FORDISMO E TOYOTISMO:  TRABALHO E TECNOLOGIA NA PRODUÇÃO EM MASSA

Benedito Rodrigues de Moraes Neto(*)

 

Introdução

Um dos mais intrigantes aspectos da literatura sobre a evolução dos processos de trabalho no século XX é a disseminada visão do fordismo, e, mais recentemente, do ohnoísmo, como fenômenos de caráter genérico. Ambos os conceitos teriam, segundo essa visão, poder para caracterizar a atividade industrial em sua totalidade. Procurar-se-á argumentar em sentido oposto, buscando a caracterização tanto do fordismo como do ohnoísmo como formas específicas de organização do processo de trabalho industrial.

1.                  Fordismo:  trabalho e tecnologia

1.1.            Fordismo: generalidade versus especificidade

Um desdobramento de nosso livro Marx, Taylor, Ford: as forças produtivas em discussão é a não aceitação do caráter genérico do taylorismo-fordismo, ou seja, do taylorismo-fordismo como um conceito com poder para caracterizar o processo de trabalho da indústria capitalista como um todo até o período recente.

Vejamos como em Marx, Taylor e Ford posicionamo-nos de forma crítica à idéia da generalização do ‘taylorismo-fordismo. Após análise das características da manufatura e da maquinaria em Marx, e das características do taylorismo e de sua forma avançada, o fordismo, foram as seguintes as conclusões fundamentais.

“Pode-se aplicar sem restrições para a linha de montagem a colocação feita por Marx para a manufatura: ‘ A maquinaria específica do período da manufatura é, desde logo, o próprio trabalhador coletivo, produto da combinação de muitos trabalhadores parciais’ (MARX, 1973, p. 283)” (MORAES NETO, 1989, p. 51)

“Após essas considerações, chegamos à seguinte conclusão: o fordismo, a linha de montagem, é um desenvolvimento da manufatura, e não da maquinaria. A linha de montagem leva ao limite as possibilidades de aumento de produtividade pela via da manufatura, do trabalho parcelar.” (MORAES NETO, 1986, p. 33)

A busca da especificidade do taylorismo/fordismo teve como contraponto a indústria têxtil, locus por excelência das observações de Marx sobre a natureza da maquinaria. No sentido conceitual, o maquinário têxtil do século XIX era extremamente avançado, permitindo a Marx a imagem do “grande autômata”, ou seja, a visualização da característica por excelência da maquinaria.

Considerando a natureza técnica assumida pela indústria têxtil no século XIX, e o conseqüente papel apendicizado/supérfluo do trabalho imediatamente envolvido na produção, qual o sentido da preocupação típica do taylorismo com os tempos e movimentos do trabalho vivo para obtenção de elevada produtividade? Por que a indústria têxtil, após eliminar radicalmente a importância do trabalho vivo no processo imediato de produção, iria se preocupar (e de forma tão contundente) com esse mesmo trabalho vivo? A resposta a essa questão foi dada pela História: o taylorismo não teve qualquer relevância em toda a evolução da indústria têxtil. Afinal, racionalização da produção no sentido capitalista e despotismo da direção foram marcas registradas da indústria têxtil no séc. XIX, nada tendo portanto a ver com taylorismo. A partir de então, a indústria têxtil prosseguiu no “leito da automação”, caracterizando-se pela evolução da maquinaria, ou seja, pela contínua aplicação tecnológica da ciência.

Façamos agora uma pergunta que soa um tanto ridícula, mas é imperiosa: qual a ligação do fordismo com a História da indústria têxtil? Ou, em outras palavras, que relevância tiveram as inovações produtivas fordistas  para a transformação da indústria têxtil numa produção fabril em série e de grande escala? Considerando-se a inequívoca ocorrência da Revolução Industrial, a resposta é obvia: nenhuma. A indústria têxtil seguiu seu próprio caminho de produção em série e de grande escala, de forma absolutamente independente de Henry Ford.

