A ALCA E O BRASIL
Paulo Nogueira
Batista Jr.
3. As vantagens potenciais
da economia brasileira no mercado dos EUA estão concentradas em produtos
protegidos por poderosos lobbies (aço, têxteis, calçados, suco de laranja, por
exemplo). Os negociadores norte-americanos farão o possível para que sejam
aplicados cronogramas muito graduais de abertura às importações nesses setores.
Não se deve descartar nem mesmo a possibilidade de que eles sejam colocados
como exceções, ficando inteiramente fora do processo de liberalização.
4. Os EUA relutam em colocar
na pauta componentes cruciais do seu arsenal protecionista,
como a legislação antidumping e a política de defesa
da agricultura, sob o argumento de que esses temas devem ser tratados
preferencialmente no âmbito da OMC. Ao mesmo tempo, querem que a Alca vá além
das normas da OMC em assuntos do seu interesse como, por exemplo, serviços,
investimentos, compras governamentais e patentes.
5. Não interessa ao Brasil
participar de áreas de livre comércio com economias muito mais desenvolvidas e
poderosas - muito menos de uma área de livre comércio do tipo da Alca, da qual
fariam parte regras comuns sobre diversos temas de importância estratégica. As
economias desenvolvidas apresentam vantagens estruturais imensas em relação à
economia brasileira. E essas vantagens não poderão ser superadas num horizonte
visível.
6. No campo macroeconômico, diversas
circunstâncias relacionadas à chamada competitividade sistêmica do Brasil
(estrutura do sistema tributário, escassez de crédito, custos financeiros,
fraqueza dos mercados de capitais domésticos, deficiências de infra-estrutura,
entre outras), colocam as empresas brasileiras em desvantagem na disputa por mercados
externos e internos. Dadas essas assimetrias sistêmicas, a maioria das empresas
brasileiras não pode enfrentar, sem anteparos, a concorrência das empresas dos
EUA ou de outros países desenvolvidos.
7. Existem, também,
dificuldades importantes no plano microeconômico. As firmas dos EUA e de outros
países desenvolvidos são, de uma maneira geral, muito superiores
às brasileiras em termos de escala de produção, tecnologia, organização, acesso
a crédito e capital, redes de comercialização, marcas etc.
8. Uma área de livre comércio com os EUA
produziria provavelmente efeitos destrutivos em boa parte do sistema produtivo
brasileiro, especialmente nos setores mais sofisticados em que a primazia das
empresas norte-americanas é quase sempre inquestionável (por exemplo, bens de
capital, componentes eletrônicos, química, eletrônica de consumo, software e
informática). A economia brasileira tenderia a regredir à condição de economia
agrícola ou agroindustrial e produtora de bens industriais leves ou tradicionais.
9. Mesmo na hipótese
improvável de que a Alca viesse a ser equilibrada, com os EUA se dispondo a
fazer concessões apreciáveis em setores e temas de nosso interesse, as
importações brasileiras tenderiam a aumentar mais do que as exportações de bens
e serviços. Assim, esse acordo provocaria um aumento do desequilíbrio externo
da economia brasileira, agravando um dos nossos problemas centrais.
11. Na área de serviços, os
planos norte-americanos também são ambiciosos. Os países membros da Alca teriam
a obrigação de proporcionar aos fornecedores de serviços de outros países
membros tratamento não menos favorável do que o concedido, em condições
semelhantes, aos fornecedores nacionais. Os EUA querem que a Alca assegure
amplo acesso a mercados para serviços financeiros,
telecomunicações, informática, serviços audiovisuais, construção e engenharia,
turismo, publicidade, serviços profissionais, serviços de distribuição,
entre outros.
12. No que se refere a investimentos, a pretensão dos EUA é que o acordo da Alca
proíba o governo de um país membro de definir políticas que favoreçam os
investidores nacionais vis-à-vis de investidores de outros países membros,
ainda que seja apenas para compensá-los por problemas estruturais ou de
natureza sistêmica. Os EUA buscam uma definição ampla para o termo
"investimento", que inclua todas as formas de ativos com características
de investimento, como companhias, ações, certas formas de dívida, certas
concessões, contratos e propriedade intelectual.
