voltar
 
 
O Turista Aprendiz: breves notas e observações sobre a viagem de formação de Mário de Andrade.

Marcelo Burgos P. dos Santos*


Resumo: O artigo apresenta algumas observações sobre a obra O Turista Aprendiz, de Mário de Andrade. Consideramos esta obra como parte fundamental para compreender a busca que Mário de Andrade empreendeu pelo Brasil durante suas viagens etnográficas no final da década de 20. Essas duas viagens foram importantes para que o autor tomasse contato com um Brasil real, diferente do Brasil urbano e paulistano com que estava acostumado. Assim, consideramos esse momento de viagens como momento de formação de Mário de Andrade enquanto intérprete do Brasil, pois algumas observações desse período repercutem tanto em sua obra literária como ensaística, em que busca explicar e mostrar o Brasil.

Abstract: This study presents some observations about Mario de Andrade´s travel experiences described in his book O Turista Aprendiz. Considering this work a milestone to understand the author´s search for a true Brazilian identity in the late 1920s. These two trips were of great importance to Mario de Andrade, enabling him to have a real experience with his country opposing his familiar idea of an urban Brazilian lifestyle. These voyages are considered the foundation for his literary work as a true interpreter of Brazil and it has inspired his further career as a writer who tries to explain and reveal Brazil genuinely.


O presente artigo tem como objetivo analisar o papel da “literatura de registro” como fonte de pesquisa nas áreas de ciências sociais e também na literatura, tendo como objeto de análise a obra O Turista Aprendiz , de Mário de Andrade. Aqui, a “literatura de registro” merece ser mais bem analisada pois ela se constitui em um momento muito importante da vida e obra de Mário de Andrade. Talvez possamos afirmar que exerceu o momento de formação deste autor enquanto intérprete de Brasil.

Por vezes, a literatura de registro ou literatura de impressões é publicada em vida por seus autores, outras vezes, apenas postumamente. Consideramos como exemplos paradigmáticos dessa literatura de registro, livros como: Tristes Trópicos , de Claude Lévi-Strauss, Diário de Florença , de Rainer Maria Rilke, Diários Índios , de Darcy Ribeiro, entre inúmeros outros – alguns no campo da literatura outros no campo da ciência (um exemplo importante aqui é o de Bronislaw Malinowski). Muitas vezes, essa literatura permite ter contato com outro lado, outra visão do autor em relação aquilo que não está presente em sua obra literária “oficial”, uma vez que, como já dissemos, alguns desses volumes somente são publicados após a morte de seu autor.

Outro momento importante da literatura de registro são as correspondências que esses autores estabelecem com os mais diversos tipos de interlocutores, embora não abordarmos aqui a imensa correspondência que Mário de Andrade trocou durante sua vida com os mais diversos interlocutores.

Neste artigo pretendemos discutir o papel da literatura de registro na obra de Mário de Andrade, mais especificamente, no seu livro O Turista Aprendiz , que é fruto de suas anotações diárias durante as viagens etnográficas que realizou pelas regiões Norte e Nordeste do Brasil nos anos 20. Alguns dos registros publicados neste livro também foram publicados em colunas jornalísticas de autoria do próprio Mário de Andrade, quando ele escrevia material como correspondente enquanto realizava suas viagens. As viagens a que nos referimos ocorrem em dois momentos distintos em fins da década de 20, mais precisamente em 1927 e depois, entre os anos de 1928 e 1929.

Enfocamos esse momento de O Turista Aprendiz , tanto pela importância e significado no que tange à publicação de sua obra literária durante aquele período, como pela sua obra ensaística. A viagem serve também para pesquisar e servirá de base tanto em sua estética modernista como em sua atuação enquanto homem público na década seguinte, quando chefiou o Departamento de Cultura do município de São Paulo (voltaremos adiante nestes pontos).