Até este ponto, as considerações sobre o caráter não genérico do taylorismo-fordismo podem ser extraídas imediatamente de Marx, Taylor, Ford (1989), e referem-se exclusivamente à natureza isenta de taylorismo-fordismo apresentada pela indústria têxtil em toda sua História. A adição de um amplo segmento industrial, extremamente relevante em todo o século XX, vai revelar-se como um importante reforço da argumentação: a chamada indústria de processo, ou de fluxo contínuo.

O estágio avançado de automação de há muito alcançado pela indústria de processo transformou-a num paradigma, na medida em que pode ser tomada, em sua base técnica eletromecânica, como imagem do futuro da indústria como um todo a partir da introdução da automação de base microeletrônica.

Façamos agora a mesma questão que fizemos para o caso da indústria têxtil: qual a ligação do fordismo com a História da indústria de fluxo contínuo? Ou, em outras palavras, que relevância tiveram as inovações produtivas fordistas para a transformação da indústria de processo contínuo numa “produção fabril em série e de grande escala”?

No caso da indústria siderúrgica, o processo de revolucionamento ocorrido na virada do séc. XIX para o séc. XX, que implicou na passagem de uma produção ao estilo craft para uma produção “massiva” à base de maquinaria. Foi um processo inteiramente autônomo e endógeno à indústria siderúrgica (STONE, 1975). Raciocínio análogo em termos de autonomia e endogenia pode ser feito para os demais ramos da indústria de processo contínuo, a qual caminha, há muito tempo, no “leito da automação”.

A incompatibilidade entre a produção em fluxo contínuo e a produção “fordicizada” torna-se manifesta quando se trata de discutir a organização do trabalho. Dada sua natureza tecnológica, a indústria de fluxo contínuo encaminha a organização do trabalho (na medida do incremento do grau de automação) no sentido de maior grau de polivalência, qualificação técnica e responsabilidade dos operadores, de redução dos níveis hierárquicos e incremento da troca de informações entre eles, de aumento do grau de integração vertical e do fortalecimento do trabalho em grupo. (BLAUNER, 1964; FERRO, TOLEDO e TRUZZI, 1985). Como se pode, portanto, estender para essa indústria coisas tipicamente fordistas como “emprego extensivo de mão-de-obra não qualificada”, “um conjunto de métodos de produção fundamentado em seqüências lineares de trabalho fragmentado simplificado”, “longas horas de trabalho manual rotinizado”, “comando fortemente hierarquizado do processo de trabalho” (PAMPLONA, 1996, p. 140)? Essas são características específicas da forma encontrada por Ford para dar conta do desafio de produzir em massa um produto metal-mecânico complexo como o automóvel, fruto da montagem, forma esta que incluiu a geração das semi-special purpose machines e, fundamentalmente, a introdução da linha de montagem móvel. (MORAES NETO e CARVALHO, 1997). Falando de forma mais clara: o fato de Henry Ford ter sido um produtor de automóveis não foi um fato fortuito, ocasional, mas sim crucial, determinante (poderia ele, segundo a noção corrente de generalidade do fordismo, ter sido um produtor de gasolina, aço, ácido sulfúrico, tecido, etc...., e ter desenvolvido ali sua prática produtiva).

1.2.            A lógica e o limite do robust system

O “ponto de honra” para Henry Ford com referência ao trabalho vivo imediatamente aplicado à produção era a desqualificação, tanto nos processos de fabricação mecânica quanto na linha de montagem. No primeiro caso, a implantação das semi-special purpose machines, em substituição às máquinas-ferramenta universais, fez com que,  nas palavras de um importante executivo da Ford Company à época, a operação pudesse ser realizada à perfeição por um farm boy (cf. HOUNSHELL, 1984). Considerando-se que o aumento na produtividade do trabalho com as máquinas-ferramenta ocorreu através dos novos designs dos instrumentais, caracterizando-se um reduzido grau de automação (necessariamente dedicada) (cf. MORAES NETO, BR  e  CARVALHO, EG, 1997), pode-se inferir que o ritmo do processo de trabalho dependia,  em alguma medida (maior ou menor, dependendo da natureza de cada processo), dos tempos e movimentos do trabalhador individualmente considerado. O caso da atividade de estamparia é emblemático, na medida em que a produtividade depende de retiradas e colocações de fôrmas e de acionamento de prensas. Em outras palavras, com o grau baixo de automação existente à época de Ford, a fabricação mecânica não permitia uma dissociação entre ritmo de produção e ritmo de trabalho.

