A violência do silêncio – a morte de Federico Garcia Lorca.
Para violentar alguém muitas vezes é preciso mais do que crueldade, é preciso saber o que de fato é doloroso para aquele que se quer atingir. Às vezes as agressões precisam sair do lugar comum do que conhecemos como os modos de violência, nem sempre um ataque físico ou verbal é capaz de acertar o alvo da maneira que se pretende. Isso já é sabido há muito tempo e os atos de violência têm atingido requintes surpreendentes, mas às vezes sua eficiência se deve à atuação de maneira muito simples.
As ditaduras há muito já sabem o quão violento pode ser o silêncio. Não permitir que se fale, que se escute, que se pense foi uma das violências mais eficazes descobertas pelo homem. Atingir alguém pelo silêncio, pelo não dito, pela ignorância é matá-lo para os outros, é destruí-lo de forma tão eficaz quanto uma bomba atômica, que vai direto aos átomos. O ostracismo é a violência silenciosa que pode fazer desaparecer pessoas e idéias e sem gerar grandes resistências.
Ao assassinar Federico Garcia Lorca os generais franquistas não tinham como alvo um agente de guerra; a figura de Lorca não era uma força ameaçadora no contexto comum de uma guerra civil, no qual civis vão à luta armada escolhendo um bando para se aliar. A ameaça de Lorca não era bélica, mas como definiu Ruiz Alonso 1, Garcia Lorca era mais perigoso com uma pluma na mão do que muitos com uma arma. Assassinar o poeta mais importante da Espanha no século XX foi um ato violento não apenas pelo fusilamento, ou pelos “tiros en el culo por maricón” que Juan Luis Trescastro se gabou de ter disparado. A violência cometida contra Garcia Lorca é uma violência plural no sentido em que tinha muitas intenções e muitos alvos, não apenas a simples morte de um homem que era uma figura dentro e fora da Espanha da década de 30.
O fato é que até hoje não se sabe se Lorca recebeu de fato esses tiros descritos acima, nem ao menos se sabe onde está o corpo do poeta – o que significa não saber exatamente quando Lorca morreu, o que aconteceu com ele, onde aconteceu sua morte e nem que violências ele pode ter sofrido. A busca pela fossa de Lorca, que começou há pelo menos 30 anos, não tem como finalidade responder às questões anteriores a fim de ilustrar com imagens sádicas o assassinato de uma pessoa pública, como gostam de fazer os meios de imprensa marrom e sensacionalistas. Trata-se de trazer à luz a verdade dos fatos, acabar com as mentiras, suposições e, principalmente, acabar com o silêncio.
O silêncio pode ser torturante. E o silêncio que existe em torno da morte de Lorca chega a ser ofensivo, significa tentar colocá-lo em um lugar de esquecimento, minimizando a importância de sua obra ou o impacto de suas palavras. A morte de Garcia Lorca foi autorizada pelos generais que dominaram a Andaluzia em agosto de 1936, segundo documentos da época, e depois de sua morte a obra de Lorca foi proibida na Espanha por muitos anos. Até o ano de 1975, quando morreu Franco, o volume das obras completas de Lorca tinha menos da metade do que se conhece hoje das obras do poeta. Manter a Espanha na ignorância é uma das maiores violências que se poderia cometer contra Garcia Lorca, afinal ele levou por todo o território espanhol um pouco de cultura sobre os palcos do grupo mambembe “La Barraca”, encenando os clássicos do teatro espanhol em povoados onde a taxa de analfabetismo era altíssima. Silenciar a voz do homem que subiu em palcos, palanques e concedia entrevistas denunciando a pior burguesia da Espanha 2, a ditadura de Salazar ou se colocando ao lado do partido dos pobres 3, como fez Lorca, seguramente é mais violento que os tiros e o corpo na fossa que se atribuem à sua morte.
A obra de Garcia Lorca foi como uma voz da Espanha que ecoou em diversos países. Inglaterra, França, Portugal, EUA, Cuba, México e Argentina conheceram a obra de Lorca entre as décadas de 20 e 30, e com sua obra Lorca tornou conhecidas diversas facetas da Espanha: um país agrário, que no século XX, tinha parte de seu território vivendo na época medieval, tradições católicas e ciganas que conviviam baixo uma história de imigrações e dominações, trajetórias de muçulmanos e católicos. As obras de Lorca eram vistas, já em sua época, como representantes de um país multifacetário que a muitos encantava, mas que a outros causava repulsa. Espanhas que se reconhecem, se encontram e se negam na obra de Lorca: Catalunha, Madrid, Galícia, Andaluzia.
Entre os anos de 1936, início da Guerra Civil Espanhola, e 1975, ano da morte do General Franco, subestima-se que morreram na Espanha entre 350 e 400 mil pessoas, mortes provocadas pelo conflito político interno pelo qual passava o país, porém mais da metade das mortes aconteceu depois de 1939, quando a guerra já havia acabado e a Espanha estava sob governo de Franco. Mesmo com o fim da guerra era preciso silenciar muitas vozes, um silêncio violento e gerado a custa de muita violência, a fim de construir a “verdadeira Espanha”: militar, nacionalista e católica e que fez derramar sangue tanto daqueles que se negavam a aceitar uma faceta como a verdadeiramente espanhola, quanto defensores desta visão uniforme do que devia ser o país. Foram muitos mortos de todos os lados, em todos os bandos, homens, mulheres, crianças, estrangeiros, espanhóis... Os mortos da Espanha durante esses quase 40 anos são, cada um, símbolos de silêncio forçado, opressão. A violência de não poder dizer, de não poder pensar, tão típica das guerras e ditaduras. A violência do eterno medo que tomou conta da Espanha e que ainda hoje se respira em várias partes do país. O medo do passado que cria a ignorância do presente.
De que maneira, de fato, Federico Garcia Lorca foi morto, quando e onde está seu corpo, ainda hoje não se sabe. E poucas vezes se buscou saber, tanto pelo governo da Espanha, quanto pela família do poeta – ao menos essas buscas não aconteceram publicamente. E por que não há interesse em saber o fim real da vida de Lorca? O que lhe teria acontecido? Quem estaria envolvido? Não saber as respostas a essas questões é deixar a verdade no campo da especulação, da imaginação, e é manter Garcia Lorca mais vivo no que diz respeito às especulações, mas morto com relação à sua própria história, à história de seu país, é condená-lo a ser ignorado pelas futuras gerações, e isso, para Lorca, certamente é muito violento.
Notas
* Syntia Alves é doutoranda do programa de estudos pós graduados em ciências sociais da PUC – SP, membra do Neamp e fotógrafa.
1Ruiz Alonso foi o responsável pela prisão de Federico Garcia Lorca, e a periculosidade por ele atribuída ao Lorca foi a causa da prisão do poeta, e tal prisão desencadeou na morte do poeta. Um dos detalhes mais importantes da participação de Ruiz Alonso é o fato dele ter conseguido a prisão de Lorca sem a autorização de nenhum general, como que um trunfo próprio deste que nem ao menos era membro da Falange. Segundo os relatos, a prisão de Lorca poderia não tardar muito, porém o poeta ainda não era alvo de Franco naquele agosto de 1936.
2 “A pior burguesia da Espanha” foi a maneira que Lorca usou para descrever o que gerou o repovoamento de Granada, depois da tomada católica em 1492. A declaração está na entrevista do poeta publicada no jornal “El Sol”, de 10 de junho de 1936.
3 Quando perguntavam a Lorca sobre sua posição política sua resposta era de que ela era partidário dos pobres.
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