A ALCA E O BRASIL

 Paulo Nogueira Batista Jr.

1. A Alca foi concebida, desde o início, como projeto ambicioso e de grande envergadura. Se vier a ser criada, ela não será uma área de livre comércio tradicional, isto é, não envolverá apenas a remoção de restrições tarifárias e não-tarifárias ao comércio de bens dentro das Américas - objetivo, em si mesmo, bastante problemático do ponto de vista brasileiro. A agenda de negociações, formulada basicamente pelos EUA, é muito ampla. Inclui a fixação de regras comuns para temas como serviços, investimentos, compras governamentais, propriedade intelectual, entre outros.

2. A liberalização proposta por Washington é acompanhada de importantes ressalvas e exceções, que favorecem setores pouco competitivos da economia norte-americana e preservam os instrumentos de defesa comercial a que os EUA costumam recorrer.

3. As vantagens potenciais da economia brasileira no mercado dos EUA estão concentradas em produtos protegidos por poderosos lobbies (aço, têxteis, calçados, suco de laranja, por exemplo). Os negociadores norte-americanos farão o possível para que sejam aplicados cronogramas muito graduais de abertura às importações nesses setores. Não se deve descartar nem mesmo a possibilidade de que eles sejam colocados como exceções, ficando inteiramente fora do processo de liberalização.

4. Os EUA relutam em colocar na pauta componentes cruciais do seu arsenal protecionista, como a legislação antidumping e a política de defesa da agricultura, sob o argumento de que esses temas devem ser tratados preferencialmente no âmbito da OMC. Ao mesmo tempo, querem que a Alca vá além das normas da OMC em assuntos do seu interesse como, por exemplo, serviços, investimentos, compras governamentais e patentes.

5. Não interessa ao Brasil participar de áreas de livre comércio com economias muito mais desenvolvidas e poderosas - muito menos de uma área de livre comércio do tipo da Alca, da qual fariam parte regras comuns sobre diversos temas de importância estratégica. As economias desenvolvidas apresentam vantagens estruturais imensas em relação à economia brasileira. E essas vantagens não poderão ser superadas num horizonte visível.

6.  No campo macroeconômico, diversas circunstâncias relacionadas à chamada competitividade sistêmica do Brasil (estrutura do sistema tributário, escassez de crédito, custos financeiros, fraqueza dos mercados de capitais domésticos, deficiências de infra-estrutura, entre outras), colocam as empresas brasileiras em desvantagem na disputa por mercados externos e internos. Dadas essas assimetrias sistêmicas, a maioria das empresas brasileiras não pode enfrentar, sem anteparos, a concorrência das empresas dos EUA ou de outros países desenvolvidos.

7. Existem, também, dificuldades importantes no plano microeconômico. As firmas dos EUA e de outros países desenvolvidos são, de uma maneira geral, muito superiores às brasileiras em termos de escala de produção, tecnologia, organização, acesso a crédito e capital, redes de comercialização, marcas etc.

8.  Uma área de livre comércio com os EUA produziria provavelmente efeitos destrutivos em boa parte do sistema produtivo brasileiro, especialmente nos setores mais sofisticados em que a primazia das empresas norte-americanas é quase sempre inquestionável (por exemplo, bens de capital, componentes eletrônicos, química, eletrônica de consumo, software e informática). A economia brasileira tenderia a regredir à condição de economia agrícola ou agroindustrial e produtora de bens industriais leves ou tradicionais.

9. Mesmo na hipótese improvável de que a Alca viesse a ser equilibrada, com os EUA se dispondo a fazer concessões apreciáveis em setores e temas de nosso interesse, as importações brasileiras tenderiam a aumentar mais do que as exportações de bens e serviços. Assim, esse acordo provocaria um aumento do desequilíbrio externo da economia brasileira, agravando um dos nossos problemas centrais.

10. A minuta do acordo (cuja última versão divulgada tem 10 capítulos e mais de 350 páginas) e documentos do governo dos EUA indicam a configuração que a Alca deve tomar. No que diz respeito ao comércio de mercadorias, o objetivo principal dos EUA é a eliminação de tarifas de importação. Washington pretende que todas as tarifas sejam objeto de negociação e que a maioria delas sofra rápida redução.

11. Na área de serviços, os planos norte-americanos também são ambiciosos. Os países membros da Alca teriam a obrigação de proporcionar aos fornecedores de serviços de outros países membros tratamento não menos favorável do que o concedido, em condições semelhantes, aos fornecedores nacionais. Os EUA querem que a Alca assegure amplo acesso a mercados para serviços financeiros, telecomunicações, informática, serviços audiovisuais, construção e engenharia, turismo, publicidade, serviços profissionais, serviços de distribuição, entre outros.

12. No que se refere a investimentos, a pretensão dos EUA é que o acordo da Alca proíba o governo de um país membro de definir políticas que favoreçam os investidores nacionais vis-à-vis de investidores de outros países membros, ainda que seja apenas para compensá-los por problemas estruturais ou de natureza sistêmica. Os EUA buscam uma definição ampla para o termo "investimento", que inclua todas as formas de ativos com características de investimento, como companhias, ações, certas formas de dívida, certas concessões, contratos e propriedade intelectual.

13. Os EUA propõem, também, que o investidor tenha o direito de transferir fundos para dentro ou fora de qualquer país da Alca sem demora e a uma taxa de câmbio de mercado. Essa garantia cobriria todas as transferências relacionadas a um investimento, inclusive juros, remessa de lucros, repatriação do capital e injeção de recursos financeiros adicionais depois da realização do investimento inicial.

