Sumário
 
 
Especificidades da arte cabo-verdiana: Manuel Figueira: de artista nacional
em Cabo Verde a artista outsider em Portugal

José Carlos Venâncio*
João Pedro Silva**

Resumo : Partindo da obra e da experiência, que está longe de ser bem sucedida, do pintor cabo-verdiano Manuel Figueira junto do mundo da arte português, tecer-se-ão algumas considerações sobre a receptividade da arte africana no mundo ocidental, sobre o lugar de Cabo Verde no contexto africano e sobre o intercâmbio cultural entre Portugal e as suas ex-colónias em África. Neste repensar de algumas das premissas da pós-colonialidade portuguesa, a lusofonia, não propriamente enquanto vivência, mas sim enquanto plataforma político-ideológica, será igualmente analisada e criticada.

Abstract: Departing from the works of Cape-Verdean painter Manuel Figueira and his experience within the Portuguese art world, which is far from successful, the receptivity of African art by/in the western world will be discussed as well as Cape Verde's positioning in the African context and, to conclude, the cultural exchange between Portugal and its former African colonies. While rethinking some of the premises of Portuguese post-coloniality, lusophony will equally be analyzed and submitted to a critical view in its quality as a political-ideological platform.


A questão de fundo do presente texto prende-se com o diálogo, ou falta dele, entre elites culturais do chamado Terceiro Mundo e elites e demais actores da área da cultura dos países ocidentais, considerados grosso modo como países desenvolvidos. A explicação de tal situação reside no complexo de superioridade que as elites ocidentais mantêm em relação às outras, em muito alimentado pela relação colonial, mormente pelos seus efeitos, que, tantos anos após o fim do colonialismo europeu na América, na Ásia e em África, estão longe de ser dissipados. E o que se verifica, em termos gerais, nas relações entre o Ocidente e o Terceiro Mundo reproduz-se, em menor escala, nas relações entre Portugal e as suas ex-colónias, ou seja, no âmbito que se entende por lusofonia. Não é intenção dos autores discutir a pertinência nem as virtualidades deste conceito, interessando tão-só registar, a seu propósito, a experiência de um pintor cabo-verdiano, Manuel Figueira, e, a par desse registo, aprofundar algumas das especificidades da realidade cultural e artística cabo-verdianas.

Manuel Figueira é um dos pintores mais significativos da jovem pintura cabo-verdiana. Natural de São Vicente, forma-se em Belas-Artes na Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa e, em Janeiro de 1975, alguns meses antes da independência, regressa a Cabo Verde, acompanhado da mulher, Luísa Queirós, de origem portuguesa, com quem, conjuntamente com Isabel (Bela) Duarte, inicia dois projectos marcantes para o panorama das artes plásticas no arquipélago: a Cooperativa Resistência e a galeria Azul+Azul=Verde. Igualmente importante para a consolidação das artes plásticas cabo-verdianas foi a sua passagem como director do Centro Nacional de Artesanato, sediado, como as instituições anteriores, na cidade do Mindelo.

Diferentemente da música, nomeadamente do seu género mais popular, a morna, cuja origem é remota, e da literatura, que com o movimento da revista Claridade (1936) atinge maturidade temática e formal, mas cuja existência é naturalmente anterior, as artes plásticas tiveram, até à independência do país, uma existência despercebida, ignoradas pelas instâncias governamentais, a quem caberia, em princípio, providenciar o seu desenvolvimento. Assim é que Gilberto Freyre, aquando da sua rápida visita ao arquipélago nos anos 50, a convite do então Ministro do Ultramar, Almirante Sarmento Rodrigues, estranhou e registou, no seu livro Aventura e rotina (Lisboa s.d.), a inexistência de artes populares no arquipélago, tais como as da “ (...) renda, do bordado, do vime (...) e a (...) da tartaruga” (pág. 250). A resposta de Baltasar Lopes, em apontamentos lidos aos microfones da Rádio Barlavento (publicados mais tarde, em 1956, com o título: Cabo Verde visto por Gilberto Freyre ), contestando veementemente as afirmações então proferidas por Freyre, pouco ou nenhum relevo deu à questão do artesanato. Parca e breve foi igualmente a resposta que o escritor e crítico literário, Manuel Ferreira, deu a Freyre, anos depois, em 1960, num artigo que publicou no boletim Cabo Verde .

