voltar
 
 
Os papéis do Inglês, de Ruy Duarte de Carvalho, e a desconstrução do romance de aventura
Marcia Iwai*


Resumo: Neste artigo, pretendo discutir brevemente alguns aspectos da literatura pós-colonial, tendo como base o romance Os papéis do inglês (2000), do angolano Ruy Duarte de Carvalho. Por meio da comparação deste romance com o romance de aventuras The lost world (1912), de Sir Arthur Conan Doyle, desejo discutir como esse romance angolano desconstrói o gênero romance de aventuras. Levando-se em consideração que esse gênero romance de aventuras está, a meu ver, relacionado ao sistema colonial do século XIX, Os papéis do inglês , ao desconstruir o gênero, acaba também por questionar esse sistema colonial. E mais ainda, faz uma reflexão, por meio da literatura, sobre as identidades num país recentemente independente como Angola.
Palavras-chave: Os papéis do inglês; Ruy Duarte de Carvalho; The Lost World; Arthur Conan Doyle; romance de aventura; literatura pós-colonial; literatura colonial.

Abstract: In this article, I intend to briefly discuss some aspects of post-colonial literature, base don the novel Os papéis do inglês , by the Angolan writer Ruy Duarte de Carvalho. Through the comparative analysis of this novel and the adventure novel The lost world (1912), by Sir Arthur Conan Doyle, I would like to discuss how that Angolan novel deconstructs the literary genre adventure novel. If we take into account that adventure novels are, in our point of view, related to the colonial system in the 19 th century, we can affirm that not only does Os papéis do inglês deconstruct the adventure novel, but it also questions the colonial system to which the genre is related, and makes reflections through literature about the identities of a newly-independent country such as Angola.
Key-words: Os papéis do inglês; Ruy Duarte de Carvalho; The lost world; Sir Arthur Conan Doyle; adventure novel; Post-Colonial literature; Colonial literature.

O romance Os papéis do inglês , escrito em 2000 pelo angolano Ruy Duarte de Carvalho, é um bom exemplo da variedade da produção africana e, mais especificamente, angolana, neste momento pós-colonial. Neste romance cerebral, intrincado, altamente metalingüístico e metanarrativo, mas também bem-humorado, um antropólogo, o Narrador em primeira pessoa, nos conta sobre a sua viagem por Angola para pesquisar sociedades tradicionais do interior do país. Em meio a essa viagem, ele toma conhecimento da existência de um diário escrito por um certo Perkings, caçador de elefantes inglês que viveu e se suicidou em Angola no anos 1920. Esse diário, após o suicídio do inglês, pode ter pertencido ao avô do assistente do Narrador e, mais tarde, ao próprio pai do Narrador. A sua viagem, portanto, passa a ser mais que apenas um trabalho de campo de cunho etnográfico – passa a ser também uma viagem em busca desse outro tesouro, os papéis do inglês. Ao mesmo tempo, o Narrador reconstrói a estória desse inglês, inventando, por assim dizer, os seus detalhes, ou reinventando-a com base nos poucos dados conhecidos.

Ao longo da narrativa, o autor toca também em questões importantes da identidade angolana. Ele tece retratos de colonizados e colonizadores. De portugueses que decidiram assumir a nacionalidade angolana após sua independência – como o próprio Narrador. De colonizadores nascidos em solo angolano que decidiram fugir de Angola após a independência. De jovens europeus com um novo olhar sobre a África, um olhar simpático, pós-moderno, mas ao mesmo tempo ingênuo, idealizado, mistificado. De antigos colonizadores europeus que exploravam uma sombria Angola-colônia em busca de riquezas – como o inglês do título, Archibald Perkings, personagem da estória inventada pelo Narrador. Finalmente, de angolanos vivendo uma vida tribal, tradicional, longe da cidade, numa “Angola profunda” – como os guias, assistentes, informantes do Narrador.