13. Os EUA propõem, também,
que o investidor tenha o direito de transferir fundos para dentro ou fora de
qualquer país da Alca sem demora e a uma taxa de câmbio de mercado. Essa
garantia cobriria todas as transferências relacionadas a um investimento,
inclusive juros, remessa de lucros, repatriação do capital e injeção de
recursos financeiros adicionais depois da realização do investimento inicial.
14. Washington pretende,
além disso, que o acordo da Alca impeça os governos dos países membros de
estabelecer metas ou requisitos de desempenho a serem cumpridos pelos
investidores de outros países membros, ampliando restrições já existentes na OMC.
O acordo da Alca proibiria ou restringiria, por exemplo, a definição de níveis
de conteúdo local, de preferências por bens produzidos domesticamente e de
restrições à venda de bens e serviços no território do país receptor do
investimento. Tampouco se admitiria a especificação pelos governos de
compromissos de exportação e de transferência de tecnologia.
15. Investidores privados
passariam a desfrutar de status legal antes reservado a Estados nacionais. O
investidor de um país membro da Alca teria o direito de recorrer a arbitragem internacional, no âmbito do Banco Mundial ou da
ONU, ultrapassando assim a legislação e o sistema judicial do país hóspede do
investimento.
17. No que diz respeito a proteção da propriedade intelectual, assim como a
investimentos e compras governamentais, os EUA pressionam pela inclusão na Alca
de obrigações que vão além das já assumidas no âmbito da OMC. A legislação dos
EUA é o modelo para a proposta apresentada na Alca e a sua incorporação ao
acordo acarretaria mudanças significativas na legislação nacional dos demais
países membros. A proposta dos EUA inclui proteção rigorosa do copyright, das
patentes, de segredos comerciais, de marcas comerciais e de indicações
geográficas. A idéia central é garantir dentro da Alca o máximo de proteção
para atividades tradicionalmente dominadas pelos norte-americanos, que
respondem pelo grosso das inovações, patentes e marcas.
18. Com o governo de George
W. Bush, as perspectivas da Alca tornaram-se mais sombrias. Os EUA passaram a
seguir, com uma dose de franqueza bem maior do que a habitual, uma concepção
peculiar de livre comércio, que pode ser resumida da seguinte forma: por um
lado, o máximo de abertura nos temas e setores em que os EUA apresentam
vantagens competitivas; por outro, protecionismo, não raro sem disfarces, para
os setores frágeis ou pouco competitivos da sua economia.
19. O Executivo e o
Congresso foram estabelecendo, sem inibições, restrições seletivas ao comércio internacional
e novas medidas de defesa das empresas norte-americanas contra a concorrência
estrangeira. Em agosto de 2002, o Congresso aprovou um mandato muito restritivo
para negociar acordos comerciais (Trade Promotion Authority). As
negociações da Alca ficaram basicamente circunscritas aos temas de interesse
dos EUA. Um acordo só será concluído se o Brasil se conformar com uma
negociação cada vez mais problemática e desequilibrada.
20. Mesmo reconhecendo as
desvantagens e limitações da Alca, há quem recomende a adesão a esse acordo com
o argumento de que não participar significaria condenar o Brasil ao isolamento
e à perda de mercados. Contudo, a não-participação do Brasil em uma eventual
Alca (ou em uma zona de livre comércio com a União Européia) não nos impediria
de continuar ampliando as nossas exportações para esses e outros mercados. A
expansão do comércio internacional não pressupõe o livre comércio. As três
maiores potências econômicas do planeta, os EUA, a União Européia e o Japão,
que mantêm forte e crescente inter-relacionamento comercial, nunca tiveram - e
nem pretendem ter - acordos de livre comércio entre si.
21. Tampouco tem cabimento a
idéia de que não participar da Alca deixaria o Brasil isolado na América. Os
países americanos têm, regra geral, economias bem
menores e menos desenvolvidas do que a brasileira; não competem de forma
significativa com o Brasil nos mercados dos EUA. Os países que poderiam
concorrer mais fortemente conosco, o Canadá e o México, já fazem parte do Nafta e a criação da Alca não modificaria sua posição
competitiva. Se o receio é que uma Alca sem Brasil nos levaria à perda de
mercados sul-americanos para exportações norte-americanas, o governo brasileiro
sempre teria a opção de negociar acordos de livre comércio com países vizinhos,
sem ter de assinar um acordo desse tipo com os EUA.
Texto extraído do boletim BOP nº 09, da ADURN-SSind