"afternoon, a story", relato de uma leitura

A partir do relato de uma das minhas leituras da hiperficção "afternoon, a story", de Michael Joyce, pretendo refletir sobre a criação literária em hipertexto e propor algumas questões sobre esta forma narrativa

Esta obra, considerada pioneira das narrativas em hipertexto, foi publicada em disquetes em 1992 e produzida em Storyspace, um programa de autoria em hipertexto. Os comentários referem-se a características do suporte com as quais me deparei ao longo da leitura, e a determinadas sensações subjetivas de um leitor que percorre uma história.

Aura

Cada leitura realizada em hipertexto é uma leitura única. Isto coloca, a priori, a obra em questão num patamar específico – mais alto, certamente, do que a posição anterior da obra em si, ou seja, antes da leitura. Após uma leitura que a retira do limbo a que estava relegada, presa ao disquete, esperando por um leitor, a obra parece adquirir ao redor de si um halo, uma aura. Para Walter Benjamin, a aura é o que torna único o objeto, e aqui pode-se perceber que a hiperficção, ao receber uma leitura que é única, porque feita de acordo com uma determinada combinatória entre seus elementos, será transformada, também ela, em um texto único.

A aura confere ao objeto, ainda mais, a característica da originalidade. Muitos autores têm se dedicado a falar do caráter de cópia da cultura digital. Neste suporte, tudo é cópia, nada mais é original. Encontramos no exemplo da leitura única, o contraponto a esta teoria. A narrativa de ficção, porque possibilita leituras únicas, torna-se, ela mesma, um texto original.

A leitura de um hipertexto como "afternoon, a story", causa uma sensação de estranhamento. Contrariamente ao que se possa pensar, entretanto, tal estranhamento é algo estimulante. Ao navegar pela história, tendo a liberdade de eleger os seguimentos (e também segmentos, porque lexias) em dado momento ocorre a sensação de perder-se e encontrar-se ao mesmo tempo. Estou à deriva num mar de possibilidades, mas escolho uma delas e o que se descortina naquele espaço de escrita que é a tela do computador, é o mais puro deleite. É a consciência, afinal, de se estar frente a uma verdadeira obra. Uma obra de arte. Você pode não dar a mínima para aquele disquete inerte, ao lado do computador, mas, quando colocá-lo no "drive A", o que verá é surpreendente. Passados quase dez anos de sua publicação, esta obra é atualíssima; por isso, clássica.

Percorrendo seus links e caminhos, penso em um vinho. Quanto mais velho, mais gostoso seu sabor; mais inebriante seu ritual.

Voltando à leitura, pode-se dar seqüência à história de várias formas:

  1. acionando a tecla "enter/return" do teclado
  2. Utilizando uma barra de quatro "botões" existente ao pé de cada página, onde: o primeiro botão é para o retorno, representado por uma flecha; o segundo, representado por um livro, é um browser, que aponta uma lista de possíveis links a serem acionados a partir da página em questão; o terceiro é composto pelas letras Y" e "N", que representam, obviamente, dentro deste contexto, as palavras "yes" e "no", e que, quando acionados, levam a páginas diferentes entre si; o último botão é usado para imprimir a página que se está lendo no momento.

 

 É desta forma que o leitor pode escolher de que maneira empreenderá sua leitura. Na minha leitura, ocorre uma sensação de desorientação (que, aliás, é outra das características das narrativas em hipertexto): ao mesmo tempo em que escolho um caminho, por uma das formas apresentadas acima, e que se abre mais uma lexia da história, fico curiosa para saber aonde levariam os outros caminhos oferecidos anteriormente. Ao lado da curiosidade, a indecisão: não teria sido melhor escolher outro link? Para onde me levaria? Qual lexia seria aberta, com que título, que assunto? Quero estar em todas as lexias ao mesmo tempo, numa necessidade de deixar-me envolver pela rede de páginas entrelaçadas que formam aquele hipertexto.

Então começo a sentir a grande diferença entre o livro e a tela do computador. No livro, basta virar uma página, ainda que, na minha mente, eu possa fazer muitas associações. Posso também abrir outra página aleatoriamente, mas a seqüência é dada, a priori, pelo autor. Na hiperficção que leio, posso acionar sempre a tecla "enter", e, como um virar de página do livro, ter uma sensação de continuidade. Mas há mais do que isto. Na hiperficção, construo, em minhas associações mentais, um possível "mapa", ou cartografia, das diversas opções de links e seus possíveis seguimentos. Aliás, o próprio Storyspace também pode fornecer-me este mapa, devidamente inscrito na tela do computador. É assim que encontro este mar de possibilidades. Todavia, ao invés de ter um objeto composto de átomos nas minhas mãos, tenho bits, palavras que são informação em um espaço de escrita, como bem definiu Bolter (1991).

