Sumário
 
 
Reconstruindo Cajueiro Seco
Arquitetura, política social e cultura popular em Pernambuco
(1960 – 1964)

Diego Bis*


Resumo :

O artigo trata da experiência habitacional do Cajueiro Seco, realizada em Pernambuco durante o governo Miguel Arraes, entre 1963 e 1964, interrompida pelo golpe militar. Freqüentemente considerada um paradigma nacional de participação popular e aproximação entre o moderno e o vernacular na arquitetura, a experiência foi analisada como parte da história social, política e cultural do período na dissertação de mestrado recentemente defendida na FAU USP, sob orientação do Prof. José Tavares Correia de Lira. Em breve, a dissertação integral será editada pela Editora Annablume. O artigo que ora se propõe é produto desta pesquisa e enfoca o significado desta experiência como comunidade modelo para o assentamento das populações oriundas do campo que ocupam a franja da metrópole recifense, especialmente nos anos 1950 e 1960.
Neste texto, procuramos relacionar o episódio local com as discussões do período sobre habitação e reforma urbana em congressos de arquitetos, para inserir a experiência no âmbito das propostas e realizações em pauta no Brasil e América Latina. Situa a experiência em meio aos debates políticos e culturais contemporâneos acerca do desenvolvimento e subdesenvolvimento nacionais, a Aliança para o Progresso de Kennedy, as Reformas de Base do período João Goulart, a atuação da SUDENE, os movimentos sociais urbanos e rurais, a Frente do Recife e o Movimento de Cultura Popular em Pernambuco, buscando inserir a experiência no seu tempo e lugar e romper com o isolamento que se eternizou nas leituras feitas sobre Cajueiro Seco, especialmente depois de 1964. Ao mapear os atores envolvidos na formulação, concretização e interrupção da experiência, ultrapassa-se as referências autorais do projeto da taipa pré-fabricada, de modo a repensar o lugar dos processos coletivos na construção dos territórios populares.
Palavras-Chave: Arquitetura moderna, Política social, Habitação, ajuda mútua, Pré-fabricação, Taipa, Cultura popular, Pernambuco,SUDENE, década de 1960 no Brasil.

Abstract: The article deals with the housing experience of Cajueiro Seco, conducted in Pernambuco during President Miguel Arraes, between 1963 and 1964, interrupted by military coup.  Often regarded as a national paradigm of popular participation and closeness between the modern and the vernacular architecture, the experience was reviewed as part of social history, political and cultural period of the master's thesis developed at FAU USP under the guidance of Prof. José Tavares Correia de Lira. Soon, the full dissertation will be published as a book by Editora Annablume.  The article is now proposed is the product of this research and focuses on the significance of this experience as a model community for the settlement of populations from the countryside who occupy the fringe of metropolitan Recife, especially in the 1950s and 1960s.
In this paper, we try to relate the incident site with discussions of the period on housing and urban reform in congress of architects, to include experience in the proposals and accomplishments on the agenda in Brazil and Latin America.  Experience lies in the midst of contemporary cultural and political debates about national development and underdevelopment, the Alliance for Progress, Kennedy's core reform period Joao Goulart, the performance of SUDENE, social movements, urban and rural areas, the Front Recife and the Popular Culture Movement in Pernambuco, seeking to enter the experience of its time and place and break the isolation that was immortalized in the readings made on Cajueiro Seco, especially after 1964.  By mapping the actors involved in the formulation, implementation and termination of the experiment, beyond references to copyright the design of the mud pre-fabricated in order to rethink the place of collective processes in the construction of territories popular.
Key Words: Modern Architecture, Social Policy, Housing, reciprocal help, pre-fabrication, Taipa, Popular Culture, Pernambuco, SUDENE, 1960 in Brazil.


Apresentação

O presente artigo discute os movimentos sociais, a integração do Nordeste no panorama geopolítico e a cultura e o desenvolvimento da região, enfocando o contexto político e social sobre o qual se desenvolveu uma experiência arquitetônica ímpar no campo da habitação social. Normalmente analisada a partir do restrito prisma da história da arquitetura moderna e dentro dela entendida como um momento de crise e emblema da busca de novos caminhos que passam pelo popular e pelo vernacular, a experiência de Cajueiro Seco fornece elementos e informações que ajudam a compor um amplo quadro da situação pernambucana e brasileira dos anos 1960, tempo no qual se formulavam diversas alternativas e projetos para um país que poderia ter sido e não foi, obstado pelo golpe militar, que se abateu com intensa força sobre o Nordeste e suas esperanças.

