Sumário
 
 
Discursos de violência e não-violência na mídia policial televisiva

João Medeiros Barata*

Resumo: Com base em programas policiais da televisão, principalmente o Brasil Urgente , o autor busca compreender como são promovidas práticas de violência e de não-violência em tais programas, de maneira a difundir uma prática moral específica, por meio do discurso.
Palavras Chave: violência, Brasil Urgente, televisão, indivíduo perigoso

Abstract: Based on television shows that cover police actions, with more emphasis on the Brasil Urgente show, the author intends to comprehend how are promoted some violence practices at the same time that non-violence practices are spread, in order to promote a specific moral practice, through the discourse of the program.
Key Words: violence, Brasil Urgente, television, dangerous individual.

A cobertura televisiva das ações policiais e das diversas manifestações de violência propaga certa forma de discurso que merece ser analisado cuidadosamente. Tratam-se de perspectivas relacionadas à violência, justiça, valores morais e práticas que são transmitidas por meio de seu discurso. Desta maneira, esta área, a mídia policial televisiva, expõe tensões que se referem, do ponto de vista de seu discurso, ao que é aceitável e razoável e do que não é aceitável, sendo prontamente execrável, condenável.

Entre os programas desta natureza, optei por trabalhar com o Brasil Urgente , por este programa estar no ar desde 2003, por ser transmitido a todo o Brasil, e, por seu apresentador ser um conhecido âncora de tal tipo de programa desde 1996. Com base em dezessete programas do Brasil Urgente que foram coletados entre 15/8/2008 e 10/9/2008, buscarei compreender a promoção de certos discursos de violência e de não violência perpetrados por seu apresentador, enquanto promoção de uma prática discursiva marcadamente moralista.

De maneira a entender a propagação de discursos de violência e não-violência no programa citado, é importante retornar à construção foucaultiana do que é o anormal e o discurso de normalização que o segue. No curso ministrado no início de 1975, no Collège de France, Michel Foucault buscou vislumbrar a constituição do anormal e da anormalidade com base em relatórios psiquiátricos obtidos até meados da década de 1950. A partir de tais análises, Foucault observa que são raros os discursos que reúnem três propriedades, sendo estas: o poder de determinar a justiça, um poder de vida e morte; em seguida, a propriedade de possuir, da instituição judiciária, um discurso de verdade, produzido com estatutos científicos eruditos e pessoas qualificadas tecnicamente; finalmente, a produção de um cálculo de pena, sendo este vinculado ao cálculo produzido pelas provas reunidas e seu peso para a consumação da culpa ou acusação.

Para Foucault, a geração de discursos possuidores de tais propriedades possui algumas conseqüências. Em primeiro lugar, a idéia de que há uma proporcionalidade entre o crime e o rigor da pena a ser aplicada, demonstrando assim, uma modulação no rigor ou atenuação do mesmo de acordo com a produção de provas de acusação e dos valores demonstrativos destas mesmas provas. Neste momento, faz-se cada vez mais necessário a intervenção dos depoimentos dos próprios policiais, bem como de peritos e especialistas, estabelecendo assim, uma relação íntima entre verdade e justiça : esta relação acaba por se tornar um pressuposto radical da racionalidade jurídica, trazendo esta ao campo do discurso cientificamente construído e legitimado.

No que se refere a tal movimento, Foucault observa que ocorre a desqualificação do produtor da prova, por estas não mais se constituírem a partir de quem as produziu, mas, pelo contrário, as provas são parte dos mecanismos de poder, não podendo ser produto de um mero acidente, mas de sua própria engrenagem. Isto significa que, de tal perspectiva, há a incontornabilidade da verdade produzida pelas próprias provas, ou, a inevitabilidade do choque frontal com o poder dotado de provas: isto, então, promove a propagação, a geração de efeitos de poder específicos.

Um aspecto relevante que deve ser levado em consideração é o desdobramento do procedimento do exame psiquiátrico, bem como sua utilização por parte da justiça e também, ainda que de outra maneira, por programas como o Brasil Urgente .

