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Um café em Madri com Ian Gibson, prato principal: Federico Garcia Lorca

Por: Syntia Pereira Alves


            Ian Gibson, irlandes, mas desde 1984, cidadão espanhol. Hispanista internacionalmente reconhecido por seus trabalhos biográficos, principalmente sobre Federico García Lorca a quem se dedica a estudar desde a década de 60. Sobre o poeta, publicou mais de uma dezena de livros, sendo os títulos mais recentes “Vida, pasión y muerte de Federico Garcia Lorca”, “El hombre que detuvo a Garcia Lorca” e o mais recente “Lorca y el mundo gay”. Gibson publicou também biografias sobre Salvador Dalí, Antonio Machado e outros nomes importantes da cultura espanhola. Além de sua obra literária, realiza intensa atividade jornalística, televisiva e radiofônica. E somado a tudo isso, teve a generosidade de conceder em um café de Madri a entrevista abaixo:

 

Syntia Alves - De fato a obra de Lorca foi proibida na Espanha?

Ian Gibson - A primeira edição da Aguilar das Obras Completas saiu em 1954. Não era exatamente toda a obra de Lorca, havia na época censura, mas o próprio Franco deu permissão em 54, para a publicação do livro, e mesmo sendo um livro muito caro, teve um grande êxito. Franco deu sua permissão porque Lorca já representava um problema para o regime franquista, já havia muito turismo na Espanha e não se podia seguir negando a existência de um poeta chamado Federico Garcia Lorca. Os assessores de Franco perceberam que isso criava uma má imagem do país no exterior. A fama de Lorca fora da Espanha não parava de crescer, mas internamente não se publicava nada. Essas “Obras Completas” venderam muitíssimo e a cada nova edição se acrescentava algo mais, e algo mais e algo mais até que as “Obras Completas” ficaram com dois volumes, ao invés de um, e com muito material novo. Eu diria que as obras de fato completas saíram há 10 anos, mais ou menos, porque claro que não apenas pela censura, mas também reorganização de todo o material, sobretudo os escritos juvenis, que ainda não tinham sido publicados. Mas tudo isso veio com a transição democrática, depois da morte de Franco.

S. Alves - E atualmente, como pensa estar a imagem de Lorca na Espanha?

I. Gibson - Bem, a Espanha é um país que lê muito pouco, os índices de leitura são baixíssimos, mas quem na Inglaterra lê os poetas atuais, ou os anteriores?! Uma minoria! O teatro de Lorca sim, tem uma aceitação muito boa no país atualmente, as pessoas têm ído ao teatro... muita gente não lê, mas vai ao teatro de vez em quando e Lorca é um nome famosíssimo aqui, mas ler a fundo a poesia, muito pouca gente lê. Os espanhóis não conhecem a obra de Lorca em sua totalidade, assim como os ingleses não conhecem a obra de Byron em sua totalidade. Mas se vai conhecendo pouco a pouco... há ainda muita incultura, houve aqui 40 anos de ditadura que, claro, não é uma época favorável para a leitura, para a cultura. Agora estamos numa democracia, mas as pessoas seguem lendo muito pouco. Meus próprios netos estão o dia todo com os jogos de computador, ler um livro é muito chato.

S. Alves - Pensando na dramaturgia de Lorca, na sua opinião, qual o motivo de Lorca escolher mulheres como suas protagonistas?