Ambas as respostas deixam, assim, transparecer, por uma atitude de quase omissão, a insignificância que os próprios e outros atribuíam ao artesanato, que, em boa verdade, se circunscrevia em muito à panaria e à cestaria. Este relativo estado de subdesenvolvimento e invisibilidade encontra explicação na já mencionada ausência de incentivos governamentais e na aridez do terreno, que, por sua vez, se reflectia na escassez de matérias-primas tão essenciais ao artesanato, como seja a madeira (a matéria-prima por excelência do artesanato no continente africano), e nas condições de vida das respectivas populações, que, absorvidas com a sobrevivência do dia-a-dia, pouca ou nenhuma disponibilidade teriam para as questões estéticas, pelo menos quando lidas estas à luz dos parâmetros ocidentais. Aliás, foi precisamente a aridez em apreço e a sua implicação estética que os escritores e poetas da Claridade , muito a exemplo do que os regionalistas brasileiros haviam feito em relação ao sertão nordestino, souberam dignificar, transformando-a num dos ícones mais relevantes da emancipação literária que preconizaram e concretizaram.

A estética “claridosa” não se estendeu, porém, às artes plásticas. Desinteresse que é revivido com alguma mágoa por Manuel Figueira e por outros pintores, mas que encontra provavelmente explicação na identificação da paisagem verdejante como sinónimo de harmonia e de belo, herança do romantismo europeu (Luig e von Oppen 1997; Venâncio 2002) de que os intelectuais cabo-verdianos, por razões de educação e contingência histórica, só tardiamente se livrariam. Para esse processo emancipatório tem decididamente contribuído a pintura de Manuel Figueira.

Uma análise mais atenta da sua obra permite-nos verificar que, conjugando tonalidades de azul e verde com tonalidades de amarelo e vermelho, reproduz as cores quentes de Cabo Verde, mormente as do seu Mindelo, onde da varanda do seu atelier se descortina um mar em tons de azul e verde; o mesmo mar que Jorge Barbosa, poeta maior da literatura cabo-verdiana, soube, como nenhum outro, evocar como lugar de evasão:

 

- Ai o mar

que nos dilata sonhos e nos sufoca desejos!

 

Se é possível referir as cores ao mar e à aridez do terreno, as formas a elas associadas tendem para o abstracto-figuracionismo, num propósito técnico que tem permitido a Manuel Figueira não só imprimir movimento à sua pintura, como, mais do que isso, contar histórias ou episódios da vida quotidiana do arquipélago, nomeadamente do Mindelo, transformando a sua expressão plástica e qualidade técnica num quadro da vida social e cultural. Estabelece, assim, com esta postura narrativa, a ponte entre literatura e pintura, negligenciada pelos “claridosos”. É constante o recurso ao imaginário popular, transpondo para a linguagem pictórica e figuracionista lendas como a de “O feiticeiro de Santo Antão” ou a de “O pacto para além da morte”, ambas recriadas literariamente por Manuel Bonaparte Figueira (Figueira 1968), seu tio e filho de uma das personagens da última narrativa, cujo conteúdo serviu de leitmotiv para um dos quadros mais conseguidos do pintor, a que atribuiu o mesmo título: “O pacto para além da morte” (2003).

Se pela combinação de cores Manuel Figueira reproduz a paisagem cabo-verdiana e, de certa maneira, a africana (mormente a do Sahel), pela narrativa inscreve-se na mundividência do arquipélago, que, sendo crioula, é sobretudo insular. Das lendas de que se serve, algumas transcritas (senão escritas) por ele próprio, transparece uma ética social baseada no respeito “sagrado” pelo outro, mesmo que diferente, que em muito nos faz lembrar a morabeza , a cordialidade cabo-verdiana, sobretudo quando esta é entendida não como submissão ao outro, mas sim como estratagema sedutor e “antropofágico”, tornando o próprio num outro, que é crioulo ou dele próximo. As sociedades insulares são levadas, perante a contingência espacial, a desenvolver tais mecanismos de auto-defesa.

No que respeita a Cabo Verde, esses mecanismos não têm passado despercebidos ao pintor que, ironicamente, lhes exagera os aspectos aparentemente negativos. Entre os temas explorados a esse propósito, o do “narcisismo crioulo” tem sido dos mais recorrentes. Outro tema é o que está representado no quadro “A louca e o cego: amam-se em qualquer parte” (1997). Reporta este a personagens reais da cidade do Mindelo que, ao encontrarem-se na via pública, faziam amor totalmente absortos e indiferentes ao meio envolvente. Desnecessário será referir o gozo com que o pintor transpõe para a pintura em referência tais momentos, fazendo-o num claro desafio à moral vigente.