 

1 - a rquitetura, h abitação e p olítica nos anos 1960

Para entender uma experiência paradigmática como a do Cajueiro Seco dentro do campo da arquitetura é importante ter em mente um panorama de experiências habitacionais contemporâneas que propuseram a participação do usuário, atentando para suas sintonias, especificidades e especialmente, suas relações com os contextos políticos e sociais. A ideia de auto-ajuda foi, nos anos 1960 e 70, mobilizada por arquitetos e políticos de diversas tendências e ideologias em discursos distintos, promovendo realizações díspares e heterogêneas. Algumas permanências e ecos retóricos permanecem, criando uma imagem mítica da participação popular na obra de arquitetura. Como base para o entendimento das propostas e críticas colocadas pela experiência do Cajueiro Seco, devemos ter em conta a trajetória de gestação da política habitacional brasileira, marcada pela atuação dos Institutos de Aposentadoria e Pensão (IAPs) e a produção de conjuntos admiravelmente modernos nas grandes cidades e a guinada representada pelo advento da Fundação da Casa Popular (FCP), analisadas por Bonduki, 1998 e Mello, 1991.

Para além da crise do movimento moderno e suas propostas funcionalistas reunidas em torno dos Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna (CIAMs) e das realizações habitacionais européias do pós-guerra, devemos considerar experiências que postulavam habitação social com diálogo com as comunidades e a autogestão. As brigadas de autoconstrução em Cuba foram uma resposta ao compromisso com a moradia popular assumido pela Revolução e lograram, de certa maneira, desenvolver experimentos construtivos inovadores, dentro de um sistema de (sobre) trabalho praticamente convencional. As pesquisas e recomendações do inglês John Turner junto ao BID que tiveram como base suas leituras das dinâmicas dos bairros populares latinoamericanos constituíram referência por décadas no imaginário dos arquitetos engajados e, curiosamente, nas agendas dos Bancos Internacionais de Desenvolvimento, notoriamente controlados pelo governo norteamericano. O conjunto PREVI, parcialmente edificado em Lima, é resultado deste envolvimento e recomendações; os projetos foram selecionados por concurso internacional ao qual acorreram diversos arquitetos como Charles Correa, James Stirling, Aldo Van Eyck e Candilis e Woods. Um fato político ajuda entender as condições para o PREVI: a eleição do arquiteto Fernando Belaunde Terry para a presidência do Peru em 1963.

No Uruguai, a partir dos anos 1960, também se desenvolveram práticas de participação popular que se tornariam referência, especialmente para os mutirões brasileiros, através das cooperativas de vivienda organizadas pela FUCVAM. Tal fenômeno, que logrou construir proporcionalmente muito e resolver grande parte do deficit habitacional, só pode ser compreendido se temos em conta a tradição sindical daquele país, para além da valorização da profissão do arquiteto (Baravelli, 2006).

No Brasil, elegemos como marco de um novo tipo de envolvimento dos arquitetos e intelectuais com o povo, sob o signo da participação, a experiência pioneira da fábrica de móveis autogestionária Unilabor (Claro, 2004), organizada ainda nos anos 1950 a partir da conjunção das vertentes progressistas da igreja, de artistas e arquitetos como Geraldo de Barros, Alexandre Wollner, Volpi e Flávio Império e dos moradores do Ipiranga, em São Paulo. A experiência do Movimento Universitário de Desfavelamento (MUD), que atuou na remoção das favelas do Canindé e Vergueiro, também deve ser incluída neste panorama, já que envolveu estudantes de arquitetura (como Paulo Bruna e Marta Tanaka), setores da Igreja e da sociedade civil na solução dos problemas imediatos da moradia popular, embora não tenha produzido experimentação arquitetônica além do projeto para Jandira-SP. O trabalho de Carlos Nelson Ferreira dos Santos junto à comunidade de Brás de Pina, no Rio de Janeiro, deve ser destacado aqui, como um momento de redefinição do papel do arquiteto e proposição de novas práticas e encargos para o profissional, como as propostas e críticas do grupo Arquitetura Nova, composto por Império, Sérgio Ferro e Rodrigo Lefevre.

