Ecologia: governo e intensidade
Joana Egypto*
Silvana Tótora*
Resumo:
Este trabalho tem como alvo problematizar, com base na análise genealógica de Foucault, o discurso ecológico que tem produzido problemas de domínios para colonizações propícias aos rearranjos de utilidade política e lucrativa para o capitalismo. Trata-se de uma genealogia dos regimes de verdade, seja no campo científico como no filosófico-jurídico, com quais condições e efeitos de poder se exercem e das práticas dos governos que o sustentam em suas estratégias programáticas. Desliza-se, por fim, para uma experimentação poética que não almeja o verdadeiro, mas busca-se explorar o que pode uma vida.
Palavras Chave: ecologia, política, análise genealógica, vida.
Abstract: This study aims to discuss, based on genealogical analysis of Foucaut, the ecological discourse which has produced domain problems for colonizations favorable to rearranges of political and lucrative utility to the capitalism. It is concerned with a genealogy of truth regimes, both in the scientific and in the philosophic-judicial fields, in which conditions and effects of power exert on it and the practices of govern than sustain it in their pragmatic strategies. It moves on, finally, to a poetics experimentation that not aims the truth but searches to explore the potential of life.
Entre os por ondes
Este trabalho teve por objetivo problematizar, a partir da análise genealógica o discurso ecológico que tem produzido problemas de domínios para colonizações propícias aos rearranjos de utilidade política e lucrativa para o capitalismo, assim como buscou explorar o que pode uma vida. Por sua vez, considera-se o exercício de poder das relações que favorecem o reforço de “verdades verdadeiras” seja no campo científico como filosófico-jurídico.
A construção de uma verdade envolve, impreterivelmente, relações de forças em lutas variantes, que combatem entre si e produzem efeitos políticos também de combate. “A verdade está circularmente ligada a sistemas de poder, que produzem e apóiam, e a efeitos de poder que ela induz e que a reproduzem.“Regime” da verdade.” (Foucault, 2004a, p.14).
A “verdade” que sustenta o discurso ecológico compete a valores de diferentes interesses, além de apresentar como alvo não somente a gestão do corpo biológico e social dos homens, mas também as relações expandidas por cada um dos diferentes corpos em toda dimensão da existência. Passetti (2003) situa a discussão da ecopolítica que apresenta como alvo o planeta e todos os corpos presentes em sua superfície e profundidade, principalmente os produtivos e aqueles que os legitimam politicamente 1. Para isso os corpos terrestres, atmosféricos, marítimos e biosféricos são incluídos por meio da catalogação de seus modos de organizações biológicas e as relações em que se dispõem segundo os saberes técnicos especializados corroborando a democracia participativa.
Dessa maneira, a análise histórico-política esgarça a produção de verdade e esmiuça os combates das forças em luta. Estas, por sua vez, se dão pela relação precária que estabelecem e trazem consigo pontos de articulação, que possibilitam o estudo de como se realizam as práticas de governo sobre a vida e a asfixia de sua intensidade.
“... el Estado no tiene esencia. (...) El Estado no es outra cosa más que el efecto móvil de um régimen de gubernamentalidad múltiple.” (Foucault, 1990, p.308).
Foucault nos atenta para um estudo que considera o Estado como múltiplas táticas de governamentalidade, ou seja, Estado este que não se resume em uma abstração intemporal, nem em um universal ou fonte autônoma de poder. Isso remete ao olhar atento e questionador das diversas maneiras em que tais táticas se fazem presentes não somente nos saberes produzidos como também no uso que destes se fazem. Admite-se “governamentalidade” como processo descontínuo das práticas de justiça e administrativas que conecta a tecnologia de domínio do outro com a produção de si a partir de relações de poder baseadas na sujeição. Ou seja, é na prática de governamentalidade que se articula o governo de todos pela submissão de cada um.