Associando, assim, a um notável domínio técnico, um olhar profundo e crítico (senão auto-crítico) sobre a sociedade cabo-verdiana, Manuel Figueira tem granjeado, no panorama das artes plásticas do seu país, um lugar único e merecido, fazendo dele um dos principais fazedores do que se poderá já considerar como cânon estético cabo-verdiano.

Qualquer acto criativo só o é plenamente quando recepcionado, ou seja, quando a intenção autoral é, de alguma forma, recebida, interpretada e esteticamente valorizada por interlocutores. A obra de arte é sobretudo um meio de comunicação, pondo em contacto, pelo menos, dois universos estético-culturais: o do produtor e o do receptor. Esta é, aliás, uma das ilações que se pode deduzir da chamada estética da recepção, inaugurada por Hans Robert Jauss, em 1967, ao proferir a sua conferência inicial (Antrittsvorlesung) como professor na Universidade de Konstanz. O tema então escolhido, Literaturgeschichte als Provokation der Literaturwissenschaft (A história da literatura como provocação da ciência literária), publicado mais tarde, em 1970, em livro, serviu-lhe de enlace para a afirmação, no que diz sobretudo respeito à literatura ou mais concretamente à história da literatura, de um conjunto de postulados que, pela sua natureza, são aplicáveis à arte em geral. Um desses postulados é precisamente o que faz depender o valor da obra da sua percepção estética, ou seja, dos sentidos que é capaz de suscitar junto dos que a compram ou não, mas usufruem-na, contemplam-na e gozam-na.

As artes plásticas, mas sobretudo a pintura, a modalidade de arte em apreço, importa outras considerações quanto à sua recepção. Prendem-se estas com o facto de as mesmas servirem de objectos de investimento, pelo que, muitas vezes, as posturas e as funções psicológicas agendadas à apreciação propriamente dita, são, pura e simplesmente, relegadas para um plano secundário. Nestas condições, prevalece o seu valor enquanto mercadoria ou, talvez melhor, enquanto objecto de troca numa sociedade que é cada vez mais capitalizada e determinada pelo consumo. Esta dimensão mercantil está, naturalmente, dependente do desenvolvimento da sociedade e sobretudo do respectivo mercado onde os objectos de arte se inserem na produção e na recepção, pelo que pintando em contextos sociais determinados por mercados exíguos, como é o de Cabo Verde, se corre, à partida, vários riscos, de que importa realçar dois: a incapacidade financeira para fazer face ao custo das matérias-primas (tela, tintas, pincéis), quase sempre importadas, e a inexistência de potenciais compradores, conquanto, por vezes, surjam coleccionadores que, face aos desequilíbrios que também caracterizam estes mercados, sendo quase sempre em reduzido número, têm um elevado poder de compra.

Retomando, porém, a problemática da receptividade num sentido mais abstracto, importa referir que a ela estão agendados ou referidos todo um conjunto de actores, que indo dos críticos aos coleccionadores, passando pelos galeristas e curadores, mantêm, em cadeia, o circuito comercial das obras, viabilizando a sua compra e a sua concretização enquanto mercadoria ou, evocando uma categoria da antropologia económica, enquanto mercadoria-moeda. Em mercados circunscritos, sobretudo quando localizados no chamado Terceiro Mundo, esta cadeia de actores é, na verdade, frágil, incompleta, quando não totalmente inexistente.

Manuel Figueira e os restantes pintores cabo-verdianos têm sentido essas dificuldades, tentando, porém, ultrapassá-las. A criação da Cooperativa Resistência e, sobretudo, da galeria Azul+Azul=Verde são prova disso. Valem como esforços de superação das fragilidades do mercado artístico em cabo Verde. Na verdade, poucos são os cabo-verdianos com posses para lhes comprar os quadros, o que, de qualquer modo, para ânimo dos próprios, não deixa de excepcionalmente acontecer. Outros compradores têm sido os estrangeiros ligados às embaixadas, a empresas multinacionais, a organismos internacionais, mas, evidentemente, perfazendo um número que está aquém do desejável.

O mercado lusófono, mormente o português, seria outro recurso. Portugal é-lhes próximo por motivos históricos e culturais. Conscientes desta proximidade, pintores cabo-verdianos, e, entre eles, Manuel Figueira, viram-se naturalmente para o mercado da antiga metrópole à espera de uma maior receptividade, o que não tem acontecido. Como ele, aliás, e outros pintores o confessam (Venâncio 1996; 2002).

Duas ordens de factores, entre si interligados, senão justapostos, têm contribuído para este insucesso. A primeira prende-se com o facto de dificilmente poderem fugir ao estigma de pintores o utsiders na apreciação que em Portugal é feita à sua obra e a segunda com a posição periférica a que está remetido este mesmo mercado no contexto dos países ocidentais mais desenvolvidos, os países centrais no sistema-mundo.

