FORDISMO E TOYOTISMO: TRABALHO E TECNOLOGIA NA PRODUÇÃO EM MASSA
Benedito
Rodrigues de Moraes Neto(*)
Introdução
Um dos mais intrigantes
aspectos da literatura sobre a evolução dos processos de trabalho no século XX
é a disseminada visão do fordismo, e, mais recentemente, do ohnoísmo, como
fenômenos de caráter genérico. Ambos os conceitos teriam, segundo essa visão,
poder para caracterizar a atividade industrial em sua totalidade. Procurar-se-á
argumentar em sentido oposto, buscando a caracterização tanto do fordismo como
do ohnoísmo como formas específicas de organização do processo de trabalho
industrial.
Um desdobramento de
nosso livro Marx, Taylor, Ford: as forças produtivas em discussão é a
não aceitação do caráter genérico do taylorismo-fordismo, ou seja, do
taylorismo-fordismo como um conceito com poder para caracterizar o processo de
trabalho da indústria capitalista como um todo até o período recente.
Vejamos como em Marx,
Taylor e Ford posicionamo-nos de forma crítica à idéia da generalização do
‘taylorismo-fordismo. Após análise das características da manufatura e da
maquinaria em Marx, e das características do taylorismo e de sua forma
avançada, o fordismo, foram as seguintes as conclusões fundamentais.
“Pode-se aplicar sem restrições para a linha de montagem a
colocação feita por Marx para a manufatura: ‘ A maquinaria específica do
período da manufatura é, desde logo, o próprio trabalhador coletivo, produto da
combinação de muitos trabalhadores parciais’ (MARX, 1973, p. 283)” (MORAES
NETO, 1989, p. 51)
“Após essas considerações, chegamos à seguinte conclusão: o
fordismo, a linha de montagem, é um desenvolvimento da manufatura, e não da
maquinaria. A linha de montagem leva ao limite as possibilidades de aumento de
produtividade pela via da manufatura, do trabalho parcelar.” (MORAES NETO,
1986, p. 33)
A busca da
especificidade do taylorismo/fordismo teve como contraponto a indústria têxtil,
locus por excelência das observações
de Marx sobre a natureza da maquinaria. No sentido conceitual, o maquinário
têxtil do século XIX era extremamente avançado, permitindo a Marx a imagem do
“grande autômata”, ou seja, a visualização da característica por excelência da
maquinaria.
Considerando a natureza
técnica assumida pela indústria têxtil no século XIX, e o conseqüente papel
apendicizado/supérfluo do trabalho imediatamente envolvido na produção, qual o
sentido da preocupação típica do taylorismo com os tempos e movimentos do
trabalho vivo para obtenção de elevada produtividade? Por que a indústria
têxtil, após eliminar radicalmente a importância do trabalho vivo no processo
imediato de produção, iria se preocupar (e de forma tão contundente) com esse
mesmo trabalho vivo? A resposta a essa questão foi dada pela História: o
taylorismo não teve qualquer relevância em toda a evolução da indústria têxtil.
Afinal, racionalização da produção no sentido capitalista e despotismo da
direção foram marcas registradas da indústria têxtil no séc. XIX, nada tendo
portanto a ver com taylorismo. A partir de então, a indústria têxtil prosseguiu
no “leito da automação”, caracterizando-se pela evolução da maquinaria, ou
seja, pela contínua aplicação tecnológica da ciência.
Façamos agora uma
pergunta que soa um tanto ridícula, mas é imperiosa: qual a ligação do fordismo
com a História da indústria têxtil? Ou, em outras palavras, que relevância
tiveram as inovações produtivas fordistas
para a transformação da indústria têxtil numa produção fabril em série e
de grande escala? Considerando-se a inequívoca ocorrência da Revolução
Industrial, a resposta é obvia: nenhuma. A indústria têxtil seguiu seu próprio
caminho de produção em série e de grande escala, de forma absolutamente
independente de Henry Ford.