A experiência das Serviço Ambulatorial de Apoio Local (SAAL) em Portugal fecha o panorama de envolvimento dos arquitetos com a problemática da habitação social e participação deles na vida política. Embora ocorrida já nos anos 1970 e em contexto distinto do latinoamericano, no processo SAAL fica evidente o engajamento dos arquitetos modernos no processo de transformação do país e superação do subdesenvolvimento que se processava com a Revolução dos Cravos (1974). Tal experiência encerra um ciclo de propostas em torno da relação entre o habitat e as culturas locais, que se coloca na Europa no fim dos CIAMs, é vivenciada na América Latina e África e volta à Europa, convertendo as regiões subdesenvolvidas em lugares primordiais para o desenvolvimento de uma arquitetura social que recolocava o seu papel na sociedade.

É importante também considerar alguns eventos nos quais notícias da experiência do Cajueiro Seco compareceram como significativos do “estado da arte” do debate que, no início dos conturbados anos 1960, travaram os arquitetos sobre a habitação, o mundo subdesenvolvido e o função social do arquiteto. As resoluções do Seminário de Habitação e Reforma Urbana (SHRu), realizado em 1963 no Rio e em São Paulo, evidenciam o engajamento dos arquitetos nestes anos, através do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), que neste momento ativamente participava da discussão dos rumos da profissão e da questão da habitação social como nunca. Neste documento, que serviu como base para a elaboração de um projeto de lei para a Reforma Urbana, redigido pelo arquiteto e deputado federal pernambucano Artur Lima Cavalcanti, Cajueiro Seco é apresentado como projeto piloto para uma nova política habitacional.

No Congresso da União Internacional dos Arquitetos celebrado em Havana no mesmo ano (1963), o tema principal é a arquitetura e o subdesenvolvimento, aproximando os países latinoamericanos do bloco socialista, que neste momento investia pesadamente em habitação. Em ambos os eventos houve participação dos arquitetos pernambucanos como Acácio Gil Borsoi, Gildo Guerra e Geraldo Gomes, entre outros, que levaram desenhos, planos e uma maquete da experiência que estava sendo desenvolvida em Cajueiro Seco. O interesse dos participantes destes eventos 1 pela ainda incipiente experiência evidencia a inserção da arquitetura pernambucana nos debates e questões característicos dos anos 1960 e explica em parte a grande repercussão de um projeto que seria abortado pelo golpe militar de 1964. São frequentes as mençôes à Cajueiro Seco na historiografia da arquitetura ( Segawa, Bruand, Fischer ) , sempre reiterando sua excepcionalidade, sua interrupção e nunca relacionando-a com seu contexto ou debruçando-se sobre suas particularidades, inscrevendo-a na categoria histórica de mito.

 

2 – A emergência do popular na política e na cultura

O contexto pernambucano dos anos 1960 é tão rico em elementos que iluminam experiências como o Cajueiro Seco e outras análogas quanto mal estudado e discutido. Há espaço aqui somente para provocar a curiosidade do interessado sobre um dos mais férteis espaços e tempos da cultura e da política brasileira.

Precisamos ter em conta o lugar que ocupava Pernambuco e o Recife na situação geopolítica naquele momento. O poder na então terceira maior cidade do Brasil vinha sendo progressivamente conquistado pela Frente do Recife, uma coalisão de esquerda encabeçada pelo Partido Comunista, que contava também com os socialistas e trabalhistas, aliando-se inicialmente à setores mais tradicionais da política pernambucana. As raízes deste movimento amplo da esquerda remontam os anos iniciais do Partido Comunista Brasileiro, que ali teve algumas figuras notáveis como Gregório Bezerra e Christiano Cordeiro, representando uma força política significativa em Pernambuco, procurando contrapor-se ao poder dos engenhos e das oligarquias. Uma etapa importante para o desenvolvimento da Frente do Recife deu-se em 1947 com a restauração do direito ao voto depois do Estado Novo, momento no qual a coalisão começa a se configurar como tal. A trajetória da Frente, ganhando independência, poder e prestígio nos leva à 1963, ano da posse de Miguel Arraes como governador do estado e da eleição do engenheiro Pelópidas Silveira como prefeito mais uma vez.