Com relação ao exame psiquiátrico, Foucault salienta que este produz a conjugação de qualquer delito com outros comportamentos e atitudes, que, de um ponto de vista moral, já são degeneradas , tornando-se assim, matéria punível. Isto tem a função de repetir a infração, de maneira a constituir um traço individual com base em qualificações morais e éticas, fazendo com que seja facultada, ao exame psiquiátrico, a capacidade de constituir um duplo psicológico-ético de um delito: assim, pune-se não somente o crime, mas a conduta desviante em qualquer medida. Disto decorre a formação de um homem que não é capaz de se integrar ao resto do mundo, expondo a criminalidade sob um ponto de vista psicológico-moral.

Isto significa que agora se pode legitimar, com o aval do conhecimento científico, a extensão do poder de punir. Outra função deste exame, como já mencionado previamente, é a conjugação do crime com o delinqüente, fazendo com que o último possa ser responsabilizado, pelo estabelecimento de antecedentes que corroboram a penalidade, indicando assim tendências de criminalidade baseadas na idéia de faltas que não constituem propriamente uma infração, fazendo com que o indivíduo se pareça com o seu crime. Tal semelhança forma, em um indivíduo, um defeito moral que reconstrói o crime, inserindo-o em uma trama, a qual é correlativa a própria infração com base em antecedentes desviantes. É a este indivíduo que se dirigem as técnicas de correção e reinserção.

Para Foucault, este é um objetivo das técnicas de correção e reinserções próprias das prisões, mas vale ressaltar que este é um momento onde está evidente o movimento da constituição do médico-juíz , por envolver o saber psiquiátrico, médico, e jurídico-legal. É de tal perspectiva que são fundamentadas as bases da formação da psiquiatria, sendo a sanção penal relacionada à técnica de poder, constituindo a emergência das técnicas de normalização: um julgamento ético-médico-moral , cuja performance reside no exame feito por um especialista.

Para que pudesse chegar ao problema do anormal , Foucault inicia sua análise pelo já mencionado exame médico-legal, uma vez que não se constitui crime nem delito se o indivíduo estiver em um estado considerado de demência . Desta maneira, o exame serve para determinar demência ou sanidade : se o patológico entra em cena, a criminalidade sai. Isto concede, à instituição médica, o lugar da justiça em caso de loucura cientificamente comprovada. Tal movimento constitui um continuum médico-judiciário que substitui a exclusão recíproca entre o discurso médico e o judiciário por o que Foucault nomeou como dupla qualificação médica-judiciária . Tal qualificação implica que instituições tidas como punitivas, ou mesmo terapêuticas almejem, em última instância, combater o perigo e o indivíduo perigoso . Este referido indivíduo, o perigoso , não é exatamente doente, nem propriamente criminoso. A existência do perigo, aliado à perversão , constituem não somente o núcleo teórico fundamental do exame médico-legal, mas justificam e fundam a própria cadeia de instituições voltadas a combatê-los, por constituírem o problema central dos perigos sociais . A idéia de perversidade, como mostrada em diversos exemplos por Foucault, foi progressivamente introduzida no exame médico-legal com caráter marcadamente moral, por meio de análises de especialistas médicos que observaram comportamentos essencialmente infantis com traços patológicos que permitiu a existência de uma ponte entre tal discurso e as práticas de punição, permitindo a interpenetração de práticas e discursos médicos e jurídicos.

Sendo assim, as noções de perigo e perversão permeiam este continuum institucional. Perigo por, genericamente, justificar a existência de tal cadeia de instituições, e aos indivíduos perigosos se dirigir; e perversão, por permitir a já mencionada interpenetração discursiva e de práticas, dos campos médico e jurídico. Foucault observa que as noções de perversidade e perigo são continuamente reativadas através de diferentes instituições, que patologizam o crime, que promovem o intercâmbio de papéis entre o juiz e o médico e a ativação da caracterização do indivíduo perigoso: esta é a base da modernização da justiça francesa, em que juízes reivindicavam a medicalização das funções e capacitação jurídico-médica para a tomada de decisões de justiça. Um dos desdobramentos mais marcantes de tal modernização foi o exame de todos aqueles que cometessem alguma infração por um perito médico, que assinala bem a fusão dos saberes médico e jurídico com vistas à extensão do poder de punir.

No que se refere à construção dos anormais , Foucault ressalta que é a estes que se destina o exame médico-legal. Por ser capaz de, por meio de gradações estabelecidas, discernir o normal do anormal , o exame possui, não somente um poder de normalização, mas a capacidade de intervenção naqueles que desviam de seus padrões, por meio de instituições de controle dos anormais .

