Entrevista com Sérgio Adorno
Por: Sérgio Adorno
Sérgio Adorno é cientista social e doutor em sociologia pela Universidade de São Paulo, possui pós-doutorado pelo Centre de Recherches Sociologiques sur le Droit et les Institutions Pénales, CESDIP, França. Atualmente é professor titular da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, coordenador científico do Núcleo de Estudos da Violência da USP, presidente da Associação Nacional de Direitos Humanos – Pesquisa e Pós-Graduação, comendador da Ordem Nacional do Mérito Científico, pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, além de membro do conselho consultivo de importantes periódicos nacionais e internacionais. Sérgio Adorno é uma referência nos estudos sobre violência e gentilmente cedeu esta entrevista à Revista Aurora, abordando o tema de diferentes perspectivas.
Revista Aurora :
Se olharmos para a história do homem veremos que a violência o acompanha, que é intrínseca à sociabilidade. Que especificidades podemos encontrar na violência presente na sociedade contemporânea?
Sérgio Adorno :
Como sociólogo, tenho dificuldades de pensar a violência na história da humanidade como intrínseca à sociabilidade. Primeiramente, seria preciso qualificar o que estamos entendendo por violência. Certamente, não é o caso de nos determos no conceito de violência, até porque além da complexidade que o encerra, teríamos que circunscrevê-lo a escolas de pensamento ou a territórios teóricos determinados. De qualquer modo, uma advertência inicial é necessária. Quando estamos falando em violência, estamos falando em modalidades do emprego, não consensual ou legitimado, do uso da força para impor a vontade de uns contra outros, mediante recurso de meios determinados, inclusive força física. Seus resultados compreendem danos à integridade física, psíquica, à identidade, à privacidade de quem quer que tenha sido vítima dessas modalidades de ação. Enquanto tal, dependem de contextos sociais, dos meios empregados, da natureza das relações sociais em conflito ou dos objetos em litígio. Não necessariamente, a existência de conflitos implica em violência. É o modo de resolução de conflitos que pode comportar emprego de violência. Na civilização ocidental moderna, o estado tem, por princípio, o monopólio do uso legítimo da força para conter conflitos entre particulares. Mas, isso não requer apenas o uso da força física, mas também a capacidade de aplicar leis para pacificar internamente as sociedades; em outras palavras, de solucionar conflitos mediante apelo às instituições encarregadas de distribuição de justiça. A despeito dessas crenças, vimos que a história mundial, não apenas ocidental, há dois séculos persistiu empregando violência desmedida, nas guerras entre nações, nos conflitos entre civis de uma mesma nação, na chamada guerra contra o terrorismo e na contenção repressiva do crime. A tortura não conseguiu ser erradicada de nossas sociedades, a despeito de condenada desde meados do século XVIII. Na maior parte do mundo, penas cruéis e castigos persistem sendo impingidos aos presos políticos e aos presos comuns, ao arrepio dos direitos consagrados em acordos e convenções internacionais. É bem verdade que, até meados do século XX, a violência nas lutas pela independência nacional – lembre-se do caso argelino – assim como contra regimes ditatoriais foram consideradas legítimas, porque em nome das liberdades civis e públicas. Vivemos, na contemporaneidade, situações paradoxais. Por um lado, condenamos a violência do terror. Desde 11 de setembro, não há mais intelectuais de esquerda defendendo o emprego de meios violentos como garantia de liberdade e de justiça social. Por outro, são poucos os intelectuais que denunciam o emprego de tortura e outras formas cruéis contra aqueles acusados ou suspeitos de envolvimento em atos de terror. Justifica-se que seus atos não estão sob amparo de qualquer lei ou convenção internacional. Daí porque não haveria que denunciar graves violações de direitos humanos. Além do mais, vimos assistindo a internacionalização e multiplicação das formas de violência, em torno de conflitos religiosos e étnicos, de seu emprego cotidiano nas relações intersubjetivas (por exemplo, nas relações domésticas, entre pais e filhos, entre esposos e companheiros), no crime cada vez mais organizado, sustentado pelo uso recorrente de armas de fogo cada vez mais letais. Não é estranho que, para além dos fatos, a violência na contemporaneidade tenha se convertido em linguagem, presente nas conversas cotidianas, na mídia impressa e eletrônica e estetizada nos vídeos, nas canções, na obra de arte em geral. Tampouco não é estranho o interesse despertado pela ciência e pelo mundo acadêmico. No mundo inteiro, proliferam grupos de pesquisa sob os mais variados aspectos - do crime ao terrorismo, da violência doméstica à simbolização estética.