Tal inclinação progressiva à esquerda preocupava os setores tradicionais da política pernambucana e brasileira e despertava a atenção internacional para aquela que era a região estigmatizada pelo atraso e pelo subdesenvolvimento. Kennedy tinha receio que a crescente tensão social e as transformações que se processavam na região menos desenvolvida do hemisfério propiciassem as condições para a vitória de uma revolução socialista inspirada na cubana. A “Síndrome de Cuba” 2 inscrevia o Recife em um tênue equilíbrio entre Havana e o mundo livre e a Aliança para o Progresso foi a resposta imediata à esta preocupação.

A atuação das Ligas Camponesas, com o apoio do advogado e deputado Francisco Julião, ajudava a criar nos setores conservadores a ideia de que em Pernambuco estaria se processando uma revolução socialista, cujo primeiro passo seria a reforma agrária ( Callado, 1964).

A “intervenção silenciosa” promovida pela Aliança para o Progresso através da USAID sob a forma de cooperação internacional nos campos da habitação, saúde e educação, foi uma clara tentantiva de afastar o povo da sedução comunista ( Santiago, 2006 ). A estratégia passava por minar o poder do Estado governado por Arraes, concorrendo com os serviços públicos estaduais, financiando organizações paraestatais como o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), através de assistencialismo barato. A igreja também tinha um papel fundamental nestas tensões, sendo aliciada pelos americanos através de figuras ambíguas e concorrendo com os comunistas na organização de sindicatos e federações de trabalhadores rurais.

Não por acaso foi de Pernambuco que partiu a reação à tal interferência. Logo que sobe ao poder, Arraes determina a criação de um Grupo de Trabalho para analisar os convênios feitos sob a rubrica do “Acordo do Nordeste”, que chega à conclusões alarmantes: as verbas estavam sendo direcionadas aos governadores ligados à UDN, favorecendo os políticos da oposição ao governo Jango afinados com a ideologia anticomunista americana, afrontando a livre determinação e a soberania nacional e buscando interferir na eleição presidencial de 1965, que nunca se realizou.

Tais tensões estão inscritas no breve e conturbado governo João Goulart, empenhado na concretização das reformas de base, entre elas a reforma agrária e a urbana. Talvez no Recife fosse mais evidente a expressão da necessidade de tais reformas; a “Veneza americana” do começo do século XX havia convertido-se na “mucambópolis” (Melo 1978) , flertando com a idéia de “metrópole regional” e atraindo enormes contingentes migratórios que inchavam a cidade. Concomitante ao florescimento da arquitetura moderna pernambucana nos anos 1950 e 60, 2/3 da população recifense vivia nos mocambos.

Uma iniciativa em particular da administração de Arraes e da Frente do Recife que deve ser analisada é o Movimento de Cultura Popular (MCP). Criado ainda durante o mandato de Arraes como prefeito do Recife, o MCP ganhou importância e significado com o apoio e colaboração de diversos artistas e intelectuais como Paulo Freire, Abelardo da Hora e Germano Coelho, entre outros. Durante sua curta existência, o MCP atuou na alfabetização infantil e adulta e na “elevação do nível cultural” da população, inovando em linguagens e pedagogias que tinham por princípio a participação popular como ferramenta para sua autonomia, dentro de uma nova aliança dos intelectuais com o povo (Schwarz, 1987).

O documentário “Cabra marcado para morrer”, iniciado por Eduardo Coutinho com o apoio do CPC da UNE e do MCP e finalizado nos anos 1980 é um eficiente atalho para o ambiente cultural e político da época. É também uma experiência análoga à do Cajueiro Seco, levantando questões para a sociedade brasileira que permaneceram sem respostas por décadas.

Também a atuação da SUDENE em seus anos iniciais, regida pelos dois primeiros planos diretores e sob a pragmática condução de Celso Furtado, dá o tom das possibilidades e esperanças que estavam naquele momento canalizadas no Nordeste.