Baseado nisto, Foucault procede à genealogia de tais instâncias de controle, salientando que o modelo anterior, de práticas de exclusão, desapareceu em fins do século XVIII. A partir daí, nota-se um movimento de caráter inclusivo, com policiamento minucioso, como se a cidade agora estivesse em estado de peste : isto significa uma nova organização do poder, contínuo e ininterrupto, onde não mais se busca expulsar, mas de estabelecer, o mais claramente possível, presenças determinadas. Desta maneira, as diferenças sutis se tornam mais observáveis, o que contribui para a individualização e subdivisão do poder, com vistas à maximização da saúde e da vida, por meio de um exame perpétuo, com regras e normas de saúde definidas. Além de demonstrar a crescente ramificação capilar do poder, tais práticas demonstram a substituição da lepra enquanto procedimento de exclusão e isolamento dos doentes) pela peste (que fabrica e se multiplica a partir de seus próprios efeitos), enquanto meio de controle político.

Neste processo está contida a invenção de novas técnicas positivas de poder que promovem a normalização. Por normalização entenda-se um princípio de qualificação e correção, uma técnica essencialmente positiva de intervenção e transformação, um poder normativo, fazendo com que tal poder não seja exclusivamente, ou, essencialmente, negativo, repressivo: um poder que almeja incluir incessantemente tem de se colocar positivamente diante de seus súditos. Isto significa que se trata de um poder inventivo, que funciona somente vinculado a formação de um saber específico, uma vez que este é um efeito e uma condição para seu exercício, sendo assim, uma concepção positiva dos mecanismos de poder.

Como já previamente dito, a emergência de tais técnicas de normalização teve como finalidade a contenção, o domínio, das anomalias . Para ilustrar tal movimento, Foucault utiliza três elementos que foram descobertos, colonizados, codificados e absorvidos pela construção discursiva fundamentada no exame médico-legal. Em primeiro lugar, o monstro humano : trata-se de uma categoria que evoca a violação não somente das leis da sociedade, mas também da natureza. Desta maneira, seu campo de aparecimento é jurídico-biológico , combinando o impossível com o proibido: não está somente fora da lei, mas representa uma forma natural de contranatureza , conjugando o cosmológico e o anticosmológico.

O segundo elemento analisado por Foucault é o indivíduo a ser corrigido . Trata-se de um indivíduo típico dos séculos XVII e XVIII, que advém do contexto familiar, dotado de seu poder interno e gestão econômica próprias. O local de geração deste elemento são as instituições de controle costumeiras nesta época: a escola, a oficina, a rua, a igreja. Vale ressaltar que este elemento é mais comumente encontrado do que o anterior por estar bem próximo à regra, à norma, ao ordenamento proposto por tais instituições de controle político: o que acaba por definir o indivíduo a ser corrigido é o fato de que este necessita de intervenções, procedimentos, técnicas, com vistas a sua correção, constituindo assim um suporte positivo para os anormais.

O terceiro elemento visto por Foucault é o onanista , ou, o masturbador. Seu campo de emergência é a família, e seu domínio, privado: o quarto, a cama, o corpo. O onanista é o indivíduo entendido como universal por deter um segredo universal compartilhado, entretanto incomunicável: isto se torna a raiz para uma diversidade de males. De tal sorte que o anormal constituído no século XIX descende destes três indivíduos: isto pulveriza a acepção de anormalidade em uma variedade de aparelhos e instituições retificadoras, com base no intercâmbio e superposição das características anormais previamente expostas, redistribuindo os poderes que investem em direção aos corpos.

Sendo assim, o anormal foucaultiano deriva das três categorias previamente expostas. Entretanto, Foucault nota, no século XIX, a elaboração de uma nova teoria referente à monstruosidade , com base na mudança de concepções acerca dos hermafroditas. Estes eram considerados monstruosos por terem os dois sexos, revelando assim, uma associação, marcadamente carnal, com o demônio cristão: via de regra, tal infração era motivo para a condenação à morte. Contudo, sobre a nova concepção de monstruosidade, Foucault escreve: “Desaparece portanto a monstruosidade como mistura dos sexos, como transgressão de tudo o que separa um sexo do outro. Por outro lado – e é ai que vamos encontrar no início do século XIX – não há mistura de sexos: há tão somente esquisitices, espécies de imperfeições, deslizes da natureza.” (Foucault: 2001: 91).