Assim, Ruy Duarte de Carvalho põe em discussão os contatos e os embates entre Colonizado e Colonizador, entre Angola e Portugal, e mais amplamente entre Angola e a Europa. Com isso também põe em pauta os conflitos entre o Tradicional e o Moderno (ou o Pós-Moderno), entre o Tribal e o Mundializado:

  Da sorte, do destino até mesmo mais imediato, destas “comunidades”? Entrarão no século XXI sem que as dinâmicas de uma economia fundamentada na gestão dos equilíbrios se tenha alterado profundamente. Mas o fenômeno maior dos séculos XIX e XX, do ponto de vista social, terá, em meu entender, sido a chamada de todo o espaço planetário à aceitação, com resistência ou sem ela, à adopção vital perante toda a ordem de pressões, dos modelos ocidentais de prática e configuração ideológica da vida. (Carvalho, 2007: 150)

No que diz respeito aos temas e à estrutura narrativa, pode-se dizer que Os papéis do inglês revisita gêneros discursivos muito próprios do contexto colonial, sobretudo o diário de viagem, as crônicas de viajantes, colonizadores e exploradores, e o romance de aventura. Dentre esses (todos muito importantes na tessitura do romance), gostaríamos de nos concentrar no romance de aventura: narrativas em que um grupo de homens valentes e honrados, geralmente europeus, empreende uma arriscada viagem a um território desconhecido, isolado e selvagem, com a intenção de conhecê-lo, explorá-lo e dominá-lo; após grandes obstáculos e perigos, eles voltam para casa vitoriosos, de posse de uma recompensa, que pode ser um grande tesouro e riquezas incontáveis, uma genial descoberta científica, fama, glória e sucesso de âmbito nacional, ou até mesmo uma descoberta ou revelação de âmbito íntimo e pessoal. Alguns autores podem ser mencionados como grandes nomes do gênero: Jules Verne, Robert Louis Stevenson, Henry Rider Haggard, Rudyard Kipling, John Meade Falkner, Joseph Conrad...

De todo modo, mais além dessa sinopse generalizada, o romance de aventura é, de uma certa maneira, e entre outras coisas, uma forma de falar da conquista colonial de territórios pelos grandes impérios coloniais. Assim, ele tematiza de uma maneira altamente ideologizada as relações entre os colonizadores e os colonizados – sempre do ponto de vista do colonizador e, em geral, em defesa de suas ações. José Paulo Paes sintetiza como os diversos romances de aventura da segunda metade do século XIX e primeiras duas décadas do século XX exploraram cenários em todos os cantos do mundo:

  O que se impõe notar é o exotismo deles (dos cenários geográficos do romance de aventura) em relação ao modelo europeu de civilização. Esse exotismo, repetidamente explorado pelo romance de aventuras para satisfazer a necessidade de evasão de seus leitores, paraleliza, no tempo histórico, a expansão do colonialismo ocidental. Tanto que o contato do colonizador branco com outras culturas é tematizado com freqüência nesse tipo de ficção,m quer direta, quer obliquamente.(Paes, 1987: 74)

Já Elaine Showalter é bem explícita quanto a essa questão do colonialismo e sua relação com o romance de aventura, ao qual ela dá o nome de “rei romance”:

  ... Em primeiro lugar, a ficção para meninos era a cartilha do colonialismo. Menininhos que lêem irão tornar-se meninões que dominam, e a ficção de aventura representa um treinamento importante. ‘A literatura saudável para meninos deveria formar homens...' observou o crítico Edward Salmon, ele próprio um ardoroso imperialista. ‘Ao escolher os livros que os meninos deverão ler, é necessário lembrar que estamos escolhendo o alimento intelectual para os futuros chefes de uma grande raça'. (Showalter, 1993: 114) 1

Mas por que Os papéis do inglês pode ser relacionado com o romance de aventura?