 

3 – Habitação e urbanização no Grande Recife

A trajetória do órgão habitacional do Estado, o Serviço Social contra o Mocambo (SSCM), precisa ser analisada para entender a reviravolta nas políticas públicas de habitação propostas durante o governo Arraes. Fundado em 1939 como organização da sociedade civil pelo interventor federal do Estado Novo Agamenon Magalhães, as determinações da Liga Social contra o Mocambo eram claras: limpar o Recife da “tinta grossa do borrão da miséria” 3 - os mocambos. A principal atribuição do órgão no seu período inicial era destruí-los, deixando o grosso da produção de novas unidades por conta das carteiras prediais dos Institutos de Aposentadoria e Pensão, direcionada aos cidadãos já integrados na sociedade de classes e filiados aos IAPs. A atuação da Liga, embora numericamente discreta, chamava a atenção do governo federal, ao construir vilas organizadas por categoria de trabalho informal, as famigeradas Vilas das Lavadeiras, dos Contínuos, dos Marítimos. Só com a transformação da Liga em autarquia estadual integrada ao sistema de companhias de habitação em 1945 é que se intensificou a produção de novas unidades, que também tinham como “clientes” a pequena classe média, afastando o morador de mocambo. Com a posse do governo Arraes, a presidência do SSCM é ocupada por Gildo Guerra, formado nas primeiras turmas da Faculdade de Arquitetura da Universidade do Recife, que redireciona a atuação do órgão para a população marginalizada, propondo a “Política Social do Mocambo” 4, cujo ponto fundamental era o apoio à integração das comunidades à sociedade e à cidade formal. Cajueiro Seco seria o primeiro projeto piloto desta política, entendendo o mocambo como sintoma do desequilíbrio e não como o problema a ser combatido. A fixação dos “invasores” dos Montes Guararapes em local próximo serviria como ponto de partida para a integração daquela população à sociedade.

O processo que registra as etapas da “invasão” dos Montes Guararapes disponível na sede regional do IPHAN ilumina as dinâmicas de produção dos territórios populares na cidade do Recife. Ali está registrada a disputa entre a Igreja e o patrimônio, representado ativamente pelo Engenheiro Airton Carvalho, colega de turma de Pelópidas Silveira e Antônio Baltar, pela capela de Nossa senhora dos Prazeres e seu entorno, símbolos da vitória sobre o invasor holandês. A partir dos anos 1950, preocupados com a habitação dos pobres, o uso social da propriedade e os crescentes impostos que incidiam sobre a gleba, os monges beneditinos acham por bem lotear as terras adjacentes à Capela, sobre as quais estavam sendo construídas dezenas de mocambos. A Diretoria Regional do SPHAN passa a buscar meios de proteger o patrimônio arquitetônico e paisagístico do sítio, sem que houvesse ainda amparo legal para tal, já que a área só foi tombada e convertida no Parque Histórico Nacional dos Guararapes posteriormente, nos anos 1970. A imprensa foi o principal canal de denúncia da invasão, deflagrando um debate público emblemático, no qual a DPHAN contrapõe-se à Ordem de São Bento e à políticos populistas que usavam de seu prestigío e mandatos para garantir a permanência dos “invasores”, já que muitas vezes eram eles que se beneficiavam da exploração econômica dos assentamentos 5.

Devemos também analisar a experiência de Cajueiro Seco à luz da sua inserção urbana, comparada ao plano para a Grande Recife elaborado pelo Engenheiro e professor Antônio Bezerra Baltar em 1951. Observador atento das principais experiências e debates internacionais, Baltar tem como referência fundamental no seu plano o urbanismo moderno e as então recentes experiências das “New Towns” inglesas, cujo ato inaugural é de 1947. Baltar propõe a criação de uma região metropolitana (a Grande Recife) e de cidades satélites, uma delas nos territórios onde se realizaria, uma década mais tarde, a experiência do Cajueiro Seco.

Tal proposta encontra eco nas políticas habitacionais levadas a cabo pelo prefeito Pelópidas Silveira em seu segundo mandato à frente da prefeitura do Recife (1955-59), que determina a compra e desapropriação áreas nos subúrbios recifenses para serem loteadas, dotadas de infraestrutura e cedidas aos moradores dos mocambos, oferecendo condições desenvolvimento e autonomia em relação ao núcleo central da cidade (Pontual, 2001). Aqui estão pistas para o entendimento da radicalidade da proposta experimentada em Cajueiro Seco: a inversão de prioridades dos investimentos públicos, agora direcionados às periferias, onde se estimulava a participação popular através das associações de bairros.