As condenações aos hermafroditas que decorrem desta nova racionalidade punem pelos atos perversos cometidos. Desta maneira, a condenação é provocada por um desvio de comportamento, e não de natureza: isto significa o deslocamento do natural ao moral , sendo daí passível de punição, por constituir uma monstruosidade de conduta. É esta nova monstruosidade , essencialmente criminosa, que se torna o princípio de uma nova economia do poder de punir, que recai sobre o monstro moral.

É neste contexto, o da nova monstruosidade descrita por Foucault, que se insere a cobertura das ações policiais pela televisão. O aspecto mais relevante desta nova forma de exercício do poder é seu caráter contínuo e permanente, não sendo mais ritual como anteriormente, no sentido do ritual de suplício público que ocorria. Isto significa uma penetração total do poder em todos os aspectos da vida, fundamentados em vigilância e controle, sendo a lei infalível àqueles que a desrespeitarem.

Como já mencionado antes, no que tange a construção do anormal , o esforço normalizador do poder concentrou-se não somente em trazer ao cotidiano da população o caráter moralmente condenável e bárbaro dos monstros. Tal esforço é notável por operar também uma passagem essencial: trazer os grandes e aterradores monstros para a esfera dos pequenos monstros, o que acaba por convertê-los ao domínio da anomalia notada claramente em indivíduos, construído assim, a ponte entre o monstro e o anormal , cristalizando o problema da monstruosidade criminal.

No movimento que trouxe os grandes monstros à esfera do cotidiano, podemos situar a mídia policial televisiva, e, mais especificamente o programa Brasil Urgente . Para quem assiste ao programa, o mundo se assemelha a um catastrófico e dramático espetáculo, povoado pelos já descritos anormais , que continuam a cometer crimes, hediondos, pela ótica de seu apresentador.

Um aspecto interessante notado a partir do levantamento realizado durante a pesquisa por amostragem de programas é que puderam ser construídas algumas oposições binárias de conteúdo e caráter moral , estabelecidas pelo apresentador, que gostaria de me ater neste momento. A relevância de tais oposições se dá, principalmente, por estas serem amplamente utilizadas pelo apresentador no Brasil Urgente para emitir suas opiniões e juízos. Entre elas, as idéias de bons aposentados x velhos safados, menores abandonados x menores infratores e boas mães x más mães .

A partir de tais oposições binárias, é possível traçar uma linha que as separa, entre os representantes do que chamaremos de boa sociedade , defendida pelo apresentador em oposição aos representantes da má sociedade , eternos sujeitos aos ataques de fúria de Datena.

Nos 17 programas pesquisados, pude notar um grande enfoque em crimes como seqüestros, casos de pedofilia, infanticídios, e outros crimes hediondos. É possível identificar, por meio das oposições binárias mencionadas anteriormente, os temas e os limites existentes no conteúdo do discurso do apresentador José Luís Datena no Brasil Urgente bem como a construção do anormal e seu caráter normalizado: não somente a criação de tais categorias, mas, especificamente, a defesa do apresentador à boa sociedade , e a condenação proferida à má sociedade .

Primeiramente, gostaria de exemplificar com a oposição menor infrator x menor abandonado . Nos programas pesquisados, o apresentador demonstra preocupação para com os menores abandonados por o que chama de políticas esdrúxulas 1 por parte dos governantes. Tais menores, de acordo com a fala do próprio apresentador, estão sujeitos a maus tratos, pedofilia e estão deixados a sua própria sorte.

Em contrapartida, existem outros menores, os canalhas, infratores 2, que de acordo com Datena são defendidos por direitos humanos 3. Esta oposição foi lembrada por o tema dos menores ser recorrente no programa. Especificamente, gostaria de citar o caso de duas crianças que fugiram de casa e se apresentaram ao conselho tutelar local. Depois deste ocorrido, as crianças foram mandadas de volta para casa, onde foram mortas e esquartejadas pelos pais. Este foi um caso em que Datena se apoiou para fazer sua crítica às autoridades e a defesa de tais menores . Em outras situações, como no caso do maníaco de Guarulhos 4, o qual cometeu seu primeiro crime aos 17 anos, o apresentador rapidamente o alça ao patamar de frio, cruel, psicopata 5.

