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Sessenta anos de 'O segundo sexo'

Artigo publicado no Caderno Cultura de O Estado de São Paulo por ocasião dos 60 anos da publicação do livro 'O Segundo sexo' de Simone de Beauvoir

Leda Tenório da Motta
Há duas fotografias perturbadoras de Hannah Arendt no primeiro e melhor volume da última oba de impacto de Julia Kristeva, a trilogia O gênio feminino, lançada na França em 2000, e aqui traduzida, imediatamente. Seis anos separam essas duas imagens, já do período novaiorquino da filósofa. Em ambas, ela surge de terno e cabelos bem curtos, e ostenta a sua ambiguidade sexual. Mas o rosto da jovem “garçonne” que vemos na primeira, tirada em 1944 _ nos diz Kristeva _, foi substituído, na segunda, por uma figura em que“a virilidade desabrochou”, e que traduz “até a caricatura” a dureza do combate que esta pensadora mulher teve que travar para desempenhar-se numa “profissão de homens”.

Hoje que as mulheres não precisam mais apelar para o cross dressing, como George Sand e Hannah Arendt, para assumir profissões que também não cabe mais chamar de masculinas, mas já podem ser filósofas _ até mesmo na televisão _, e se casar entre si, e fazer juntas filhos de proveta, advogando ser para estes filhos uma instância familiar, fora do abrigo do nome-do-pai, será que poderíamos pensar que O segundo sexo de Simone de Beauvoir realizou a sua missão? Acaso diríamos que, nos seus 60 anos, atualmente comemorados, esse livro-monumento, de quase mil páginas, agora concentradas num único e impositivo tomo, já pode morrer de ter vivido? Que a sua falta de atualidade seria o próprio atestado da sua vitória?

Temos vários motivos para pensar que não.

Se é lamentavelmente verdade que, no novo tipo de cultura da velocidade em que estamos hoje mergulhados, refluíram os pensadores de fôlego, como os da escola existencialista a que pertenceu Beauvoir, e entraram em campo os filósofos biodegradáveis _ os Lipovesty e os Maffesoli _, sucessores daqueles outros que, no final do século XX, já se haviam transformado nos mais rarefeitos “novos filósofos” _ , nada nos impede de continuar pensando que um grande livro será sempre aquilo que sempre foi. Isto é, um alimento para gerações e gerações, e até mesmo para aquelas gerações que, com o correr do tempo, lhe vieram a ser adversárias, como podemos ser contrários, hoje, por exemplo, às teses naturalistas de Taine, ou à defesa que faz Camus, em Os justos, do terrorismo revolucionário. Ou mesmo àquilo que a própria Beauvoir diz de Freud, em seu livro mítico, inaugurando uma ladainha que ainda está em curso: que ele não soube lidar com a mulher.

Depois, não é possível tratar assim, como se fosse um panfleto ou uma cartilha, uma imersão erudita como esta na história das idéias, da ciência, das religiões, das artes, que nada pode ter de utilitária, porque o que se oferece aí não é propositivo _ ainda que tudo aí tenha contribuído para nos reformar _, mas vertiginosamente retrospectivo.Mesmo porque essa retrospecção é tão grave e solene quanto o mergulho de Sartre em Flaubert, realizado nas páginas deste outro livro-monumento que é O idiota da família, em cuja abertura lemos que a pergunta é sobre “o que se pode saber de um homem”, a partir de um “estudo de caso concreto”. É com esse mesmo paradoxo que Beauvoir está envolvida quando, fiel à divisa sartriana da precedência da existência sobre a essência, nos diz, na sua introdução, que não busca um saber geral sobre as mulheres, mas o que escapa ao genérico, o sedimento existencial. Trata-se de uma espécie de ciência do particular. Daí os existencialistas serem também ficcionistas, já que é a literatura que é assim sutil, e Beauvoir ter recebido, em 1954,um Prêmio Goncourt pelo romance Os Mandarins, em que vai em busca do traçado vivencial da sua própria tribo, gesto que Kristeva repetiria, trinta anos depois, em Os Samurais, cujo título é uma clara referência ao de sua predecessora.