Até este ponto, as
considerações sobre o caráter não genérico do taylorismo-fordismo podem ser
extraídas imediatamente de Marx, Taylor, Ford (1989), e referem-se
exclusivamente à natureza isenta de taylorismo-fordismo apresentada pela
indústria têxtil em toda sua História. A adição de um amplo segmento
industrial, extremamente relevante em todo o século XX, vai revelar-se como um
importante reforço da argumentação: a chamada indústria de processo, ou de
fluxo contínuo.
O estágio avançado de
automação de há muito alcançado pela indústria de processo transformou-a num
paradigma, na medida em que pode ser tomada, em sua base técnica
eletromecânica, como imagem do futuro da indústria como um todo a partir da
introdução da automação de base microeletrônica.
Façamos agora a mesma
questão que fizemos para o caso da indústria têxtil: qual a ligação do fordismo
com a História da indústria de fluxo contínuo? Ou, em outras palavras, que
relevância tiveram as inovações produtivas fordistas para a transformação da
indústria de processo contínuo numa “produção fabril em série e de grande
escala”?
No caso da indústria
siderúrgica, o processo de revolucionamento ocorrido na virada do séc. XIX para
o séc. XX, que implicou na passagem de uma produção ao estilo craft para uma produção “massiva” à base
de maquinaria. Foi um processo inteiramente autônomo e endógeno à indústria
siderúrgica (STONE, 1975). Raciocínio análogo em termos de autonomia e
endogenia pode ser feito para os demais ramos da indústria de processo
contínuo, a qual caminha, há muito tempo, no “leito da automação”.
A incompatibilidade
entre a produção em fluxo contínuo e a produção “fordicizada” torna-se
manifesta quando se trata de discutir a organização do trabalho. Dada sua
natureza tecnológica, a indústria de fluxo contínuo encaminha a organização do
trabalho (na medida do incremento do grau de automação) no sentido de maior
grau de polivalência, qualificação técnica e responsabilidade dos operadores,
de redução dos níveis hierárquicos e incremento da troca de informações entre
eles, de aumento do grau de integração vertical e do fortalecimento do trabalho
em grupo. (BLAUNER, 1964; FERRO, TOLEDO e TRUZZI, 1985). Como se pode,
portanto, estender para essa indústria coisas tipicamente fordistas como
“emprego extensivo de mão-de-obra não qualificada”, “um conjunto de métodos de
produção fundamentado em seqüências lineares de trabalho fragmentado
simplificado”, “longas horas de trabalho manual rotinizado”, “comando
fortemente hierarquizado do processo de trabalho” (PAMPLONA, 1996, p. 140)?
Essas são características específicas da forma encontrada por Ford para dar
conta do desafio de produzir em massa um produto metal-mecânico complexo como o
automóvel, fruto da montagem, forma esta que incluiu a geração das semi-special purpose machines e,
fundamentalmente, a introdução da linha de montagem móvel. (MORAES NETO e
CARVALHO, 1997). Falando de forma mais clara: o fato de Henry Ford ter sido um
produtor de automóveis não foi um fato fortuito, ocasional, mas sim crucial,
determinante (poderia ele, segundo a noção corrente de generalidade do
fordismo, ter sido um produtor de gasolina, aço, ácido sulfúrico, tecido,
etc...., e ter desenvolvido ali sua prática produtiva).
O “ponto de honra” para
Henry Ford com referência ao trabalho vivo imediatamente aplicado à produção
era a desqualificação, tanto nos processos de fabricação mecânica quanto na
linha de montagem. No primeiro caso, a implantação das semi-special purpose machines, em substituição às máquinas-ferramenta
universais, fez com que, nas palavras de
um importante executivo da Ford Company à época, a operação pudesse ser
realizada à perfeição por um farm boy
(cf. HOUNSHELL, 1984). Considerando-se que o aumento na produtividade do
trabalho com as máquinas-ferramenta ocorreu através dos novos designs dos instrumentais,
caracterizando-se um reduzido grau de automação (necessariamente dedicada) (cf.