O termo Outsider Art é devido ao crítico de arte Roger Cardinal, em livro, com o mesmo título, publicado em 1972 (Nova Iorque: Praeger). Retomou, para este desígnio analítico, o termo francês, Art Brut , cunhado pelo pintor francês Jean Dubuffet (1901-85). Começou o mesmo por designar géneros de arte que fugiam, pela disfuncionalidade psicológica e social dos seus criadores, aos parâmetros definidos pela cultura dominante (Zolberg e Cherbo 1997; Colin 2000). Mais tarde, num sentido mais alargado, passou a referir também a marginalização, se não exclusão, de artistas provenientes de e afeitos a outras culturas no seio dos mercados e mundos da arte 1 dos países centrais. O termo é, nestes termos, aplicável à que o mesmo Ocidente designa por World Art , uma noção que engloba (…)”a disparate group of makers living and working in so-called developing countries and whose “internationalism” is paradoxically defined essentially by their adherence to localized issues and styles” (…) (Rhodes 2000: 201). O termo, em si, é tão depreciador da arte produzida por actores provenientes ou referidos a contextos culturais diferentes que até a chamada “airport art”, de qualidade marcadamente inferior, é considerada como dela fazendo parte.

A ela são ainda agendadas as actividades e produções artísticas das chamadas “First Nations”, i.e., a arte produzida pelas culturas indígenas em países como os Estados Unidos da América, a Austrália, o Canadá e a Nova Zelândia ( Ibidem : 211) e, por extensão, porque não a arte produzida, nessas condições, no Brasil, na Argentina, no Chile, etc.? Inscrita como Outsider Art é também a arte produzida pelas diásporas pós-coloniais, marcadas, segundo alguns críticos, pela ausência de tradição. Trata-se de uma característica que é, por vezes, imputada à Outsider Art ( Ibidem : 217).

Dificilmente os artistas africanos, atendendo sobretudo ao primeiro (o de World Art ) e ao terceiro sentidos de Outsider Art poderão fugir a tal caracterização ou estigma. E as razões de um tal determinismo radicam, em primeira mão, na relação colonial e, sobretudo, no historial de coisificação e museologização que marcou a recepção da arte africana tradicional nas antigas metrópoles e no mundo ocidental, em geral, constrangimento de que essa arte, não obstante o seu valor de mercado, ainda não se viu livre e, como tal, facilmente se torna extensível aos artistas referidos a contextos de modernidade. Mas o termo é, ou melhor, poderá ser igualmente aplicável a artistas e obras de arte provenientes de outras partes do chamado Terceiro Mundo, como o Brasil 2, não obstante a história do país e a posição, nalguns aspectos hegemónica, do mesmo no sistema mundial.

Pelo exposto se verifica que dificilmente os pintores cabo-verdianos poderão fugir, na sua recepção junto do campo artístico português, ao estigma da Outsider Art , sendo, por sua vez, tal rótulo extensível aos restantes pintores africanos. Caso residam em Portugal, quer os cabo-verdianos, quer os africanos, não deixam os mesmos de integrar essa categoria 3.

Mas o agendamento de Outsider Art em relação aos artistas cabo-verdianos coloca-se com particular dramaticidade pelo facto de a diferença cultural entre os dois países, não obstante as matrizes nacionalistas, não negar uma continuidade estrutural entre os universos culturais em apreço, em que os respectivos campos artísticos poderão ser entendidos, numa perspectiva mais lata, como um único campo. E, assim sendo, a designação de outsider , importando uma diminuição do valor artístico em apreço, torna-se ainda mais cruel para o artista cabo-verdiano, que assim se vê na situação de filho enjeitado.

Em textos anteriores (Venâncio 1996; 2002) tentou-se relevar precisamente esta posição ingrata e dramática dos artistas e, de certa maneira, também dos escritores cabo-verdianos. Procurou-se demonstrar como a não resolução ou dissolução da relação colonial em tempo pós-colonial levava a que os pintores cabo-verdianos, porque impossibilitados de explorar o exótico como alguns dos seus colegas da África continental, se constituíam, no campo artístico português, como concorrentes directos dos seus colegas portugueses e, por essa razão, eram ignorados ou relegados para a margem, que o mesmo será dizer, entendidos como outsiders . E esta situação, como se verifica, não obstante o advento do multiculturalismo, do acentuar das premissas pós-modernas, mantém-se, infelizmente, inalterada.