Por este motivo, é interessante retomar o estudo de Foucault que se preocupa em analisar a transição das relações de poder baseadas no direito de morte e vida de alguns sobre outros e que tem como alvo explícito formas de manifestações e controle sobre o corpo daqueles submetidos. Para sustentação do poder soberano durante, principalmente, os séculos anteriores ao XVIII, fez-se valer do despotismo dos reis o guia das esferas do direito. Ou seja, o confisco dos corpos pela vontade do soberano era a garantia de sua dominação e manutenção da hierarquia nos limites autárquicos dos feudos. Durante o século XVII e XVIII, o poder sobre a vida desenvolveu-se através de uma nova mecânica de poder que se apoiava mais nos corpos e seus atos do que na terra e seus produtos. O adestramento dos corpos comparados a máquinas e também como suporte dos processos biológicos (corpo-espécie) foi direcionado, principalmente, pelas obrigações de trabalho distribuídas ao longo do tempo 2.
Foucault (2007) confere o elemento indispensável ao desenvolvimento do capitalismo : o biopoder. Dessa forma, a potência da morte decidida pelo soberano transforma-se na administração da vida por meio de uma nova tecnologia de poder que aperfeiçoa o governo sobre o corpo social. Esta tecnologia de poder depende não somente do soberano, mas cada vez mais de um conjunto de saberes produzidos, por sua vez, mais especializados que julgam e decidem condenações e estratégias de governo. Então, saberes dedicados às regulações populacionais, aos sistemas de vigilância, às disciplinas corporais como sexualidade, saúde, educação e trabalho, entre outros, tornam-se de indispensáveis como ferramentas para a gestão governamental. E cada vez torna-se maior a participação de cada um para o fortalecimento e funcionamento das engrenagens do governo.
Um dos alicerces sustentado pela biopolítica foi a crescente importância do instrumento jurídico, enquanto constitutivo de uma cultura emergente que se preocupa com as regulamentações e julgamentos de atos que não se enquadram no resguardo de privilégios, e que ameacem de alguma maneira o bom funcionamento do governo. Este instrumento jurídico é sustentado por diversos campos de saberes (sociologia, criminologia, psicologia,...) alçados em e produtores de efeitos morais. Portanto, o direito demonstrou-se cada vez mais como procedimento de sujeição para o enquadramento da igualdade política do que como legitimidade estabelecida para tal.
Investe-se em corpos produtivos, em disposições no espaço que maximizem a produção e o lucro. Investe-se nos confinamentos: na prisão. Os fluxos de capital circulante sem pátria maquiam de batom e blush acordos diplomáticos vinculados a centralidades políticas, que assumem demarcações de governo interdependentes. A guerra em nome da paz não cessa. Exploram-se colônias; extinguem-se povos; aperfeiçoa-se a gestão do globo, enquanto cada vez é maior a sutileza das tecnologias de controle sobre o que circula; sobre os territórios circulantes. As fronteiras existem e não existem. E busca-se aqui esboçar um pensamento a partir de um alvo de investimento – a vida – e como produzi-la.
Assim, constroem-se especificidades históricas do desenvolvimento do capitalismo em determinado espaço considerando sua interdependência a outros quando, ao mesmo tempo, aglomerados de saberes locais apoiados numa mesma razão de Estado convergem-se e decidem sobre acordos e tratados transterritoriais a fim de solucionar provisoriamente ou em longo prazo, problemas situados no que diz respeito à conservação do governo. Toda uma disposição controlada para abrir passagem ao mercado global: aviões, laranjas, cabides, genoma, celulose, petróleo... , pessoas. O aprimoramento do governo como manutenção de uma ordem e controle pautado no domínio e na servidão. Servidão da vida para sobreviver e não para vivê-la.
não – entre,
É importante neste trabalho distanciar-se das análises referentes aos discursos político-ideológicos da Ecologia que compreende o campo conservacionista e preservacionista. O primeiro fixa grupos humanos em relação a territórios como vice-versa. Ou seja, neste discurso a estática cultural mostra-se chave para obediência de regras que notifiquem a maneira sustentável de viver para não ameaçar o berçário natural. Já o segundo campo, sacraliza determinadas áreas de terras e seus recursos, que se mostram crescentes reservas de lucro e especulação, expulsando grupos de pessoas que antes viviam nesta área. O discurso preservacionista tem como justificativa preservar tudo aquilo que for possível da biodiversidade de determinada área regulamentada. Enquanto que o conservacionista justifica-se pela busca do então sonhado desenvolvimento sustentável.