Em primeiro lugar, porque o Narrador menciona claramente alguns autores a ele relacionados. Joseph Conrad é um nome várias vezes repetido ao longo do romance, e Heart of Darkness ecoa na narrativa constantemente. Também The snows of Kilimanjaro , de Ernest Hemingway é citado – uma releitura da viagem do herói, do Bwana, da Mensahib, para o território desconhecido e selvagem. O Narrador, bem-humoradamente, chega até a evocar Indiana Jones – o cientista aventureiro que é uma leitura no fim do século XX do herói do século XIX, que migrou da literatura de massa para o cinema de massa, provando o quanto o tema continua apreciado:

  ...Parece remeter a climas de Indiana Jones, não é? Também isso me ocorreu na altura e, é claro, sorri. Para além do que, desastrado sou e entendo que o direito ao disparate é um dos direitos fundamentais do homem. (Carvalho, 2007: 38-39)

Mas, em segundo lugar, e mais importante ainda, é o fato de que Os papéis do inglês parece retomar temas fundamentais do romance de aventura – a viagem do herói para o interior mais distante e isolado tanto do território quando de si mesmo; a existência de um segredo passado de boca em boca que revela uma grande descoberta; a crença na existência de um tesouro a ser conquistado; e a volta do herói de sua aventura para contar a sua história. O romance, então, recupera esses temas, desconstrói a estrutura do romance de aventura e o remonta de um novo modo.

Podemos tomar como exemplo do gênero de aventura o romance The lost world (1912), de Sir Arthur Conan Doyle, Nele, quatro ingleses partem para a floresta amazônica em busca de um platô onde acreditam haver grandes maravilhas jamais vistas por homem algum, e onde crêem haver enormes descobertas científicas, glórias de guerra e histórias para narrar. A partir desse romance modelar, podemos estabelecer comparações que ajudem a compreender melhor os procedimentos e sentidos de Os papéis do inglês .

Desde logo notamos que, se em Os papéis do inglês há um contraste entre Angola e a Europa, em The lost world há um conflito entre Primitivos e Civilizados, entre Selvagens e Civilizados – evidentemente, segundo a crença evolucionista que permeia todo o romance, sobretudo na figura da personagem principal, o cientista Professor Challenger. Na prática, essa crença legitimou o colonialismo e favoreceu a ação colonial, pois possibilitou que se afirmasse que os ditos civilizados levariam a civilização aos selvagens, enquanto na verdade os colonizadores exploravam a nova possessão. Já literariamente, em The lost world , por exemplo, isso se traduz no fato de que os quatro ingleses se sentem no direito de exterminar, numa guerra sangrenta, um grupo de seres meio homens meio animais, favorecendo, aparentemente (e só aparentemente), os belos e corajosos e conquistadores índios Accala, para implantar a soberania do homem no platô:

  Challenger's eyes were shining with the lust of slaughter.
‘We have been privileged', he cried, strutting about like a game-cock, ‘to be present at one of the typical decisive battles of history – the battles which have determined the fate of the world. (…) By this strange turn of fate we have seen and helped to decide even such a contest. Now upon this plateau the future must ever be for man.' (Conan Doyle, 1995: 141)

Porém, em ambos os romances, o tema da viagem é fundamental. Em ambos, a viagem se desenrola em territórios desconhecidos, isolados, despovoados, onde os heróis se perdem, se desorientam, se reencontram, tropeçam em perigos e maravilhas alternadamente. Em Os papeis do inglês :

  Saí sozinho, logo que cheguei, para fotografar pedras à volta do acampamento, no regresso atravessei uma linha de água em sítio errado e desfiz o rumo, mantive as cabeças dos morros à esquerda mas ultrapassei a zona, internei-me em mata sempre baixa mas cada vez mais densa, deixei de ver à volta, fui ter muito à frente, quer dizer, perdi-me. Subi a uma pedra, vi a antiga pedreira de mármore já assim tão perto, do acampamento só se lhe vê é a cabeça branca. Retrocedi. Agarrei então o curso de uma outra mulola, havia de vir ter até o rio, rodeei um sombrio cemitério entalei no cinto um ramo de folhas verde, e aí apanhei um caminho de bois que acabou por trazer-me a estas nascentes aqui ao lado. Andei às voltas por me julgar bastante, em terreno alheio. (Carvalho, 2007: 11)