14. Washington pretende, além disso, que o acordo da Alca impeça os governos dos países membros de estabelecer metas ou requisitos de desempenho a serem cumpridos pelos investidores de outros países membros, ampliando restrições já existentes na OMC. O acordo da Alca proibiria ou restringiria, por exemplo, a definição de níveis de conteúdo local, de preferências por bens produzidos domesticamente e de restrições à venda de bens e serviços no território do país receptor do investimento. Tampouco se admitiria a especificação pelos governos de compromissos de exportação e de transferência de tecnologia.

15. Investidores privados passariam a desfrutar de status legal antes reservado a Estados nacionais. O investidor de um país membro da Alca teria o direito de recorrer a arbitragem internacional, no âmbito do Banco Mundial ou da ONU, ultrapassando assim a legislação e o sistema judicial do país hóspede do investimento.

16. A política de compras governamentais é outro tema que os EUA querem submeter a detalhada regulamentação no âmbito da Alca. Para uma ampla gama de contratos de compras governamentais, qualquer fornecedor de bens e serviços de um outro país da Alca receberia o mesmo tratamento que os fornecedores do país. Também ficaria proibida a incorporação, nesses contratos, de cláusulas que estabeleçam níveis de conteúdo doméstico, licenciamento de tecnologia, compromissos de investimento e outros requisitos que "distorçam" o comércio.

17. No que diz respeito a proteção da propriedade intelectual, assim como a investimentos e compras governamentais, os EUA pressionam pela inclusão na Alca de obrigações que vão além das já assumidas no âmbito da OMC. A legislação dos EUA é o modelo para a proposta apresentada na Alca e a sua incorporação ao acordo acarretaria mudanças significativas na legislação nacional dos demais países membros. A proposta dos EUA inclui proteção rigorosa do copyright, das patentes, de segredos comerciais, de marcas comerciais e de indicações geográficas. A idéia central é garantir dentro da Alca o máximo de proteção para atividades tradicionalmente dominadas pelos norte-americanos, que respondem pelo grosso das inovações, patentes e marcas.

18. Com o governo de George W. Bush, as perspectivas da Alca tornaram-se mais sombrias. Os EUA passaram a seguir, com uma dose de franqueza bem maior do que a habitual, uma concepção peculiar de livre comércio, que pode ser resumida da seguinte forma: por um lado, o máximo de abertura nos temas e setores em que os EUA apresentam vantagens competitivas; por outro, protecionismo, não raro sem disfarces, para os setores frágeis ou pouco competitivos da sua economia.

 

19. O Executivo e o Congresso foram estabelecendo, sem inibições, restrições seletivas ao comércio internacional e novas medidas de defesa das empresas norte-americanas contra a concorrência estrangeira. Em agosto de 2002, o Congresso aprovou um mandato muito restritivo para negociar acordos comerciais (Trade Promotion Authority). As negociações da Alca ficaram basicamente circunscritas aos temas de interesse dos EUA. Um acordo só será concluído se o Brasil se conformar com uma negociação cada vez mais problemática e desequilibrada.

20. Mesmo reconhecendo as desvantagens e limitações da Alca, há quem recomende a adesão a esse acordo com o argumento de que não participar significaria condenar o Brasil ao isolamento e à perda de mercados. Contudo, a não-participação do Brasil em uma eventual Alca (ou em uma zona de livre comércio com a União Européia) não nos impediria de continuar ampliando as nossas exportações para esses e outros mercados. A expansão do comércio internacional não pressupõe o livre comércio. As três maiores potências econômicas do planeta, os EUA, a União Européia e o Japão, que mantêm forte e crescente inter-relacionamento comercial, nunca tiveram - e nem pretendem ter - acordos de livre comércio entre si.

21. Tampouco tem cabimento a idéia de que não participar da Alca deixaria o Brasil isolado na América. Os países americanos têm, regra geral, economias bem menores e menos desenvolvidas do que a brasileira; não competem de forma significativa com o Brasil nos mercados dos EUA. Os países que poderiam concorrer mais fortemente conosco, o Canadá e o México, já fazem parte do Nafta e a criação da Alca não modificaria sua posição competitiva. Se o receio é que uma Alca sem Brasil nos levaria à perda de mercados sul-americanos para exportações norte-americanas, o governo brasileiro sempre teria a opção de negociar acordos de livre comércio com países vizinhos, sem ter de assinar um acordo desse tipo com os EUA.

22. A Alca, tal como concebida pelo governo e interesses empresariais norte-americanos, acarretaria formidável perda de autonomia na condução de aspectos essenciais da política econômica. De todas as negociações internacionais em curso, essa é a que representa a maior ameaça à soberania do país. Com a Alca, o Brasil ficaria comprometido, por acordo internacional, a manter o seu mercado interno sempre aberto para as exportações dos EUA e de outros países do continente americano. As empresas brasileiras se veriam expostas à vigorosa concorrência das grandes corporações norte-americanas com todo o seu poder tecnológico, financeiro e comercial. O Brasil teria que abrir mão de uma série de instrumentos de política governamental, tornando-se ipso facto incapaz de implementar um projeto nacional de desenvolvimento. Ficariam definitivamente fora do nosso alcance muitos instrumentos e políticas governamentais a que recorreram sistematicamente os países hoje desenvolvidos, inclusive os EUA, ao longo do seu processo histórico de desenvolvimento. (...)

Texto extraído do boletim BOP 09, da ADURN-SSind