Desta maneira podemos notar que a linha que separa, no caso dos menores , a boa da sociedade , como vista por Datena, é se são vítimas de diversos tipos de violência, como as mencionadas acima, ou, se colaboram para tal violência, como no caso do maníaco de Guarulhos .

Uma outra oposição que vale ser ressaltada pelo grande apelo e impacto que obteve no programa é a de boa mãe x má mãe . Gostaria de expô-las em uma comparação entre dois casos veiculados durante os programas e a posterior reação do apresentador. No Programa de 2/9/08, noticia-se uma mulher de dezoito anos que brigou com o marido e ateou fogo em sua casa, matando sua filha de 8 meses e ferindo gravemente a outra. Após a chamada inicial, Datena, revoltado, chama esta mãe de vagabunda, canalha, o resto da sociedade , aproveitando este momento para colocar que a ausência de Deus na família quebra a mesma e propicia que o mal tome conta . 6

O caráter dramático desta reportagem se completa pelo fato da reportagem do programa ter acesso a casa carbonizada nos momentos seguintes ao término do incêndio, com imagens chocantes in loco , reforçando a brutalidade do ocorrido. Ademais, fotos da menina morta, imagens do pai das crianças ferido, no enterro da menina, adicionadas a imagens da mãe na delegacia, algemada, contribuem para a monstrificação desta jovem de dezoito anos. Em outro momento do mesmo programa, podemos notar o processo de produção da culpa na mãe citada. O repórter do programa, de dentro da delegacia entrevista a mãe, e lhe pergunta, depois de um depoimento dela sobre o ocorrido: “quem levou a pior, você, com essa bandagem na mão, ou sua filha, morta?” . Desta maneira bem direta podemos perceber a maneira pela qual o programa estigmatizou esta mãe enquanto parte da má sociedade .

Por outro lado, no Programa de 5/9/08, foi veiculada a notícia de um menino que acidentalmente caiu da janela do prédio onde morava. Sua mãe, naquele momento, estava trabalhando na portaria do mesmo prédio. Datena não isenta a mãe de culpa, porém a defende, valorizando o fato dela estar trabalhando naquele momento, dizendo até que, possivelmente, se ela não estivesse trabalhando os meninos poderiam ter passado fome . No dia seguinte 7, esta mãe está ao vivo durante o programa inteiro em standby . Datena conversa com ela em quatro momentos, dos quais gostaria de destacar o primeiro, no qual a mãe chora copiosamente a morte do filho, mas o apresentador a consola, ressaltando o papel de batalhadora que ela tem ao ter criado seus filhos com dignidade 8.

Pelo enaltecimento deste papel de trabalhadora, e pelo zelo que tinha com seu filho, podemos perceber nesse programa como o apresentador absolve esta mãe da culpa pela morte do filho. Datena emite uma frase emblemática desta absolvição ao vivo: “não posso aconselhar por não ser psicólogo, pastor ou padre, mas se tivesse o dom de perdoar, como Deus já fez, o faria”. Desta maneira fica claro como apesar das fatalidades que cercaram estas duas mães mencionadas, apenas uma dela é digna da boa sociedade , sendo a outra destinada à pior sorte possível, como a prisão, o inferno, etc..

Além das oposições binárias já citadas, vale mencionar os bons aposentados em oposição aos velhos safados . Os primeiros são vitimas em potencial em um Brasil violento, pois são sujeitados a maus tratos, recebem uma aposentadoria parca diante de sua contribuição ao país, e não tem tratamento de saúde digno 9, fazendo parte assim, da boa sociedade . Em contrapartida, para cada caso de pedofilia cometido por uma pessoa de mais idade utilizava-se automaticamente a conotação de velho safado . Desta maneira podemos notar o processo que acaba diferenciando pessoas de idade mais avançada: os que estão junto com Datena, enfrentando os problemas do Brasil, e aqueles que o opõe por suas ações criminosas.

Ao separar a sociedade em duas partes, uma boa , digna de defesa por parte do apresentador e outra ¸ que merece todos os ataques morais possíveis, como nos casos mostrados, este programa atua de maneira a construir certo conteúdo moral e ideológico, que são condizentes não somente com a estrutura capitalista e contribuindo com sua perpetuação pelo enaltecimento da justiça, do trabalho, da ação da polícia, além da construção, praticamente diária de monstros pelos moldes do exame médico-legal, que nos fornecem os exemplos de péssima conduta ética segundo a visão do apresentador do programa.