Já em The lost world :

  For a fairyland it was- the most wonderful that the imagination of man could conceive. The thick vegetation met overhead, interlacing into a natural pergola, and through this tunnel of verdure in a golden twilight flowed the green, pellucid river, beautiful in itself, but marvelous from the strange tints thrown by the vivid light from above filtered and tempered in its fall. Clear as crystal, motionless as a sheet of glass, green as the edge of an iceberg, it stretched in front of us under its leafy archway, every stroke of our paddles sending a thousand ripples across its shining surface. It was a fitting avenue to a land of wonders. All sign of the Indians had passed away, but animal life was more frequent, and the tameness of the creatures showed that they knew nothing of the hunters. (…) (Conan Doyle, 1995: 60)

Mas, uma vez que toda viagem para for a de casa é também uma viagem para dentro de si mesmo, a aventura dos heróis acaba se tornando uma jornada interior. Em The lost world , isso se mostra especialmente verdadeiro para o jovem jornalista Edward Malone, o narrador em primeira pessoa do romance. Ao longo de toda a viagem, com seus perigos e encantos, sua jornada interior lhe revela aquilo que ele acredita ser sua natureza: a virilidade, a coragem, a lealdade aos companheiros, a liberdade, o amor pela aventura, de tal modo que a viagem funciona simbolicamente como sua iniciação ao mundo adulto (bem entendido: dentro do sistema colonial).

Já em Os papéis do inglês , a viagem do Narrador em busca de documentos e diários de viagem e pessoais de Perkings (que eram, de certa forma, papéis de seu pai) se torna uma forma de busca pelo próprio pai – e, portanto, por suas origens, seu passado, e até sua identidade. Não por acaso, essa viagem remexe memórias de família que se confundem profundamente com a História recente de Angola, e leva o Narrador a um sério questionamento sobre sua posição em Angola e no mundo, como cientista, antropólogo, branco, urbano, angolano nascido em Portugal... Trata-se de uma reflexão sobre sua própria identidade e sobre a identidade de Angola de modo geral. Essa viagem interior acontece também para o inglês Archibald Perkings, o herói da estória inventada pelo Narrador. Afinal, é ela que lhe oferece outra forma de existência, e talvez de uma possível felicidade – ainda que não realizada – após sua fuga e decepção com a vida londrina, acadêmica e conjugal.

Assim, a perambulação pelo território desconhecido tem sentidos diferentes em um e em outro romance. Em The lost world , o território serve para ser dominado, domado, domesticado pelos heróis. Conhecer esse território significa tomar posse dele, e reduzir esse Outro a uma possessão do Eu. Em Os papéis do inglês, para esse Narrador-personagem, que é, ele mesmo, um antropólogo (e em tempo: também o autor Ruy Duarte de Carvalho é antropólogo), viajar pelo interior de Angola é uma forma concreta de tentar encontrar essa identidade híbrida de um país novo, de uma ex-colônia como é Angola. Afinal, como afirma Stuart Hall:

  Em toda parte, estão emergindo identidades culturais que não são fixas, mas que estão suspensas, em transição , entre diferentes posições; que retiram seus recursos, ao mesmo tempo, de diferentes tradições culturais; e que são o produto desses complicados cruzamentos e misturas culturais que são cada vez mais comuns num mundo globalizado. (Hall, 1999: 88)

Assim, o Narrador-personagem de Os papéis do inglês parece estar também em parte, em busca de si mesmo dentro dessa cultura híbrida, já que ele mesmo, como angolano vindo de Portugal, se identifica como uma dessas pessoas que...