Uma segunda ordem de factores tem a ver com a própria natureza do mercado artístico português que assume contornos específicos, decorrentes das fragilidades económicas que o país atravessou no passado e que, no presente, não obstante a integração na União Europeia, continuam a fazer-se sentir. O mercado português da arte é, ele próprio, também exíguo e periférico em relação aos outros mercados europeus.

A relação de inferioridade com os mercados e pólos de produção artística da Europa central condicionou, até certa altura, as carreiras dos artistas nacionais e dos demais agentes actuantes no mercado da arte, de que resultou, nomeadamente, um fechamento, mais por insegurança do que por qualquer tipo de xenofobia, em relação ao que é “estranho”, sobretudo quando ele é proveniente de países tidos como menos desenvolvidos. Este sindroma de inferioridade nacional, que se manifestou no mundo cultural até aos anos 80 e que decorreu da «incapacidade de os agentes de enquadramento da criação artística – comentadores e responsáveis institucionais –, no devido tempo, comentarem, difundirem e situarem os trabalhos dos artistas no contexto do que está a ser feito, mostrado, dito e discutido, ao mesmo tempo, a nível internacional» (Melo, 1998: 30), parece estar agora esbatido, devido ao grau de internacionalização que alguns dos artistas portugueses foram paulatinamente conquistando. Esta mudança deveria, em princípio, proporcionar, seguindo uma lógica de contrários, uma maior abertura do campo artístico português a experiências provenientes de espaços menos desenvolvidos. Não é isso, infelizmente, o que acontece. A necessidade de afirmação enquanto país do primeiro mundo, enquanto país europeu, colmatando um passado em que os portugueses nem sempre foram considerados, aos olhos de viajantes e estudiosos dos países centrais do Norte e Centro da Europa, como civilizados (Santos 1994: 133), volta a manifestar-se aqui. Comprova-o, por exemplo, a estratégia expositiva de seis das mais renomadas galerias de arte portuguesas, cuja escolha decorreu de uma análise do estatuto que ocupam no meio artístico português e do impacto que provocam internacionalmente, tendo nomeadamente em conta a sua presença em feiras de arte contemporânea. Não se pretende com isto afirmar a inexistência de outras galerias nacionais que pertençam a este lote, mas como era praticamente impossível analisar todas, procedeu-se à constituição de uma amostra na base dos critérios acima referidos.

As galerias estudadas foram as seguintes: Galeria Cristina Guerra (em Lisboa) 4, a Galeria 111 (em Lisboa e no Porto), a Galeria Pedro Oliveira (no Porto), a Galeria Filomena Soares (em Lisboa), a Galeria Fernando Santos (no Porto) e ainda a Galeria Mário Sequeira (em Braga). No quadro I, observam-se, a título de exemplo do que se pretende demonstrar, as exposições decorridas entre os anos 2002 e 2005 nas Galerias supra mencionadas.

Quadro I – Exposições decorridas, entre os anos 2002 e 2005, em cinco Galerias de Arte portuguesas

   

Galeria 111

     

 

 

Galeria Cristina Guerra

(Lisboa)

 

Lisboa

 

Porto

 

Galeria Filomena Soares

(Lisboa)

 

Galeria Fernando Santos

(Porto)

 

Galeria Mário Sequeira

(Braga)

 

 

 

 

2002

- Pires Vieira

- Noé Sendas

- Joana Rosa

- Lawrence Weiner

- Rui Toscano

- Michael Biberstein

- Filipa César

- Nikias Skapinakis

- Júlio Pomar

- Eduardo Batarda

- Joana Vasconcelos

- Graça Morais

- Urbano

 

- Vítor Pi

- Ruy Leitão

- Miguel Telles da Gama

- António Seguí

- Fátima Mendonça

- Urbano

- Fides Becker

- Pedro Quintas

- Joan Fontcuberta

- Ana Pérez-Quiroga

- Fábio Cardoso

- Ilda David

- Jan Voss

- Exposição colectiva de 12 artistas internacionais (Arman, A.R. Penck, Antoni Tàpies, António Saura, Carmen Calvo, Cisco Jiménez, Jaume Plensa, Jorge Galindo, Julian Schnabel, Markus Lüpertz, Rainer Fetting, Santiago Ydáñez)

- Nikias Skapinakis

- A. R. Penck

- Antoni Tàpies

- Jean-Baptiste Huynh

- João Penalva

- Julian Opie

 

 

 

 

2003

- Julião Sarmento

- João Paulo Feliciano

- Matt Mullican

- Ana Vidigal

- Fátima Mendonça

- Miguel Telles Gama

- Miguel Rebelo

- Paula Rego

- Thomaz Lanelli

 