Além disso, como observa Dorothea Passetti em Tristes Trópicos : os anos brasileiros de Lévi-Strauss (2004):

É comum constar nos relatos de viagem de cientistas – antropólogos, biólogos, geógrafos ou simplesmente ‘naturalistas' – que neles se mesclam observações, reflexões científicas e de cunho pessoal, revelando características e episódios que envolvem o sujeito que viajou e escreveu o livro. Isso faz do relato de viagem uma escritura especial, pois ao mesmo tempo em que descreve um percurso em função do qual o autor empreendeu a viagem, configura uma possibilidade de pesquisa que alia, em um só texto, o relato, os objetos encontrados e as experimentações pessoais (Passetti: 2004, 35).

Passetti (2004) continua:

Relatos de viagem lançam o leitor para espaços desconhecidos. Mostram outras faces de lugares familiares e promovem intimidades com o autor ao permitiram reconhecer, quando ali se está, tanto o que havia sido imaginado pela leitura quanto vestígios do passado ou maneiras pelas quais foram sendo alteradas as descrições anteriores (Passetti: 2004, 35).

É exatamente, esta complexidade de escrituras literárias que se observa em O Turista Aprendiz . Em determinados momentos, há reflexões sociológicas e políticas sobre o Brasil e o povo brasileiro, em outros momentos há a criação literária, além de idéias que foram desenvolvidas posteriormente, tanto na vertente literária como na ensaística de Mário de Andrade.

Cabe ressaltar que entre a primeira e a segunda viagem etnográfica que Mário de Andrade realizou, há a publicação dos seguintes livros: Macunaíma , Ensaio sobre a música brasileira e Clã do Jabuti que, de acordo com Marta Batista em Coleção Mário de Andrade: religião e magia/música e dança/cotidiano (2004), consiste em um livro de: poesia experimental, exercício de seu projeto modernista – ‘tese de Brasil' (p. 35).

O material observado e colhido durante essas duas viagens daria origem ao Na Pancada do Ganzá , obra não concluída devido ao precoce falecimento do autor em 1945. Ela é, posteriormente, organizada e publicada por suas importantes ajudantes e discípulas, entre as quais podemos citar: Oneyda Alvarenga e Telê Ancona Lopez.

Telê Lopez é a responsável pela organização das pastas da viagem e publica o livro O Turista Aprendiz que consiste nos diários que Mário de Andrade escreveu no decorrer das duas viagens. Na edição consultada, o estabelecimento do texto, Introdução e notas são realizados por ela. Ela afirma:

Para o modernista Mário de Andrade, empenhado em entender a realidade brasileira dentro de um quadro latino-americano e em traçar, na medida de suas possibilidades, as coordenadas de uma cultura nacional, tomando o folclore e a cultura popular como instrumentação para seu conhecimento do povo brasileiro, foi muito importante unir a pesquisa de gabinete e a vivência de vanguardistas metropolitanos ao encontro direto com o primitivo, o rústico e o arcaico, que, em seu enfoque dialeticamente dinâmico, puderam lhe valer como indícios de autenticidade cultural (Lopez: 2002, 15).

Esse livro também fazia parte do projeto Na Pancada do Ganzá , que compreendia ainda os seguintes livros: Música de Feitiçaria no Brasil , Os Cocos , As melodias do boi e outras peças e Danças dramáticas do Brasil . Todos eles possuem um caráter de ensaio, além de descrever as manifestações próprias da cultura brasileira, principalmente as músicas, danças dramáticas e lendas do povo brasileiro. Em outras palavras, entendemos que esse projeto consistia na procura e busca que Mário de Andrade fez pela nossa brasilidade.

Há ainda, o lado literário de Mário de Andrade que no mesmo período das viagens publica duas obras, uma de poesia e a outra ficção, Clã do Jabuti e Macunaíma , que também permitem o debate e observações deste autor sobre a nossa brasilidade.

