A crise cambial brasileira de 1999, a literatura de seus protagonistas e a compreensão do fato.
Resumo: Este trabalho trata da crise cambial ocorrida no Brasil em final de 1998 e início de 1999. Foi um importante momento da história econômica e política do país, pois mudando o regime cambial, no longo prazo, transformou a economia. E, despertando uma série de conflitos no interior do governo e na coalizão de Fernando Henrique Cardoso, deu ao país, ao fim e ao cabo do processo, dinâmica política que faria ruir o bloco político tucano-peflista. Esse processo resultou na vitória da oposição, três anos mais tarde, 2002, com a vitória do Partido dos Trabalhadores e seu candidato, Luiz Inácio Lula da Silva. Na sintética bibliografia, estão apresentadas quatro obras que são, basicamente, memorialísticas, analistas parciais, ou “documento de combate político”, Feitos à época ou em relação àquele momento. Foram escritas por atores que viveram os fatos, mas que não tiveram a intenção de buscar sínteses. São narrativas parciais do processo, feitas como memória ou jornalismo. Todavia, obras que permitem ao analista, ao cientista político, ao historiador recompor o processo agregando detalhes e dando sentido explicativo para além dessas obras, transformando os acontecimentos em fato político, cientificamente analisado e compreendido.
Abstract: This article approches the Brazilian exchange rate crisis in late 1998, and beginning of 1999. It was an important moment for the economic and political history of the country, once when the exchange rate policies were changed in the long run, the economy was transformed. And, by bringing up several conflicts inside Fernando Henrique Cardoso's government and coalition, the event gave the government, at the end of the process, a political dynamic that would bring the PSDB-PFL political bloc to ruin. This process resulted in the opposition's victory three years later, in 2002, headed by the Labor Party and its candidate, Luiz Inácio Lula da Silva. In the short reference herein, four books, which were written at the time, and are basically memoirs, partial analyses or “documents of political combat”, are presented. They were written by participants who witnessed the facts, but who did not want to seek syntheses. They are partial narratives of the process, built as recollection or journalism. However, they are books that allow the analyst, the political scientist, or the historian to recompose the process by aggregating details, and by giving explanatory sense that goes beyong these works, transforming the events into scientifically analyzed and understood political facts.
Nota Explicativa: a história contada pelos que a viveram e escreveram
Cientistas sociais almejam compreender a realidade, interpretar fatos, decifrar o sentido da ação do indivíduo na órbita da ação social que ele produz, como um aglomerado de ações individuais. A ciência social, dizem os clássicos, é causal, histórica e compreensiva. Mas, todo esse esforço se defrontar com as muralhas de um empiricismo cru e sem interpretação. O dado objetivo e a própria objetividade exigida pela “ciência” que esse tipo de profissional e estudioso produz – ou julga produzir --, lhe cria problemas, pois a questão, ao final, persiste: como compreender perfeitamente a história que não se viveu?
É verdade que nem sempre os próprios atores conseguem compreender o emaranhado de relações e implicações que os cerca. Banhando-se no rio, sentem a água pelo corpo, sabem de sua temperatura e a íntima sensação que ela despertou. Mas, não raro, cometem o erro de imaginar que são o próprio rio. Não são. Há relações mais amplas, conflitos que lhes escapam informações que não possuem no momento, se é que um dia possuirão.
Parte desse tipo de problema é apontado por Charles Wright Mills e seu clássico “A Imaginação Sociológica”. Os indivíduos vivem a história, mas, adaptando livremente Marx, não sabem ao certo a história que fazem. A imaginação sociológica reúne e dá sentido aos fragmentos.
Há, portanto, farto material à disposição do pesquisador que, de certo modo, contribui para que se perceba isso: são relatos históricos (não necessariamente “trabalhos de história”), memórias, jornalismo, discursos datados, coletâneas conjunturais... Enfim, um vasto material a que podemos chamar literatura dispersa, que possuem imensa importância e muitos méritos. São essenciais para que o cientista social possa “sondar”, “tatear” o objeto de sua preocupação intelectual. Todavia, ainda assim, são fragmentos esparsos que careceram de sistematização, sentido histórico e senso de complexidade.
Compreende-se esse tipo de material como algo tão importante quanto documentos primários, atas de reunião ou depoimentos diretos. São, normalmente, sucessos de venda nas livrarias, na internet – alguns chegam às bancas de jornal – mas, pouco foram exploradas pela acadêmica pelo simples motivo de não terem sido pensados e nem construídos como “material acadêmico”. É, no entanto, sua reunião e síntese, que pode lhe dar esse sentido.
Assim, com base nos relatos do ex-presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, em seu “A arte de política – a história que vivi”; no discurso de despedida do ex-presidente do Banco Central, Gustavo Franco, e de dois assessores de imprensa – Guilherme Fiúza, (“3.000 dias no bunker – um plano na cabeça e um país na mão”) e Maria Clara R.M. do Prado (“A real história do Real – uma radiografia da moeda que mudou o Brasil”) – foi possível recompor os fatos e compreendê-los mais amplamente.
O texto a seguir não foi escrito tendo como objetivo a análise desse material, mas por meio dele procura demonstrar e encontrar o sentido histórico e político dos fatos. Espera, com isso, além revelar a política em seu estado mais puro, o conflito, também (e por fim) indicar a importância de trabalhos dessa natureza.
Introdução ao fato: a inflação como saga e o caminho da estabilidade
Mais que uma luta, a conquista da estabilidade econômica no Brasil foi uma saga, isto se revela em vasto material, mas nos relatos de Fernando Henrique e de Guilherme Fiúza, temos conhecimento de pelo menos parte dos bastidores dessa trajetória, a partir da idealização e, depois, lançamento, do Plano Real.
Todavia, é verdade, que pelo menos desde 1973, com a primeira crise do petróleo, setores da inteligência nacional já alertavam para os riscos de uma economia negligente com o controle das contas públicas e indolente no combate à inflação. Mesmo antes disto, Mário Henrique Simonsen, em seu “Brasil 2001” (um livro com robustez e status acadêmico mais bem delineado), alertava: “daqui para o futuro precisamos trilhar um caminho mais equilibrado de desenvolvimento, com menor tolerância à taxa inflacionária, maior esforço de poupança, maior controle dos custos iniciais, e maior atenção às exportações” (Simonsen, 1974:62).
Mais que um problema econômico, a inflação passou a ser uma cilada política: os anos de regime militar não apenas deixaram de resolver o problema, como o agravaram numa escalada de aumento de gastos, malversação de recursos, gestão ineficiente e absoluta confusão sobre o papel do Estado e das instituições republicanas. Enquanto tiveram força para fazer valer sua vontade, os militares não atentaram para o problema estrutural que estava se consolidando; quando se deram conta, já não tinham poder e legitimidade política (governo Figueiredo) para alterar a realidade.
