Arte contemporânea e mídias digitais
Por: Jane de Almeida
A Revista Aurora realizou entrevista com Jane de Almeida sobre a relação entre a arte contemporânea e as mídias digitais. Jane é psicóloga, mestre e doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, tendo realizado estágio no Boston College, nos EUA e pós-doutorado em História da Arte pela Harvard University. Foi curadora da mostra multidisciplinar Ordenação e Vertigem e das mostras de cinema Metacinemas , Grupo Dziga Vertov e Alexander Kluge: o quinto ato , entre outras. Atualmente é professora e coordenadora do programa de Mestrado e Doutorado em Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Mackenzie, professora convidada do Departamento de Artes Visuais na Universidade da Califórnia em San Diego e da PUC-SP. É autora de Achados Chistosos (Educ/Fapesp), organizadora do livro-catálogo Ordenação e Vertigem (2 vols- Takano/CCBB) e Alexander Kluge: O quinto ato (CosacNaify), entre outros. Participou da organização da primeira transmissão de filme de super-alta definição da América Latina, para EUA e Japão, em redes de fotônica. É ainda pesquisadora em cinema, arte e suas relações com as novas tecnologias computadorizadas.
Revista Aurora (RA) :
Que relações é possível estabelecer entre a arte contemporânea e as mídias digitais?
Jane de Almeida (JA) :
Esta é uma relação de estranhamento e distanciamento nem um pouco brechtiana! As grandes e mais importantes exposições de arte contemporânea como as bienais, as feiras e museus não estão incorporando a tecnologia computadorizada que está disponível em exposições que são geralmente chamadas de “arte e tecnologia”. Por que isto acontece? Se pensamos que a arte de cada tempo deve usar a tecnologia de cada tempo, isto parece ainda mais estranho. Quando vamos a alguma grande exposição, que geralmente legitima aquilo que chamamos de arte, podemos ver o crescente número de obras exibidas com tecnologia de projeção, como vídeos. Mesmo que a arte contemporânea venha se mostrando sensível em relação à imagem em movimento, a imagem final poderia muito bem ser mostrada com a velha tecnologia do cinema. Os filmes são digitais mais por uma questão de espaço e economia do que por questão de linguagem. Quero dizer que a linguagem desta tecnologia não tem sido processada pela arte contemporânea. Por um lado ouve-se que isto acontece mesmo, pois demora bastante tempo para as artes legitimadas entenderem um novo sistema. Ou mesmo que a tecnologia de reprodução de “realidade” demora mesmo a ser reconhecida como arte, como a fotografia. Pode ser. Por outro lado, ouve-se que demora-se bastante para que os artistas consigam produzir algo significativo com tecnologias tão novas. As obras que usam as novas tecnologias levam mais ao deslumbramento do que à reflexão. O que também pode ser verdade. Mesmo assim, eu vejo excelentes trabalhos, extremamente significativos no campo das Novas Tecnologias que ficam confinados nos guetos da arte e tecnologia, assim como trabalhos absolutamente repetitivos, com referências e sentidos quase mumificantes no campo da arte contemporânea, trabalhos que são apenas demonstrações tecnológicas e outros de extrema força com pouquíssima tecnologia. Mas o que é estranho é que o computador se tornou uma peça de absoluta importância. Por que ele é tão ausente nas exibições? Quero dizer: ele está presente em tudo, nos vídeos, nas cartas-convite, nas discussões sobre as montagens, nas maquetes, mas quase nunca como linguagem? Minha resposta (por enquanto!) é que, considerando a importância do “processo” na arte contemporânea, é ainda muito difícil para os curadores compreenderem, “processarem” e considerarem uma forma apropriada de exibir estes trabalhos.
RA :
Qual é o estatuto ou o significado da imagem na atualidade?
JA : A Imagem é agora importante, mas tenho a impressão que deve ter sempre sido. A questão talvez se dê a respeito de que relação temos com a imagem: narcísica, mimética ou de reflexão?
RA: Qual o impacto do cinema na arte contemporânea? Como se dará sua permanência em uma sociedade em rede ou sociedade informacional?
JA : Estou justamente em um seminário chamado CINEGRID workshop conhecendo trabalhos e tecnologias que certamente mudarão a linguagem do cinema. Acho que hoje a arte contemporânea (galerias, museus, instituições culturais etc) são os melhores espaços para se pensar a imagem e o movimento. Estes espaços são visitados por diferentes pessoas, não precisam estar formatados em tempo fixo, podem ser contrastados com muitas outras telas e são o melhor campo para a pesquisa a respeito da narrativa e linguagem da imagem em movimento. Eu, particularmente, estou interessada em um certo tipo de trabalho que pensa as imagens como uma “segunda geração” das imagens em movimento. Filmes através dos quais percebe-se com clareza que eles reconhecem a impossibilidade de se filmar imagens novas, pois tudo já foi filmado. Nossa sociedade está já contaminada por imagens e nossa suposta “espontaneidade” foi colocada em cheque. Eles são: Godard (antes de todos), Alexander Kluge, Harun Farocki, Christian Marclay, entre outros. Observe que todos eles migram com freqüência do cinema para as galerias e museus.
RA: Quais artistas melhor expressam os saltos tecnológicos na arte ou em algumas mídias artísticas?
JA : Para que fosse possível uma mostra do que se faz hoje em termos tecnológicos de forma apropriada para o campo das artes, seria preciso ter mentes com o ideal benjaminiano do século XXI para desfrutar dos efeitos da tecnologia e conceber novas formas de exposições, que não são feiras, nem exposições de arte. Tudo teria de ser repensado. E, sabe o que acho? Seria bem brevemente. Por enquanto, o estado da coisa é de divisão entre a “real” arte e o “deslumbramento”tecnológico. Ainda assim, há vários artistas, mas em campos diferentes, falando linguagens diferentes. Os tecno-artistas não estão dando muita bola para a arte contemporânea, assim como a arte contemporânea para eles. Caso esta união se dê, e quando ela se dá...! é sempre porque alguém que pensa dos dois lados consegue pensá-los juntos. Peter Weibel é um curador que tenta jogar dos dois lados e às vezes consegue bons resultados. No Brasil, as tentativas são parcas e a dependência de uma recepção ignorante, que não pensa com uma mente própria e cai em armadilhas colonizadoras, complica tudo bastante.
RA: Qual é, para você, o significado do computador nas expressões artísticas?
JA : Mais do que pensar em “interatividade”, pensar em processamento e processo. Lembro-me sempre do gigante Micrômegass da novela de Voltaire que chega na terra e pergunta para os terrestres que estão em um pequeno barco em uma gota de água, que é o Mediterrâneo, recém chegados de uma convenção sobre filosofia: como vocês terrestres, que têm apenas cinco sentidos podem conhecer o universo (afinal ele tem 2.000 sentidos)? Godard responde: inventando máquinas como a câmera de cinema. E como o computador!
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