MORAES NETO, BR e CARVALHO, EG, 1997), pode-se inferir que o
ritmo do processo de trabalho dependia,
em alguma medida (maior ou menor, dependendo da natureza de cada
processo), dos tempos e movimentos do trabalhador individualmente considerado.
O caso da atividade de estamparia é emblemático, na medida em que a produtividade
depende de retiradas e colocações de fôrmas e de acionamento de prensas. Em
outras palavras, com o grau baixo de automação existente à época de Ford, a
fabricação mecânica não permitia uma dissociação entre ritmo de produção e
ritmo de trabalho.
Enfatizemos aquele
momento do processo produtivo que se revelou a contribuição por excelência de
Ford para a História da produção em massa, que, como veremos, não se alterou
dentro da base técnica eletromecânica, qual seja, a linha de montagem. A linha
de montagem caracteriza-se por apresentar tarefas projetadas com ciclos
extremamente curtos, refletindo a aliança entre o uso exacerbado da arma
manufatureira por excelência da divisão parcelar do trabalho e a aplicação dos
métodos tayloristas; e pela atribuição de funções parcelares dotadas de conteúdo
praticamente nulo a trabalhadores de uma maneira permanente, ou seja, rotina e
monotonia. Evidentemente, os requerimentos de qualificação para uma performance eficiente nessas atividades
de trabalho eram extremamente exíguos.
Caracteriza-se, portanto,
o taylorismo/fordismo como “uma forma técnica lastreada no trabalho humano, que
induz ao emprego de milhares de trabalhadores parciais/desqualificados”.
(MORAES NETO, 1995, p. 73). Trata-se de uma forma de produção extremamente
dependente do trabalho vivo imediato, pois, analogamente ao que se observa na
manufatura, “o trabalho manual continua sendo a base de tudo”.
À primeira vista, parece
inaceitável assumir que, a um só tempo, o fordismo seja “extremamente
dependente do trabalho vivo imediato” e consiga “minimizar o papel dos recursos
humanos”. O sentido a ser dado à “minimização do papel dos recursos humanos” é
que o sistema fordista, a despeito de lastrear o processo de produção em
grandes contingentes de trabalhadores, é extremamente poupador de qualificação
e de envolvimento. A eficiência do sistema fordista exige escassas doses de
qualificação dos trabalhadores e de envolvimento dos mesmos com o sucesso da
produção e da empresa; exige-se dos trabalhadores que cumpram as tarefas de
exíguo conteúdo prescritas pelos gestores da produção. Como já vimos, esse
sistema possui sua eficiência produtiva largamente subordinada à operação de
grandes massas de trabalhadores, caracterizando-se como fonte da emergência
histórica do mass-collective worker
(MURRAY, 1983). Todavia, seu grau de dependência é amplamente atenuado pela sua
escassa exigência de envolvimento.
São conhecidas as
dificuldades encontradas por Ford para adaptar ao novo sistema os trabalhadores
formados na tradição anterior do craft
system. O grande aliado de Ford foi o imenso exército industrial de reserva
que tinha à disposição, em grande medida determinado pela magnitude da
imigração estrangeira: segundo Hobsbawn (1997, p. 93), de 1899 a 1914, quase 15
milhões de pessoas desembarcaram nos EUA; de 1915 a 1930, o fluxo diminuiu para
5,5 milhões.
Na transição dos anos 60
para os anos 70 nos Estados Unidos, “O absenteísmo, o turnover, o
trabalho mal executado e mesmo a sabotagem tornaram-se os flagelos da indústria
automobilística americana: a Fortune, a revista mensal da elite administrativa,
descreve com um certo luxo de pormenores estas manifestações de resistência
operária a métodos de organização e de dominação que não mudaram desde o início
do taylorismo (...). As baixas de produtividade exprimem a resistência dos
trabalhadores à exploração. Essa resistência, que se manifesta na quebra das
cadências, na sabotagem larvar, no aumento das taxas de peças defeituosas, é
crítica para o patronato” (PIGNON, e QUERZOLA, 1974, p. 58-60).