Na democracia, uma lógica eleitoreira assumiu perigosamente o centro do raciocínio dos governantes: ao mesmo tempo em que medidas puramente retóricas contra a inflação (congelamentos e que tais) davam votos, o combate às suas causas mais radicais – déficit público, por exemplo – seria impopular. Cortar gastos, suprimir programas assistenciais, demitir servidores e reduzir o tamanho do Estado por meio da privatização ou do simples fechamento de empresas estatais, como se diz popularmente, nunca deram “Ibope”.
Anos se seguiram e diversas as tentativas de controlar a inflação se sucederam como fracasso. Foram inúmeros os planos, sendo o mais espetaculoso deles, o Cruzado, no governo Sarney (1985 – 1989) 1. Todavia, ainda assim, em 1989, nos últimos meses do Governo Sarney, a inflação atingiu números fantasmagóricos: 84,32% ao mês. As novas gerações talvez sejam incapazes de compreender o que foi isso. Mas, ao final dos anos 80, viva-se a impressão de um país imerso no caos: denúncias e mais denúncias de corrupção, desoladora desordem administrativa e inflação de quatro dígitos 2.
No início dos anos 90, o principal dos fracassos: o “Plano Collor”. Prometendo acabar com o descontrole na economia, o ex-governador do Estado de Alagoas, Fernando Collor de Mello saiu-se vitorioso na primeira eleição presidencial, desde 1960. Dono de um discurso apaixonado, o novo presidente dava cores ainda mais dramáticas ao problema e afirmava ter “apenas uma bala” para liquidar o leão inflacionário. Em março de 1990, com o plano que levou seu nome, Collor decretou o bloqueio das cadernetas de poupança e contas correntes, congela preços e salários. Foi certamente a maior intervenção no domínio econômico de que se teve notícia na história do país; a moeda nacional mudou de nome – voltou a chamar “Cruzado” (Cr$) – mas tudo acabou sendo entendido como um confisco, que ao final, apresentou pouquíssimos resultados diante do sacrifício que pediu em contrapartida. Collor atirou e errou: em 1992, a inflação acumulada foi de 1.158%. Não apenas por isso, mas, já em Setembro de 1992, o presidente da República renunciou ao mandato como uma tentativa (fracassada) de escapar do processo de impeachment, por fim aprovado pelo Congresso Nacional 3.
Após a renúncia de Fernando Collor, o problema passa a ser discutido como uma questão vital para o país. A inflação e a desorganização econômica não apenas causavam paralisia econômica, atraso e desigualdade social, mas já se mostrava mesmo disfuncional do ponto de vista político. Todavia, o combate a essa situação não encontrara, ainda sua expressão política. Nos primeiros tempos do governo Itamar Franco (que assumiu com a renúncia de Collor), o país ainda viveu momentos de indefinição, com uma enorme movimentação nos postos de comando da economia.
A partir deste ponto, podemos acompanhar os fatos por meio das memórias de Fernando Henrique. Como o gênero requer, naturalmente, o ex-presidente usa (e abuso) da primeira pessoa e se coloca, sobretudo, como ator. Vez em quando busca o sociólogo, faz referência a pensadores como Maquiavel, mas é claro que está falando e relembrando é o político de ação, que viveu e agiu no processo.
Assim, demonstrará FHC que será somente ao final do mandato tampão de Itamar Franco – ou seja, a partir de sua entrada em cena como protagonista --, é que o país parece encontrar o rumo e o veio políticos adequados para o desafio.
Fernando Henrique Cardoso -- conhecido senador paulista e, na ocasião, ministro das Relações Exteriores de Itamar --, feito ministro da Fazenda por Itamar, organiza um grupo diferenciado de economistas, se comparados ao que se apresentava imediatamente antes desse momento. Trata-se de técnicos e intelectuais, de sólida formação acadêmica, experiência de mercado e vivência internacional, passou a conduzir o processo propondo medidas graduais e estruturantes de um novo ambiente institucional 4. O primeiro passo foi dado em fevereiro de 1994, com a criação da Unidade Real de Valor (URV 5), e depois o lançamento do “Plano Real”, em julho daquele ano.
Não se tratou apenas do lançamento de uma nova moeda, mas a implantação de uma lógica diferente: mecanismos de Estado que passaram a trabalhar articuladamente com o objetivo de combater a inflação. Os principais foram: os ministérios da Fazenda e do Planejamento, assim como o Banco Central do Brasil, mas uma série de medidas se complementaram e, a longo prazo, compuseram um grande esforço de reformas estruturais e constitucionais, até hoje não completamente realizadas, por sinal. Questões econômicas mais profundas começaram a ser: a reestruturação do sistema financeiro nacional, cujo desfecho foi a privatização de vários bancos estaduais 6, assim como a liquidação e/ou incorporação de bancos privados foi um importante marco desse processo. Nos anos que se seguiram, a Lei de Responsabilidade Fiscal demarcou uma profunda transformação no país.
Enfim, o desafio foi posto: a inflação brasileira não apenas era o mais grave problema econômico do país, como também a maior questão política, por se tratar verdadeiro imposto sobre os mais pobres, mecanismo responsável pela péssima distribuição de renda e pela desigualdade. Assim, o Plano Real foi capaz de diferenciar-se dos demais planos: não houve congelamento de preços e salários – recurso desacreditado pela nação, ao mesmo tempo em que se buscou reorganizar a combalida economia do país por meio de mudanças institucionais e de mentalidade. Uma luta econômica, cultural e política, capaz de viabilizar a candidatura presidencial de seu autor, capaz de expressar essa determinação.
Foi o que se deu: aos poucos o Plano Real se consolidou. O recurso da URV mostrou-se engenhoso, propiciando que todos os preços do país passassem a aumentar num mesmo ritmo; abertura do marcado brasileiro ao consumo de produtos importados impôs uma forte competição inibidora do aumento dos produtos nacionais; o câmbio estabelecido pelo governo, mantendo o dólar praticamente em valores paritários 7 ao Real, completava a lógica e o raciocínio econômico do projeto: a âncora dos preços por meio da abertura e da política cambial.
Naturalmente, um clima de euforia se estabeleceu. Além do “consumo sem culpa”, uma vez que o aquecimento da demanda era garantido pelas importações, a condução da política econômica passava a estabelecer marcos mais sólidos – pelo menos em relação ao passado -- quanto aos gastos do governo e credibilidade das autoridades econômicas. Ainda que embaralhado por uma série de nuvens, a tendência era de que o futuro ficaria mais visível. Junto disto, o Real e seu enorme simbolismo político parecia conter também a possibilidade de viabilizar uma candidatura alternativa à presidência do Brasil.
Como se sabe, em 1994 o favorito em todas as pesquisas era o candidato do PT, Luíz Inácio Lula da Silva, sobre quem ainda pesavam muitas dúvidas quanto à capacidade de governar e ao tipo de atitudes que pudesse vir a tomar no poder. Diferente de oito anos mais tarde, 2002, quando Lula finalmente foi eleito, naquele momento sua figura expressa o medo do empresariado nacional e internacional em relação à esquerda no Brasil.
