exemplo – que caso um importante cineasta (como foi o caso do Coppolla) ir dirigir uma oficina, que ele dedique pelo menos um dia para estar com alunos do curso regular. Na EICTV professores e alunos coabitam o mesmo espaço da “Finca San Tranquilino” (nome do local onde está instalada a EICTV) e vivem, 24 horas por dia, o que Birri chamou de “larga vida a la utopia del ojo e de la oreja”, tendo à sua disposição – além de uma incessante atividade extra-curricular uma excepcional videoteca com mais de 10 mil títulos em seu acervo. Destaco que isso tudo é um resumo enorme do que, na totalidade, é a EICTV, de cujo projeto tive a excepcional oportunidade de participar em seu planejamento e instalação, tendo sido seu primeiro diretor docente (1986/1988).

AURORA - Em 1971 você filmou o documentário Você também pode dar um presunto legal sobre a atuação do delegado Fleury. Esse documentário passou por uma verdadeira epopéia até ser editado e lançado em 2006. O documentário nos revela alguns aspectos importantes a respeito dos chamados anos de chumbo. Recentemente, um importante jornal brasileiro propôs uma revisão histórica, alegando que, no Brasil, a ditadura não havia sido tão violenta, não havia matado tantas pessoas, portanto, deveria ser considerada uma "ditabranda". Fale um pouco sobre o processo de produção do seu documentário e da complexa relação do cinema durante a ditadura militar.

Sérgio Muniz - Partindo dessa inaceitável e abominável “revisão histórica da Folha de S. Paulo, ao chamar de “ditabranda” os Anos de Chumbo que tivemos no Brasil, acredito que meu documentário “Você também pode dar um presunto legal” pode – pelo menos – informar as gerações mais recentes que no Brasil, sim, houve tortura; que no Brasil, sim, se cometeram assassinatos de ativistas políticos; que no Brasil, sim, fizeram “desaparecer” homens e mulheres que se opuseram ao regime ditatorial. Se esses/essas jovens – após verem o documentário - ao menos se derem conta que isso se passou aqui, o documentário já respondeu, minimamente, sua intenção. Realizar esse documentário só foi possível com a colaboração e a solidariedade de amigos/as e companheiros/as no Brasil, França, Itália e Cuba e ficou inédito desde sua realização (1970/1971) até 2006 por sugestão – hoje aceita como sábia – de não exibi-lo no Brasil, quando recebi a primeira cópia (1974), por acreditarem que eu e os atores que dele participaram poderíamos correr risco de morte.
Creio que esse documentário (certamente datado) é um dos poucos filmes brasileiros feitos durante a ditadura militar que pode ser classificado como político. Não havia espaço para tratar diretamente esse tipo de tema naquela época. O máximo que tivemos foram grandes metáforas como “Os Inconfidentes” e “Macunaíma”, de Joaquim Pedro de Andrade, ou “Bye Bye Brasil”, de Cacá Diegues. Mesmo assim, as relações com a censura a que, obrigatoriamente, todos os filmes tinham que se submeter eram tensas, pois os censores de plantão freqüentemente exigiam cortes que mutilavam a obra cinematográfica.

AURORA - Na última década estamos vivendo uma espécie de um boom de escolas de cinema no Brasil. Considerando que as gerações anteriores de cineastas vinham de outra formação, muitos das ciências sociais, da história, da filosofia. Em sua opinião quais foram as principais mudanças em relação à nova safra de cineastas formados por essas escolas?

Sérgio Muniz - Até onde posso imaginar, a proliferação das escolas de cinema no Brasil se deve ao fascínio – mas ao mesmo tempo à ilusão – que o cinema em particular e o audiovisual exercem em jovens que querem, de alguma forma, expressar suas mais legítimas fantasias e elucubrações. Parece-me que essas escolas, em parte, também respondem à necessidade de um mercado de trabalho que exige melhor formação profissional, mesmo que seja só para, ao final das contas, abastecerem o mercado publicitário. Se levarmos em conta o número de profissionais em formação e a capacidade de absorção dessa mão de obra pelo mercado do audiovisual, me parece que haverá sempre uma grande parte equivalente ao “trabalhador informal” sem lenço e sem documento. O que não impede o crescimento permanente da produção e realização de curtas e médias metragens que, a meu ver, em sua maioria ficam restritos aos “guetos” culturais que são as mostras e festivais.

AURORA - No que diz respeito à linguagem cinematográfica, qual a contribuição das novas tecnologias para o cinema? Como você avalia a passagem do cinema para o audiovisual?

Sérgio Muniz - As novas tecnologias apontam, inevitavelmente, numa direção sem volta. Um determinado tipo de cinema, no qual minha geração se formou, está em franca mutação. Desde o hábito de grandes massas freqüentarem as salas de cinema até a forma pela qual o mercado de exibição se comporta, através dos circuitos de salas de projeção em shoppings centers. Parece que existe um público que fica esperando o resultado do Oscar americano para saber que filmes deverão ser vistos a cada ano. E, também, ir ao cinema deixou de ser um lazer relativamente barato. Mas é inegável que essa nova tecnologia tem permitido um avanço de qualidade, quando em lugar da imagem criada através de um suporte físico/químico se passou para um suporte eletrônico. Se bem que é verdade que, muitas vezes, o fascínio dessas novas tecnologias descarte ou deixe de lado, ou até mesmo ignore, as boas e velhas propostas de um cinema novo, de uma nouvelle vague , de um cine eisensteiniano ou dizigavertoviano. Não para serem seguidas ao pé da letra, mas como uma inquietação desejável. Sem contar que se aprende muito rapidamente a apertar botões e a absorver essa nova tecnologia, mas sem se consolidar uma efetiva formação/informação do que já foi realizado nesse mais de cem anos de existência do cinema. Muitas vezes parece que se está inventando, novamente, a pólvora.

AURORA - Em seu último documentário você aborda o tema da Amizade. Temática delicada e muito visitada por autores da filosofia clássica. Quais foram as principais referências que você utilizou para a elaboração do documentário e como você vê as relações entre a Amizade e a Política?

Sérgio Muniz - Comecei a pensar no significado dessa curiosa relação humana chamada AMIZADE quando tive que elaborar um luto. Só então me dei conta, na minha santa (?) ignorância que essa inquietude vinha desde os antigos gregos e chegava até os pensadores contemporâneos. Mas decidi focar mais o que tem de enigma em uma amizade, fazendo com que pessoas do meu círculo, das que considero como amigos/amigas, expressassem – sem terem sido previamente informadas de qual seria o tema da entrevista que iriam me dar – sua reflexão, a mais espontânea possível, sobre essa relação humana. Agora, Amizade e Política é uma relação sobre a qual não me debrucei, mas creio que mesmo na Política (ou pelo menos na Política com P maiúsculo) é necessário que existam elementos que estão na Amizade, tais como – entre outros – a lealdade.

         


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