RA :
Quais as principais tendências de pesquisa sobre violência atualmente? Quais as principais dificuldades encontradas?
SA: Por certo, o tema da violência não é novo para o mundo acadêmico. Sempre ocupou lugar de destaque entre os estudiosos da guerra, fossem historiadores, sociólogos ou cientistas políticos. Igualmente, antropólogos que se ocuparam das chamadas sociedades “primitivas” jamais deixaram de anotar sua presença em não poucas práticas culturais, conquanto mantivessem distância das explicações correntes no mundo civilizado ocidental. A violência no mundo da política também não deixou de ser estudada, por exemplo nas lutas anti-coloniais e nas lutas contra regimes autoritários. Nesse domínio, convém lembrar que os clássicos da sociologia política brasileira – Oliveira Viana, Sergio Buarque de Hollanda, Gilberto Freyre, Vitor Nunes Leal, Raymundo Faoro, Caio Prado Jr., Maria Silvia de Carvalho Franco, Maria Isaura Pereira de Queiroz, entre outros – ao analisarem a formação política do Brasil sugeriram o quanto política tradicional, baseada no mandonismo local, esteve entrelaçada com a violência dos poderosos proprietários de terra. Do mesmo modo, aqueles que desde o século XIX, por exemplo, se interessam pelo estudo do crime e do chamado comportamento desviante, já vinham focalizando os homicídios, o emprego de armas de fogo, as modalidades de delinqüência e de agressão às leis penais. Pode-se dizer que esses recortes se mantiveram. Todavia, não se pode deixar de reconhecer que esses estudos ganharam fôlego, densidade e diversidade como resposta ao quadro mesmo da violência na sociedade contemporânea. Todos os temas acima discriminados – violência doméstica, violência nas relações entre classes sociais, gênero, gerações, por motivação étnica ou racial, violência simbólica em torno da apropriação de significados considerados legítimos (o estudo das relações entre mídia e violência e a respeito do lugar da violência nas imagens contemporâneas não deixa dúvidas a respeito). Multiplcaram-se também os modos e meios de repertoriar a violência nas sociedades contemporâneas assim como os métodos de análise e decifração de significados. Grosso modo, se poderia dizer que a pesquisa contemporânea se movimenta em torno de algumas direções: 1 – estudo do crime e das formas organizadas de criminalidade; 2 – graves violações de direitos humanos; 3 – violência nas relações intersubjetivas e interpessoais; 4 – os sentidos da violência na história.
RA :
Sobre a violência no Brasil, ao tomarmos São Paulo, Rio de Janeiro e Recife, três cidades com elevado índice de violência e com particularidades bastante distintas, que relação podemos estabelecer entre regionalismo e tipos de violência?
SA: Embora carecemos de dados e análises nacionais sobre o que se poderia denominar “a violência brasileira” (acho que esse termo, na prática, é equivocado), não se pode generalizar alguns cenários ou características locais – por exemplo, o cenário típico da violência no Rio de Janeiro ou S. Paulo – para o conjunto do país. Em primeiro lugar, não há uma modalidade de violência como procurei sugerir anteriormente. Por exemplo, linchamentos são fenômenos que tem ocorrido com maior freqüência nos estados de S. Paulo e Bahia. Conquanto disseminadas pelo país, execuções sumárias, praticadas por grupos de extermínio (envolvendo policiais e pessoas civis) se revelam mais presentes nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. As taxas de homicídio não estão distribuídas igualmente entre os diferentes estados da federação. Por exemplo, nos primeiros oito anos deste século, tenderam a diminuir em estados como S. Paulo e Rio de Janeiro e a crescer em estados como Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Bahia e Paraíba. O crime organizado, apesar de cada vez mais nacionalizado e internacionalizado, apresenta configurações regionais distintas. O cenário do crime organizado nas favelas cariocas não se espraiou necessariamente por todo o país. Os estudos recentes sobre a presença do PCC – 1º. Comando da Capital, nas prisões paulistas e nos bairros populares do estado e da região metropolitana de S. Paulo sugerem que as características regionais são mais relevantes do que à primeira vista possam parecer. Volto ao argumento: uma análise cientificamente consistente requer o exame refinado de contextos, de relações sociais e institucionais, de características sociais das populações envolvidas (seja na condição de vítimas ou potenciais autores de violência, ou ambos simultaneamente). Por exemplo, no caso do crime organizado, é preciso saber quais são as atividades ilícitas de maior relevância, como se dá o fluxo de pessoas e mercadorias assim como de circulação monetária, qual o papel da polícia e das políticas públicas de segurança locais, como se dá o acesso local aos armamentos e como operam os mecanismos de controle social etc. Não se pode também deixar de considerar regionalismos, historicamente construídos. Por exemplo, sabe-se hoje, através de estudos muito interessantes, que os estados do nordeste exportam pistoleiros para a região Sudeste, onde o “mercado da morte” é mais atraente e lucrativo. Alguns estados do nordeste possuem inclusive escolas para formação desses tipos sociais. Mas, não se pode generalizar explicações culturalistas. As especificidades regionais compõem os cenários singulares, porém não os explicam inteiramente.