Havia motivos para isso. Lula e seus companheiros ainda vocalizavam um discurso pleno em clichês e idéias fixas em relação ao capitalismo e aos organismos econômicos internacionais como, por exemplo, o Fundo Monetário (FMI); além de uma leitura ideologicamente distorcida a respeito de um processo econômico mundial, de integração de mercados, bens, idéias, e pessoas que, pejorativamente, chamavam de “globalização”. Como sempre, o desconhecimento e a insegurança, vinham acompanhados de agressividade, auto-suficiência e soberba.
Líderes do PT, por exemplo, mostraram-se, no mínimo, pouco receptivos ao Real, qualificado como “eleitoreiro”. Além disso, rechaçavam em vários aspectos o debate econômico em torno de propostas voltadas à abertura econômica, modernização tecnológica e privatizações – que, inevitavelmente, levariam à diminuição do Estado e, por conseguinte, afetaria milhares de funcionários, áreas de influência de sua base política.
A viabilização da candidatura de Fernando Henrique Cardoso à presidência da República se deu, no entanto, em virtude do sucesso do Plano, saudado nacional e internacionalmente. Com enorme facilidade, foi eleito presidente do Brasil, ainda no primeiro turno daquelas eleições de 1994. Todavia, os problemas políticos não desapareceram com a vitória eleitoral de FHC; assim como, esses problemas não se resumiriam apenas à resistência oposicionista do forte e organizado Partido dos Trabalhadores. Fatores internos e externos vieram a se somar ao rol de complicações e disputas em torno do governo e do Plano Real. Sintomaticamente, todos eles tinham como principal foco a crítica à política cambial conduzida pelo Banco Central do Brasil.
Crises externas e conflitos internos: a eclosão do regime cambial
A inflação acumulada no Brasil em 1994 ainda foi estratosférica: 1.093, 8%. Mas, já em 1995 foi drasticamente reduzida (14,7%). A partir de então, se estabeleceu em apenas um dígito: 9,3%, em 1996; 7,4%, em 1997; 1,7%, em 1998. Um sucesso não houvesse outros sérios problemas.
Mesmo antes de Fernando Henrique tomar posse, dificuldades no ambiente econômico internacional impuseram dificuldades para o Brasil. Em dezembro de 1994, o México, que começara a desvalorizar sua moeda no ano anterior, encontrava-se com um nível de reservas baixíssimo – inferior a um mês de importações -- e em virtude disto foi obrigado a adotar taxas de câmbio flutuantes. A evolução desse quadro de dificuldades levou aquele país uma declaração de moratória unilateral, despertando no mercado internacional o temor de que outros países, por razões mais ou menos parecidas, tivessem que fazer o mesmo.
Naquele momento, até mesmo em virtude da própria estabilização, a economia brasileira crescia a olhos vistos; falava-se, inclusive, em superaquecimento. A forte demanda reprimida libertara-se. O fantasma do Plano Cruzado voltava a assombrar a sociedade, não mais em virtude do congelamento de preços, mas por conta de um câmbio altamente estimulante em relação ao consumo. Este cenário fora desenhado desde o nascimento do Real e que crescera na disputa política eleitoral de 1994, agora ganhava corpo. Em março de 1995, o país foi obrigado a estabelecer uma política de bandas cambiais e a elevar juros de modo a conter o consumo.
Paralelamente, constatou-se um sério e estrutural problema: ao longo dos anos, o sistema financeiro brasileiro se desenvolvera num ambiente contaminado pelos ganhos com a inflação, o que não raro ocultava maus negócios e seriíssimas deficiências de gestão. Com a estabilidade, grande parte do sistema, praticamente, colapsara. Mais de 190 instituições, dos mais variados tamanhos foram submetidas a processos de liquidações, intervenções ou regimes especiais. Somente o Banco do Brasil requereu um processo de reestruturação cujo montante foi de cerca de R$ 8 bilhões.
Percebeu-se que as relações entre bancos oficiais e governos estaduais geraram rombos estratosféricos – contrariando a Lei, 7492, esses bancos emprestavam a seus controladores que, evidentemente, não pagavam. Intervir ou mesmo liquidar é desde sempre uma alternativa técnica e economicamente definida; todavia, trata-se de uma definição repleta de enormes inconvenientes políticos, quer seja, no caso dos bancos oficiais, por parte de governadores (desde sempre figuras com poder de pressão sobre o Congresso e, evidentemente, legitimidade popular, pelo mandato que exercem), seja do funcionalismo desses bancos, seja dos correntistas, evidentemente.
Como se apontou acima, forma mais de 190 instituições. Logicamente, também a existência de vários bancos privados estava comprometida. Bancos como o Econômico, o Excel, o Nacional e o Bamerindus, por exemplo, foram liquidados, o que também causou muito conflito, sobretudo, porque nos casos do Econômico, um titã da política nacional, o senador baiano, Antônio Carlos Magalhães movimentou-se com habitual truculência, colocando em dúvida a própria independência do presidente da República para agir do modo mais correto economicamente e impessoal possível. Também os casos do Bamerindus e do Nacional traziam consigo injunções políticas que tiveram que se enfrentadas.
Para o caso dos bancos oficiais, o governo e, particularmente, o Banco Central, despertou a ira de diversos governadores de estado, prejudicados com a interrupção dos diques. No que se refere aos bancos privados, sua liquidação resvalou em interesses de políticos influentes, próximos dessas instituições. Durante todo o primeiro mandato de FHC, o governo conviveu com o ressentimento e as juras de vingança de aliados e a desconfiança de adversários e mesmo da mídia.
O fato é que essa enxurrada de problemas econômicos que envolveram o governo Fernando Henrique logo nos primeiros meses dificultava decisões em relação a alterações mais significativas no câmbio. O momento nunca parecia conveniente. Embora considerada necessária por vários dos interlocutores do presidente – entre eles, Pérsio Arida, presidente do Banco Central e José Serra, ministro do Planejamento de então --, a definição de um ajuste cambial mais profundo era constantemente adiada, ainda que despertasse receio em vários setores do governo e mesmo resultasse em pressão política e empresarial.
Ainda assim, até em virtude do câmbio apreciado, o clima era de otimismo econômico. Em 1994, a taxa de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) nacional foi recorde: chegando a quase 6%; a estabilidade voltava e com ela as perspectivas de investimento e crescimento econômico. Não apenas no Brasil. Um grupo de países em desenvolvimento que experimentava crescimento econômico e desenvolvimento industrial passou a ser conhecido genericamente por “países emergentes”. O Brasil estava entre eles; ao mesmo tempo em que o momento despertava a tensão acima descrita, a política econômica brasileira resultava também em diversos avanços, passando a contar com confiança e credibilidade internacionais que há muito não possuía – se é que em algum dia da história do país a obtivera.
Mas, o fundamental é compreender a contradição: se isto tudo trazia status, trazia também preocupação: após a crise do México, certa desconfiança internacional passou a pairar sobre todos os países ditos emergentes. Inflação, câmbio, juros, balanço de pagamentos... Tudo chamava atenção. A porta aberta à economia mundial fazia que por ela passassem princípios de condução econômica mundialmente estabelecidos e os tais “fundamentos econômicos” de cada país passaram a ser analisados com lupa.