- Ana Vidigal

- Eduardo Batarda

- Joana Salvador

- Lisa Santos Silva

- Miguel Rebelo

- Günther Förg / António Sena

- Oleg Kulik

- Markus Oehlen / Jorge Rodrigues

- Pedro Gomes

- Nancy Spero e Shirin Neshat

- João Penalva

- Ghada Amer / David Hines

- João Moreno

- René Bertholo

- Georg Baselitz

- Santiago Ydáñez

- Alberto Carneiro

- Julião Sarmento

- Susy Gómez

- José Maria Sicília

- Francis Bacon

- Hans-Christian Schink

- Isabel Muñoz

 

 

2004

- Alexandra Estrela

- Lawrence Weiner

- José Loureiro

- João Onofre

- Michael Biberstein

- Rui Toscano

- Isabelle Faria

- Bartolomeu dos Santos

- Miguel Telles Gama

- Urbano

- Isabel Faria

- Joana Vasconcelos

- Bartolomeu dos Santos

- Graciela Machado

 

 

Informação não disponível

- Nikias Skapinakis

- Valdemar Santos

- Isabel Pavão

- Jorge Galindo

- Luísa Correia Pereira

- Joana Rêgo

 

 

Informação não disponível

 

2005

- Susana Mendes Silva

- Pedro Diniz Reis

- Filipa César

- António Palolo

- Joana Salvador

- De Mário Eloy a Isabelle Faria

Informação não disponível

- Vítor Pomar

Informação não disponível

 

 

 

Verifica-se, o que seria de prever, uma significativa presença de artistas portugueses e, no que respeita à internacionalização, uma clara aposta em pintores que, se não são provenientes de países mais desenvolvidos, têm quase sempre nome feito em mundos da arte que desempenham funções centrais em relação ao português. De África, um continente marcado pelo estigma do subdesenvolvimento, mas onde subsistem fortes laços identitários de matriz portuguesa (nas ex-colónias e não só), nem um nome consta da lista.

Ao estender-se a amostra até 2008, continua a verificar-se, por um lado, uma certa continuidade, nas políticas expositivas, e, por outro, a continuada ausência de pintores africanos, conquanto a Galeria 111 tenha organizado, em 2007, uma exposição individual do pintor angolano António Ole 5. Tal não quer dizer que os artistas africanos, em geral, e os cabo-verdianos, em particular, estejam completamente impossibilitados de divulgação e reconhecimento em Portugal. Por exemplo, obras de Manuel Figueira e Luísa Queirós foram entretanto expostas em Lisboa pela Galeria Perve, uma galeria que, não obstante o seu dinamismo, não pode, pelo menos por enquanto, ombrear, em termos de centralidade, com as galerias da amostra acima tratada. O mesmo é válido para a livraria e galeria Mabooki que, em 2005, expôs Luísa Queirós e que, entretanto, deixou de existir.

Não funcionando o mercado a propósito, alguns organismos oficiais ou oficiosos, como seja a Culturgest, do Grupo da Caixa Geral de Depósitos, têm contribuído para a divulgação e valorização dos artistas provenientes de mercados periféricos, em cujo rol cabem os africanos. Assim é que a Culturgest organizou, em 2004, uma “Mostra de Arte Cabo-Verdiana”, onde Manuel Figueira esteve representado. Nesse mesmo ano organizou uma outra exposição dedicada aos PALOP, em geral, com o título “Mais a Sul. Obras de Artistas de África na Colecção da CGD”. A Secretaria Regional do Turismo e Cultura do Governo Regional da Madeira havia organizado, entretanto, em 1993 uma exposição retrospectiva da obra de Manuel Figueira na cidade do Funchal. O Instituto Camões organizou, por sua vez, em 2006 uma exposição itinerante sobre obras de artistas de Angola, Brasil (apenas os artistas afro-brasileiros), Cabo Verde e Moçambique, onde Manuel Figueira esteve igualmente representado, não acontecendo, porém, o mesmo a Luísa Queirós e Bela Duarte. Reagindo a esta ausência e a algumas fragilidades, senão erros, que o catálogo da exposição continha, as pintoras em causa reagiram, por escrito, junto da presidência do instituto 6.

Iniciativas idênticas – envolvendo, porém, menos meios, servindo-se, como tal, de circuitos paralelos – tiveram, no passado, e continuam, naturalmente, a ter lugar em Portugal, assim como em países europeus, como, de resto, é testemunhado pelos currículos dos pintores em apreço. No âmbito destas iniciativas, vale registar a que resultou, em 2003, em duas exposições de quadros de Manuel Figueira em Mangualde e na Covilhã, uma organização conjunta do Instituto de Ciências Educativas e do Centro de Estudos Sociais da Universidade da Beira Interior.