O estranhamento, finalmente, é aquele causado por uma espécie de "poder" conferido a mim, leitor. Aqui entra outra das características do hipertexto: a diluição dos limites das funções de autor e leitor. De um lado, eu, leitor, tenho decisões que vão produzir um significado; sou um pouco autor, na medida em que, movendo-me entre blocos de informação, crio. De outro lado, o autor, que certamente é um leitor antes, porque todos somos leitores; mas também é um leitor depois, porque provavelmente não previu todas as combinatórias possíveis dentre os links e caminhos da história. Assim, a cada leitura que fizer de sua própria obra, ele mesmo, o autor, também criará uma leitura única, um texto com significado. Será também, leitor. As infinitas combinatórias possíveis na hiperficção me dizem que o texto, com uma pequena ajuda do leitor, se auto-alimenta. A narrativa realiza-se a si mesma e continuamente, porque é repleta de possibilidades de fazer sentido.

"afternoon, a story" faz outras coisas. Ao mostrar uma janela em que aparecem os diversos links de uma determinada página e seus caminhos para outras páginas, a hiperficção está possibilitando mais. Está mostrando um pouco de sua estrutura interna, porque permite a visualização de linhas de comando. Como todo autor, que conhece o programa que manipula - e neste momento refiro-me ao suporte digital - o fato de poder ver aquela lista de comandos, faz-me sentir um pouco autor.

Em geral, o autor tem mais consciência da estrutura de funcionamento do meio do que o espectador. Numa narrativa, por exemplo, seja um romance num livro, um filme, uma música, ao leitor/espectador cabe a fruição da obra. Há mesmo um "abandono", um deixar-se levar. Isto é chamado de imersão por alguns autores, como Turkle (1997). Com a imersão ocorre a concentração de todos os sentidos. Um momento no qual se perde a noção da presença dos objetos e equipamentos pelos quais é transmitida a narrativa. A imersão é a rendição total à obra.

Com esta reflexão, quero salientar que há uma forma diferente de imersão quando leio "afternoon, a story". Ocorre o que desde logo defino como "imersão consciente": estou imersa em uma história, elegendo caminhos, entrando em seqüências espaciais de texto narrativo, e, ao mesmo tempo, tenho sinais fornecidos pelo programa que me mostram uma parte do seu "esqueleto". A hiperficção, assim, deixa a nú uma parte de sua estrutura interna e me concede a mim, leitor, uma parte de sua intimidade. Agora, eu leitor confundo-me com o outro, autor. Eu, leitor, apreendo a narrativa. Agora, somos cúmplices.

Metanarrativa

O autor de "afternoon, a story", além de contar a história, faz comentários sobre o próprio hipertexto. É assim que, ao acessar uma determinada página, leio que a hiperficção pode terminar em qualquer momento, em qualquer espaço de escrita que desejar. Joyce explica que, em hipertexto, os finais nunca estão previamente estabelecidos. A idéia de o hipertexto constituir-se em uma tecnologia de e sobre hipertexto também é uma de suas características. Assim, ao ser elaborada em hipertexto, mas ao mesmo tempo, ser um espaço de reflexão sobre o hipertexto, estas narrativas funcionam como uma espécie de metanarrativas.

A leitura única, que concede uma aura para a hiperficção e a sua construção como objeto original é o que, finalmente, constrói o leitor como um autor. Não só isto, este leitor, executando sua leitura, realiza o texto enquanto um todo de significado. Neste percurso, em que seu "discurso discorrido" formará um trajeto único, apesar das múltiplas linearidades possíveis, o leitor vai tomando consciência da ampliação de suas funções. Ainda que os autores da Escola de Constanza e os teóricos da Teoria da Recepção já tenham conferido ao leitor a função de produtor de sentido, é agora, com as possibilidades do hipertexto, que isto realmente se amplia. Há algo como uma concretização das potencialidades de um leitor produtor de sentido.

Depois de fazer esta leitura, tenho a certeza de que a hiperficção "afternoon, a story", é uma pioneira em muitos sentidos. Não só pelo fato de ter sido a primeira a ser publicada, mas também porque reflete uma precisão no domínio do hipertexto, usando-o como uma ferramenta definitiva na construção de ficção. Esta obra inscreve-se, assim, no solo fértil da produção de ficção em hipertexto como uma obra única e singular na sua multiplicidade.

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