Começou a pesar sobre esse conjunto de países a desconfiança em relação às suas políticas e o sentimento de sua vulnerabilidade logo se espalharam entre investidores, organismos multilaterais e especuladores. E não tardou que profecias desse tipo logo se auto-realizassem por diversos países. FHC é taxativo em seu relato: inaugurou seu primeiro mandato com uma crise cambial que lhe exigiu “nervos de aço”; uma decepção para quem ainda contava com alguma dose de “lua-de-mel”.
Na esteira do México, outros emergentes emitiam sinais de naufrágio iminente, aumentando ainda mais a tensão e tornando-a permanente. Em 1997, foi a vez de a Tailândia e a Malásia, seguidas por todo o sudeste Asiático, passarem por um processo de fuga de capitais e deflação de seus ativos financeiros. Em 1998, foi na Rússia: a quebra de um conjunto de bancos levou a uma enorme drenagem de capitais naquele país. Acendia-se um sinal amarelo para o Brasil: o país se comprometera várias vezes com promessas de ajustes fiscais rigorosos, mas não cumprira. Naturalmente, seria agora questionado.
Como se isto não bastasse, outro abalo veio dar cores ainda mais dramáticas ao cenário: o fundo internacional LTCM ( Long-Term Capital Management) , em torno do qual girava algo em torno de 1 trilhão de dólares em aplicação (derivativos) também quebrou, colocando em risco vários dos grandes bancos do mundo. O ambiente econômico internacional tornou-se ainda mais refratário a países como o Brasil; o risco-país saltou de 400 para mais de 1.000 pontos; as reservas em dólares do país começaram a se esgotar. Somente em 10 de setembro de 1998, 2,6 bilhões de dólares saíram dos cofres brasileiros; como recursos para conter a sangria, o Banco Central elevou as taxas de juros colocando-as num patamar hoje inimaginável, 40,18%. Não tardou, o país bateu à porta do Fundo Monetário Internacional.
O momento não só continuava inconveniente para qualquer mudança de rota, como também exigia a reafirmação das políticas cambial e monetária. A fortuna obrigava o país a dobrar a aposta.
Resistências corporativas e reeleição
Em 1998, o Partido dos Trabalhadores ainda não digerira suficientemente bem a derrota eleitoral de 4 anos antes, com o agravante de durante o período ver o governo de Fernando Henrique promover uma série de mudanças que atingiam em cheio a base política mais tradicional da legenda, o funcionalismo. A crise econômica que sucedera no mundo e que atingira em cheio o país era, então, um excelente motivo para proclamar que a crítica de 1994 estava mais que correta: o Plano Real era eleitoreiro e, evidentemente, a tese de que a política cambial do governo não se sustentava mostrava-se tão resistente como alguém que todos os dias, ao acordar, anuncia que “vem chuva”. Um dia, de fato, chove. E de fato, de algum modo, e por motivos diversos daqueles que o PT mencionava, o país quebrou. A profecia se realizara.
Naquele ano, o deputado, economista e ex-ministro Antônio Delfin Netto, sarcasticamente, afirmava: “até mesmo um poste é capaz de vencer Fernando Henrique nesta eleição; o diabo vai ser dar nome ao poste”. Ruim com ele, pior sem ele, é o que parecia. O sentimento geral era o de que, embora muitos erros pudessem ser apontados na trajetória do Real, das candidaturas postas em 1998, nenhuma reuniria tão ou mais que a de Fernando Henrique as condições de fazer frente à crise internacional. Todavia, era o caso de se perguntar o que afinal dera errado na condução do processo.
Vários pontos confluem para o centro da crise, mas o principal deles parece ser a evidência de que a estabilidade do Real não poderia depender indefinida e exclusivamente das políticas cambial e monetária do Banco Central. A consecução de um ajuste fiscal, desde sempre constatado e realmente necessário não fora levada a cabo. É o próprio ex-presidente que admite: “Com a inflação em queda e o gasto em expansão, o resultado primário do governo federal (...) passou de um superávit de 4% do PIB em 1994 para zero em 1995, mantendo-se nesse patamar até 1997. (...) O fato é que não havia, salvo na área econômica do governo, a consciência aguda da necessidade do aperto orçamentário...” (Cardoso, 2006: 369-370).
A cultura política brasileira patrimonialista tradicional e predatória não se eliminaria de um dia para o outro; várias das mudanças propostas pelo Plano Real poderiam ser -- e de fato foram – implementadas por resoluções e normas internas aos ministérios ou mesmo medidas provisórias (MPs),. Mas uma série delas dependeria mesmo de alterações constitucionais, cujo número de parlamentares necessários para aprová-las excederia em muito a base reformista do governo.
Obrigado a fazer alianças com setores tradicionais e anacrônicos, o governo se via submetido a um ritmo lento e interminável de negociações e concessões, muitas das quais terminavam, paradoxalmente, na utilização política da máquina pública, no aumento de gastos, na desistência de reformas. Além disso, se constatou que o melhor sucessor de Fernando Henrique seria ele próprio, pois suspeitava-se que mesmo as candidaturas presentes no PSDB – Mário Covas, Tasso Jereissati ou José Serra – seriam, por ideologia ou índole, incapazes de dar seqüência ao processo, desde sempre como estigmatizado como “neoliberal”. A custosa possibilidade de altera-se a constituição para aprovar o instituto da reeleição passou a ser considerada. ´
Evidentemente, se a reeleição abria de fato uma porta para a continuidade do mandato de FHC e assim do projeto do Real, é também verdade que seu custo de negociação comprometeria, pelo menos no curto-prazo o ritmo, senão a continuidade, das reformas. O ciclo eleitoral impunha restrições quanto à adoção de políticas consideradas impopulares, ao mesmo tempo em que levava a base política do governo a buscar dividendos imediatos, exigindo providências agilidade na busca de um desenvolvimento vigoroso.
Assim, o governo enfrentava resistências não apenas no front externo, mas também internamente. Além de uma oposição realmente aguerrida e organizada socialmente, como era o PT daquele tempo, também no âmbito doméstico não faltaram pressões e lances contrários não apenas ao aprofundamento do processo de reformas e ajuste fiscal, como também críticas, cada vez mais agudas, em relação à política cambial.
Monetaristas e desenvolvimentistas e o difícil ajuste fiscal
Neste ponto, os relatos do ex-presidente e do jornalista Guilherme Fiúza se cruzam: durante a maior parte do primeiro mandato de FHC, seu governo conviveu com uma polaridade política interna. Por falta de termos mais claros e manifestações mais objetivas dos “contendores” – que, evidentemente, manifestavam-se principalmente nos bastidores, logo de forma não muito clara e “programática” --, a mídia entendeu esses conflitos internos como uma disputa tão antiga quanto ultrapassada na política econômica nacional, rebatizada de “monetaristas” e “desenvolvimentistas”.