Como sabemos, Mário de Andrade é um dos principais nomes do Modernismo Brasileiro e um dos mais importantes autores literários de nosso país no século XX. Seu modernismo tinha como um dos principais objetivos alterar e buscar outra nova maneira do expressar artístico e cultural do País, por isso a rejeição aos estrangeirismos e um olhar mais voltado para o que seria próprio de nossa cultura. Essa busca pelo Brasil real fica latente durante as viagens etnográficas que realizou pelo Brasil na década de 20.

O filósofo Antonio Cícero em Finalidades sem fim (2005) afirma que não é a idéia de modernidade que está na base do modernismo de Mário de Andrade, mas nossa nacionalidade: Não era a idéia de modernidade, mas a de nacionalidade, que constituía o horizonte do seu modernismo (p.95). Assim, Mário de Andrade tinha claro que sua proposta de modernismo tinha uma busca intrínseca pelas raízes ou origens do que era genuinamente brasileiro.

Lopez (2002) concorda com esta perspectiva ao afirmar:

Mário de Andrade, porém, desde o início de sua carreira de escritor, consegue separar bem as áreas. Se, por um lado, é o pesquisador musical responsável que busca o registro fiel, por outro, é o criador culto que, visando ao nacionalismo (no início ainda não bem definido em termos de programa), recria casos que lhe vieram da narrativa oral (desde 1918), ou constrói sua poesia com a presença de elementos populares (Lopez: 2002, 15).

Esta busca pelo Brasil faz com que estabeleça contato com autores, personalidades intelectuais, artistas extremamente importantes e significativos na análise e interpretação do Brasil como Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Câmara Cascudo, e artistas como Manuel Bandeira e Cícero Dias, por exemplo, além de muito outros.

 

A OBRA E A VIAGEM

O Turista Aprendiz é o livro fruto de duas viagens etnográficas realizadas por Mário de Andrade entre os anos de 1927 e 1929. A primeira delas ocorre no período compreendido entre 7 de maio de 1927 quando sai de sua residência reclamando:

Não fui feito para viajar, bolas! 1Estou sorrindo, mas por dentro de mim vai um arrependimento assombroso, cor de incesto. Entro na cabina, agora é tarde, já parti, nem posso me arrepender. Um vazio compacto dentro de mim. Sento em mim (Andrade: 2002a, 51)

A viagem termina quando seu retorno em 15 de agosto do mesmo ano, pouco mais de três meses após sua partida.

É esta primeira viagem que daria início ao projeto Na Pancada do Ganzá e foi denominada de O turista aprendiz: Viagens pelo Amazonas até o Peru, pelo Madeira até a Bolívia por Marajó até dizer chega – 1927 . Foi realizada por Mário de Andrade em companhia de Olívia Guedes Penteado, uma das grandes mecenas do Modernismo, sua sobrinha Margarida Guedes Nogueira e Dulce do Amaral Pinto, filha de Tarsila do Amaral.

A viagem começa com uma grande frustração de nosso autor pois em princípio a viagem seria realizada por uma comitiva maior e não apenas ele acompanhado de mais três mulheres (lembre-se que aqui estamos na década de 20), mas várias pessoas que iriam viajar acabam desistindo, inclusive, Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral. Sabe-se hoje, através das cartas que Mário de Andrade trocou com Câmara Cascudo que este também fora convidado a participar da expedição.

Em correspondência com Câmara Cascudo em 1º de março de 1927 2, solicita que o amigo (que ainda não conhece pessoalmente) lhe envie lendas e tradições do Nordeste para serem incorporadas na redação de Macunaíma , que estava em processo de redação. Mário de Andrade ainda convida Câmara Cascudo para participar da viagem pela região norte do país mas este, não vai.

A obra denominada Na Pancada do Ganzá teria início com as viagens realizadas entre os anos de 1927 e 1929 e a coleta de manifestações folclóricas de Brasil como músicas, danças, lendas..., que inclusive auxiliaram em idéias e observações que foram contempladas em Macunaíma , além de outros livros. Aqui, fica a importância da literatura de registro para compreendermos melhor os caminhos e percursos que auxiliaram determinados autores não só no processo de criação mas também de influência e reflexões que estão presentes em uma obra literária. Aqui o que denominamos de literatura de registro guarda características estéticas fundamentadas por preocupações etnográficas.