I. Gibson - Tudo na obra de Lorca gira em torno da repressão e da frustração, mas ele não podia por em cena a questão da homossexualidade, falar disso abertamente era impossível. Mesmo em sua obra “O Público”, que é uma peça importante na obra de Lorca, peça escrita no ano 30, nela Lorca expõe toda a problemática da homossexualidade, mas ele não pode colocar isso em toda sua obra. Assim, as mulheres simbolizam todos os que não podem viver sua vida. Ele tinha um grande problema com sua homossexualidade, não podia falar abertamente disso, em público... quando lhe perguntavam porque mulheres, ele respondeu uma vez que era porque não há bons atores na Espanha, que só há boas atrizes, que os homens eram ruins, mas é uma resposta irônica, pra sair da situação. Acredito que ele viveu sua vida sabendo que em qualquer momento alguém lhe faria uma pergunta muito difícil de responder e para se previnir ele respondeu isso, uma resposta muito pouco satisfatória. Ele tampouco escreveu só sobre o tema gay, claro, mas ele não podia viver sua vida e isso ele expressa através de sua obra, e as mulheres das peças expressam mulheres de carne e osso, mas também trazem uma carga simbólica de todos sofrem, que não podem viver sua vida.

S. Alves - A imprensa de direita, na ocasião da estréia de “Yerma”, chamou a obra de “anti-espanhola”. Quais outras obras de Lorca foram vistas como perigosas para as idéias tradicionais da Espanha da época?

I. Gibson - Obviamente “O Público”, mas ninguém conhecia a peça na época, além do que “O Público” tem uma linguagem surrealista, de difícil compreensão, assim “Yerma” é a mais perigosa. Além do que “Yerma” estreou aqui no ano de 34, quando a direita estava no poder, e claro que eles viram a peça como um ataque aos valores tradicionais católicos da Espanha. Há uma velha na peça que diz a Yerma “quando te darás conta que Deus não existe?”, imagine isso no ano 34! Houve um protesto no teatro e os fascistas trataram de interromper a estréia, com Margarita Xirgu no papel de Yerma, e esse foi um ato muito importante. Este é um país pequeno, Madri tinha na época meio milhão de habitantes, todo mundo conhecia todo mundo, e assim Lorca, a partir daquele momento, foi considerado um inimigo da Espanha tradicional. Eu vejo Lorca, através de sua obra, absolutamente comprometido com a sociedade e com a situação social, sempre lutando a favor da liberdade.

S. Alves - A liberdade e a morte são dois temas recorrentes na obra de Lorca. Você crê que isso se deve a situação social da Espanha, antes da Guerra Civil, ou seria uma possível capacidade profética de Lorca?

I. Gibson - Talvez sim uma capacidade profética, mas não sei até que ponto, até porque dizem que ele tinha um forte sexto sentido. Há algo de arrepirante em alguns poemas de Lorca, parece que ele sentia a presença da morte em tudo. Lorca veio de uma cidade pequena, sua mãe era católica, ele tinha muito da liturgia católica, dos mortos da cidade, de ver os funerais, ele tem uma obcessão com a morte muito profunda, um temor muito forte da sua própria morte, quase uma obcessão. Além disso, a liberdade está muito presente, por exemplo na peça “Mariana Pineda”, a imagem da bandeira da liberdade... essas coisas Lorca tem muito interiorizado. E Granada era uma cidade em constante clima de Guerra Civil. Talvez haja algo de promunição, talvez ele já se sentia uma vitima... não tenho certeza, mas não duvido nada de que haja algo de premonitório em sua obra.