Os rótulos mais mistificam do que qualificam, ainda assim pode-se dizer que os “monetaristas” (ou “fiscalistas”) caracterizar-se-iam por uma postura de maior preocupação com a solidez da moeda e em virtude disso manejavam políticas restritivas do consumo e do desenvolvimento; propunham obviamente um rigoroso controle de gastos o, no caso em questão, um ajuste fiscal de elevadas proporções. Situam-se em torno do ministro da Fazenda, Pedro Malan, e do -- a princípio diretor de da Aérea Internacional, depois diretor de Política Monetária e finalmente -- presidente do BC, Gustavo Franco.
Os chamados “desenvolvimentistas” estavam por vários cantos: nas federações das indústrias, como a Fiesp, na esquerda nacionalista, numa parte da academia -- que se identificava com um papel de maior protagonismo do Estado --, nos partidos de oposição, e, dentro do governo em setores do governo simbolizados pelo ministro do Planejamento e senador, José Serra, influente quadro do PSDB, partido de Fernando Henrique. Tratava-se de um espectro político cuja determinação de promover mais rapidamente mudanças que dinamizassem o crescimento era facilmente confundida como certa tolerância a “um pouco de inflação” e a um pequeno rigor em relação ao gosto público.
Independe do esforço de setores do governo – notadamente, o ministro Malan e o presidente da República – na tentativa de esclarecer que defesa da moeda e rigor fiscal não inviabilizam, necessariamente, o desenvolvimento econômico; ao contrário, criam as bases e as condições para o desenvolvimento seguro e sustentável, uma polêmica simplista ganhou a mídia e desinformou investidores. Divergências haviam, mas elas se localizavam, sobretudo, em visões distintas – mais ou menos ortodoxas; mais ou menos heterodoxas – quanto aos instrumentos mais eficazes para a contenção da inflação, numa conjuntura de elevada turbulência financeira internacional: juros e câmbio, principalmente.
Por todos os motivos acima apontados, grupos se rivalizam e disputam influência junto ao presidente da República; há um tensionamento – indesejado, mas inevitável – capaz de redefinir rumos ou, pior, estabelecer expectativas pouco produtivas para a sociedade e paralisantes em relação ao investimento. O próprio ex-presidente admitiu o conflito: “...Serra e Sérgio Motta, ambos ministros e amigos próximos, continuavam criticando Gustavo Franco. No dia 17 de maio de 1996, disse-lhes que se eu acolhesse a sugestão de substituí-lo, rolaria também a cabeça de Malan, dada a relação de afinidade e de lealdade no trabalho que ligava os dois. – ‘Tira Gustavo é tirar Malan', disse-lhes. Procurei conversar com um tertius, no caso Edmar Bacha (...). Demos voltas à imaginação para ver quem eventualmente poderia substituir Malan. Apesar de existirem bons candidatos, como José Roberto Mendonça de Barros, nenhum nos parecia superar, na média, a soma de contatos e experiências internacionais, respeitabilidade pública, correção, dedicação e capacidade de trabalho de Malan” (Cardoso, 2006: 374).
É claro que havia divergência em relação ao maior ou menor controle do gasto público. Mas, isso não passaria necessariamente por embates no seio da equipe econômica – ou apenas por ali. Infelizmente, a despreocupação com questões desse tipo, ou pelo menos a falta de rigor nesse aspecto, é mesmo um traço histórico do Estado brasileiro em que se sustenta grande parte do sistema político nacional. A política cambial estimulando importações segurava o ímpeto de aumentar preços, a política monetária servia como instrumento de contenção do câmbio. Todavia, tanto uma como outra eram instrumentos precários, levando ao recrudescimento de pressões políticas em virtude do câmbio e a uma brutal elevação da dívida, em razão dos juros.
Sabia-se que o país não poderia prescindir de ajustes mais profundos: uma política vigorosa de contenção de despesas e um conjunto de reformas que retirasse do Estado o sobrepeso de escolhas desde sempre expansionistas. Um conjunto reformas estruturais passou a ser ansiosamente aguardado: Previdência, Tributária, Administrativa; a esperança de uma revisão profunda do próprio papel do Estado era acalentada por vários setores. Todavia, nos meios políticos não havia consenso nesse sentido e, em que pese a existência de uma oposição mobilizada e bastante reativa em relação a esse tipo de pauta, a dissonância mais improdutiva se localizava mesmo no interior do próprio governo e em sua base parlamentar, de número mais que suficiente para promover essas reformas, houvesse consenso e disposição para isso.
Evidentemente, esta não é a opinião do ex-presidente Fernando Henrique, para quem o ajuste se processava desde 1996 (Cardoso, 2006), lento e de modo gradual, admite, mas na dimensão do politicamente possível. Todavia, a percepção no momento não era nenhum pouco condescendente. Admitia-se que se algum ajuste era feito, não o era “pelo lado das despesas”, mas por meio da elevação de receitas. Com efeito, novos tributos e mesmo a renovação de outros tantos eram aprovados pelo Congresso 8, como foi o caso da Contribuição Provisória de Movimentação Financeira (CPMF). De todo o modo, para os agentes econômicos aquém do confiável e do desejável. Ao que em suas anotações pessoais, FHC se questionava: “como é que vamos quebrar os ritos da democracia? (...) Querem que vá depressa, o que a lei não permite. É preciso que se entenda isso e o Fundo [referia-se ao FMI] não pode exigir o que a democracia não permite” (Cardoso, 2006: 410).
O fato é que o ajuste não progrediu nas proporções necessárias para reverter expectativas e ou conter movimentos de especulação. Ao lado de profundas e inegáveis desigualdades sociais – que requerem o socorro de vultosas somas de recursos – convivia um Estado mal gerido, instrumentalizado por elites corporativas refratárias à racionalização e a contenção de gastos. Também a lógica de um sistema político atavicamente dependente de recursos e investimentos públicos como fator para expansão de despesas, ou, na melhor das hipóteses, inibição da poupança assustava, resultando num estado gastador, emissor, responsável, no limite, pelo caos inflacionário, apenas paliativamente contido pelas políticas cambial e monetária.
Um diálogo entre o presidente do BC, Gustavo Franco, e o então ministro da Reforma Agrária, narrado por Guilherme Fiúza (2006: 260), parece ser útil para demonstrar a resistência ao corte de gastos:
“— Raul, você sabe que agora acabou essa moleza de dinheiro fácil para assentamento, né? Vocês vão ter que calibrar melhor essa reforma agrária aí.
“-- Acabou nada, rapaz. Você precisa conhecer mais a vida. (...) É o seguinte, Gustavo. Não tem contenção nenhuma, não. As torneiras estão bem abertas, até mais do que antes, se você quer saber. Brasília é assim: vocês fizeram um pacote para economizar 20 bilhões? Então, tem 20 bilhões pra gastar...”
Como sempre, esse tipo de tensão – conflitos internos e incapacidade de ajustes mais profundos -- transborda para fora dos governos, se espalhando como boatos, ganhando os jornais, chegando ao investidor como percepção de risco: “quem ganhará a batalha?”. Em que pese a disposição de Fernando Henrique em promover alterações de rotas no câmbio e nos juros, as condições não davam margem a mudanças bruscas (Cardoso, 2006: 375 – 407) – e as mudanças lentas não mais contentavam.