Nada mais ilustrativo da
existência de um limite mínimo para o nível de envolvimento dos trabalhadores!
Como afirmamos anteriormente, o grau de requerimento de envolvimento dos
trabalhadores é pequeno, porém não pode cair abaixo de certo nível, como
efetivamente ocorreu no final dos anos 60 e início dos 70 nos Estados Unidos,
posto que isso prejudica sensivelmente a eficiência da produção fordista.
É importante destacar
que a dependência do capital frente ao trabalho vivo, que estamos enfatizando
como característica imanente ao fordismo, no momento histórico em questão
(virada dos 60 para os 70) aplica-se
exclusivamente às linhas de montagem. Isto porque já havia ocorrido um intenso
movimento de incorporação de automação dedicada no caso dos processos de
fabricação mecânica, através das máquinas transfer,
o que permitira diminuição sensível da relevância do trabalho vivo, o qual
ajustara-se perfeitamente às características do trabalho sob a maquinaria, ou
seja, apendicizado e supérfluo. (MORAES NETO e CARVALHO, 1997)
Enquanto a assembly industry americana sofria sua
“crise do processo de trabalho”, (AGLIETTA, 1979) as coisas ocorriam de forma
radicalmente oposta no Japão, como veremos em seguida.
A forma particular de
organização do processo de trabalho industrial implantada e desenvolvida no
Japão nas décadas de 50 e 60, conhecida como toyotismo ou ohnoísmo, ergueu-se
sob dois pilares, o just-in-time e a
“auto-ativação” (MONDEN, 1983, WOOD, 1993a, CORIAT, 1994). O funcionamento
eficiente do sistema depende da existência concomitante desses dois conceitos
centrais.
Considerando que a
inovação produtiva trazida pela indústria japonesa foi a conquista da produção
flexível em massa, pode-se considerar o just-in-time
como o conceito que concretiza esse novo princípio, ou seja, que viabiliza o
ajuste da composição da oferta à composição da procura. Trata-se de “produzir
as unidades necessárias, nas quantidades necessárias, no tempo necessário”
(OHNO, 1988).
Em livro recente, após
discutir a natureza do just-in-time,
Coriat faz colocação fundamental: “A inovação, como se vê, é puramente
organizacional e conceitual; nada de ‘tecnológico’ aqui intervém” (CORIAT,
1994, p. 57). Perguntamos nós: inovação organizacional e conceitual em relação
a que? Em relação ao fordismo “rigidificado”, representativo da fase histórica
que se estende até o imediato pós-2ª Guerra. (1). Verifiquemos os
desdobramentos desses comentários acerca do ohnoísmo como inovação
organizacional:
Sendo o just-in-time uma inovação organizacional
relativamente ao fordismo “rigidificado”, aplica-se a ele imediatamente as
observações anteriores sobre o caráter específico ou genérico do fordismo. Em
interessante analogia com o que ocorreu (e ainda ocorre) com o fordismo, é
disseminada na literatura a colocação do ohnoísmo como uma novidade
caracterizadora de toda a indústria japonesa, e, por conseguinte, como uma
forma que poderia eventualmente se estender para toda a indústria em nível mundial.
A analogia com o
fordismo mantém-se para o caso da indústria de fluxo contínuo. Qual foi a
relevância das inovações produtivas ohnoístas para esse importante segmento da
atividade industrial? Para uma indústria que já caminha há tanto tempo no
“leito da automação”, que espaço existiria para a implantação de uma inovação
organizacional tão significativa em matéria de gestão da produção? Qual o grau
de adequação da indústria de processo contínuo ao conceito de produção
flexível? Afinal, a automação, no sentido de tornar a produção uma aplicação
tecnológica da ciência, e a produção dedicada, são características permanentes
da indústria de processo.
Reforcemos o argumento
com a História: qual o impacto inovador gerado pelo Japão na História
tecnológica e organizacional da indústria de processo contínuo? Resposta:
nenhum. Mesmo nos ramos dessa indústria nos quais a produção japonesa atingiu o
mais alto grau de eficiência, como é o caso da siderurgia, o que ela conseguiu
foi atingir o mais alto nível possível dentro do mesmo conceito produtivo
desenvolvido no ocidente.