RA: Sabemos que os meios de comunicação de massa exercem um importante papel no cotidiano social. Em que medida é possível identificar a participação da mídia nas práticas de violência?
SA: Esse é um tema amplamente debatido pela literatura especializada. Há quem acredite que a mídia distorce os fatos e contribui para disseminar sentimentos de medo e insegurança que, por sua vez, alimentam as demandas por lei e ordem, pelas políticas tipo “mão dura” ou “tolerância zero”. Mas, isto leva à seguinte questão: de que mídia se está falando? Como qualquer outra “região” da vida societária contemporânea os meios de comunicação não operam todos do mesmo modo e movidos por unívocos interesses empresariais e de mercado, em torno da divulgação de notícias. Ao mesmo tempo que existem, por exemplo, programas radiofônicos ou televisivos que repercutem o crime cotidiano de forma, digamos, “folhetinesca”, com forte dose de sensacionalismo que prende a atenção da audiência, há também debates e reportagens sensíveis às políticas de proteção dos direitos humanos, às políticas de controle do crime que respeitam o estado de direito. Portanto, aqui também não se pode generalizar. Ademais, há o velho tema dos meios de massa moldando a consciência do público e estimulando a formação de algo como uma “cultura da violência” (um conceito que os antropólogos manifestam resistência a aceitar sem reservas – aliás com muita razão). O estoque de pesquisa disponível, na literatura estrangeira, não é conclusivo a respeito. Vale lembrar que essas pesquisas, para serem consideradas fidedignas, exigem todo um refinamento metodológico e de controle do “ambiente em que interagem emissores e receptores de mensagens”. Nem sempre é possível isolar completamente o circuito dessas relações, sem contaminação de intervenções externas. Ademais, ainda que as análises possam identificar, com certa precisão, os interesses subjacentes aos emissores de mensagens, isto por si só não garante que os receptores incorporem suas mensagens tal como pretendidas pelos emissores. Há toda uma mediação do universo da cultura que é imponderável. Os receptores podem fazer as mais diversas leituras das mensagens que recebem. Um exemplo. Durante a ditadura, a TV Globo transmitia a novela “Irmãos Coragem”. O enredo falava de conflitos entre pessoas comuns do campo. Conquanto não tenha sido intenção dos diretores, a audiência logo cresceu pois muitos leram as mensagens subjacentes aos diálogos e aos eventos como uma espécie de incentivo à luta por justiça social no campo.
RA :
Anthony Burgess, autor do romance Laranja Mecânica, que inspirou o filme homônimo de Stanley Kubrick, em uma entrevista mencionou um certo desconforto quando se deparou com jovens nas ruas vestindo trajes inspirados em seus personagens. Isso o fez pensar que, talvez, ele também tenha contribuído para engendrar uma cultura da violência. Como pensar a estetização da violência e suas conseqüências?
SA: Esse é um tema que ainda está para ser pensado de modo denso. Primeiramente, sempre a questão primordial: o que se quer dizer com “estetização da violência”. A violência como modo de vida? A violência como expressão legítima de atribuição de significados em um mundo cada vez mais carente de significados e de crenças universais? A violência como representação de si em relação aos outros? Quem é então esse “outro”? Creio que é preciso, inicialmente, refletir melhor sobre o conceito mesmo, sem o que não se pode recortar com precisão os fenômenos contemporâneos que se pretende investigar. Seja o que for, não há como negar que a violência é uma linguagem corrente na vida cotidiana, que enseja recusa, mas também aceitação. Enquanto linguagem, ela comporta múltiplas significações e representações sociais que, não raro, sinalizam para uma certa aceitação da violência como inevitável e mesmo imperativa. Basta ver, por um lado, a proliferação de filmes elegendo a violência como objeto e, por outro, os seriados tematizando “lei e ordem”. Ainda que eu entenda o desconforto de Anthony Burgess, acho problemático extrair conclusões a respeito dos efeitos comportamentais e ideológicos do que supomos nomear como estetização da violência.
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