S. Alves - Em sua opinião, quais foram os motivos que desencadearam o assassinato de Federico Garcia Lorca?

I. Gibson - Primeiro, Federico era um homem muito conhecido, não estamos falando de um poeta que está começando, estamos falando de um homem famosíssimo, inclusive internacionalmente. No ano de 1933, esteve na Argentina, com “Bodas de Sangue” em cartaz, temporada de alguns meses de teatro lotado, e Lorca envia a seu pai uma quantia astronômica de dinheiro. E isso cria inveja, de modo que primeiro, Lorca era muito conhecido, entre os poetas jovens era o mais conhecido. Inclusive já tendo fama internacional, começando pela América do Sul, mas também em Nova York onde estavam preparando a apresentação de “Bodas de Sangue” em inglês, ou seja, ele estava no auge e as pessoas sabiam disso. Além disso, estava totalmente identificado com a República, com a República progressista, e ligado a Frente Popular fez muitas declarações, assinou manifestos anti-fascistas, leu o “Romanceiro da Guarda Civil” em público... isso foi um ato político, estava totalmente identificado com a Frente Popular. Ou seja, a fama, a identificação, a inveja, o fato de Lorca ser homossexual — fato ao qual a a imprensa de direita faz diversas alusões — ou seja, todos esses fatores. Além desses motivos ligados, também havia muita inveja da família, seu pai teve um passado político pelo partido liberal, era um latifundiário em La Veja de Granada, mas estava ao lado da República. Tudo isso junto foi mais que suficiente para que lhe matassem, porque mataram muitos outros do bando republicano, mas ele era uma pessoa muito conhecida e com uma obra que foi considerada como revolucionária e “roja”.

S. Alves - Não é de conhecimento geral a autoria da denuncia contra Garcia Lorca...

I. Gibson - Bem, não se sabe o autor da denúncia. Eu tenho a declaração oral do irmão José Rosales, dois dias antes de morrer, ele me falou sobre a denúncia. Claro, é a declaração de um falangista, décadas depois, mas acredito que ele não mentiu, e segundo José, a denúncia teria saído do Partido da CEDA, também poderia ter saído da Falange, mas acredito que quem colocou tudo em ação foram os do partido católico de direta, a CEDA. E Ruiz Alonso, principal responsável pela prisão de Lorca, era um dos ex-deputados da CEDA, amargado, e praticamente fascista.

S. Alves - E oficialmente, quais os motivos para prisão de Lorca, quais foram os motivos da denúncia?

I. Gibson - Que Lorca tinha uma obra subversiva, perigosa, que era amigo de Fernando de los Rios, — ministro socialista —, que era homossexual, e que tinha uma rádio clandestina... era um momento no qual se acreditava em tudo, uma denúncia dessas já bastava para ir ao “paredão”. É preciso imaginar aquele momento, a direita organizou um motim e poderia perder a qualquer momento. Os franquistas já vinham com um plano de matar pessoas e Lorca era um inimigo, não há a menor dúvida de que Lorca era um dos principais inimigos e além disso “rojo, maricón” e famoso. Lorca tinha tudo contra ele naquele momento. Bem, depois de alguns meses talvez alguém tenha percebido o perigo de matar-lo, mas nos primeiros momento havia uma espécie de regime de terror, ninguém sabe o que vai acontecer, havia muita insegurança.

S. Alves - E além de Ruiz Alonso, quem mais esteve diretamente relacionado à morte de Garcia Lorca?

I. Gibson - O Governo Civil. Houve uma usurpação do poder. Quando chega alguém, toma o governo, impõe outro governo e este outro é chamado de Governo Civil, isso é uma usurpação e quem dirige este governo é um usurpador. Valdés, José Valdés Guzmán — governador civil rebelde, de direita — era também falangista, “camisa vieja”, como diziam, ou seja, dos antigos falangistas, também militar, quem mandava alí sobretudo, eram os militares e eles que decidiam. Provavelmente consultaram quem decidia, Granada não era capitania geral, era comandância, não tinha a força que tinha Sevilha naquele momento... mas há muito mais que não saberemos nunca, não sabemos como foi porque ninguém contou e não contará nunca, havia muita gente que sabia e isso eu não perdoo, o silêncio! Como em “Bernarda Alba”, “silêncio, aqui minha filha morreu...”, bem, talvez isso também seja uma premonissão, silêncio sobre a tumba, silêncio sobre a verdade, silêncio! E ainda não sabemos onde está o corpo de Lorca!

S. Alves - Mudando um pouco o assunto, em seu livro “Lorca y el mundo gay”, você diz que Lorca tem uma dívida com Shakespeare. Qual seria essa dívida?