O Plano habitacional elaborado pelo Governo de Pernambuco em 1962, portanto no ocaso do governo Cid Sampaio é outro importante documento para entendermos a experiência de Cajueiro Seco. Há ali um diagnóstico preciso da situação habitacional, constatando sua extrema gravidade e características e as propostas para seu enfrentamento, parte delas baseada na “cooperação internacional” norteamericana através da USAID. É importante lembrar que este documento, publicado no fim do governo que precede Arraes, serviria como termo de referência para o empréstimo do governo norteamericano que então se pleiteava através do Acordo do Nordeste. Nele existem expressas recomendações e referências à auto-ajuda como forma de prover habitação aos moradores dos mocambos, tendo como modelos os mutirões de Porto Rico. O desenvolvimento e fixação dos núcleos precários de mocambo estava previsto como uma das linhas de intervenção na questão habitacional, juntamente com a produção de unidades como as dos conjuntos Alto Jordão e Ibura, o que nos remete a uma questão central: qual seria então a novidade apresentada pela proposta de Cajueiro Seco? Talvez a inversão da lógica de privilégio dos mais ricos, talvez o montante de recursos alocados para os moradores de mocambos e o entendimento do mocambo como sintoma saudável da resistência popular, talvez o estímulo à participação e autodeterminação ou possivelmente a conjunção destes fatores, apresentados com algum alarde como uma experiência piloto de uma política habitacional que poderia extrapolar Pernambuco e alterar o rumo do desastre das grandes cidades brasileiras.

 

4 – Cajueiro Seco: O projeto, as realizações e seus desdobramentos

4.1_ O Plano para o Cajueiro Seco e a reforma urbana

Um aspecto do projeto para Cajueiro Seco que deve ser analisado é plano urbanístico, já que foi elaborado anteriormente ao célebre sistema construtivo préfabricado em taipa, o que revela uma ênfase dada ao projeto urbano, chave importante de entendimento dos significados contemporâneos e atuais da experiência, assim como a discrepância entre eles, o que nos diz muito sobre a própria historiografia da arquitetura moderna brasileira.

Os jornais da época são uma importante fonte documental para estes entendimentos. Tanto nos jornais representativos das oligarquias locais (o Diário de Pernambuco de Assis Chateaubriand e o Jornal do Commercio dos Pessoa de Queirós) quanto nos veículos de suporte do Governo Arraes (a Última Hora de Samuel Wainer) e ao Partido Comunista (como a Folha do Povo/ A Hora, onde escreviam Davi Capistrano e Paulo Cavalcanti) são publicadas diversas matérias que comentam a experiência. É sintomático que nos jornais de esquerda, a experiência apareça como consequência do governo Arraes, através do arquiteto Gildo Guerra, enquanto os jornais ligados às forças conservadoras exaltem a autoria de Acácio Gil Borsoi, que aparecia em suas páginas frequentemente por conta de seus outros projetos públicos e comerciais.

Em entrevistas e nas memórias do projeto, Borsoi usa reiteradamente o termo “Super Quadra” para explicar o módulo que dá origem ao plano do assentamento. Tal referência direta à experiência ainda recente de Brasília causa certa estranheza: nada mais díspare dos apartamentos modernos sobre pilotis imersos em grandes áreas verdes do que os lotes individuais sobre os quais se construíriam os novos mocambos de Cajueiro Seco. Retoricamente, se conectam as duas pontas do processo de urbanização brasileiro. Tal referência pode ser melhor compreendida se temos em mente o conceito de Unidade de vizinhança, tal qual formulado por Mumford, aplicado nas New Towns inglesas e referido diretamente por Baltar em seu plano para o Grande Recife. Trata-se de uma formalização possível do núcleo urbano relativamente autônomo, dotado de equipamentos coletivos a distâncias que podem ser percorridas a pé por seus moradores, livre do tráfego pesado. Avançando neste sentido e observando atentamente a localização de Cajueiro Seco comparada ao organograma funcional do Recife proposto por Baltar, podemos concluir que tratava-se do embrião de uma das cidades satélites propostas, que receberia a população oriunda do campo que rapidamente se urbanizava.