Os custos eram crescentes: freqüentemente, tanto o presidente do Banco Central, como o Ministro da Fazenda ou mesmo o presidente da República se viram forçados a reafirmar a disposição de ajuste e a manutenção da política cambial. Não raro, no entanto, era como baldear o oceano com as mãos, quando esse esforço, diante da desconfiança do mercado, evoluía no sentido de uma queda-de-braço que resultava em perda de reservas ou na elevação de taxas de juros, o que, paradoxalmente, reforçava os argumentos favoráveis à revisão de todas essas políticas.
É evidente que este quadro todo gera inquietação e dúvidas por parte dos investidores. No limite, preocupam-se em saber quem poderá vir a ganhar (ou sobreviver) nessa luta fratricida; do resultado dependerá o tipo de política econômica a seguir e a influenciar as escolhas dos agentes econômicos. Boatos e oscilações na estrutura interna de poder, quando percebidas, agitam e afugentam. De um modo geral, fazem com que os agentes se antecipem, mudando posições no mercado. Investidor e gestores de fundos passam a viver essa tensão; tornam-se instrumento na própria disputa. Não raro, inadvertidamente.
Ao mesmo tempo, a agitação do mercado torna-se água no moinho interno das disputas e um ciclo vicioso acaba por se estabelecer. Em que pese o Brasil ter finalmente assinado acordo com o Fundo Monetário Internacional, a situação não se apazigou. De nada parecia valer o fato de o país contar com o apoio explícito de várias economias e governantes, como os Estados Unidos, cuja solidariedade e eventual suporte foram externados (e enfatizado) publicamente pelo presidente Clinton.
Para Fernando Henrique, “mesmo com bilhões de dólares nas reservas e tudo o mais, não houve quem convencesse esse personagem de má catadura chamado mercado de que o Brasil estava seriamente empenhado em continuar no caminho da austeridade. A imagem do que ocorrera na Rússia, onde bilhões de rublos foram trocados por milhões de dólares de um programa de estabilização do fundo dos bancos internacionais voaram para contas privadas em bancos no exterior, perseguia nosso país como pretexto para a volta da especulação” (Cardoso, 2006: 406).
Guerra política na base, conflito com governadores: sensação de descontrole
Quer pelas condições externas – a turbulência financeira internacional --, quer em razão dos conflitos internos, o país vivia num clima de incerteza. Este fato que ganhou ainda mais complexidade, paradoxalmente, depois da vitória eleitoral do Fernando Henrique, em 1998. Eleito no primeiro turno, o presidente cogitava mudanças de fundo: mandato mais realizador no tocante ao desenvolvimento econômico. Boatos de que o governo estudava a formação de um super ministério da (o ministério do Desenvolvimento), concentrando diversos outros ministérios e autarquias, entre elas o Banco nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), causaram efeitos nocivos imediatos. Em primeiro lugar, porque a mensagem não era clara: o que seria exatamente esse ministério? Implicaria em prejuízos a estabilização? Poderia ser entendido como a vitória de “desenvolvimentistas” sobre “monetaristas”? Haveria mudanças no câmbio, na política de juros, o ministro Malan continuaria no governo? Perguntas que se multiplicavam sem resposta, o que evidentemente elevava a percepção de risco.
No que tange diretamente ao sistema político, os efeitos foram ainda mais devastadores: a hipótese da formação do novo ministério permitia a interpretação de que FHC já preparava sua sucessão (em 2002) e, em virtude disto, organizaria o segundo mandato de modo a viabilizar seu candidato. Real ou fantasia, é o que menos importa. O fato é que a especulação a respeito provocou um acelerado processo de “posicionamento” entre os dois principais partidos da base: o PFL e o PMDB.
Como se sabe, no interior do PSDB, dois projetos se estabeleciam: um, em torno do senador paulista, José Serra; outro, que procurava viabilizar Tasso Jereissati, senador pelo estado do Ceará. Com o primeiro, perfilava-se o PMDB; pelo segundo, trabalhava a cúpula do PFL. As interpretações de então insinuavam que o super ministério do Desenvolvimento seria ocupado por Luiz Carlos Mendonça de Barros, então ministro das Comunicações e aliado de Serra. Logo, seria um esforço para favorecer o nome de Serra, amigo de Fernando Henrique, paulista, próximo aos setores industriais, o primus inter pares dos desenvolvimentistas, o maior antagonista de Pedro Malan.
Além da natural agitação do mercado – atribuía-se a Serra propostas voltadas à centralização do câmbio –, esses sinais fizeram com que também os trens da política descarrilassem de vez: o ambiente enveredou para uma sucessão pronunciamentos, ataques e conflitos que, ao mesmo tempo em que chamavam os holofotes da mídia, buscavam coagir o governo -- ou melhor, os adversários no governo -- a recuarem 9. Paralelamente, os jornais, em especial a Folha de S. Paulo , começaram a divulgar e a explorar fragmentos de gravações de membros, no contexto do processo de privatização, obtidas, evidentemente, de forma irregular.
O caso ficou conhecido como “Grampos do BNDES” e compôs um cenário em que era justo imaginar a decomposição política do governo. Até hoje não se sabe de onde partiram as gravações e nem exatamente com que objetivos foram repassadas à imprensa. O fato é que a divulgação de trechos de diálogos entre o presidente do BNDES, André Lara Resende, e o ministro das Comunicações, Luiz Carlos Mendonça de Barros, foi o suficiente para que se atribuísse a esses personagens o suo de informações privilegiadas e favorecimento a grupo privado, numa das principais realizações do primeiro mandato, a privatização do sistema Telebrás. Nada se provou e o mais provável é que o caso estivesse no contexto de uma brutal luta política 10. Objetivamente, no entanto, a caso levou ao pedido de demissão de André Lara Resende, Luiz Carlos e também de seu irmão, José Roberto Mendonça de Barros; três dos mais importantes interlocutores econômicos de Fernando Henrique à época. Sendo Luiz Carlos, aliado de Serra, e, inclusive, o membro do governo mais cotado para assumir o super ministério do Desenvolvimento.
Simultaneamente, alegando prejuízos em virtude da apreciação do Real, o empresariado industrial do país se mobilizava pela mudança da política cambial. A historicamente poderosa Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp) chegou mesmo a organizar manifestações contra o Banco Central e sua diretoria; teve a seu lado como parceiros de protesto e co-organizadores de eventos, s duas maiores centrais sindicais do país, a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e a Força Sindical 11.
Por sua vez, o presidente do BC, Gustavo Franco, tentava a todo modo conter a pressão política pela desvalorização do Real, base para o processo de estabilização que conduzia. No seu modo de ver, o Real tornava-se alvo político tanto à esquerda quanto à direita. Uma esquerda desconfiada de que o processo de estabilização conduziria ao enfraquecimento do Estado, inibindo sua liberdade de ‘realizar e fomentar' (numa palavra: gastar); já a direita como um grupo que se batia pela desvalorização da moeda, instrumento de redução de salários em favor daqueles que têm “domínio sobre seus preços, ou seja, quem tem poder de mercado, rendas e posses em moeda estrangeira” 12.