Enfatizemos aquele momento do processo produtivo que se revelou a contribuição por excelência de Ford para a História da produção em massa, que, como veremos, não se alterou dentro da base técnica eletromecânica, qual seja, a linha de montagem. A linha de montagem caracteriza-se por apresentar tarefas projetadas com ciclos extremamente curtos, refletindo a aliança entre o uso exacerbado da arma manufatureira por excelência da divisão parcelar do trabalho e a aplicação dos métodos tayloristas; e pela atribuição de funções parcelares dotadas de conteúdo praticamente nulo a trabalhadores de uma maneira permanente, ou seja, rotina e monotonia. Evidentemente, os requerimentos de qualificação para uma performance eficiente nessas atividades de trabalho eram extremamente exíguos.

Caracteriza-se, portanto, o taylorismo/fordismo como “uma forma técnica lastreada no trabalho humano, que induz ao emprego de milhares de trabalhadores parciais/desqualificados”. (MORAES NETO, 1995, p. 73). Trata-se de uma forma de produção extremamente dependente do trabalho vivo imediato, pois, analogamente ao que se observa na manufatura, “o trabalho manual continua sendo a base de tudo”.

À primeira vista, parece inaceitável assumir que, a um só tempo, o fordismo seja “extremamente dependente do trabalho vivo imediato” e consiga “minimizar o papel dos recursos humanos”. O sentido a ser dado à “minimização do papel dos recursos humanos” é que o sistema fordista, a despeito de lastrear o processo de produção em grandes contingentes de trabalhadores, é extremamente poupador de qualificação e de envolvimento. A eficiência do sistema fordista exige escassas doses de qualificação dos trabalhadores e de envolvimento dos mesmos com o sucesso da produção e da empresa; exige-se dos trabalhadores que cumpram as tarefas de exíguo conteúdo prescritas pelos gestores da produção. Como já vimos, esse sistema possui sua eficiência produtiva largamente subordinada à operação de grandes massas de trabalhadores, caracterizando-se como fonte da emergência histórica do mass-collective worker (MURRAY, 1983). Todavia, seu grau de dependência é amplamente atenuado pela sua escassa exigência de envolvimento.

São conhecidas as dificuldades encontradas por Ford para adaptar ao novo sistema os trabalhadores formados na tradição anterior do craft system. O grande aliado de Ford foi o imenso exército industrial de reserva que tinha à disposição, em grande medida determinado pela magnitude da imigração estrangeira: segundo Hobsbawn (1997, p. 93), de 1899 a 1914, quase 15 milhões de pessoas desembarcaram nos EUA; de 1915 a 1930, o fluxo diminuiu para 5,5 milhões.

Na transição dos anos 60 para os anos 70 nos Estados Unidos, “O absenteísmo, o turnover, o trabalho mal executado e mesmo a sabotagem tornaram-se os flagelos da indústria automobilística americana: a Fortune, a revista mensal da elite administrativa, descreve com um certo luxo de pormenores estas manifestações de resistência operária a métodos de organização e de dominação que não mudaram desde o início do taylorismo (...). As baixas de produtividade exprimem a resistência dos trabalhadores à exploração. Essa resistência, que se manifesta na quebra das cadências, na sabotagem larvar, no aumento das taxas de peças defeituosas, é crítica para o patronato” (PIGNON, e QUERZOLA, 1974, p. 58-60).