I. Gibson - Ah sim, Lorca tem uma dívida muito grande com Shakespeare. Quando jovem, adolescente, Lorca leu Shakespeare, principalmente “Sonho de uma noite de verão” e acredito que isso lhe impacta profundamente. Shakespeare lhe impacta profundamente pelo humanismo, a mistura de tragédia, de comédia, o que Shakespeare escreveu sobre o amor... o amor é um tema recorrente, o amor que pode acontecer a qualquer momento, que não se pode escolher, tudo isso faz parte da maneira de Lorca de ver o mundo, a vida. Lorca leu Shakespeare em espanhol, não sabia inglês, mas isso não fez diferença porque Lorca era um gênio e soube captar os matizes da obra de Shakespeare.

S. Alves - A homossexualidade de Lorca foi um tema tabu na Espanha até pouco tempo...

I. Gibson - Bem, isso ainda é um tema tabu, mas agora menos que antes. O debate aqui na Espanha ainda está imaturo, não se fala de homossexualidade. Já se fala de ser gay, mas isso não quer dizer muita coisa, é algo muito mais complicado, com muitos matizes, e isso ainda não se debate aqui. Mas já está começando... Bem, em 30 anos de democracia não se pode mudar completamente um país, mas o país tem avançado, tem uma legislação com relação aos gays muito avançada e isso é admirável. Ou seja, o país tem avançado, mas também não se pode mudar a mentalidade geral, ainda falta muitos livros, muitos estudos e muita aprendizagem. Poder dizer que Lorca era gay é um passo a frente, mas também não sabemos muito sobre sua vida íntima.

S. Alves - E por que não se fala de Lorca como um agente político?

I. Gibson - Imagino que por ignorância. Imagino que seja por falta de conhecimento, e não por ser um tabu, como o tema da homossexualidade. Todos sabem que Lorca era republicano, se identificava com Fernando de los Rios, com o socialismo liberal. O que acontece é que as pessoas não sabem o que foi a Guerra Civil Espanhola, os jovens não sabem o que foi a República, não se ensina isso no colégio, há muita ignorância de como foi a República e essa é a base do problema. Não se pode nem chamar de amnésia, porque não foi dito, os jovens receberam de seus pais, pessoas da época da guerra, uma visão parcial, todo o tema da Guerra Civil foi um tabu. Os filhos de fuzilados não falaram muito com seus filhos porque era muito terrível pensar no que aconteceu e só agora os netos é que querem saber o que aconteceu, porque seus pais não explicaram nada.

S. Alves - O corpo de Lorca até hoje não foi exumado. Qual a importância da exumação do corpo de Lorca? E quando você acredita que isso pode acontecer?

I. Gibson - Eu acredito que em breve algumas coisas vão acontecer. Estamos em setembro de 2009, e a Junta da Andalucia diz que vai começar isso em novembro, e isso certamente vai acontecer. Há outros mortos na mesma fossa de Lorca, antes diziam que eram quatro, agora apareceu mais um nome, dizem então que são cinco e a família quer procurar o corpo. De repente apareceram duas famílias que até hoje não tinham dito nada e agora estão dizendo há mais corpos. Eu não sei porque não ví o material, mas a qualquer momento se deve abrir a fossa porque há duas famílias pedindo a abertura. E estamos para conhecer a opinião da família de Lorca sobre a abertura da fossa e isso é importantíssimo, porque a família disse anteriormente que não queria que se tirasse os restos de Lorca de onde está, mas depois disseram que não se opõem, e agora pode ser que digam novamente que se opõem, não sei... Mas digam o que queiram, a Junta da Andalucia vai abrir a fossa, porque isso está caindo muito mal para a Junta diante da opinão mundial. Mas a coisa está difícil porque a família de Lorca já disse que não ajudará em nada com a identificação dos restos do corpo do poeta, foi o que disseram, que não ajudaram com DNA... isso me parece grotesco!...


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