Parodiando novamente
Williams e seus colegas (1987), a indústria de processo contínuo caminhou pelo
seu próprio caminho antes e depois de Ford, antes e depois de Ohno.
Onde se colocou portanto
o impacto significativo do just-in-time?
É recorrente na literatura a explicação da natureza do just-in-time através da
utilização de termos - montagem, usinagem, peças - que fazem parte da vida
produtiva cotidiana de um ramo particular da indústria: a metal-mecânica. Isto
porque o locus por excelência do just-in-time é a indústria
metal-mecânica de produção em massa de produtos frutos da montagem (assembly industry).
De forma exatamente
idêntica à que colocamos para Henry Ford, o fato de Taiichi Ohno ter sido um
produtor de automóveis não foi um fato fortuito, ocasional, mas sim crucial,
determinante (poderia ele, segundo a visão corrente de generalidade do
ohnoísmo, ter sido um produtor de gasolina, aço, ácido sulfúrico, tecido,
etc..., e ter desenvolvido ali sua prática produtiva).
Infere-se das colocações
realizadas até aqui um fato fundamental: se o fordismo caracteriza-se como a
conquista da produção em massa lastreada no trabalho vivo (particularmente na
etapa “rigidificada”), e se o ohnoísmo caracteriza, em relação ao fordismo, uma
inovação puramente organizacional, não se supera o lastro no trabalho vivo
imediato. Como afirma Coriat, “a única via aberta (para Ohno) era a de
uma racionalização do trabalho apoiada no maior rendimento possível do trabalho
vivo” (CORIAT, 1994, p. 55). Esse aspecto, que nos parece ter poder para
esclarecer a polêmica questão da relação entre fordismo e ohnoísmo, será
desenvolvido nos próximos itens deste trabalho.
Vejamos a seguir os
desdobramentos do just-in-time em
termos de organização da produção, coisa que permitirá a visualização do
ohnoísmo como um sistema.
O primeiro desdobramento
do just-in-time refere-se à questão
da gestão dos estoques, que vai levar à conhecida conceituação da produção
ohnoísta como lean production. Já vimos em Coriat que,
através do método just-in-time, “é
realizado o princípio do estoque zero”.
Dada a obsessão fordista
com a produção ininterrupta, fluente, os problemas (quebras de máquinas,
defeitos nas peças, etc...) não devem gerar interrupção do fluxo produtivo.
Isto só se consegue, imaginando-se que ocorram problemas, através de estoques
amortecedores, que “amortecem” esses problemas, criando dificuldades para que sejam
devidamente equacionados e solucionados. Em perfeita harmonia com a obsessão em
“manter os volumes de produções elevados”, com a idéia de tocar a fábrica a
todo vapor, a gestão de qualidade fordista caracterizou-se como a prática de um
controle de qualidade ex post,
através da avaliação da qualidade dos lotes por meio dos processos de
amostragem. Caso houvesse defeitos, haveria necessidade de re-trabalho; área
física e contingente de trabalhadores eram reservados para esse fim. Esse
estilo de controle de qualidade não o transforma em parte integrante da gestão
da produção, não faz com que a gestão da produção se veja impregnada da gestão
da qualidade. A separação entre produção e gestão da qualidade faz com que o
controle de qualidade passe a constituir-se numa atividade específica de um
conjunto de trabalhadores, separados da atividade de operação.
A redução dos estoques a
níveis mínimos é marca bastante conhecida da forma ohnoísta de produzir.
Evidentemente, o método just-in-time
traz como desdobramento lógico a tendência ao estoque zero. Se o princípio é
que todos os locais de trabalho atendam à demanda do posto imediatamente a
jusante, a existência de estoques em processo é desde logo carente de sentido.