  ... não são e nunca serão unificadas no velho sentido, porque elas são, irrevogavelmente, o produto de várias histórias e culturas interconectadas, pertencem a uma e, ao mesmo tempo, a várias “casas” (e não a uma “casa” particular). (Hall, 1999: 89)

O segundo tema que se repete em ambos os romances é a existência de um segredo que passa de uma personagem para outra. Em The lost world, o americano Maple White deixa, mesmo depois de morto – na forma de um diário de viagem – o segredo da existência do platô e seus seres pré-históricos para o Professor Challenger, que o reconta para o narrador, seu amigo Edward Malone... Em Os papéis do inglês , essa corrente de segredos e sobreposição de vozes é ainda mais complexa. Ela se inicia com o cronista português em Angola Henrique Galvão, na década de 1920, e primeiro a contar a história de Perkings. Depois, ela é recontada pelo próprio Narrador a seus companheiros de viagem, após o que seu assistente Paulino acrescenta dados à história, sugerindo que seu avô fora o guia de caça do tal Perkings. O Narrador, então, descobre que os papéis do inglês podem ter passado pelas mãos de seu próprio pai, que pedira ao Narrador que saísse em busca desses documentos. E por fim, o Narrador reconta seu segredo – agora esvaziado e sem serventia – para o leitor.

Curiosamente, dentro da estória encaixada de Archibald Perkings, há também um segredo, contado de pai para filho. Afinal, o que tanto desperta o encanto de Perkings pela África é uma história que seu pai contava sobre a existência de um grande tesouro enterrado às margens de um rio africano – segredo esse que motiva várias personagens a empreenderem uma viagem em busca de tal tesouro.

E aqui, surge o terceiro tema – o tesouro. Em The lost world , o tesouro, de início, é uma descoberta científica. O que motiva as personagens em sua viagem é, antes de tudo, comprovar a existência de seres pré-históricos, dinossauros e elos perdidos nas profundezas da floresta selvagem e desconhecida. Entretanto, ao fim da aventura, os exploradores descobrem que, no território que conquistaram, existe uma grande e rica mina de diamantes. Assim, cada um deles se torna dono de um bom punhado de diamantes. Essa riqueza é descrita, no romance, como inesperada. Mas a recompensa financeira não deve ser vista com ingenuidade – afinal, como afirma Albert Memmi, o motivo econômico é fundamental nos empreendimentos coloniais (Memmi, 2007). O mesmo se dá no universo do romance de aventura, em que a descoberta do tesouro é fundamental: em As minas do rei Salomão, os heróis escapam de uma emboscada nas minas secretas com as algibeiras cheias de diamantes do tamanho de ovos; em A ilha do tesouro, o pequeno Jim e seus amigos voltam para casa com o Hispaniola abarrotado de barras de ouro e moedas valiosas dentro de sacos de pão; em Moonfleet, John Trenchard aprende a fazer bom uso do diamante do temível e legendário pirata Barba Negra; em A ilha misteriosa, os democratas e abolicionistas americanos do norte herdam o tesouro do Capitão Nemo e do Nautilus. Em The lost world , Challenger, Summerlee, Roxton e Malone são portanto duplamente vitoriosos: tanto eles provam a descoberta científica do século quanto descobrem uma mina de diamantes tão fértil quanto aquelas da África do Sul.

Mas e em Os papéis do inglês? O que acontece aos tesouros de Angola? Os segredos contidos nas lendas do pai de Archibald, dos quais ele se torna o único depositário, falam de um antigo potentado africano que teria enterrado um grande tesouro em um lugar secreto às margens do rio Kwando. Tal segredo provoca uma corrida pelo tesouro da parte de outras personagens. Mas ele se revela vazio: o tesouro não existe como ouro e pedras, e não passa de uma invenção, ainda que, na verdade, haja em seu lugar um tesouro arqueológico – e portanto científico, do qual Archibald não colhe as glórias (diferente do Professor Challenger).

No entanto, antes de se suicidar, Perkings, ajudado por seu guia de caça, enterra uma enorme quantidade de marfim – fato revelado ao Narrador nos diários e papéis desse inglês. Portanto, um tesouro verdadeiro e financeiro passa a existir, e o Narrador se vê subitamente detentor desse novo segredo. Porém, a única pessoa que saberia sua localização exata – o guia de caça de Perkings, ou seja, o avô do assistente Paulino – já está morto, e, por isso, o tesouro está perdido para sempre em segredos sem solução.

