El mar deja de moverse
Syntia Pereira Alves*
Documentário de Emilio Ruiz Barranchina
Asesinato
Cómo fue?
Una grieta en la mejilla.
Eso es todo!
Una uña que aprieta el tallo.
Un alfiler que bucea
hasta encontrar las raicillas del grito.
Y el mar deja de moverse.
Cómo, cómo fue?
Así.
Déjame! De esa manera?
Sí.
El corazón salió solo.
Ay, ay de mí!
( Federico Garcia Lorca )
Federico Garcia Lorca, ao poetizar sobre a morte brutal de um assassinato, nomeia o documentário de Emilio Ruiz Barranchina, “El mar deja de moverse”, que fala sobre a morte do próprio poeta. O filme estreou na Espanha em setembro de 2006, ano em que a morte de Lorca completava 70 anos.
Sete décadas depois e ainda se fala da morte de Lorca. Na verdade, o correto seria afirmar que agora é possível falar abertamente sobre a morte de Garcia Lorca. Mas o mais importante é que ainda muito se silencia sobre o assunto. Federico Garcia Lorca e suas obras foram assuntos proibidos na Espanha franquista, ou seja, até a segunda metade da década de 70, quando o país entra em processo de redemocratização. Foi só nesse momento, quase 30 anos atrás, que a Espanha volta a falar publicamente nas obras de Lorca e principalmente se perguntar o que de fato aconteceu com o poeta.
Na Espanha atual, Federico Garcia Lorca é tido como um patrimônio nacional, o poeta da Espanha, o segundo espanhol mais traduzido no mundo. Suas obras são frequentemente encenadas, seus poemas que décadas atrás foram musicados, hoje servem de base para músicas pop, essas que tocam nas rádios de audiência jovem. Quando se fala dos símbolos espanhóis sempre se tem um poema ou uma frase de Garcia Lorca para ilustrar: o flamenco, as touradas, o catolicismo, o amor e a morte. Parece que Federico Garcia Lorca serve para falar de muitas coisas da Espanha, mas não serve para falar de si mesmo.
“El mar deja de moverse” trata, portanto, do assassinato do poeta, dos temas proibidos que envolvem sua morte, e da guerra da Espanha. Para falar da Guerra Civil Espanhola, o documentário nos apresenta pesquisadores, historiadores, artistas, herdeiros da história da família Garcia Lorca e das facções políticas de direita e de esquerda da Espanha da época. O tema central do documentário é a morte de Garcia Lorca, mas é visível a preocupação do diretor em situar as pessoas e os fatos que foram importantes no desenrolar da história. Assim, o diretor volta no tempo e visita a Granada do século XIX, situando o espectador de como estava o sul da Espanha: os problemas econômicos que o país enfrentava, a oligarquia e o domínio de Granada nas mãos de apenas três famílias. A família Garcia Lorca era uma delas. São as disputas políticas, econômicas e sociais que vão sendo colocadas ao longo do filme mostrando como se estruturou a vontade de ver Federico Garcia Lorca morto.
O diretor também coloca qual visão uma parte da Espanha tinha do poeta e nos traz questões que foram fundamentais para o assassinato de Lorca: em 1936, Lorca já era famoso em toda a Espanha, na América por onde passou e era reconhecido como uma das cabeças mais visíveis do mundo cultural da Espanha. A Espanha tinha como um dos artistas mais importantes um poeta, de esquerda e homossexual. É muito claro que para os mais conservadores isso não era motivo de orgulho, mas sim de recusa dessa identificação. Havia muito ódio de Lorca por esses 3 motivos: pelo reconhecimento de sua obra, pelo seu posicionamento político e por sua sexualidade.
As prováveis causas do assassinato de Lorca foram levantadas pelo diretor ao longo do documentário sem grandes cerimônias, coisa que nem sempre acontece quando se fala da morte do poeta. A morte de Federico Garcia Lorca ainda é tratada por sua família como um tabu. Seus dois sobrinhos ainda vivos, Manuel Fernández Montesinos e Isabel Garcia Lorca, presidente da Fundação Federico Garcia Lorca, dizem que em suas infâncias não se falava em casa da morte do poeta. Ambos aparecem no documentário reforçando a idéia do silêncio em torno do assassinato de Lorca. Mas muitas outras pessoas, afastadas da história familiar dos Garcia Lorca, falam de sua morte e a questionam, e assim Barranchina questiona ao longo de seu filme.