Os problemas eram imensos e a pressão grande. Mas, não se resumia a isto. Como se nada disso bastasse, à oposição, que até então por mais que se esforçasse, não conseguira complicar a vida do governo – a crise internacional e os aliados internos o fizeram sozinhos – encontrou meios para fazê-lo. Com a posse dos novos governadores, no início de janeiro de 1999, vieram novos problemas. O ex-presidente Itamar Franco, desgastado com Fernando Henrique em virtude da reeleição, eleito governador do Estado de Minas Gerais, pelo PMDB, unilateralmente anunciou a suspensão dos pagamentos da dívida de seu estado com a União; declarou moratória e foi imediatamente seguido pelo novo governador do Rio Grande do Sul, o petista Olívio Dutra.
Outros governadores – como, por exemplo, o do Rio de Janeiro, Anthony Garotinho -- aproveitaram a chance para pressionar a União a rever o acordo de suas dívidas, firmados anos antes, já no primeiro mandato de Fernando Henrique. Objetivamente, a medida era inócua, pois, em virtude do não pagamento, a legislação e os acordos permitiam ao Tesouro Nacional se apropriar de verbas e repasses de direitos dos estados (recursos do Imposto de Renda e do Imposto sobre Produtos Industrializados).
Conclusão
Como se pôde notar, as condições econômicas, internas e externas, eram bastante desfavoráveis para o Brasil. As diversas crises mundiais -- a começar pelo México, mesmo antes de Fernando Henrique Cardoso tomar posse -- e as condições mais gerais e estruturais do sistema financeira nacional, aliadas a um Estado de estrutura anacrônica e pouco eficiente, exigiam esforços imensos para o seu enfrentamento e transformação. O Plano Real foi uma iniciativa tão importante quanto criativa contra o processo inflacionário, que durante décadas desorganizou a economia e impôs grandes sacrifícios ao Brasil, sobretudo, aos mais pobres. Ainda assim, o plano não poderia se limitar apenas a ações do Banco Central nas áreas cambial e monetária.
É verdade que uma série de medidas eram encaminhadas: nos primeiros meses do primeiro mandato de Fernando Henrique, um processo político vigoroso começou a transformar a face econômica do estado e da sociedade. Quebras de monopólios, privatizações e a delicada questão do sistema financeiro e do endividamento dos estados foram iniciativas fundamentais. Todavia, a contenção de gastos no setor público ainda continuava a ser um problema de solução se não de todo inadequada, pelo menos lenta o bastante para as expectativas do mercado em geral, e dos investidores em particular.
As condições gerais do sistema político, no entanto, não permitiam avançar mais celeremente nessa área. Uma oposição aguerrida foi de fato um problema, mas não só e talvez nem o maior problema. Divergências no interior do governo, bem como em sua base política e parlamentar eram responsáveis pelos maiores transtornos. Dissonâncias cognitivas, projetos pessoais e lutas pelo poder foram muito marcantes durante esse período e de modo algum contribuíram para o avanço do processo econômico.
Ao mesmo tempo em que se conformavam como um freio à mudança, as operadores políticos também manobravam por espaços e pelo desgaste das autoridades monetárias, pressionadas dentro e fora do governo – por seus antagonistas e pelos grupos de pressão, como os sindicatos e a Fiesp, por exemplo. Nesse processo avanços e recuos, acertos e de desacertos – um gradualismo bastante vagaroso – as crises econômicas dos chamados países emergentes encontraram aqui um ambiente notável para que pudesse ser assemelhadas e, assim, despertassem fantasmas quanto à confiança na continuação do processo iniciado com o Real.
Assim, um dos principais pilares do plano de estabilização econômica, o câmbio, revelou-se, ao fim de alguns anos, em problema capaz de abalar todo o sucesso alcançado, até ali de forma frágil, pelo governo de Fernando Henrique Cardoso -- que em 1994 fora eleito com base no Plano Real e, em 1998, acabara de se reeleger. A política cambial, que mantinha o dólar em parâmetros relativamente estreitos de variação – um dos mais importantes instrumentos para contenção da inflação nos primeiros tempos – passou a não ser mais crível. Por muitos motivos, parecia natural que sucumbisse à pressão política interna, à realidade econômica internacional e mesmo à ação de agentes econômicos do próprio governo que implícita ou explicitamente a combatiam.
Era um ambiente turbulento; e investidores procuram segurança. Evidentemente, era de se esperar que as expectativas se deteriorassem nessa atmosfera, que a percepção de risco aumentasse, que os agentes econômicos se antecipassem à mudança que enxergavam como inevitáveis. Mas, no calor dos fatos, nada parecia tão óbvio: uma parte do governo ainda inspirava credibilidade (ou mesmo teimosia) para fazer crer que o regime cambial, antes que um ajuste fiscal mais sério e profundo se efetivasse, não seria alterado. A dúvida pairou no ar e muitos fizeram suas apostas. Alguns ganharam, outros perderam. O fato é que em 13 de janeiro, mesmo antes que o BC o fizesse, o mercado estouraria limites e bandas que continham o valor do dólar. A moeda americana disparou até flutuar depois de uma desvalorização de 63% no mês de janeiro de 1999 . Um ciclo de política econômica, por fim, se viu esgotado e um período de enorme turbulência política enorme se estabeleceu 13.
Enfim, a mudança do regime cambial, executada em janeiro de 1999, foi menos um gesto de vontade do governo ou até uma conspiração de especuladores do que uma imposição das circunstâncias.
Ao contrário do que relatos oficiais ou discursos políticos podem pretendem fazer crer, a política se move menos como vontade e realizações pessoais do que como resultado de interações. Mesmo que, eventualmente, em tom laudatório, relatos de atores ou observadores mais diretos dessa época, ao criar uma literatura memorialística e/ou jornalística, acabam por revelar também o conflito. E, para usar uma antiga expressão do sociólogo Fernando Henrique, “o conflito é o nervo da política” (in, “O modelo político brasileiro e outros ensaios”, 1977), matéria-prima de nosso ofício, fornecida por uma literatura que, a princípio, não se propunha a isto.
FIM.
Notas
* Mestre e Doutor em Ciências Sociais (Política), pela PUC-SP. Membro do Neamp. Professor de Sociologia e Política do Insper – Instituto de Ensino e Pesquisa. carlos.melo@insper.org.br
1 Lançado em 1986, o Plano Cruzado foi uma tentativa de estancar a sangria da inflação por meio do controle de preços. Seguido por um período de euforia, o “Cruzado” conclamava as pessoas a ajudarem o governo na luta contra a inflação, impedindo que maus comerciantes aumentassem seus preços; a mídia demonstrava a fúria nas ruas explorando a existência de pessoas que, em estado de cólera, defendiam a ação do governo contra empresários. Eram os chamados “fiscais do Sarney”, que decretavam, diante das câmeras de TV, o fechamento de estabelecimentos comerciais. O slogan do plano revelava o desespero: “tem que dar certo!”. Não deu. Em pouco tempo, os produtos mais básicos sumiram das prateleiras dos supermercados e os consumidores, que os quisessem muito, tiveram que se submeter a ágios e filas de espera.