Nada mais ilustrativo da existência de um limite mínimo para o nível de envolvimento dos trabalhadores! Como afirmamos anteriormente, o grau de requerimento de envolvimento dos trabalhadores é pequeno, porém não pode cair abaixo de certo nível, como efetivamente ocorreu no final dos anos 60 e início dos 70 nos Estados Unidos, posto que isso prejudica sensivelmente a eficiência da produção fordista.

É importante destacar que a dependência do capital frente ao trabalho vivo, que estamos enfatizando como característica imanente ao fordismo, no momento histórico em questão (virada  dos 60 para os 70) aplica-se exclusivamente às linhas de montagem. Isto porque já havia ocorrido um intenso movimento de incorporação de automação dedicada no caso dos processos de fabricação mecânica, através das máquinas transfer, o que permitira diminuição sensível da relevância do trabalho vivo, o qual ajustara-se perfeitamente às características do trabalho sob a maquinaria, ou seja, apendicizado e supérfluo. (MORAES NETO e CARVALHO, 1997)

Enquanto a assembly industry americana sofria sua “crise do processo de trabalho”, (AGLIETTA, 1979) as coisas ocorriam de forma radicalmente oposta no Japão, como veremos em seguida.

2.                  toyotismo: trabalho e tecnologia

A forma particular de organização do processo de trabalho industrial implantada e desenvolvida no Japão nas décadas de 50 e 60, conhecida como toyotismo ou ohnoísmo, ergueu-se sob dois pilares, o just-in-time e a “auto-ativação” (MONDEN, 1983, WOOD, 1993a, CORIAT, 1994). O funcionamento eficiente do sistema depende da existência concomitante desses dois conceitos centrais.

2.1.            O método just-in-time

Considerando que a inovação produtiva trazida pela indústria japonesa foi a conquista da produção flexível em massa, pode-se considerar o just-in-time como o conceito que concretiza esse novo princípio, ou seja, que viabiliza o ajuste da composição da oferta à composição da procura. Trata-se de “produzir as unidades necessárias, nas quantidades necessárias, no tempo necessário” (OHNO, 1988).

Em livro recente, após discutir a natureza do just-in-time, Coriat faz colocação fundamental: “A inovação, como se vê, é puramente organizacional e conceitual; nada de ‘tecnológico’ aqui intervém” (CORIAT, 1994, p. 57). Perguntamos nós: inovação organizacional e conceitual em relação a que? Em relação ao fordismo “rigidificado”, representativo da fase histórica que se estende até o imediato pós-2ª Guerra. (1). Verifiquemos os desdobramentos desses comentários acerca do ohnoísmo como inovação organizacional:

2.2.            Ohnoísmo: generalidade versus especificidade

Sendo o just-in-time uma inovação organizacional relativamente ao fordismo “rigidificado”, aplica-se a ele imediatamente as observações anteriores sobre o caráter específico ou genérico do fordismo. Em interessante analogia com o que ocorreu (e ainda ocorre) com o fordismo, é disseminada na literatura a colocação do ohnoísmo como uma novidade caracterizadora de toda a indústria japonesa, e, por conseguinte, como uma forma que poderia eventualmente se estender para toda a indústria em nível  mundial.

A analogia com o fordismo mantém-se para o caso da indústria de fluxo contínuo. Qual foi a relevância das inovações produtivas ohnoístas para esse importante segmento da atividade industrial? Para uma indústria que já caminha há tanto tempo no “leito da automação”, que espaço existiria para a implantação de uma inovação organizacional tão significativa em matéria de gestão da produção? Qual o grau de adequação da indústria de processo contínuo ao conceito de produção flexível? Afinal, a automação, no sentido de tornar a produção uma aplicação tecnológica da ciência, e a produção dedicada, são características permanentes da indústria de processo.

Reforcemos o argumento com a História: qual o impacto inovador gerado pelo Japão na História tecnológica e organizacional da indústria de processo contínuo? Resposta: nenhum. Mesmo nos ramos dessa indústria nos quais a produção japonesa atingiu o mais alto grau de eficiência, como é o caso da siderurgia, o que ela conseguiu foi atingir o mais alto nível possível dentro do mesmo conceito produtivo desenvolvido no ocidente.