Assim, o projeto Na Pancada do Ganzá , seria fruto das observações de Mário de Andrade sobre as características que seriam formadoras de uma brasilidade, ou seja, a sua busca por algo que estaria na gênese de formação do povo brasileiro, representado através de nossas manifestações culturais e artísticas. Essas observações já teriam tido um início anterior, em 1924, quando Mário de Andrade, em companhia de outros modernistas, parte em viagem por Minas Gerais na companhia do poeta francês Blaise Cendrars.

A viagem a Minas Gerais influi diretamente na busca de Mário de Andrade para um “olhar para dentro” do Brasil. Assim, as viagens etnográficas principiaram o trabalho e pesquisa que Mário de Andrade pretendia realizar, ou seja, tinha uma intenção clara quando realiza duas novas viagens que foram por ele classificadas e denominadas como viagens etnográficas, tanto pelo seu intuito e objetivo como pela forma que trabalha nelas.

Na segunda viagem seu caráter etnográfico fica ainda mais evidente. Na primeira, Mário de Andrade, pela única vez em sua vida, cruza as fronteiras do Brasil chegando a Iquitos no Peru. Durante a viagem, foi recebido por diversas comitivas oficiais que prestigiavam o eminente cortejo de paulistas ao Norte e Nordeste brasileiro, liderados pela “rainha do café”, Olívia Guedes Penteado. Mário de Andrade reclama muito destes compromissos oficiais porque faltaria tempo para suas pesquisas e observações.

Durante essa viagem, ele escreve seu diário registrando seu cotidiano e algumas reflexões, entretanto não abandona sua vertente literária, como podem ser exemplificados pelas crônicas intituladas: Os Pacaás Novos e Índios Do-Mi-Sol . Assim, à parte de seu caráter etnográfico, também faz pesquisas literárias, estéticas e filosóficas. Alguns indícios dessa viagem repercutem em outras obras literárias suas como pode ser observado no relato do dia 12 de junho de 1927, onde Mário de Andrade faz uma alusão à constelação de Ursa Maior em plena região amazônica. Essa constelação é parte importante do livro Macunaíma que seria publicado no ano seguinte em 1928 e vale lembrar que alguns momentos significativos da vida do herói sem caráter ocorrem na região amazônica.

Ainda como fruto dessa viagem, Mário de Andrade começa a escrever uma ficção, que não conclui devido ao seu falecimento e tinha como base duas de suas companheiras de viagem, Balança e Trombeta, respectivamente filha de Tarsila do Amaral e sobrinha de D. Olívia Guedes Penteado, a quem nos referimos anteriormente 3.

Observa-se pelo seu diário que outra grande preocupação de Mário de Andrade era pesquisar, ou como afirmava: recolher manifestações artísticas e culturais brasileiras. Sabe-se que durante a viagem recolhe cirandas entre outras manifestações artísticas. Além disso também há outros testemunhos de observação, como assistir aos ensaios de Boi-Bumbá (manifestação típica de uma dança dramática brasileira que ocorre em grande parte do território brasileiro com diversas variações), além de outras atividades festivas. Cabe lembrar que esse período é especialmente rico em festas populares – as tradicionais festas juninas – que interessavam a Mário de Andrade.

Enfim, se a primeira viagem teve todos esses elementos, a segunda foi um pouco diferente pois Mário de Andrade parte sozinho para o Nordeste com intenção ainda mais dirigida aos estudos e ao recolhimento de material que seria futuramente trabalhado no projeto Na Pancada do Ganzá . Esta segunda viagem, intitulada por Mário de Andrade como Viagem Etnográfica , concentra-se basicamente em três estados do nordeste brasileiro: Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco.