Além do mais, se em sua reconstrução de Hannah Arendt _ feita confessadamente na esteira de O segundo sexo _ Kristeva admira-se de que, em pleno século XX, e em plenos Estados Unidos, a autora de Origens do totalitarismo tenha precisado de apliques fálicos para desempenhar-se como filósofa _ o que jamais teria acontecido nem a Beauvoir nem a ela própria, diga-se de passagem, por estarem ambas imersas na cultura matriarcal francesa dos salões, com suas as suas Madame de Récamier e Madame de Staël, que, aliás, ainda estão lá, bem presentes, no mundo proustiano _, não nos podemos gabar de ter chegado ao terceiro milênio sem o ultraje do traje das mulheres veladas. De fato, indo do simples lenço na cabeça, como o trazem as filhas de Saddam Hussein, ao freak show da burka, e ainda que proibido, desde há alguns anos, nas escolas francesas, o véu da vergonha ainda cobre rostos e corpos que surpreendemos, ainda hoje, até mesmo nas ruas das mais avançadas metrópoles européias. Por outro lado, a infibulação _ a ablação iniciática do clitóris _ não cessou na África, nem o apedrejamento das adúlteras no Oriente Médio.

Isso e mais tudo aquilo que sabemos que persiste, como misoginia, mesmo nos mundos que estão agora absorvendo a crise das categorias genéricas _ aqueles em que evoluem as paradas gay __ já bastaria para dar sobrevida a Beauvoir. Mas o que talvez mais importe evocar, neste aniversário, nem é tanto o que resta, ainda, na contemporaneidade, do espírito da caça às bruxas, entendido como vazão do horror ao sexo da mulher, inclusive, quando assume o exorcismo da cortesia, que também a afugenta para longe, ainda que esse para longe seja para o alto. O que talvez seja preciso comemorar é algo que, embora seja o selo da condição feminina, a ultrapassa, transformando, de algum modo, em mulheres todos os que peregrinam, ainda agora, pelo planeta, na qualidade de párias, estrangeiros, estranhos nos mundos em que se encontram. É a dimensão filosófica do Outro. A mulher é o Outro do homem, verifica Beauvoir, em sua introdução, escrevendo a palavra com maiúscula. E acrescenta: assim como o judeu é o outro do anti-semita, o negro, o outro do racista, o índio, o outro do colono, o proletário, o outro do patrão. “Para o aldeão , todas as pessoas que não participam da aldeia são Outros suspeitos”, como escreve Beauvoir.

Num livro chamado Estrangeiros para nós mesmos, que antecede de 10 anos o seu tríptico feminino, Kristeva, também armada pelo Sartre que dizia em A Questão judaica que clamar contra o judeu é coisa que se faz em bando de linchadores, mas trazendo agora à baila a projeção freudiana, vai redefinir esse Outro como aquele que devemos poder reconhecer em nós, para não ter que odiá-lo fora de nós.

Eis aí um belo resumo para O segundo sexo, por uma outra dama das letras francesas.Ao depositar toda a problemática da feminilidade na problemática da diferença, mostrando que a cultura, reiterativamente, fez a mulher representar a diferença extrema _ vejam-se as Górgonas, aqueles seres horrendos concebidos pelos gregos, que também eram misóginos, para o exorcismo do terror_ este precioso calhamaço da era dos filósofos franceses torrenciais troca o feminismo pela fraternidade, e é assim que chega até nós, sem problemas.

Fraternidade _ de resto _ é a última palavra do livro: “É no seio do mundo que lhe foi dado que cabe ao homem fazer triunfar o reino da liberdade; para conseguir essa suprema vitória, é preciso, entre outras coisas, que, para além de suas diferenças naturais, homens e mulheres afirmem sem equívoco sua fraternidade”. Eis no que é preciso insistir, agora. E não no clichê: “não se nasce mulher, se é transformado numa”.

Leda Tenório da Motta é professora no Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da PUC/SP, crítica literária e tradutora. Escreveu, entre outros, Sobre a crítica literária brasileira no último meio século (Imago, 2002). Prepara atualmente o volume O jovem crítico loiro. Sobre a crítica inclusive cultural.

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