Não se pode deixar de notar que, na época, o aspecto que mais interessava ao público em geral era o projeto urbano de Cajueiro Seco. Analisando os desenhos, documentos e textos que o explicam, percebemos que nele estava contido, para além de um planejamento físico, uma proposta de inserção de uma comunidade marginal à Grande Recife, onde, mais importante do que as unidades habitacionais em si, eram os equipamentos comunitários e as dinâmicas de fixação da população ao território e desenvolvimento do grupo humano. Tais abordagens encontram eco não só no programa de habitação do estado mas também no projeto de lei para criação da Superintendência de Reforma Urbana (SUPURB), produto do SHRu redigido pelo deputado federal e arquiteto pernambucano Artur Lima Cavalcanti. Guerra e Cavalcanti haviam sido sócios numa empresa de projetos e construções, além de companheiros de militância desde os tempos de faculdade, o que acaba por nos dar alguma segurança para supor que haviam outros arquitetos e outras instâncias envolvidas no projeto de Cajueiro Seco, para além de Borsoi. Muito mais que um projeto autoral, parece tratar-se de um projeto coletivo.

4.2 _O projeto da taipa pré-fabricada

O mocambo como tipologia ocupava, desde os anos 20, lugar central no imaginário, na paisagem e nos debates em torno do problema habitacional em Pernambuco. Jornais das mais variadas tendências políticas estampavam em suas páginas imagens de zonas de mocambos recifenses, condenando o seu absurdo em termos de condições de vida. As explicações e causas do problema é que eram divergentes, em função da abordagem: se para uns eles representavam simplesmente falta de construções em comparação com o aumento da população, para outros eles eram a representação e sintoma de uma estrutura produtiva e fundiária obsoleta; eram a contrapartida urbana do latifúndio monocultor que expulsava continuamente populações do campo que tomavam o rumo da cidade. Havia uma tradição de defensores dos mocambos como habitação econômica e ecologicamente adaptada. Gilberto Freyre, em Mocambos do Nordeste expõe esta tese, que se coaduna com os escritos do médico Aluízio Bezerra Coutinho no sentido de recomendar o mocambo higienizado como uma solução real para o problema da habitação popular.O médico e geógrafo pernambucano Josué de Castro também é um intelectual que vai escrever sobre as virtudes do mocambo, ressalvadas suas divergências com Freyre, vendo nele o emblema da resistência popular contra as condições de trabalho e acesso a terra dominadas pelo latifúndio, “era um problema [da cidade] cujas raízes podiam ser encontradas no campo” ( Lira , 1997, p.67) Assim, não é estranho que houvesse entre os arquitetos uma pesquisa no sentido de partir das técnicas vernaculares e da tipologia mais comum nos bairros populares objetivando uma proposta realista para a intervenção do Governo popular de Arraes no campo da habitação social.

O próprio Borsoi, em entrevista, relativiza a importância do projeto meramente arquitetônico: “ No Cajueiro Seco, a préfabricação não era importante. (…) Eu sempre achei secundário. O importante era proporcionar um agenciamento populacional capaz de modificar um processo” 6

Mais importante do que discutir a autoria do projeto, que já estava retoricamente formulado há anos é entender a recepção e interpretação da experiência. Depois do golpe de 1964, parece ter havido um desvio no significado geral do que foi Cajueiro Seco, que enfatiza seus aspectos construtivos em detrimento de sua radicalidade enquanto projeto político e social. Tal desvio se depreende das páginas da revista Arquitetura, órgão de comunicação oficial do IAB, que em 1965 dedica um número especial à préfabricação, no qual há destaque para a experiência da taipa, sendo que até o golpe Cajueiro Seco era o principal emblema de uma nova política habitacional e uma nova atitude dos arquitetos para com os moradores. A partir daí, salvo algumas exceções, como os artigos “Ao limite da casa popular”, escrito por Lina Bo Bardi e publicado na Mirante das Artes em 1967 e “Mocambo no Recife”, publicado na Ou… em 1971, uma interpretação apaziguada e empobrecida preponderará, segundo a qual Cajueiro Seco foi um projeto de um sistema construtivo em taipa que, por ter sido descontinuado pelo regime militar, não pode ser discutido.