Encontrar ou não encontrar o tesouro material é agora um fato importante para a caracterização dos heróis nos romances. Em The lost world , os heróis se realizam por meio do sucesso de suas façanhas. Eles se caracterizam como heróis viris, conquistadores, dominadores, homens de ação que conquistam e dominam a terra e seus habitantes. Ou como diria José Paulo Paes, são também ‘espelho de coragem, retidão, amor à justiça e gosto do perigo' (Paes, 1987: 66). Em suma, são vitoriosos. Já Archibald Perkings, o ambíguo herói da estória encaixada de Os papéis do inglês , é bem diferente. Ele não está em busca de tesouro nenhum; ao contrário, sua presença na África é conseqüência de ‘uma grande fadiga' (Carvalho, 2007: 112), e a existência possível desse tesouro e suas conseqüências lhe causam um grande mal-estar. Por sinal, tal tesouro nem mesmo existe, e a derrota de Perkings é sempre tão grande que o suicídio vem apenas coroá-la. A África se torna, então, um lugar de morte para ele. Finalmente, o Narrador tem também sua visão peculiar sobre o que é o tesouro a ser encontrado. Se algum tesouro houver, ele certamente não é, para ele, um amontoado de ouro ou pedras, mas sim uma descoberta de foro íntimo, de reflexão, de questionamento, de identidade. De tal maneira que, quando ele se dá conta da existência real de um tesouro, ele chega a rir dele:

  Deveria dizer agora ao Paulino que se o seu avô e o meu pai se tivessem reencontrado poderíamos um dia, pelo menos uma breve vez na vida, ter ficado ricos os dois? Era esta a desprezível moral possível, a extrair desta estória, num mundo tão desprezível como este em que eu e o Paulino andávamos a viver? Clamar horror, horror, como faz Kurt no The Heart of Darkness? (Carvalho, 2007: 178)

Afinal, o tesouro está definitivamente perdido.

Assim, do romance de aventura colonial The lost world para o romance pós-colonial Os papéis do inglês, acontece também a desconstrução do herói aventureiro. Se, de início, ele era o conquistador determinado e vitorioso, agora ele é um viajante que põe em questão, que duvida, que contesta tudo ao seu redor e até a si mesmo. E se isso acontece com a imagem do aventureiro-viajante-conquistador, o mesmo ocorre com a imagem do cientista, pois, nos dois romances, a Ciência e o cientista têm um espaço privilegiado. Em The Lost world , o zoólogo especialista em Anatomia Comparada Professor George Edward Challenger tem uma crença absoluta e positivista na Ciência. Para ele, a Ciência, bem como a Razão, os seus valores mais positivos, traz luz às trevas, dessacraliza e desmistifica o mundo até então irracional e caótico, e o explica racionalmente, dando-lhe ordem. A Ciência se torna uma forma de controlar a Natureza, dominar suas forças e domesticar seus fenômenos – portanto, a Ciência é uma forma de tomar posse do mundo (e, por que não dizer, dos territórios colonizados). O antropólogo Archibald Perkings, personagem ficcional criada pelo Narrador, como diz o subtítulo do romance – narrativa breve e feita agora (1999/2000) da invenção completa da estória de um Inglês que em 1923 se suicidou no Kwando depois de ter morto tudo à sua volta segundo uma sucinta crônica de Henrique Galvão – é um outsider da Ciência. Apesar de ter sido discípulo de Sir James Frazer, suas discordâncias profundas, quanto ao uso e a função da Antropologia no início do século XX, da comunidade científica como um todo, e em especial seu conflito com Radcliffe-Brown, o levam à frustração com relação à ciência racionalista e etnocêntrica no qual se vê mergulhado. Enfim, sua fuga para a África é, de certa forma, também uma revolta contra essa academia. Finalmente, quanto ao Narrador, também antropólogo, sua atitude crítica com relação à História da Ciência fica clara em suas reflexões, o que o diferencia fundamentalmente do Professor Challenger. Ao contrário dele, o Narrador não tem certeza absoluta na eficiência de sua ciência, e nem na sua posição como cientista – daí seus questionamentos constantes. Além disso, o fato de ele inventar uma estória cuja personagem principal é um antropólogo, e cujas personagens secundárias são Frazer, Radcliffe-Brown, Malinowski, Rivers, já dá pista sobre sua atitude epistemológica crítica – além de criar um espelhamento entre narrador e personagem.