2 De acordo com o “Almanaque da Folha”, em 1989, a inflação acumulada naquele ano atingiu a marca de 1.037,56%.
3 Para mais informações sobre o processo de ascensão e queda do ex-presidente, ver: Melo, Carlos. “Collor: o ator e suas circunstâncias”. São Paulo, 2007, Editora Novo Conceito.
4 O curto mandato de Itamar Franco assinala um período muito complicado: FHC foi o quarto (sim, o 4º) ministro da Fazenda em menos de 8 meses. Além disso, em junho de 1993, de forma quase unânime (apenas um deputado votara contra), o Congresso Nacional aprovara Projeto de Lei, de autoria do então deputado Paulo Paim (PT-RS) que instituía correção mensal de salários (para salários de até 20 mínimos), além de aumento de 3% ao mês. Percebendo o perigo, o ministro Fernando Henrique chegou mesmo a ameaçar se demitir caso a lei fosse sancionada; a contragosto, o presidente Itamar Franco vetou. De acordo com o ex-presidente do BC, Gustavo Franco, “nesta ocasião, nos ativemos a vinte centímetros da hiperinflação” (Ver Franco, Gustavo. “Seis anos de trabalho: um balanço”. Discurso de despedida do Banco Central, em 04/03/1999; http://www.radiobras.gov.br/integras/99/integra_0803_2.htm )
5 Em 28 de fevereiro, uma URV equivaleria a Cr$ 2.750,00
6 Antes mesmo das privatizações dos bancos estaduais, iniciativas mais elementares tiveram que ser tomadas. Para ilustrar a desorganização do sistema financeiro, não custa lembrar que nos primeiros meses da equipe de FHC, até mesmo o Conselho Monetário Nacional (CMN) precisou ser reorganizado. Numa reunião histórica, por significativa da confusão daqueles tempos, o CMN reuniu-se para esclarecer (Resolução 1996) que realmente valia a Lei 7492, a qual vedava aos bancos empréstimos a seus colaboradores. Os governos estaduais eram os principais devedores de seus próprios bancos.
7 No lançamento do Real, a moeda americana foi fixada em R$ 1,00. Mas logo na seqüência, começou a cair, chegando a ser negociada a R$ 0,80. O entusiasmo foi enorme e as facilidades de importação também.
8 Ainda que não fosse este o caso no que se refere a reformas mais profundas: em 02 de dezembro de 1998, numa votação que exigia apenas maioria simples, o governo não conseguiu a aprovação de projeto de lei que estabelecia a contribuição dos servidores inativos, entendida naquele momento como fundamental para a manutenção da previdência pública. A derrota inesperada causou estardalhaço justamente por exigir apenas maioria simples. O governo recém reeleito demonstrava fragilidade.
9 Numa tensão crescente, não demorou para que Antônio Carlos Magalhães, senador pelo PFL da Bahia, viabilizasse uma Comissão Parlamentar de Inquérito a respeito do Poder Judiciário, o que, rapidamente e de modo exagerado, adquiriu ares de “crise entre Poderes”. Em reação a ACM , Jader Barbalho, senador pelo PMDB do Pará e maior adversário do baiano no Senado, capitaneasse a barulhenta e ineficaz “CPI do Sistema Financeiro”. Note-se que tanto ACM quanto Jader eram da base governista, aliados de FHC; mas nem isso evitou que criassem constrangimentos ao governo, piorando sensivelmente a percepção de degeneração do ambiente político e perda de controle por parte do governo. Ao que tudo indica, assustados com o aparente crescimento do grupo adversário, a intenção de ambos parecia ser colocar seus partidos, PFL e PMDB, em condições mais favoráveis nas articulações que, nos bastidores, precipitadamente, buscavam definir o “ungido” à sucessão de FHC (Serra ou Tasso).
10 Em outubro de 1998, o Ministério Público abriu processo de investigação sobre o caso; em novembro de 1999, sem que nada pudesse ser comprovado, o caso foi arquivado e os integrantes do governo inocentados.
11 “Desunidos nos últimos anos pelo furacão monetarista, capital e trabalho voltam a apertar as mãos. Desta vez, os representantes da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e os trabalhadores da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e da Força Sindical unificam suas vozes de protesto contra a política econômica e miram sua artilharia no inimigo número 1 dos juros baixos: o presidente do BC, Gustavo Franco. (...) decidiram lançar nesta segunda-feira dia 21 uma frente a favor da produção e do emprego. "O importante é pegar os pontos que unem e trabalhar neles", diz Piva. Dos assuntos que convergem, um deles é a liberação dos recursos do BNDES às empresas, notadamente às micro e pequenas”. Sócios de ocasião , Revista IstoÉ , 23/12/1998.
12 Franco, Gustavo. “Seis anos de trabalho: um balanço”. Discurso de despedida do Banco Central, em 04/03/1999; página 8.
13 Setores do Partido dos Trabalhadores (PT) e da Central única dos trabalhadores (CUT) chegaram a empunhar a bandeira do “Fora FHC”. Em artigo, o ex-prefeito de Porto Alegre e membro da direção nacional do Partido dos Trabalhadores, Tarso Genro, chegou mesmo a afirmar: “o governo brasileiro já não dirige o país. Fernando Henrique abdicou da responsabilidade constitucional de governar (...). Perdeu a autoridade e a credibilidade -- interna e externamente --, induzindo o país a uma situação de anomia cujo desfecho, ironicamente, vem sendo adiado apenas pela regulação predatória imposta pelo FMI (...) Após frustrar irremediavelmente a generosa expectativa da nação, resta a Fernando Henrique uma única atitude: reconhecer o estado de ingovernabilidade do país e propor ao Congresso uma emenda constitucional convocando eleições presidenciais para outubro, dando um desfecho racional ao seu segundo e melancólico mandato, que terminou antes mesmo de começar” (Tarso Genro. “ Por novas eleições presidenciais ”, Folha de S. Paulo, 25/01/1999, página 3.
Bibliografia
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FIUZA , Guilherme. 3.000 dias no Bunker: um plano na cabeça e um país na mão. Rio de Janeiro, Record, 2006.
FRANCO , Gustavo. Seis anos de trabalho: um balanço . Discurso de despedida do Banco Central, em 04/03/1999; In: http://www.radiobras.gov.br/integras/99/integra_0803_2.htm
LAMOUNIER , Bolívar e FIGUIREDO , Rubens (Organizadores). FHC: a era FHC, um balanço . São Paulo. Cultura Editores Associados, 2002.
MELO , Carlos. Collor: o ator e suas circunstâncias . São Paulo, 2007, Editora Novo Conceito.
PRADO , Maria Clara R. M. do.
A história Real do Real: uma radiografia da moeda que mudou o Brasil. Rio de Janeiro. Record, 2005.
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