Muito embora seja inegável o efeito positivo dessa redução vigorosa dos
estoques sobre a eficiência econômica da produção just-in-time, os estudiosos têm procurado destacar o papel dessa
redução na conquista de uma forma particular de racionalidade (e por
conseguinte de eficiência produtiva):
A partir da eliminação
dos estoques amortecedores, os problemas ao longo do processo de produção não
são mais mascarados, mas sim amplamente expostos. A acumulação indesejada de
estoque é reveladora de problemas localizados. A ausência dos buffer stocks não permite que a produção
ocorra de forma fluente a despeito de eventuais problemas; portanto, é preciso
interrompê-la assim que um problema venha a ser detectado. É fornecida a cada
trabalhador autonomia para determinar essa interrupção (e não poderia deixar de
ser assim), o que permitirá que o problema seja detectado em profundidade e
resolvido de forma a não se responsabilizar por novas interrupções no processo
num futuro próximo. Ocorre que, com essa possibilidade de interrupção, a
existência recorrente de problemas simplesmente inviabilizaria o processo
produtivo. Segue-se daí uma postura obsessiva com a inexistência de problemas,
ou seja, com a busca da qualidade em todos os momentos do processo produtivo. A
qualidade não deve ser uma preocupação ex
post da produção,mas deve impregnar, enquanto preocupação, todo o processo
produtivo. A idéia passa a ser a de espraiar o conceito de controle de
qualidade para a produção como um todo, de impregnar a gestão da produção de
gestão da qualidade, (ISHIKAWA, 1993). Ora, como expraiar o controle de
qualidade para todos os pontos do processo de produção? Obviamente não se imaginaria, por absurdo, colocar um
controlador de qualidade ao lado de cada operador. A única saída possível
foi adotada, e constitui-se num traço destacado do trabalho sob o ohnoísmo:
unificar em cada trabalhador as funções de operador e controlador de qualidade.
Este é o ponto crucial para a constituição do segundo pilar do ohnoísmo, a auto-ativação,
que se caracteriza fundamentalmente pelo controle autônomo de defeitos por
parte dos trabalhadores.
Como desdobramento
lógico da obsessão pela qualidade, surge um componente bastante valorizado da
gestão ohnoísta, qual seja, o princípio
do melhoramento contínuo (kaisen).
Trata-se de princípio enfatizado particularmente por estudiosos do
desenvolvimento tecnológico, caracterizado pela noção de que jamais se deve
considerar alcançado o mais elevado patamar possível de eficiência produtiva.
Abre-se a possibilidade permanente de “inovações incrementais” no processo de
produção, sob responsabilidade dos trabalhadores: a somatória de melhorias marginais
proporcionadas por cada um dos trabalhadores permitiria significativo
incremento de eficiência global.
Verifiquemos os
desdobramentos do just-in-time no
nível específico dos processos de fabricação mecânica. Comecemos com um aspecto
bastante enfatizado do trabalho sob o ohnoísmo, a multifuncionalidade (MONDEN,
1983), reflexo de um movimento de desespecialização dos trabalhadores: o
operador polivalente deve operar várias máquinas. Como já discutimos em outro
texto (MORAES NETO e CARVALHO, 1997), a viabilização da produção em massa
flexível não permite a adoção da máquina integrada da fabricação mecânica sob a
base técnica eletromecânica, a máquina transfer,
pois ela nega a flexibilidade. O que o trabalhador polivalente deve operar são
máquinas individuais, não integradas. Não é possível que sejam
máquinas-ferramenta universais no uso de toda sua flexibilidade potencial, pois
não se pode exigir que operações tipicamente exigentes em termos de
qualificação sejam realizadas ao mesmo tempo em várias máquinas. Trata-se, na
verdade, de semi-special purpose machines
(cf. WATANABE, 5, 1987, MORAES NETO e CARVALHO, 1997), a única
máquina-ferramenta de base eletromecânica que permite a obtenção simultânea de
flexibilidade produtiva e alta produtividade do trabalho. Através da operação
ao mesmo tempo de várias máquinas, dotadas de grau relativamente baixo de
automação, de uma forma consistente com a produção em massa, ou seja, realizando
tarefas desprovidas de conteúdo, chegamos à interessantíssima criação ohnoísta
do “trabalhador multifuncional - desqualificado”, reflexão do fato de que a
produção em massa lastreada no trabalho vivo prescinde amplamente de
qualificação.