Mas, ainda, independente de ouro, diamantes ou marfim terem sido ou não encontrados, independente de o herói se realizar ou não, ou de o cientista se crer eficiente ou não, um fato prevalece: a viagem pelo território desconhecido dá ao viajante a capacidade de contar suas histórias. Walter Benjamin nos lembra que:

  A figura do narrador só se torna plenamente tangível se temos presentes esses dois grupos. ‘Quem viaja tem muito que contar', diz o povo, e com isso imagina o narrador como alguém que vem de longe. Mas também escutamos com prazer o homem que ganhou honestamente sua vida sem sair do seu país e que conhece suas histórias e tradições. Se quisermos concretizar esses dois grupos através de seus representantes arcaicos, podemos dizer que um e exemplificado pelo camponês sedentário e outro pelo marinheiro comerciante. Na realidade, esses dois estilos de vida produziram de certo modo suas respectivas famílias de narradores. (Benjamin, 1994: 198-199)

No romance de aventura, estamos então claramente diante de narradores viajantes – não é de se estranhar que muitos deles sejam justamente marinheiros comerciantes, como Charles Marlow de Heart of Darkness, com sua espantosa sobreposição de vozes . Também em O homem que queria ser rei, de Kipling, Peachey Carnehan reconta ao jornalista em Bombain suas terríveis aventuras no Kafiristão; em Vinte mil léguas submarinas, é o cientista Pierre Aronnax que nos conta com admiração e temor sobre essa ambígua figura que é o Capitão Nemo; em Ela e Ayesha , é Horace Holly que narra suas aventuras junto de seu filho adotivo Leo em busca de uma misteriosa e sedutora mulher; em As minas do rei Salomão, o caçador de elefantes Allan Quatermain, de Durban, traz além de diamantes uma boa história para contar; em Viagem ao centro da Terra , o jovem Axel narra suas jornadas tectônicas... Assim, em The lost world e em O s papéis do inglês , não é de se espantar que os contadores das histórias sejam também narradores viajantes: Maple White, o americano andarilho que deixa seu diário de viagem; Edward Malone, o jornalista que se torna o cronista da grande aventura e que envia suas crônicas de viagem para seu jornal em Londres; Archibald Perkings, que escreve um diário que toma cores cada vez mais pessoais. Mas o mais interessante é mesmo o Narrador de Os papéis do inglês . De início, ele expõe seus diários pessoais, reconta sua viagem e inventa a estória de Archibald Perkings. Mas com isso, ele mesmo desconstrói o herói, criando em Archibalod um herói fora dos moldes. Dessa maneira, o Narrador se vê dentro de um jogo de desmontagem e reestruturações. De fato, o importante é que em Os papéis do inglês os gêneros de discurso coloniais são desconstruídos e reestruturados.

Então, o que podemos dizer desse intrincado jogo entre a literatura colonial, aqui destacado o romance de aventura, e a literatura pós-colonial? Sabemos que o romance de aventura não só refletia e defendia, mas também legitimava e perpetuava o colonialismo no século XIX e início do XX. Os papéis do inglês , por sua vez, ao desconstruir esse gênero romanesco, traz à tona questões fundamentais num âmbito sócio-político para o mundo após as descolonizações. Ao desconstruir – e portanto questionar – um formato de romance colonial altamente popular, Os papéis do inglês também questiona a estrutura social, política e econômica que se liga a esse tipo de romance. E ao reformular o gênero, ao remontá-lo, também parece propor questionamentos para uma reconstrução social do jovem país há pouco tempo independente e vindo de uma guerra civil. Que a colonização e a guerra fizeram de Angola o que é, esse é um fato indelével. Mas agora, após a independência e a guerra, como se pode pensar, conceber, reconstruir o país, a terra, o povo? Assim, ao retrabalhar o romance de aventuras, descontruí-lo, e remontá-lo de maneira alternativa, Os papéis do inglês pode ser visto, então, como uma metáfora e uma proposta para a reconstrução desse país, desse povo, e sobretudo dessa identidade.