4.3 Cajueiro seco hoje

Do ponto de vista especial, poucas são as características que diferenciam o bairro popular que hoje tem o nome de Cajueiro Seco de tantas outras periferias e subúrbios recifenses e brasileiros, exceção feita talvez ao notável alinhamento e regularidade de suas ruas e quadras. Algumas casas ainda guardam as feições daquelas elementares casas de taipa propostas inicialmente, mas podemos perceber que nada resta do material original, como já havia sido previsto pelos arquitetos e técnicos do Serviço Social do Mocambo, cientes do preconceito que grande parte da população brasileira tem com a técnica e com a pobreza que denota. São diversas as casas nas quais se pode notar a melhoria de condições econômicas das famílias que ali vivem, perceptível através dos vários andares construídos sobre o lote, construções frequentemente revestidas das mais variadas cerâmicas e acabamentos. Não se pode daí, no entanto, concluir que isto representa um desenvolvimento da comunidade como um coletivo, na medida em que tudo parece ter sido feito na base do “cada um por si”, a livre iniciativa em grau zero. Faltam instâncias de sociabilidade de comunidade, como uma associação que represente o bairro. É claro que devemos sempre ter em mente os traumas e impactos advindos da intervenção militar que se deu no bairro e nas associações, na esteira do golpe de 1964. Para os militares, agentes de segurança e cidadãos envolvidos com as forças conservadoras que tomaram o poder, Cajueiro Seco era um emblema da “comunização” que se processava em Pernambuco sob auspício do governo Arraes e por isso tudo o que se processava ali deveria ser imediatamente combatido e reprimido.

 

À guisa de conclusão

Fundada na “ admiração e reconhecimento civilizado na luta dos pobres” ( Schwarz , 1987, p.71-72), a experiência de Cajueiro Seco ainda conta com uma certa “eletricidade vital” que anima debates sobre a arquitetura e a participação, especialmente se considerado o seu caráter modelo de projeto político e social. Esta nova atitude dos intelectuais e artistas para com o popular, que emprestava novos significados ao seu engajamento, tem muito a dizer dos caminhos tomados pelos arquitetos em sua aproximação à questão social no Brasil. A década era de fato um momento especial de articulações culturais e políticas, dificilmente compreendido em sua complexidade se analisado de uma ótica restrita às compartimentações disciplinares. Recife, a “Noiva da revolução” de Francisco de Oliveira, naqueles anos parece ter ocupado papel peculiar, exprimindo as contradições entre o arcaico e o moderno, formulando alternativas para um Brasil “que poderia ter sido e não foi”. Procuramos evitar aqui reproduzir uma explicação meramente autoral e arquitetônica da experiência de Cajueiro Seco, tão recorrente nas narrativas disponíveis. Como se o projeto resultasse de lances geniais ou de um processo de maturação individual, reconhecível na trajetória do arquiteto. Muito ao contrário, procuramos enfatizar aqui as interferências, contribuições e conflitos decorrentes da política e da cultura, bem como suas correlações com os debates em torno da reforma urbana e das políticas habitacionais que se projetavam.

 

Notas

*Arquiteto formado pela FAU USP em 2004 e mestre em História e fundamentos sociais da arquitetura e urbanismo pela FAU USP em 2009 – diegobis@gmail.com

1 De acordo com as entrevistas feitas com Acácio Gil Borsoi, Geraldo Gomes e o texto de Jorge Wilheim sobre o congresso de Havana publicado na revista Acrópole

2 Expressão usada por Germano Coelho em entrevista ao autor

3Castro , Josué de Homens e Caranguejos . São Paulo: Civilização Brasileira, 2001 4a. Ed.

4 Divulgada na íntegra já em junho de 1963 na revista Arquitetura do IAB nacional.

5 Este é um processo generalizado nas áreas de mocambos da Grande Recife; sintomaticamente, estava envolvido na promoção e na defesa da invasão dos Montes Guararapes o então vereador do Recife Newton Carneiro, que até 2008 era o prefeito de Jaboatão dos Guararapes.

6 Acácio Gil Borsoi, Entrevista ao autor, Recife, set/2007

 

Bibliografia

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