Parodiando novamente Williams e seus colegas (1987), a indústria de processo contínuo caminhou pelo seu próprio caminho antes e depois de Ford, antes e depois de Ohno.

Onde se colocou portanto o impacto significativo do just-in-time? É recorrente na literatura a explicação da natureza do just-in-time através da utilização de termos - montagem, usinagem, peças - que fazem parte da vida produtiva cotidiana de um ramo particular da indústria: a metal-mecânica. Isto porque o locus por excelência do just-in-time é a indústria metal-mecânica de produção em massa de produtos frutos da montagem (assembly industry).

De forma exatamente idêntica à que colocamos para Henry Ford, o fato de Taiichi Ohno ter sido um produtor de automóveis não foi um fato fortuito, ocasional, mas sim crucial, determinante (poderia ele, segundo a visão corrente de generalidade do ohnoísmo, ter sido um produtor de gasolina, aço, ácido sulfúrico, tecido, etc..., e ter desenvolvido ali sua prática produtiva).

Infere-se das colocações realizadas até aqui um fato fundamental: se o fordismo caracteriza-se como a conquista da produção em massa lastreada no trabalho vivo (particularmente na etapa “rigidificada”), e se o ohnoísmo caracteriza, em relação ao fordismo, uma inovação puramente organizacional, não se supera o lastro no trabalho vivo imediato. Como afirma Coriat, “a única via aberta (para Ohno) era a de uma racionalização do trabalho apoiada no maior rendimento possível do trabalho vivo” (CORIAT, 1994, p. 55). Esse aspecto, que nos parece ter poder para esclarecer a polêmica questão da relação entre fordismo e ohnoísmo, será desenvolvido nos próximos itens deste trabalho.

Vejamos a seguir os desdobramentos do just-in-time em termos de organização da produção, coisa que permitirá a visualização do ohnoísmo como um sistema.

2.3.            Os desdobramentos do just-in-time: o ohnoísmo como sistema

O primeiro desdobramento do just-in-time refere-se à questão da gestão dos estoques, que vai levar à conhecida conceituação da produção ohnoísta como lean  production. Já vimos em Coriat que, através do método just-in-time, “é realizado o princípio do estoque zero”.

Dada a obsessão fordista com a produção ininterrupta, fluente, os problemas (quebras de máquinas, defeitos nas peças, etc...) não devem gerar interrupção do fluxo produtivo. Isto só se consegue, imaginando-se que ocorram problemas, através de estoques amortecedores, que “amortecem” esses problemas, criando dificuldades para que sejam devidamente equacionados e solucionados. Em perfeita harmonia com a obsessão em “manter os volumes de produções elevados”, com a idéia de tocar a fábrica a todo vapor, a gestão de qualidade fordista caracterizou-se como a prática de um controle de qualidade ex post, através da avaliação da qualidade dos lotes por meio dos processos de amostragem. Caso houvesse defeitos, haveria necessidade de re-trabalho; área física e contingente de trabalhadores eram reservados para esse fim. Esse estilo de controle de qualidade não o transforma em parte integrante da gestão da produção, não faz com que a gestão da produção se veja impregnada da gestão da qualidade. A separação entre produção e gestão da qualidade faz com que o controle de qualidade passe a constituir-se numa atividade específica de um conjunto de trabalhadores, separados da atividade de operação.