Essa viagem também serviu para estreitar o contato entre Mário de Andrade e Câmara Cascudo, quando da passagem do primeiro por Natal. Nesta cidade, onde passa a maior parte do tempo, inclusive hospeda-se com o amigo Câmara Cascudo, estreitando os laços que haviam principiado em anos anteriores. Ele teria auxiliado e muito com a coleta de material e contatos que interessavam ao nosso pesquisador. Foi através de Câmara Cascudo que por exemplo, Mário de Andrade conheceu o cantador de cocos Chico Antônio. Nosso autor ficou muito surpreso, espantado mesmo com sua cantoria e afirmava sobre ele: não sabe que vale uma dúzia de Carusos [o famoso tenor italiano] (Andrade: 2002a, 244).

Essa viagem foi eminentemente para pesquisa, aprofundando seu trabalho ao fazer inúmeros registros de músicas, danças e festas brasileiras. A viagem tem duração de 27 de novembro de 1928 a fevereiro de 1929. Aqui cabe mais uma observação com referência a data da viagem: o período entre Natal e o mês de fevereiro compreende diversas festas e danças dramáticas brasileiras como as Folias de Reis , Pastoris , Cheganças , Congos , Aboios entre outros que puderam ser observadas pelo nosso autor in loco, além do Carnaval.

Marta Batista (2004) afirma que ao cabo de sua estadia pelo Nordeste, Mário de Andrade recolheu cerca de 5000 músicas dos mais diversos estilos e ritmos, ou seja, pelos números e material recolhido percebe-se como foi proveitoso o período em que permaneceu viajando 4. Ainda de acordo com essa autora: “A excursão ao Amazonas [a primeira viagem] foi a grande oportunidade do estudioso observar e analisar a cultura indígena” (Batista: 2004, 29)

Uma das grandes pesquisadoras da obra de Mário de Andrade e principal responsável pela edição crítica de O Turista Aprendiz , Telê Ancona Lopez (2002) afirma:

Viajando pelo Nordeste, nosso cronista nos comunica que ainda há um Brasil por descobrir e valorizar, para ser entendido enquanto vida e cultura do povo. Essa dimensão, a da pesquisa etnográfica e a do enfoque sociológico revelará as danças dramáticas, o catimbó e procurará analisar as condições de vida da região, numa perspectiva nova que deseja abandonar a caracterização do regional através do exótico e do pitoresco, porque estará preocupada com as relações de produção e com as classes sociais. (Lopez: 2002, p. 41)

A segunda viagem por ficar mais concentrada nos três estados nordestinos (RN; PB e PE) permite um contato mais duradouro de Mário de Andrade com as reais condições de vida e produção da população brasileira. Alguns momentos do seu relato nesta segunda viagem contém reflexões sociológicas e políticas sobre o povo brasileiro. Um exemplo disto pode ser observado na crônica de 1º de janeiro de 1929 que será publicada pelo Diário Nacional em 30 de janeiro do mesmo ano, quando nosso autor se propõe a refletir sobre o trabalho do homem nordestino e sua vida:

No geral, foram oito horas de trabalho. Nunca menos e bastantes vezes mais. Comparando com o sul a vida geral nordestina é barata mas pro operário não me parece que seja não. Se o trabalhador pode sempre alcançar com os biscates aí por uns dez mil-réis diários, o salário oscila de 3 para 6 mil-réis, me informaram. É pouco se a gente lembra que o quilo de carne verde inferior custa dois mil-réis na cidade . (Andrade: 2002a, 233).

Em outro momento também faz críticas aos latifúndios que observa, quando fala da pobreza e exploração do trabalho (aliás, esta temática social será outro tema desenvolvido para a ópera Café , também não concluída por Mário de Andrade).

O que constatamos é que essas viagens etnográficas tangem uma busca por um Brasil até então pouco representado social, política e culturalmente. Procuramos entender o papel das viagens que Mário de Andrade realizou e a importância na sua obra literária assim como as discussões sobre sociedade e cultura por ele iniciada ou incentivada. Neste interior complexo entre a obra artística do autor entendemos Mário de Andrade enquanto artista, intelectual, produtor cultural e político por isso tratamos da viagem em todas as facetas descritas.