Em ambos, há pacificação das forças em luta, no momento em que seus pontos de combate se anulam por pertencerem a posições discursivas opostas de universalização e por assemelharem-se no que tange a reivindicação pela justiça a partir do tribunal nos moldes ocidental. Sinaliza-se também que a perspectiva escolhida para este trabalho promove rupturas com as teorias contratualistas, já que estas supõem princípios universais formadores e justificadores da presença de um corpo soberano, consensual abarcado pela existência do Estado originário. Observa-se que tais efeitos não cessam de aperfeiçoar a permanência de uma razão de Estado 3, que compartilha na produção de objetos-sujeitos e modos de habitar o espaço. Mesmo pacificadas estas relações produzem e equalizam efeitos e novas relações de saber-poder, que configuram dispositivos de governo como anunciam o mercado de carbono, os programas de segurança ambiental transterritorial de intenso monitoramento e a ecologia dos negócios.
Durante este percurso, lidar com a descontinuidade da história remete à referência do acontecimento atado ao corpo enquanto estratégias e táticas das relações de poder, que envolvem a construção da noção de ecologia assim como seus temas de jurisprudência. Esta análise “...está portanto no ponto de articulação do corpo com a história. Ela deve mostrar o corpo inteiramente marcado de história e a história arruinando o corpo” (Foucault, 2004b, p.22). A viçosidade procura passagem possível para ver-se corar diante de sua palidez sem, contudo, produzir-se na permanência de seu enfraquecimento.
atravesse
Diferentemente da ciência biológica e mesmo que calcada nesta, a Ecologia por admitir o estudo das relações entre os corpos orgânicos (que possuem cadeias carbônicas em sua constituição) e inorgânicos (ácidos, hidróxidos, sais e óxidos) inclui todos sem exceção, na sistematização universal das verdades produzidas pelos saberes científicos: biológico e social, do planeta e do espaço sideral.
Por este motivo, o panoptismo, enquanto traço marcante na sociedade disciplinar, não se encontra, neste momento, num só ponto de determinado território de confinamento. A vigilância, agora, não está fixa, mas dada em qualquer espaço onde haja possibilidade de uma vida 4. Ela acontece em qualquer ponto do universo para seguir as condutas e justificar com elas a necessidade de controle sobre tudo que se faz deteriorar. O aniquilamento da vida ocorre, contudo, nas práticas de gestão sobre ela: suas mil mortes. Atualmente, estas questões têm sido utilizadas como temas de jurisprudência e instrumentos de práticas judiciárias seguidas das contínuas reformas presentes na economia de legalidades e ilegalidades.
Foucault (1999) atenta para a construção das práticas judiciárias, que estão fortemente relacionadas com a história da verdade. Ou seja, o acontecimento destas conferências, realizadas na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, preocupa-se em compreender como certas construções de verdade podem ser definidas a partir da prática penal. A produção da verdade relacionada ao saber ecológico e as práticas judiciárias, que nele se referem, são emergentes e têm estreita relação com as organizações políticas transterritoriais que vinculam gestão de pessoas, segurança e espaço onde se habita. Temas de Direito Internacional são vinculados também a temas de Direito das Gentes: “o reconhecimento da pessoa humana, na sua essência, como portadora da totalidade e da plenitude da personalidade jurídica e a irrupção da consciência da necessidade de proteção dos seus direitos fundamentais, a partir das normas do Direito das Gentes.” (Soares, 1995, p. 74-75). Redimensionamento do que entende-se por Direitos Humanos.