Com base nas oposições estabelecidas por tal programa televisivo, aliado à contribuição teórica acerca dos anormais , proposta por Foucault, é possível sustentar que tal programa cria, constantemente, novos anormais , sendo estes assim constituídos por suas ações hediondas. Em contrapartida, normaliza-se sua existência anormal por mostrá-los quase que diariamente, reforçando assim, sua natureza. É neste contexto que o anormal se normaliza, por meio de uma característica positiva do exercício do poder pela ótica do programa Brasil Urgente.

O estabelecimento de tais dicotomias pelo discurso deste programa acaba por promover tanto um discurso de violência, principalmente direcionado à má sociedade , ao mesmo tempo em que promove, por meio do enaltecimento de valores morais próprios da boa sociedade , um discurso que condena a mesma violência. Nas dicotomias apresentadas, o caso que me parece mais notável se refere aos velhos safados e os bons aposentados , com base no que foi apresentado referente a esta categoria. O que constitui o aspecto anormal de nossa sociedade deve ser repreendido e contido. Em contrapartida, o normal , ou normalizado é o que recebe do apresentador uma defesa pública.

Partindo das já expostas noções de anormal , da normalidade e normalização , bem como o caráter positivo do poder, é possível contextualizar a mídia policial televisiva enquanto não somente fabricante dos anormais, mas também de um discurso normalizador.

Isto significa um exercício de poder específico: expõem-se, em rede nacional, as bizarrices de um comportamento moralmente inaceitável e constantemente condenável pela ótica de seu apresentador. Em contrapartida, são enaltecidos os comportamentos e procedimentos que são bem quistos, mantendo-se assim, claramente demarcada, a linha que separa a boa da má sociedade .

Em decorrência disto, uma nova gama de práticas de controle: àqueles que não se comportarem de acordo com a prescrição da tida como boa sociedade são destinados mecanismos de vigilância que vão da denúncia policial até o múltiplo controle feito por partes diferentes da população. Isto acaba por promover um controle que vai além do poder institucionalmente constituído para uma vigilância contínua e ininterrupta, feita por aqueles que defendem a moral, a boa sociedade , ou seja, qualquer um que se julgue detentor de tais valores, compartilhados com Datena.

Um exemplo marcante é o serviço de mensagens de texto para celular promovido no programa. Os telespectadores podem, a qualquer momento, manifestar suas opiniões e até mesmo fazer denúncias para o apresentador, ressaltando assim, a interação entre o programa e aqueles que o acompanham, o que potencializa a capacidade de múltiplas vigilâncias criadas por tal interação.

Neste contexto, todos estão sujeitos ao escrutínio público promovido por tal programa: ações condenáveis, de tal ponto de vista moral, serão expostas e condenadas durante o programa, ressaltando o caráter monstruoso de algumas práticas. Ao mesmo tempo em que expõe os monstros ao público, enfatizando seu caráter anormal, promove-se também o discurso normalizador, ou seja, o da boa sociedade .

Isto significa que os monstros, agora, estão sob constante análise e vigilância, entretanto, isto só pode ocorrer uma vez que eles venham à tona por meio de suas monstruosidades. Para que isto proceda, serão necessárias toda uma série de práticas de vigilância com vistas a conter os monstros e suas monstruosidades.

Desta maneira, constrói-se o discurso de tais programas policiais com um fundamento marcadamente moralista. Ou seja, pelo bem da normalidade que Datena promove aparecimentos diários de novos anormais , enquanto exemplo exatamente oposto à conduta desejada por seu apresentador. Sendo assim, é fundamentando-se na moral normalizante que tais programas procedem à demonstração de casos monstruosos e monstruosidades. Fabricam-se as múltiplas vigilâncias com a intenção de prevenir a emergência de novos monstros. Sendo assim, o aspecto constituinte predominante em tal discurso é a defesa da moral, com base na visão de mundo de seu apresentador.

Trata-se de uma prática de controle constituída, uma vez que, os valores expostos durante o programa por Datena, são compartilhados por alguns daqueles que o assistem e acabam por contribuir com a vigilância em sua comunidade, formulada em bases jurídico-médico-morais .