A idéia de brasilidade em Mário de Andrade tem por base não só a sua obra estética como também o seu trabalho de prática política, seja na sua militância ou nas suas relações políticas. Esta brasilidade se expressa em Mário de Andrade tanto na sua vertente criativa-literária através de obras já citadas ( Macunaíma e Clã do Jabuti ) como na de estudioso-intelectual através do projeto não concluído, Na Pancada do Ganzá , além de outros livros como por exemplo: Ensaios sobre a música brasileira e Aspectos da Literatura no Brasil . Pode-se concluir que durante essas viagens, Mário de Andrade buscava a compreensão dos modos de ser dos brasileiros, colaborando para a formação de sua idéia própria de Brasil.

 

REFLEXOS

Essas viagens não se encerram por si só, tampouco com as publicações dos livros literários e ensaísticos que já citamos aqui. Acreditamos que elas foram a fonte de inspiração para o trabalho que Mário de Andrade exerceu anos mais tarde quando é nomeado chefe do Departamento de Cultura do município de São Paulo, entre os anos de 1935 e 1938. Esse trabalho tem um nítido caráter político, não só por ser uma ocupação enquanto um órgão público oficial mas também porque acabe inserido em um debate muito mais amplo ao discutir elementos de uma política cultural brasileira. Naquele departamento o nosso autor organiza entre outras atividades, um grupo que parte em expedição pelo Brasil com o objetivo de recolher o maior número possível de materiais: sonoros, visuais, artesanatos... sobre a Cultura Brasileira. Esse trabalho fica conhecido como Missão de Pesquisas Folclóricas .

A Missão de Pesquisas Folclóricas tem início em 1936 e se extingue em 1938 com a saída de Mário de Andrade da chefia do departamento por conta das mudanças políticas e divergências ocorridas como consequência da implementação do Estado Novo. Assim, o grupo que se encontrava no interior do Brasil é obrigado a retornar a São Paulo sem concluir seus objetivos mas traz em suas bagagens diversos materiais e registros das manifestações artísticas e culturais brasileiras 5.

Mário de Andrade acreditava que com o processo de industrialização que então se iniciava e a conseqüente migração de brasileiros oriundos de outras partes do Brasil, o município de São Paulo devia buscar os registros culturais de outras regiões e colocá-los à disposição de toda a população que seria cada vez mais miscigenada. A partir de então, coordena essa missão montando uma equipe composta por 4 pesquisadores (Luís Saia, Martin Braunwieser, Benedito Pacheco e Antônio Ladeira) preparados para registrar, catalogar e trazer para São Paulo, objetos culturais e artísticos de todo o País. Deve-se observar que para desempenhar suas novas atividades o autor mantém-se em São Paulo enquanto a equipe viaja registrando e coletando os materiais. Esse trabalho não é concluído pela demissão de Mário de Andrade.

É bom ressaltar que antes disso, já havia uma preocupação política de Mário de Andrade no que tange sua observação em relação à preservação e busca pela nossa brasilidade. Desde o início da década de 30, nosso autor já participava e incentivava debates com antropólogos e outros intelectuais, alguns que inclusive, vieram com a missão francesa que colaborou na criação da USP, como o casal Dina e Claude Levi-Strauss, além de Lévy-Bruhl.

Havia em sua participação enquanto homem público (e portanto político) uma preocupação com a forma que se recolhiam os objetos da cultura brasileira além da preocupação com sua preservação. O Departamento de Cultura foi um dos financiadores da expedição de Lévi-Strauss ao interior do Brasil, descritas em Tristes Trópicos . Mário de Andrade também é um dos fundadores da Sociedade de Etnologia e Folclore junto o casal Lévi-Strauss, como bem lembra Passetti (2004 ):

A Sociedade de Etnologia e Folclore, criada por Mário de Andrade e dinamizada por Dina, com a colaboração de Lévi-Strauss, tinha uma considerável lista de professores da USP e da Escola Livre de Sociologia e Política entre seus sócios (Passetti: 2004, 54).