Em 1972, ano anterior às tais discussões postas por Michel Foucault, ocorre em Estocolmo a “Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano”, que engrena políticas policiais de conservação e rearticulação das práticas de governo. Dentre algumas ratificações pode-se citar a “Declaração das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente” que estabelece princípios essenciais e universais para a efetuação de suas medidas: o “Plano Vigia” (Earthwatch) que consiste no investimento em tecnologias de controle para policiar e avaliar as condições do “meio ambiente mundial”; e a proliferação de órgãos subsidiários e administrativos da ONU como o Programa das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente (PNUMA).
A Eco-92 amplia a participação de focos de centralidades de governo – chefes de Estado, corporações econômicas, movimentos transnacionais – no debate que ganha fórum de política internacional. Além disso, acrescenta, em seus foros discussões, a questão do “desenvolvimento econômico” atrelado ao “meio ambiente humano”. Portanto, estudos relacionados à biologia, sociologia, estatística e demografia, então acoplam-se às análises econômicas, o que favorece a proliferação de temas chave como “desenvolvimento sustentável”, “qualidade de vida”, “responsabilidade sócio-ambiental”. O cenário é montado para que torne possível a articulação da economia verde e da ecologia dos negócios.
Admite-se que estas políticas aperfeiçoam as relações Estado-empresa junto a organizações não governamentais dificultando, dessa forma, o discernimento das fronteiras que as diferenciam. Além disso tais relações ampliam o gerenciamento da vida e o policiamento de cada um sobre cada coisa seja ela, vegetal, animal, mineral, virtual, sideral e mortal. Em torno das estratificações discursivas, lançam-se diferentes forças, relações de poder e estratégias políticas de combate que organizam fluxos que alimentam; outros que esbarram e outros que resistem à regulamentação e controle da vida.
O campo da ecologia, compreendida pelo estudo das relações estabelecidas pelas diferentes maneiras de vidas e seus espaços, concilia com muito despojamento modos de agir local e sua interferência global. Táticas políticas e desejos de governo se fundem diante da ameaça admitida da extinção de recursos indispensáveis para a continuidade e conservação da sobrevida. Instauram-se cartilhas que promovem “princípios corretos” de viver. Toma-se como exemplo àquelas de educação ambiental, distribuídas por diversas empresas, como é o caso das de celulose e papel (Votorantim, Suzano, Aracruz), em bibliotecas e escolas de cidades tomadas agora por imensidões de eucaliptos, onde anteriormente o festejo da vida pestanejava. Além disso, embates jurídicos consolidam novas regulamentações, aumentam as fiscalizações e atribuem responsabilidades dos atos.
Cada movimento é marcado por sua influência benéfica ou maléfica ao ambiente, enquanto persistem modos de produção de riqueza e de miséria. A responsabilidade sobre o planeta ultrapassa as fronteiras e conforma facilmente políticas empresariais, que apresentam notificação de “responsabilidade sócio-ambiental”. Há quem diga que a execução de tal política é preterível ao abandono da pobreza. O olhar atento percebe que tais práticas continuam fomentar a miséria, por ela mesma ser prato cheio para o investimento. Não parte daí, então, rebuliços para transformações efetivas. Acordos orientam a construção da economia verde, enquanto possibilidade de manutenção do status quo do governo.
Requerimentos, petições, ementas, ações civis públicas, declarações de responsabilidades, e todos os corpos envolvidos nestes procedimentos são subordinados a relatórios técnico-científicos e ao tribunal que redimensionam, então, o alvo da velha soberania. Decide-se sobre espaços de vidas: quem conservar; o que expulsar; como fiscalizar; como conduzir não apenas os atos, mas também tudo aquilo que se relaciona a ele. Assim, prepara-se o terreno de ancoragens morais históricas para as justificativas adequadas à escolha do condenado e para o atendimento dos interesses julgados. Porém, não são descartadas aqui as lutas locais de resistência que se tornam focos de jurisprudência e que, por tal meio, buscam fazer possível um respiro instintivo de vida. Não se avistam fronteiras. Continente sem mar. E frestas persistem.