Qualquer destas iniciativas não contraria, porém, aquela que é a tendência dominante no mercado da arte em Portugal, em função da qual os artistas africanos e, entre eles, os cabo-verdianos, são passíveis, por depreciação, de serem considerados como artistas outsiders . E a título conclusivo , retomando a experiência de Manuel Figueira, poder-se-á, então, dizer que não sendo a quebra entre os mundos da arte em apreço (o português e o cabo-verdiano) estrutural, ela é, sobretudo, intencional, economicista e ideológica. Desentendimentos de ordem cultural e política, passíveis de ser suprimidos com políticas de cooperação adequadas, geram incompatibilidades e bloqueios que resultam, por um lado, no fechamento de uma importante porta para a internacionalização da pintura cabo-verdiana 7 e, por outro, na perda, por parte de Portugal, de uma importante oportunidade para se redimir de um passado conturbado, que o mesmo será dizer, de se encontrar a si próprio.

Fruto desta incompreensão, Manuel Figueira, assim como outros pintores cabo-verdianos e, de certa maneira, africanos (sobretudo quando residentes em Portugal, de cujo rol nos apraz referir, entre outros, Eleutério Sanches, Dília Fraguito, e Chichorro), continuam a ser considerados como outsiders no campo artístico português. Recorreu-se, mesmo que implicitamente, num propósito analítico centrado inicialmente no conceito de Outsider Art , a algumas das premissas da teoria do sistema-mundo, que procurei articular com aquele conceito. Essa articulação permitiu, por um lado, descortinar, com maior profundidade, a importância que a relação colonial continua a ter na constituição dos cânones artísticos dominantes nas ex-metrópoles e, no mundo ocidental em geral, e, por outro, evidenciar o lugar específico destinado a Portugal nesse processo de legitimação estética. O mundo da arte português confronta-se, pois, com uma outra particularidade, que não tem sido menos significativa na apreciação, em termos estéticos, do Outro pós-colonial: a sua própria periferização em relação aos mundos da arte da Europa Central e do Norte e dos Estados Unidos da América. Portugal continua a almejar um reconhecimento por parte dos países centrais no sistema-mundo, esquecendo-se que esse desiderato, que se consubstanciará na sua afirmação enquanto interlocutor indispensável na cena internacional, passa, afinal, pela apropriação e valorização da sua especificidade histórica e cultural, onde se inscrevem, para o bem e para o mal, as relações colonial e pós-colonial. Se a primeira é passado, a segunda, em consonância com o mal causado por aquela, urge normalização e potenciação.

Notas

* Professor Catedrático da Universidade da Beira Interior, Professor Visitante das Universidades de Macau (Departamento de Estudos Portugueses) e Salamanca (Instituto de Estúdios de Iberoamérica). Livros: Literatura e poder na África lusófona (Lisboa: ICALP 1992), A economia de Luanda e hinterland no século XVIII. Um estudo de Sociologia Histórica (Lisboa: Estampa 1996), jcvenancio@sapo.pt

** Licenciado pela Universidade da Beira Interior (Portugal) em Sociologia no ano de 2002, foi mestrando no curso de Comunicação, Cultura e Tecnologias das Informação, no ISCTE (Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa) entre 2004 e 2006. Capítulo de livro “O intelectual, a motivação artística e o terrorismo”, do livro Terrorismo (Coimbra: Almedina, 2004: 163 – 285), sob a coordenação do Professor Adriano Moreira. Actualmente, João Pedro Silva é fotógrafo freelancer. joaopedrossilva@gmail.com

1 No sentido que Howard Becker (1982; 2004) dá ao termo, entendendo-o como um espaço onde, na base de uma divisão de trabalho, da cooperação entre os actores envolvidos no processo e do estabelecimento e aceitação de convenções, se inscreve e se valida a produção artística. “Works of art, from this point of view, are not the products of individual makers, ‘artists' who possess a rare and special gift. They are, rather, joint products of all the people who cooperate via an art world's characteristic conventions to bring works like that into existence” (1982: 35) É, por conseguinte, um conceito equivalente ao de campo artístico de extracção bourdiana. Assiste-se em ambos os conceitos, por um lado, à dessacralização do acto artístico e, por outro, ao destaque da interacção na produção e definição do que é arte.