Miguel Chaia em Arte e Política: situações (2007) cita dois grandes contextos em que arte e política caminham juntas:

Pode-se pensar em dois grandes contextos políticos nos quais a arte pode ser produzida com significado social: a política de participação no espaço público; e a política gerada no círculo do poder. De um lado, tem-se a política como práticas sociais, privilegiando-se as ‘ações dos sujeitos'; do outro, existe a política centrada no ‘funcionamento das instituições' (Chaia: 2007, 21).

Ora, neste contexto é inegável que a obra aqui analisada de Mário de Andrade possui este caráter político, pois não apenas estimula a ação dos sujeitos como cria a sua própria ação. Age diretamente no funcionamento das instituições ao idealizar a Missão de Pesquisas Folclóricas , além dos estímulos ao surgimento de outras instituições como a Sociedade de Etnologia e Folclore. Seu trabalho nesta seara não se encerra naqueles momentos pois há outros como por exemplo, em 1934, quando ajuda a organizar junto com Gilberto Freyre o I Congresso Afro-brasileiro no qual inclusive, envia uma comunicação intitulada A calunga dos maracatus .

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para concluir este breve artigo, ressaltamos que a relação entre percursos etnográficos e a obra de homem público em Mário de Andrade deve ser analisada como fundamental para compreender melhor o seu próprio pensamento e o Brasil dos anos 20 e 30. Suas idéias e conceitos tentavam entender e formular uma proposta de Brasil e de nossa brasilidade, que não perdia de vista a dualidade proposta por Machado de Assis: de que o País se divide em dois, o oficial e o real. E foi em busca desse Brasil real que Mário de Andrade partiu. Esses procedimentos adotados pelo nosso autor, refletem uma forma de pensar o Brasil que encontra eco em outros estudiosos, pesquisadores e intérpretes do Brasil.

Como sabemos, as tentativas de revelação desse Brasil nem sempre foram feitas com ajudas e ou interesses governamentais, pois estes por diversas vezes preferiam “olhar para fora” ao invés de “olhar para dentro”, ou seja, o Brasil governamental e suas elites, o chamado Brasil oficial, optava em importar idéias e costumes estrangeiros em detrimento daquilo que seria próprio do brasileiro ou do Brasil.

Notas

* Marcelo Burgos P. dos Santos é mestre em Ciência Política pela PUC-SP e pesquisador do NEAMP/PUC-SP. Atualmente é doutorando na mesma Instituição.

1 Aqui há uma semelhança muito grande com outro relato de viagens muito importante. Em Tristes Trópicos , Lévi-Strauss logo no início afirma: Odeio as viagens e os exploradores (2005, p.15).

2 Ver correspondência entre Mário de Andrade e Câmara Cascudo. Andrade, 2000a.

3 O livro Balança, Trombeta e Battleship ou o descobrimento da alma foi publicado em 1994, pelo Instituto Moreira Salles e IEB-USP, com edição crítica de Telê Ancona Lopez.

4 A imensa maioria do material recolhido por Mário de Andrade nestas viagens e na Missão de Pesquisas Folclóricas (MPF) está disponibilizada no IEB-USP e Centro Cultural São Paulo (CCSP), respectivamente.

5 Estes materiais atualmente encontram-se no Centro Cultural São Paulo (CCSP).

Bibliografia

ALVARENGA, Oneyda & ANDRADE, Mário de (1983). Cartas . São Paulo: Duas Cidades.

 

ANDRADE, Mário de (1983). Música de feitiçaria no Brasil . Belo Horizonte/Brasília: Itatiaia/Instituto Nacional do Livro, 2ª edição.