As possibilidades de encontros e de outros arranjos políticos persistem em concavidades cavadas com unha. E o que se mostra surpreendente é a velocidade e sofisticação de mecanismos que tragam os acontecimentos e sopram, rapidamente, focos favoráveis à captura para investimentos capitalistas. Isso aponta, mais uma vez, para a persistência de modos identitários de habitar a partir da expansão dos direitos de minoria e dos direitos difusos. Haja vista o crescimento dos entraves jurídicos para reconhecimento de áreas quilombolas, indígenas, ribeirinhas. A captação de ar depois do mergulho nas águas é vendida por submissão seja pela origem essencial ou pelo congelamento e resgate da cultura original .
O governo para administrar a circulação de objetos diversos converge estudos emergentes da ecologia, o que garante controle do tanto da ecos (casa) e dos ecos sussurrados em cada relação que se estabelece. Faz-se presente uma tensão entre o aprisionamento e a expansão da vida. A vida do planejamento e a vida do insubordinável; daquilo que vibra.
por ondas
No percurso de “A genealogia da moral” , Nietzsche discorre a partir do valor dos valores morais, martelando seus baixos e silenciosos começos, seus combates e Erfindung (invenção). A maneira pela qual se produz o discurso ecológico se aproxima do que Nietzsche compreende como a moral escrava. Pois é pela negação reativa daquilo que é criativo na vida que se transfere o valor também negativo ao que pode uma existência, enquanto corpo vivo: sua potência afirmativa e suas possibilidades de coexistências.
“... Darwin estende gentilmente a mão ao humilde efeminado da moral, criação moderna que já“não morde”, mas que corresponde à saudação com ar indolente, bonacheirão e gracioso, mesclado de pessimismo e de cansaço, como se não valesse a pena tornar tão sério isto da moral.” (Nietzsche, 2002, p. XV).
As forças reativas da moral vivem do ressentimento, vitimização e acusação perpétua, assim refutam a afirmação das forças ativas sedentas de vida intempestiva. A impotência de agir torna-se qualidade moralizante: bondade, submissão, paciência, virtuosidade. A ecologia traz consigo o híbrido e os insubordináveis combatentes, admitidos pelo “regime” da verdade científica como exceções diante regras de classificações e organizações, quando não como objeto de justificação de programas de segurança contra suas invenções criativas. Atributos morais são aperfeiçoados na medida em que as lutas pela existência são pacificadas e silenciadas pela “verdade” de Ursprung (origem).
Portanto, o ranger do discurso ecológico diante das diferentes possibilidades de experimentação de intensidades proporciona uma importante arma de combate às práticas de dominação e de obediência, assim como permeia percursos para colorir também de cinza o que se arruína. Os corpos e espaços permeiam-se no interior-exterior de campos de forças que marcam inflexões, quebras, curvas, voltas, retornos e reversos, que em seus movimentos produzem combinações intensivas diferentes. Um pêlo já arrepiou? Bambu deu voz pro vento? Um inseto pousou no sapo, arriscou ser pego pela língua?
“... a natureza se esforça ao extremo para acolher esses hóspedes estrangeiros, ordená-los e honrá-los, mas estes mesmos estão em combate entre si, e parece necessário dominar e vencer todos eles, para não perecer, ela mesmo, nesse combate entre eles.” (Nietzsche, 1983, p. 62).
Nesta perspectiva, o modo de vida atrelado à existência e ao existente não implica a um sistema de juízo, mas sim a uma singularidade que tem implicação com o grau de intensidade inventiva da vida; aquela que estabelece relações precárias de força, e dissolve e perfura. Neste sentido, a imanência da vida faz com que o corpo seja definido não pelo seu gênero, espécie ou família, mas sim por sua potência, ou seja, por aquilo que pode provocar.