Estas bases de formulação de valores e vigilâncias se articulam no discurso de Datena por este, constantemente, buscar consultar fontes diversas para constituir suas opiniões, como delegados, médicos, repórteres, e os perpetradores de crimes, com vistas a entender suas motivações, buscando assim traçar sua trajetória: isto nos mesmos moldes já descritos por Foucault no que se refere à constituição do crime e seus antecedentes, fazendo com que o criminoso se pareça com seu crime, inserindo-o em uma trama inteligível ao grande público.

De maneira a conter os diversos monstros existentes, além da fabricação de múltiplas vigilâncias, busca-se também entendê-los em termos de suas motivações, utilizando-se assim, dos mesmos procedimentos expostos por Foucault no que se refere à constituição dos anormais e do discurso normalizador. Neste contexto, busca-se conter os monstros pelas cada vez mais crescentes práticas de vigilância múltipla, sendo estas práticas, condizentes com um exercício de poder positivo , como exposto anteriormente.

Sendo assim, o discurso existente no programa Brasil Urgente não pode ser estritamente associado à visão de mundo de seu apresentador. Trata-se, ao contrário, da emergência de novas técnicas de vigilância e resguardo moral que acabam por promover um programa televisivo que expõe tais anomalias e comportamentos condenáveis, ao mesmo tempo em que se reserva à exaltação moral de seus bons representantes. Sendo assim, o próprio discurso de Datena não é essencialmente negativo, repressivo: ele busca afirmar os valores louváveis partindo de tal visão de mundo, relegando à condenação moral aqueles que não a seguem. Trata-se então, de uma promoção moral de certos valores, não somente por parte do apresentador, mas também por aqueles que o assistem e continuam a denunciar, ressaltando assim, este específico exercício de poder: constituindo o problema do anormal e, ressaltando, o discurso normalizador, onde os que destoem da curva normal sejam expostos e severamente punidos por isso.

Além disso, Datena também se coloca como autoridade desqualificada por ser um apresentador, e não um especialista : também por isso, em diversos momentos o apresentador recorre a delegados, psiquiatras, entre outros, de maneira a corroborar seu discurso. Desta maneira, cria-se, fundamentado em tais testemunhos, um discurso de verdade, que possui efeitos de vigilância que podem atingir àqueles membros de seu público.

Vale lembrar que este discurso de verdade, com fundamentação na vigilância recíproca e irrestrita visa, em última análise, a proteção, ou seja, a manutenção não-violenta do que anteriormente foi denominado boa sociedade , enquanto que à má sociedade é destinado um discurso violento, uma vez que constantemente o apresentador deseja a estes elementos um longo tempo de reclusão e distância da boa sociedade . Sendo assim, é nesta afirmação de valores morais, feita por Datena, que reside o fundamento de múltiplas vigilâncias: seu discurso é a moral vigente, pela boa sociedade , contra os monstros , representantes da má sociedade .

Ou seja, é na fabricação de múltiplas vigilâncias que o monstro se insere como algo a ser constantemente vigiado, de maneira a não irromper em suas monstruosidades, sendo estas, somente um artifício usado pelo apresentador para promover suas condenações morais, procedendo à sua já mencionada divisão entre membros da boa e da má sociedade . Sendo assim, fabricam-se vigilâncias diversas com vistas à preservação da normalidade , e, visando, a prevenção da emergência de monstros diversos, com as anomalias que marcam sua existência, carregando assim, marcas de discurso violento e não-violento dependendo à quem se dirige o discurso do apresentador.

Notas

* Mestrando em Ciências Sociais pela PUCSP. E-mail: joaombarata@gmail.com

1 Programas de 25/8/08 e 9/9/08.

2 Programa de 9/9/08.

3Idem

4 A partir do programa de 2/9/08, cobertura constante deste caso.

5 Leandro Basílio Rodrigues, o maníaco de Guarulhos , pode ter matado até 50 pessoas – Programa de 5/9/08.

6 Programa de 2/9/08.

7 Programa de 6/9/08.

8Idem

9 Programa de 25/8/08.

Bibliografia

FOUCAULT, M. (1975) Os anormais : curso no Collège de France. Trad. Eduardo Brandão – São Paulo: Martins Fontes, 2001.

Material referente ao Brasil Urgente coletado entre 15/8/2008 e 10/9/2008.



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