Continuemos com os
desdobramentos do just-in-time,
especificamente sobre os processos de fabricação mecânica. O segundo
desdobramento tem a ver com a operacionalização da flexibilização das semi-special purpose machines, através
do conhecido sistema “troca-rápida” de ferramentas, que exigiu “novas
padronizações de ferramentas, estas concebidas como conjuntos moduláveis e logo
facilmente transformáveis”. (CORIAT, 1994, p. 74). Um aspecto importante do
sistema “troca rápido” é sua elevada dependência do progresso incremental
proporcionado por uma espécie de “consultoria operária”: o operador das
máquinas semi-special purpose
encontra-se em posição privilegiada para descobrir formas práticas de diminuir,
ainda que marginalmente, os tempos despendidos nas trocas dos ferramentais.
A operação eficiente do
sistema ohnoísta exige, portanto, um funcionamento “afinado” à perfeição entre
o método just-in-time e seus
desdobramentos inevitáveis e necessários: o estoque zero, o defeito zero,
através do Total Quality Control, o kaizen ou melhoramento contínuo, a
multifuncionalidade (com seu corolário,
o layout celular linearizado), e a
“troca-rápida” de ferramentais. Caracteriza-se, portanto, a produção ohnoísta
como sistêmica, e, ademais, extremamente exigente com relação ao funcionamento
de suas diversas partes componentes. Destaque especial deve ser dado ao fato de
que tudo isto deve ser (e foi efetivamente) alcançado através de uma inovação
puramente organizacional relativamente ao fordismo “rigidificado”. Todos os
comentários que fizemos sobre o just-in-time
e seus desdobramentos tiveram justamente o objetivo de ilustrar esse ponto
absolutamente fundamental: todo o sistema ohnoísta de produzir está
alicerçado sobre o trabalho vivo imediatamente aplicado à produção. O
próximo item deste trabalho tem esse fato como seu ponto de partida.
Depois de verificar a
natureza das atividades de trabalho, é difícil não caracterizar como exagerada
a importância fornecida à unificação, no mesmo trabalhador, das funções de
operação e de controle de qualidade. Trata-se de inovação intensiva em
motivação, mas não intensiva em
qualificação. O que é específico do lastreamento ohnoísta no trabalho vivo,
relativamente ao lastreamento fordista, é sua elevada dependência frente ao
envolvimento dos trabalhadores,.
A conquista da motivação
operária passa a ser então um determinante crucial para a eficiência produtiva.
Considerando-se que esta foi sabidamente alcançada no caso do Japão, lembremos
a situação do envolvimento dos trabalhadores com a produção fordista nos
Estados Unidos no final dos anos 60 e começo dos anos 70, e teremos a clara
noção do distanciamento entre os dois casos no mesmo momento histórico: um
abaixo do exíguo nível exigido; o outro alcançando o elevado nível exigido.
Considerações Finais
Podemos caracterizar
o fordismo como produção em massa rígida alicerçada no trabalho vivo, e o
ohnoísmo como produção em massa flexível igualmente alicerçada no trabalho
vivo. Este fato crucial fornece ao fordismo/ohnoísmo sua diferença específica
relativamente à produção em massa lastreada na maquinaria, caso típico das
indústrias têxtil e de processo contínuo. Ora, a automação de base
microeletrônica terá como conseqüência permitir às indústrias de cunho fordista
ou ohnoísta passar a alicerçar a produção em massa (necessariamente flexível)
na maquinaria, e não mais no trabalho vivo. Isto significará, simplesmente, o
fim histórico do fordismo, e de sua “reinvenção”, o ohnoísmo, e a emergência de
um conceito unificado de produção industrial, que se constituirá, em todos os
seus segmentos, numa “aplicação tecnológica da ciência”.
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