O pulso ainda pulsa
E o corpo ainda é pouco
Ainda pulsa
Ainda é pouco 5
Um mundo como vontade de potência que desfigura a essência, a representação e o sujeito universal e compõe a partir de combinações de forças entre vidas por meio de fluxos sonoros, táteis, olfativos e experimentativos. A expansão da vida concebe os riscos da morte, os desvios de percursos, a vida da morte sem, contudo, destruir-se. Matéria orgânica morta, sob grande pressão, produz um óleo inflamável e energético (vivo). A explosão de um líquido escuro faz chover na superfície da crosta terrestre outra estranha vida que alimenta o fogo e oferece calor ao movimento desse não-lugar. Paisagens do filme Sangue Negro do escritor e diretor Paul Thomas Anderson e a trilha sonora escolhida misturam-se com os sons das atividades em cena: um trem passando, o ritmo das ferramentas em escavações de petróleo, a terra tremendo..., e incitam um estado de vida incômoda, apertada e explosiva quando nela se toca.
O agenciamento das forças promove um corte no caos e possibilita a existência de um plano de imanência que varia em velocidades e intensidades de forças que podem resistir e combinar-se pelos encontros entre movimentos e afectos (poder de afetar e ser afetado). Estas composições são transitivas e mutáveis. Apenas podem se experimentadas a partir de relações intensas e precárias que se reconfiguram com constância. Em relações, as forças combatem-se intempestivamente e há momentos de predomínio de umas sobre outras. Portanto, no campo de força há um equilíbrio instável devido os constantes rearranjos entre as próprias forças em relação.
Há combate entre as forças afirmativas, que concebem o trágico como imanência da vida e as forças niilistas: negativa (negação do mundo), reativa (vontade de verdade) e passiva (negação completa da vontade). Neste sentido, a vida cava frestas e fareja rachaduras que possibilitam a expansão de sua saúde frágil. Um corpo que nada! Nada e perfura.
tsunami
Da explosão, do gozo sexual, do prazer e da precariedade chega-se aqui. Assim acontece na copulação dos viventes. Talvez tenha sido desse jeito... , com vinda planejada, talvez... Divagar para dar-se conta de que a filosofia praticada por aquele útero exercita constantemente o pensar sobre o pensar e a sobra de pesar. Tentou, certa vez, compor junto e sozinho a vida mutante.
Movimento foi canarinho, cheio de inspiração para dar vôos rasantes sobre o rio que corta terras sem quintais. Nada demais nisso... Apenas mais um canto perdido e achado na dança do mundo. Outro filho da mesma mãe, desde que chega a uma existência, observa o movimento de crescer e diminuir. Ele intercala as discordâncias humanas e traduz conversas tidas entre morcegos e patos; e tenta representar com isso conexões e sentidos entre vidas. Não suporta o silêncio.
Não se lambia crias. Houve com constância contra-argumentações de pequenas frases que escapavam com inocência:
– A minhoca estapeia a terra com seu corpo mole. Faz ar nela. No anzol, ela serve de terra para o peixe que estapeia o ar quando eu puxo a vara. E se no ar tivesse peixe e no mar minhoca eu seria o quê?
– Veja bem, somos animais da espécie sapiens. Nada mudaria a nossa condição, isto é fato. Temos liberdade de pensar e de lidarmos com hipóteses. Esta sua hipótese não apresenta fundamento concreto. Não podemos conceber anelídeos furando o mar e peixes furando o céu, pois os anelídeos têm respiração cutânea enquanto que os peixes apresentam respiração branquial... Por favor, seja mais claro em sua questão...
A criatividade pôs sentido ao nome dela: Norma. Para acolher os dias não precisou de tanto... Uma vez ela me presenteou com um livro grifado um nome em dourado na capa. Diante da reação surpresa ouviu-se uma voz não sei se deboche, naquela bagunça do aniversário de dezesseis anos:
– Iiii... Manu, descolore esses olhos... Depois dessa bomba de presente, você vai ter que brincar de fênix.
Então, dois olhos se aproximaram de outros e passaram a arquitetar planos e pousos junto à massa corrida daquelas letras. Dias e dias... , já perdi as contas. No virar da última folha, rapidamente, um pensamento baixo: “Desta razão quer-se o descarte da emoção. Uma coisa ou outra coisa”. Sim... E o “e” cada vez mais denso; cada vez mais simples; próximo e difícil. E o verbo no limite do agora. Sem relativismos, apenas exercícios de realidades tortuosas.