2 Sobre a depreciação que os artistas e a arte brasileira são sujeitos nas instâncias de valorização dominantes do Ocidente (Cf. Fialho 2005; Rato 2008). Esta relação de depreciação não se coloca propriamente ao mundo da arte português, como se verifica, aliás, nas estratégias expositivas das galerias portuguesas mais renomeadas, por duas razões essencialmente: pelo fascínio que o mundo brasileiro, artístico e não só, desempenha junto do imaginário português e ainda pelo facto de o próprio mundo da arte português ser periférico em relação aos dos países centrais.

3 No pressuposto de que estão afastados do ambiente artístico dos seus países de origem, onde poderão valer igualmente como outsiders e que estão próximos da mundividência cultural da sociedade de acolhimento. Prevalece, por conseguinte, uma lógica de inclusão, conquanto marcada pelo estigma da inferioridade. A sua situação não é, no essencial, diferente da dos artistas afro-americanos, também eles outsiders, mas, com o advento do pós-modernismo, a aproximarem-se do centro, ou seja, do cânon dominante (Cf. Zolberg 1997).

4 De referir, por exemplo, que Cristina Guerra foi a representante portuguesa no comité de selecção na feira ARCO de Madrid, em 2008. Substituiu, nessas funções, Pedro Oliveira, cuja galeria foi igualmente alvo do presente estudo.

5 De referir, a título de curiosidade, que os artistas lusófonos têm passado relativamente ao lado da Dak'Art (Bienal de Arte Africana Contemporânea), a mostra de arte africana contemporânea mais importante no continente. Sedeada em Dacar (Senegal), teve a mesma o seu início em 1990 e surgiu, em muito, influenciada pelos propósitos da Negritude e do Pan-africanismo.

6 Informação colhida em carta que a pintora Luísa Queirós me endereçou, datada de 1 de Setembro de 2006.

7 Não quer tal dizer que os pintores cabo-verdianos não tenham outras portas abertas para a sua internacionalização. As várias exposições em que Manuel Figueira, para citar o pintor sobre o qual incidiu a nossa atenção, participou em Paris, Amiens, Viena, Washington e Barcelona são prova disso.

Bibliografia

BECKER, Howard S., (1982). Art Worlds , Berkeley : University of California Press

BECKER, Howard S. “A New Art Form: Hypertext Fiction”.

http://home.earthlink.net/~hsbecker/articles/lisbon.html (consultado em 03/04/2010)

FIALHO, Ana Leticia, (2005). “As exposições internacionais de arte brasileira: discursos, práticas e interesses em jogo”. In Sociedade e Estado , vol.20, nº. 3: 689-713

FIGUEIRA, Manuel Bonaparte (1968). Narrativas e contos cabo-verdianos , Lisboa (?): Edição do autor

KASFIR, Sidney Littlefield, (1999). Contemporary African Art , Londres: Thames & Hudson

LUIG, Ute e Achim von OPPEN, (1997). “Landscape in Africa : Process and vision. An introductory essay”. In Paideuma , nº. 43: 7-45

MELO, Alexandre, (1998). Artes plásticas em Portugal: dos anos 70 aos nossos dias , Lisboa: Difel

RATO, Vanessa, (2008). “Arco 2008. Ano verde e amarelo”, In Público , 14 de Fevereiro

RHODES, Colin, (2000). Outsider Art. Spontaneous Alternatives , Londres: Thames & Hudson

SANTOS , Boaventura S., (1994) [1994]. Pela mão de Alice. O social e o político na pós modernidade, Porto: Afrontamento

VENÂNCIO, José Carlos, (1996). Colonialismo, antropologia e lusofonias. Repensando a presença portuguesa nos trópicos , Lisboa: Vega

VENÂNCIO, José Carlos, (2002). “Produção cultural e mercados. A experiência de alguns pintores cabo-verdianos”. In GONÇALVES A. Custódio (Coord.) (2002). África subsariana. Globalização e contextos locais . Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto: 45-66

ZOLBERG, Vera L. e Joni Maya CHERBO (Ed.), (1997). Outsider art. Contesting boundaries in contemporary culture , Cambridge : Cambridge University Press

ZOLBERG, Vera L., (1997). “African legacies, American realities: art and artists on the edge”, in ZOLBERG e CHERBO (1997): 53-70

REVISTA VEJA, “A Crise é dos Jornais – e Não do Jornalismo”. São Paulo, edição 2117, 17 de jun. 2009 .


Download versão .pdf

 
 
 
Direitos Reservados Neamp, 2008. Desenvolvido por Syntia Alves e J.M.P.Alves. Versão html - Gustavo Araújo