 

___________________ (1987). As melodias do boi e outras peças . São Paulo: Duas Cidades.

 

___________________ (1994). Balança, Trombeta e Batlleship ou a descoberta da alma. Edição crítica de Telê Ancona Lopez. São Paulo: Instituto Moreira Salles/IEB-USP, 2ª edição.

 

___________________ (2000a). Cartas de Mário de Andrade a Câmara Cascudo . Belo Horizonte: Ed. Itatiaia.

 

___________________ (2000b). Macunaíma. Belo Horizonte: Livraria Garnier, 31ª edição.

 

___________________ (2002a). O Turista Aprendiz . Belo Horizonte: Itatiaia.

 

___________________. (2002b) Os Cocos . Belo Horizonte: Ed. Itatiaia.

 

___________________ (20002c). Danças Dramáticas do Brasil . Belo Horizonte: Ed. Itatiaia.

 

BATISTA, Marta R. (org.) (2004). Coleção Mário de Andrade: religião e magia/ música e dança/ cotidiano. Uspiana Brasil 500 anos. São Paulo: EDUSP/IEB-USP/Imprensa Oficial.

 

CANDIDO, Antonio (2000). Literatura e sociedade . São Paulo: Publifolha.

 

CASTELLO BRANCO, Carlos Heitor (1971). Macunaíma e a viagem grandota . São Paulo: Quatro Artes Editora.

 

Catálogo da Exposição (2004). Cantos Populares do Brasil: A Missão de Mário de Andrade . São Paulo: Centro Cultural São Paulo.

 

CHAIA, Miguel (2007). Arte e política: situações , in: CHAIA, Miguel (org.). Arte e Política . Rio de Janeiro, Azougue Editorial.

 

DASSIN, Joan (1978). Política e poesia em Mário de Andrade . São Paulo: Ed. Duas Cidades.

 

HOLLANDA, Heloísa Buarque de (1978). Macunaíma – da literatura ao cinema. Rio de Janeiro: José Olympio/EMBRAFILME.

 

LAFETÁ, João Luiz (2000). 1930: a crítica e o modernismo. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34.

 

LÉVI-STRAUSS, Claude (2005). Tristes Trópicos . São Paulo: Companhia das Letras, 6ª reimpressão.

LOPEZ, Telê Ancona (2002). A Bordo do Diário , in: ANDRADE, Mário de. O Turista Aprendiz . Belo Horizonte, Itatiaia.

 

MELLO E SOUZA, Gilda de (2003). O tupi e o alaúde. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34.

 

MORAES, Eduardo Jardim de (1978). A Brasilidade Modernista – sua dimensão filosófica . Rio de Janeiro: Graal.

 

PASSETTI, Dorothea (2004). Tristes Trópicos: os anos brasileiros de Lévi-Strauss . In: Ciências Sociais na atualidade – Brasil: resistência e invenção. BERNARDO, Terezinha & TÓTORA, Silvana. São Paulo: Ed. Paulus.

 

SCHWARZT, Jorge (org.) (2003). Caixa Modernista . São Paulo/Belo Horizonte: EDUSP/ Imprensa Oficial/Ed.UFMG.

 

SEGATTO, José Antonio & BADAN, Ude (orgs.) (1998). Sociedade e literatura no Brasil . São Paulo: Ed. UNESP.

 

SQUEFF, Enio & WISNIK, José Miguel (2004). O nacional e o popular na cultura brasileira – Música. São Paulo, Brasiliense, 2ª edição.

 

TONI, Flavia Camargo (org.) (2004). A música popular brasileira na vitrola de Mário de Andrade . São Paulo: Editora SENAC/SESC –SP.

 

TRAVASSOS, Elizabeth (1987). Os mandarins milagrosos: arte e etnografia em Mário de Andrade e Béla Bartók . Rio de janeiro: FUNARTE/Jorge Zahar.



Download versão .pdf

 
 
 
Direitos Reservados Neamp, 2008. Desenvolvido por Syntia Alves e J.M.P.Alves. Versão html - Gustavo Araújo