A redução dos estoques a níveis mínimos é marca bastante conhecida da forma ohnoísta de produzir. Evidentemente, o método just-in-time traz como desdobramento lógico a tendência ao estoque zero. Se o princípio é que todos os locais de trabalho atendam à demanda do posto imediatamente a jusante, a existência de estoques em processo é desde logo carente de sentido. Muito embora seja inegável o efeito positivo dessa redução vigorosa dos estoques sobre a eficiência econômica da produção just-in-time, os estudiosos têm procurado destacar o papel dessa redução na conquista de uma forma particular de racionalidade (e por conseguinte de eficiência produtiva):

A partir da eliminação dos estoques amortecedores, os problemas ao longo do processo de produção não são mais mascarados, mas sim amplamente expostos. A acumulação indesejada de estoque é reveladora de problemas localizados. A ausência dos buffer stocks não permite que a produção ocorra de forma fluente a despeito de eventuais problemas; portanto, é preciso interrompê-la assim que um problema venha a ser detectado. É fornecida a cada trabalhador autonomia para determinar essa interrupção (e não poderia deixar de ser assim), o que permitirá que o problema seja detectado em profundidade e resolvido de forma a não se responsabilizar por novas interrupções no processo num futuro próximo. Ocorre que, com essa possibilidade de interrupção, a existência recorrente de problemas simplesmente inviabilizaria o processo produtivo. Segue-se daí uma postura obsessiva com a inexistência de problemas, ou seja, com a busca da qualidade em todos os momentos do processo produtivo. A qualidade não deve ser uma preocupação ex post da produção,mas deve impregnar, enquanto preocupação, todo o processo produtivo. A idéia passa a ser a de espraiar o conceito de controle de qualidade para a produção como um todo, de impregnar a gestão da produção de gestão da qualidade, (ISHIKAWA, 1993). Ora, como expraiar o controle de qualidade para todos os pontos do processo de produção? Obviamente  não se imaginaria, por absurdo, colocar um controlador de qualidade ao lado de cada operador.  A única saída possível foi adotada, e constitui-se num traço destacado do trabalho sob o ohnoísmo: unificar em cada trabalhador as funções de operador e controlador de qualidade. Este é o ponto crucial para a constituição do segundo pilar do ohnoísmo, a auto-ativação, que se caracteriza fundamentalmente pelo controle autônomo de defeitos por parte dos trabalhadores.

Como desdobramento lógico da obsessão pela qualidade, surge um componente bastante valorizado da gestão ohnoísta, qual seja, o  princípio do melhoramento contínuo (kaisen). Trata-se de princípio enfatizado particularmente por estudiosos do desenvolvimento tecnológico, caracterizado pela noção de que jamais se deve considerar alcançado o mais elevado patamar possível de eficiência produtiva. Abre-se a possibilidade permanente de “inovações incrementais” no processo de produção, sob responsabilidade dos trabalhadores: a somatória de melhorias marginais proporcionadas por cada um dos trabalhadores permitiria significativo incremento de eficiência global.

Verifiquemos os desdobramentos do just-in-time no nível específico dos processos de fabricação mecânica. Comecemos com um aspecto bastante enfatizado do trabalho sob o ohnoísmo, a multifuncionalidade (MONDEN, 1983), reflexo de um movimento de desespecialização dos trabalhadores: o operador polivalente deve operar várias máquinas. Como já discutimos em outro texto (MORAES NETO e CARVALHO, 1997), a viabilização da produção em massa flexível não permite a adoção da máquina integrada da fabricação mecânica sob a base técnica eletromecânica, a máquina transfer, pois ela nega a flexibilidade. O que o trabalhador polivalente deve operar são máquinas individuais, não integradas. Não é possível que sejam máquinas-ferramenta universais no uso de toda sua flexibilidade potencial, pois não se pode exigir que operações tipicamente exigentes em termos de qualificação sejam realizadas ao mesmo tempo em várias máquinas. Trata-se, na verdade, de semi-special purpose machines (cf. WATANABE, 5, 1987, MORAES NETO e CARVALHO, 1997), a única máquina-ferramenta de base eletromecânica que permite a obtenção simultânea de flexibilidade produtiva e alta produtividade do trabalho. Através da operação ao mesmo tempo de várias máquinas, dotadas de grau relativamente baixo de automação, de uma forma consistente com a produção em massa, ou seja, realizando tarefas desprovidas de conteúdo, chegamos à interessantíssima criação ohnoísta do “trabalhador multifuncional - desqualificado”, reflexão do fato de que a produção em massa lastreada no trabalho vivo prescinde amplamente de qualificação.