Não é de lamber as crias da tua cria, mas quando inventava realidades nas suas histórias aconchegava ninho quente. Mesmo assim, ouviam-se, nos arredores, vozes de crimes carnívoros, punições e bombas. Era humano pálido tentando se touro marcado a ferro e fogo. Talvez seja essa a ruína da cultura: mais uma tentativa de ser humano.
Cargueiros ancestrais e o abandono deles. Num outro momento, o mergulho num oásis foi imã e a água do coco foi amiga e hidratou. Atolar as rodas, em barros fundos, lambuzar os dedos com bundinhas de içá com farinha que passou uma vez, outra vez, mais uma vez pela peneira. Naquele roçar, quis fazer mel do néctar de uma flor. Não parecia ficção. Era alguma coisa querendo brotar.
Beirar canteiros, securas de pasto. Aguar bordas, cortar a foice e cuidar. A flor gostava de ser vaga-lume nos olhos; atravessava cheiros das damas da noite. Norma, sensível às hipóteses viventes, acolheu a possibilidade de descendência. Logo quis prescrever autos de proteção sufocante. Um, se aproxima e traz palavras de canto e discursa sobre os descaminhos de ser bicho. Atento o ouvir de um homem-mulher, tão menino que colorido fazia os perigos que convinha. Sentiu-se o gozo e o prazer da flor e faz meses que um bichinho perfura águas de dentro da barriga dela.
E a maré foi alta. Explodiu a bolsa!
Notas
*Joana Egypto concluiu a graduação em Ciências Sociais na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, em junho de 2009; e-mail: joanacer@gmail.com
*Silvana Tótora: professora do Departamento de Política e dos programas de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais e de Gerontologia; pesquisadora do NEAMP e-mail: stotora@uol.com.br
1Cf. PASSETTI, Edson. Anarquismos e sociedade de controle. Cortez Editora, São Paulo, 2003. p. 47-48
2 Cf. FOUCAULT, Michel. “Direito de vida e morte” In História da sexualidade I. A vontade de saber . Graal Editora, 2007.
3Cf. FOUCAULT, Michel. Segurança,Território, População: curso dado no Collège de France (1977- 1978) . São Paulo, Editora Martins Fontes, 2008, p. 341-371.
4 Cf. PASSETTI, Edson. “Ecopolítica” In Anarquismos e sociedade de controle . Cortez Editora, São Paulo, 2003, p. 34-53.
5 Trecho da música O pulso letra e música de Arnaldo Antunes.
Bibliografia
FOUCAULT, Michel. “Verdade e poder” In Microfísica do poder . Rio de Janeiro, Edições Graal, 2004 a.
__________ “Nietzsche, a genealogia e a história”In Microfísica do poder . Rio de Janeiro, Edições Graal, 2004 b.
__________ Segurança,Território, População: curso dado no Collège de France (1977- 1978) . São Paulo, Editora Martins Fontes, 2008.
___________ A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro, Nau Editora, 1999.
___________ “ Fobia al Estado” In La Vida de los Hombres Infames: Ensayos sobre la Desviación y Dominación , Madrid. Las Ediciones de La Piqueta, 1990, p.308.
NIETZSCHE, Friedrich. A genealogia da moral . São Paulo, Editora Centauro, 2002.
NIETZSCHE F. “Da utilidade e desvantagem da história para a vida” Considerações Extemporâneas, In Os Pensadores. 3ª. edição, Abril Cultural, São Paulo, 1983.
PASSETTI, Edson. Anarquismos e sociedade de controle. Cortez Editora, São Paulo, 2003
SOARES, Guido F. S. “O meio ambiente global: de Estocolmo à Eco-92 e a América Latina” In Ecologia, Sociedade e Estado , Paulo-Edgar Almeida Resende (org),
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