Notas

* Mestranda em Ciências Sociais no Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC – SP e bolsista do CNPq. E-mail: marciaiwai@uol.com.br

1 Já José Paulo Paes, evocando duas obras de H Rider Haggard nos alerta: “Que este exemplo nos previna do equívoco de, pela circunstância de o fastígio do romance de aventuras na segunda metade do século XIX e nas décadas iniciais do nosso, haver coincidido de certo modo com o fastígio do colonialismo europeu, ver aquele como um mero reflexo ideológico deste. Tanto não é bem assim que se podem encontrar lances de crítica social nuns poucos autores como Julio Verne(...)” (Paes, 1987: 74)

Bibliografia


BENJAMIN, Walter (1994). “O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense.

CARVALHO, Ruy Duarte de (2007). Os papéis do inglês. São Paulo: Companhia das Letras.

CONAN DOYLE, Arthur (1995). The lost wo rld & other stories. Ware: Wordsworth.

HALL, Stuart (1999). A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. de Tomaz Tadeu da Silva e Guaracira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A.

MEMMI, Albert (2007). Retrado do colonizado precedido de Retrato do colonizador. Trad.de Marcelo Jacques de Moraes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

PAES, José Paulo (1987). As dimensões da aventura. In: ZILBERMANN, Regina (Org.): Os preferidos do público . Petrópolis: Vozes.

SHOWALTER, Elaine (1993). O Rei Romance. In: Anarquia sexual – Sexo e cultura no Fin-de-siècle. Trad.: Waldéa Barcellos. Rio de Janeiro: Rocco.

TODOROV, Tzvetan (2006). As estruturas narrativas. Trad.: Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Perspectiva.

 

Outros romances e contos mencionados:

CONRAD, Joseph (1994). Heart of darkness. London: Penguin.

FALKNER, John Meade (2006). Moonfleet – O tesouro do Barba Negra. Trad.de Heloisa Seixas. Rio de Janeiro: Record.

HAGGARD, H. Rider (2004). Ela. Trad.: Heloisa Seixas. Rio de Janeiro: Record.

__________________ (2004b). Ayesha – O retorno de Ela . Trad.de Heloisa Seixas. Rio de Janeiro: Record.

__________________ (s/d). As minas do rei Salomão. Trad.de Eça de Queiroz. Rio de Janeiro: Ediouro.

HEMINGWAY, Ernest (2003 ). The snows of Kilimanjaro. In: The complete short stories. New York: Scribner.

KIPLING, Rudyard (200 6). O homem que queria ser rei. In: O homem que queria ser rei e outros contos selecionados – Edição bilíngüe. São Paulo: Landmark.

STEVENSON, Robert Louis (2004). A ilha do tesouro. Trad. de Alves Callado. Rio de Janeiro: Record.

VERNE, Jules (2007). Vinte mil léguas submarinas. Trad.de José Gonçalves Villanova. São Paulo: Martin Claret.

____________ (2002). Viagem ao centro da Terra. Trad. de Renata Cordeiro. Porto Alegre: L&PM.

_____________ (2006). A ilha misteriosa. Trad. e adaptação de Carlos Heitor Cony. Rio de Janeiro: Ediouro.




Download versão .pdf

 
 
 
Direitos Reservados Neamp, 2008. Desenvolvido por Syntia Alves e J.M.P.Alves. Versão html - Gustavo Araújo