Continuemos com os desdobramentos do just-in-time, especificamente sobre os processos de fabricação mecânica. O segundo desdobramento tem a ver com a operacionalização da flexibilização das semi-special purpose machines, através do conhecido sistema “troca-rápida” de ferramentas, que exigiu “novas padronizações de ferramentas, estas concebidas como conjuntos moduláveis e logo facilmente transformáveis”. (CORIAT, 1994, p. 74). Um aspecto importante do sistema “troca rápido” é sua elevada dependência do progresso incremental proporcionado por uma espécie de “consultoria operária”: o operador das máquinas semi-special purpose encontra-se em posição privilegiada para descobrir formas práticas de diminuir, ainda que marginalmente, os tempos despendidos nas trocas dos ferramentais.

A operação eficiente do sistema ohnoísta exige, portanto, um funcionamento “afinado” à perfeição entre o método just-in-time e seus desdobramentos inevitáveis e necessários: o estoque zero, o defeito zero, através do Total Quality Control, o kaizen ou melhoramento contínuo, a multifuncionalidade  (com seu corolário, o layout celular linearizado), e a “troca-rápida” de ferramentais. Caracteriza-se, portanto, a produção ohnoísta como sistêmica, e, ademais, extremamente exigente com relação ao funcionamento de suas diversas partes componentes. Destaque especial deve ser dado ao fato de que tudo isto deve ser (e foi efetivamente) alcançado através de uma inovação puramente organizacional relativamente ao fordismo “rigidificado”. Todos os comentários que fizemos sobre o just-in-time e seus desdobramentos tiveram justamente o objetivo de ilustrar esse ponto absolutamente fundamental: todo o sistema ohnoísta de produzir está alicerçado sobre o trabalho vivo imediatamente aplicado à produção. O próximo item deste trabalho tem esse fato como seu ponto de partida.

2.4.            A reinvenção do fordismo

Depois de verificar a natureza das atividades de trabalho, é difícil não caracterizar como exagerada a importância fornecida à unificação, no mesmo trabalhador, das funções de operação e de controle de qualidade. Trata-se de inovação intensiva em motivação, mas não intensiva  em qualificação. O que é específico do lastreamento ohnoísta no trabalho vivo, relativamente ao lastreamento fordista, é sua elevada dependência frente ao envolvimento dos trabalhadores,.

A conquista da motivação operária passa a ser então um determinante crucial para a eficiência produtiva. Considerando-se que esta foi sabidamente alcançada no caso do Japão, lembremos a situação do envolvimento dos trabalhadores com a produção fordista nos Estados Unidos no final dos anos 60 e começo dos anos 70, e teremos a clara noção do distanciamento entre os dois casos no mesmo momento histórico: um abaixo do exíguo nível exigido; o outro alcançando o elevado nível exigido.

Considerações Finais

Podemos caracterizar o fordismo como produção em massa rígida alicerçada no trabalho vivo, e o ohnoísmo como produção em massa flexível igualmente alicerçada no trabalho vivo. Este fato crucial fornece ao fordismo/ohnoísmo sua diferença específica relativamente à produção em massa lastreada na maquinaria, caso típico das indústrias têxtil e de processo contínuo. Ora, a automação de base microeletrônica terá como conseqüência permitir às indústrias de cunho fordista ou ohnoísta passar a alicerçar a produção em massa (necessariamente flexível) na maquinaria, e não mais no trabalho vivo. Isto significará, simplesmente, o fim histórico do fordismo, e de sua “reinvenção”, o ohnoísmo, e a emergência de um conceito unificado de produção industrial, que se constituirá, em todos os seus segmentos, numa “aplicação tecnológica da ciência”.

 

BIBLIOGRAFIA

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(*) Professor do Departamento de Economia da UNESP em Araraquara - SP.