Outro ponto importante que é levantado no documentário, mas que a família Garcia Lorca ainda segue tentando abafar, é a homossexualidade do poeta. Ian Gibson, o estudioso de Federico Garcia Lorca mais reconhecido no mundo, é uma peça importante para os estudos de Lorca e ele nos coloca o raciocínio de que o país que criou a expressão “macho” com a força que ela carrega, também põe muito peso na expressão “maricón”. O fato é que o ódio aos homossexuais segue sendo muito forte na Espanha, ainda hoje. Apesar de o filme não adentrar na vida sexual de Federico Garcia Lorca, seus amantes e seus amores, é contundente e quase crua a forma com a qual se fala que a homossexualidade do poeta foi sim um fator determinante em seu assassinato. Félix Grande, outro importante pesquisador da vida e da obra de Lorca diz que frequentemente se passa por cima da idéia da homossexualidade como uma das causa da morte do assassinato de Lorca, como que se ignorando que a homofobia é fascista e fanática. E a importância da homossexualidade de Lorca como um dos fatores de seu assassinato ainda é ressaltada com a frase de Luiz Trescastros, um dos assassinos de Federico Garcia Lorca, que declarou que “lhe deu tiros no cu por ser maricón”. Havia contra Lorca muita inveja, inveja por sua obra, genialidade, e seu carisma. A inveja contra o “maricón” se tornou em ódio, nos diz Gibson.
Mas o que o filme aborda com maior ênfase são as intrigas políticas que suscitaram na morte de Federico Garcia Lorca. Os fatos, da maneira com a qual o filme nos apresenta, nos da a impressão de ter sido a morte de Lorca uma tragédia grega, inexorável, com muitos fatores que convergem para o fim trágico. Havia muito ódio contra seu pai em Granada, ódio por seu rápido enriquecimento e porque tinha posições políticas mais progressistas. Em “Boas de Sangue”, a personagem da noiva diz não ter culpa da tragédia que se passou ao longo da peça, que a culpa não era sua, mas que a culpa é da terra. De uma maneira ou de outra, por instinto ou por questões de posse, Lorca devia saber a força que tem a terra e sentia como os assuntos de terra criam, como sempre, muito ódio, muita briga, e que assim se mata por muito pouco.
Nesse sentido, o filme caminha pra uma questão importante: Federico Garcia Lorca foi um homem político? A pergunta é importante não pela tentativa de se descobrir a verdade, nem para traçar o comportamento político do poeta, mas por trazer a tona uma questão que sua família tenta silenciar: a postura que Lorca teve diante da sociedade de seu tempo e como ele reagiu a essa sociedade. Enquanto alguns depoimentos do filme dizem que não, que Lorca não foi um homem político, como seu amigo dos tempos de Residência, José Bello, hoje com 103 anos, que afirma nunca ter ouvido Lorca falar sobre política e diz que o assunto não interessava nada ao poeta. Não o interessava “nem a esquerda, nem a direita”. Além de José Bello, a família do poeta também defende o posicionamento apolítico de Federico, e seu sobrinho, Manuel Fernández Montesinos, diz que é de conhecimento geral que seu tio repudiava enquadramentos políticos, que Federico Garcia Lorca não queria ser taxado por algum pensamento, nunca quis participar de nenhuma organização que o obrigasse a ter regras e comportamentos pré-estabelecidos.
Porém, há opiniões contrarias. Ian Gibson nos coloca a situação política e social da Espanha naquele momento que margeava a guerra e diz que era impossível não ter posição política, impossível ignorar a Frente Popular ou biênio negro. Todos se situavam e Lorca não foi exceção: se colocou contra o Fascismo, assinou manifestos, recitou o romance da “guarda civil” em Barcelona e quase foi preso por causa disso. Como coloca Ian Gibson “Lorca não era de partido, não assinava “carnês” de partidos, porém Lorca teve uma obra revolucionária, era um homem revolucionário e foi percebido como tal, principalmente pela direita, mas tinha uma linha socialista”. Lorca teria assinado manifestos contra Franco, e estar contra a um posicionamento político é um ato político.
Ainda no âmbito político, o filme faz questão de deixar bem claro que Garcia Lorca não foi assassinado por toda a direita da Espanha da década de 30, mas por uma facção, a Falange, que ia contra a esquerda, mas também contra as outras linhas de direita. O diretor mostra como havia divergências políticas dentro dos grupos envolvidos na guerra e como nem a esquerda e nem a direita tinham posições homogêneas.
Mas, se as evidências mostram que Lorca teve uma atitude política, por mais que não tenham sido ações partidárias, por que seus herdeiros negam o peso político da obra de Lorca? E por que não querem reabrir a fossa onde se crê que esteja o corpo de Lorca fuzilado? Essas questões são feitas abertamente por Ian Gibson que se coloca pessoalmente interessado em saber o que aconteceu com Federico Garcia Lorca, se de fato ele está onde foi indicado, se o torturaram, assim como muitos admiradores da obra do poeta também se interessam em saber. Com menos força a reposta a tal pergunta é dada por Isabel Garcia Lorca, com um caráter tendendo ao generoso, mas pouco convincente, dizendo que escolher entre uma vítima, ou seja Lorca, tira-lo de onde está seu corpo, seria um erro, afinal a memória está no lugar que estão as fossas.
O filme vale a pena pelas reflexões que traz, pelos depoimentos de pessoas que se interessam e que buscam informações sobre a vida e a morte de Lorca. Vale a pena por não deixar que a memória do poeta e os fatos que acarretaram sua morte sejam esquecidos em uma fossa soterrada pelo tempo. Se na fossa segue o silêncio sobre a morte da morte de Federico Garcia Lorca, o filme nos faz pensar que mesmo em silêncio o mar não deixa de se mover.
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